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A importância da Bioestatística na formação de um profissional de Saúde

O ano de 2020 trouxe, um protagonismo inesperado para uma personagem com uma imagem bastante controversa entre os profissionais da área da Saúde: a Bioestatística. Mesmo nas mídias não especializadas vimos um destaque incomum para “gráficos”, “tabelas” e “incidências”. Evoluímos para uma discussões em torno de “Rt”, “taxas de mortalidade e letalidade”, “médias móveis”, “percentuais de aumento e redução”. Agora nos tornamos íntimos de “testes fase 3” e “taxa de eficácia”. Gestores começam a discutir sobre “modelos”, “projeções” e “estimativas” como subsídio para o planejamento e ações relativas a políticas públicas.(11 Basile FA, Colugnatti AB, Nogueira MC, Vieira MT, Teixeira MT, Gonçalves IC, et al. Enfrentamento da epidemia de covid-19 pela análise de dados: Relato de uma equipe de pesquisadores. Rev Bras Estat. 2020;78(244):161-81.)

Entretanto, principalmente entre os alunos de graduação, a disciplina Bioestatística está sempre associada a uma pergunta: “porque é preciso estudar isso?” Esta pergunta é, em geral, seguida de uma afirmação: “nós, da área de saúde, temos pouca afinidade com números!” A estrutura dos currículos dos cursos de graduação na área da Saúde é composta por uma ou duas disciplinas de Bioestatística, em geral ministradas nos períodos iniciais. Com o desenvolvimento do curso este pensamento tende a mudar, pois o aluno terá de lidar com trabalhos acadêmicos e atividades em ligas, monitorias e programas de iniciação científica. Uma vez graduados, os profissionais passam a sentir o peso das deficiências na formação em estatística, seja como pesquisadores ou simplesmente ao ler um artigo científico.(22 Al-Tawil NG. Role of biostatistics in medical research. Zanco J Med Sci. 2013;17(2): 386-7.

3 Miles S, Price GM, Swift L, Shepstone L, Leinster SJ. Statistics teaching in medical school: opinions of practising doctors. BMC Med Educ. 2010;10(1):75.
-44 Hayat MJ. Statistics Education in the Health Sciences. J Stat Educ. 2018;26(2):135-6.)

Entende-se por Bioestatística o estudo da estatística aplicada às áreas de biologia e saúde. Fornece a base teórica para extrairmos conhecimento dos dados na presença de variabilidade e incertezas. O conhecimento dos fundamentos de bioestatística são requisitos para a o entendimento de literatura especializada, realização de experimentos de Biologia, estudos clínicos na área médica, farmacologia, fisioterapia, odontologia entre outros. É importante na decisão sobre testes diagnósticos, tratamentos e cuidado de pacientes, uma vez que nunca se tem absoluta certeza de um desfecho.

O desenvolvimento de novas tecnologias, definições de políticas públicas são firmemente baseados em um uso correto dos conceitos de bioestatística, assim como é adotado o uso dos princípios da Medicina Baseada em Evidências como base para a definição dos protocolos de tratamento.(55 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes metodológicas: elaboração de revisão sistemática e metanálise de ensaios clínicos randomizados. Brasília (DF): Editora do Ministério da Saúde; 2012.)

Todos os anos, bilhões de dólares de fundos públicos e privados são investidos em pesquisas, que dependem fundamentalmente de uma correta definição de metodologia, análise de dados e interpretação dos resultados.

Vivemos agora a época do “big data”, onde grandes massas de dados, disponíveis nos bancos governamentais e das grandes operadores de saúde complementar, são avaliadas por novos algorítmos e poderosos computadores, demandando conhecimentos de modelagem, computação e estatística.(66 Khoury MJ, Ioannidis JP. Big data meets public health: human well-being could benefit from large-scale data if large-scale noise is minimized. Science. 2014;346(6213):1054-5.-77 Perez JA, Poon CC, Merrifield RD, Wong ST, Yang G-Z. Big data for health. IEEE J Biomed Health Inform. 2015;19(4):1193-208..)

Pesquisas sugerem a utilização de Inteligência Artificial (IA) como paliativo para aumento no número de acessos aos serviços de saúde. Essa técnica vem sendo testada para uma série atividades antes atribuídas a profissionais, como, por exemplo, laudo de exames diagnóstico. Experiência recente vem sendo realizada para detecção de Covid-19 por algorítimo computacional. Operadoras de saúde suplementar já utilizam IA para liberar ou não uma cirurgia, auditar ou não uma conta médica, definir quais beneficiários devem participar de um programa de crônicos ou que necessitam de acompanhamento mais próximo, com objetivo de melhorar o serviço e reduzir custos.(88 Gameiro GR, Arasaki AM, Lira CC, Kneipp Neto S, Stachuk MR. Inteligência Artificial a Serviço da Medicina Brasileira. Rev Med (São Paulo). 2019;98(1):i-iii.)

Tudo isso torna fundamental uma mudança da percepção da bioestatística desde o começo da graduação. Um dos responsáveis pela má fama é a carência da utilização de metodologias mais atrativas de ensino pelos docentes de bioestatística. Embora muito esforço tenha sido feito em pesquisas sobre educação estatística para os ensinos fundamental e médio, pouco tem sido produzido com foco no ensino superior. Apenas na última década foi observado um aumento no número desses estudos.(99 Silva JF, Curi E, Schimiguel J. Um cenário sobre a pesquisa em Educação Estatística no Boletim de Educação Matemática - BOLEMA, de 2006 até 2015. Bolema. 2017;31(58):679-98.)

Recentes também são as experiências para desenvolvimento de técnicas e ferramentas atrativas para alunos da área de saúde. Apenas recentemente o importante Journal of Statistics Education passou a dedicar uma seção aos métodos de ensino na área da saúde.(1010 Oster RA, Enders FT. The Importance of Statistical Competencies for Medical Research Learners. J Stat Educ. 2018;26(2):137-42.)

Algumas revistas científicas buscam preencher as lacunas do conhecimento dos conceitos de bioestatística publicando series de artigos didáticos. Um destaque para a série de editoriais em tópicos de bioestatística apresentada no American Journal of Ophthalmology.(1111 Coleman AL. The role of statistics in ophthalmology. Am J Ophthalmol. 2009;147(3):387-8.)

A estrutura de departamentos de estatística generalistas costuma alocar professores com pouco conhecimento das especificidades de cada área em disciplinas aplicadas. Não é comum a existência de uma disciplina abordando didática em ensino no currículo dos bacharelados ou pós-graduação em estatística, celeiro dos futuros docentes.

É fundamental um estimulo à disseminação de Departamentos de Bioestatística nas universidades brasileiras, onde a atuação conjunta de profissionais de saúde, estatística e computação tende a contribuir para um intercâmbio de experiências e o incremento da qualidade das pesquisas.(1212 Lee KJ, Moreno-Betancur M, Kasza J, Marschner IC, Barnett AG, Carlin JB. Biostatistics: a fundamental discipline at the core of modern health data science. Med J Aust. 2019;211(10):444-446.e1.)

É muito importante que profissionais da saúde tenham uma sólida formação nos conceitos básicos de bioestatística, e isso será ainda mais crucial em num futuro muito próximo. O incremento no desenvolvimento das habilidades em estatística está associado a uma boa base matemática, a uma mudança no formato da apresentação dos conceitos e à valorização desta habilidade pelos profissionais seniores.(1313 Milic NM, Masic S, Milin-Lazovic J, Trajkovic G, Bukumiric Z, Savic M, et al. The importance of medical students' attitudes regarding cognitive competence for teaching applied statistics: multi-site study and meta-analysis. PLoS One. 2016;11(10):e0164439.) A quebra deste paradigma deve ser conduzida por uma estreita parceria entre os atores de forma a alterar a percepção sobre a Bioestatística e permitir o efetivo incremento da qualidade e quantidade das pesquisas e dos profissionais da área da saúde.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Basile FA, Colugnatti AB, Nogueira MC, Vieira MT, Teixeira MT, Gonçalves IC, et al. Enfrentamento da epidemia de covid-19 pela análise de dados: Relato de uma equipe de pesquisadores. Rev Bras Estat. 2020;78(244):161-81.
  • 2
    Al-Tawil NG. Role of biostatistics in medical research. Zanco J Med Sci. 2013;17(2): 386-7.
  • 3
    Miles S, Price GM, Swift L, Shepstone L, Leinster SJ. Statistics teaching in medical school: opinions of practising doctors. BMC Med Educ. 2010;10(1):75.
  • 4
    Hayat MJ. Statistics Education in the Health Sciences. J Stat Educ. 2018;26(2):135-6.
  • 5
    Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes metodológicas: elaboração de revisão sistemática e metanálise de ensaios clínicos randomizados. Brasília (DF): Editora do Ministério da Saúde; 2012.
  • 6
    Khoury MJ, Ioannidis JP. Big data meets public health: human well-being could benefit from large-scale data if large-scale noise is minimized. Science. 2014;346(6213):1054-5.
  • 7
    Perez JA, Poon CC, Merrifield RD, Wong ST, Yang G-Z. Big data for health. IEEE J Biomed Health Inform. 2015;19(4):1193-208..
  • 8
    Gameiro GR, Arasaki AM, Lira CC, Kneipp Neto S, Stachuk MR. Inteligência Artificial a Serviço da Medicina Brasileira. Rev Med (São Paulo). 2019;98(1):i-iii.
  • 9
    Silva JF, Curi E, Schimiguel J. Um cenário sobre a pesquisa em Educação Estatística no Boletim de Educação Matemática - BOLEMA, de 2006 até 2015. Bolema. 2017;31(58):679-98.
  • 10
    Oster RA, Enders FT. The Importance of Statistical Competencies for Medical Research Learners. J Stat Educ. 2018;26(2):137-42.
  • 11
    Coleman AL. The role of statistics in ophthalmology. Am J Ophthalmol. 2009;147(3):387-8.
  • 12
    Lee KJ, Moreno-Betancur M, Kasza J, Marschner IC, Barnett AG, Carlin JB. Biostatistics: a fundamental discipline at the core of modern health data science. Med J Aust. 2019;211(10):444-446.e1.
  • 13
    Milic NM, Masic S, Milin-Lazovic J, Trajkovic G, Bukumiric Z, Savic M, et al. The importance of medical students' attitudes regarding cognitive competence for teaching applied statistics: multi-site study and meta-analysis. PLoS One. 2016;11(10):e0164439.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2021
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