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A história ou o medo ao presente uma crítica a vestibulares de história

COMENTÁRIOS

A história ou o medo ao presente uma crítica a vestibulares de história1 1 Agradecemos a sugestão do titulo a Maurício Tragtenberg.

José Carlos Garcia Durand

Professor do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas

"Em todas as fases de mudança ocorrem revisões históricas." Estas palavras, que abrem o prefácio à segunda edição da Coleção História Nova do Brasil - organizada pelo Ministério da Educação e Cultura no limiar do ancien-régime - definiam a perspectiva de seus autores a respeito da história do Brasil então vigente e bem representada nos manuais escolares: era necessário "revê-la e desmistificá-la". À acusação, em inquérito policial militar instaurado, de que o convênio entre os autores e o MEC seria exemplo de subversão, responderam os autores, no mesmo texto, que IPMs não eram "processo adequado para discutir problemas científicos".2 2 Sodré, Nelson Werneck et alii. História nova do Brasil. 2. ed. Editora Brasiliense, s. d. v. 4, p. 7. Mas, o argumento não convenceu e o projeto acabou interditado pelas novas autoridades educacionais.

A afirmação inicial pode ser retraduzida nas palavras seguintes, mantendo-se seu caráter generalizante: sempre que há alteração profunda na ordem social, surgem condições estimulantes da reflexão histórica renovadora. No caso da ausência do antecedente, é de supor-se permaneça a interpretação histórica tradicional e consagrada, isto é, a proposição sustenta um nexo de necessidade.

Ora, observando-se que houve retorno posterior à versão oficializada da história brasileira, sugere-se que: a) ou não houve alterações institucionais tão profundas daí por diante, e endossa-se o nexo de necessidade proposto; ou b) a versão anterior era ajustável às transformações ocorridas nos últimos anos, não exigindo revisões; ou então c) a relação de necessidade não procede.

Mas, como não é nossa intenção discutir qual das três hipóteses é a mais provável no caso específico do Brasil, contentemo-nos com a evidência, hoje difícil de negar, de que as interpretações históricas flutuam a par das drásticas alterações ocorridas na estrutura social, ou do rompimento da mesma. Isso conduz à conclusão de que, em história, a explicação não se firma, cristalinamente, em verdades atemporais, onde o certo e o errado estabelecem-se por dedução lógica e apresentam-se inconfundíveis, como na matemática. Mesmo no que tange à pretensão de generalidade

de suas afirmações, ainda que se sustente, numa frase de efeito, que a "história se repete", nada há de proposições legais a garantir que era necessário a ocorrência de tal evento ou processo no momento x, com base na ocorrência de eventos ou processos similares em momentos anteriores. Ainda que a história busque reconstruir o processo em suas especificidades, ressaltando seu caráter de fenômeno único, ou particular, isso não retira crédito às suas asserções, pois a atribuição causal não tem de ser necessariamente legal, como Weber lembrava com insistência.3 3 Cf. Freund, Julien. Sociologie de Max Weber. 2. ed. Paris, Presses Universitaires de France, 1968. p. 41-51.

O que dissemos a respeito do caráter relativo das interpretações históricas não é absolutamente novidade. Desde que grupos institucionalmente fundamentais na ordem social (as classes sociais, por exemplo) alcançaram condições de refletir sua experiência social e organizá-la numa concepção do mundo mediante contraste com outras concepções fundadas, por sua vez, nas posições de outros grupos fundamentais em situação antagônica, surgiram meios de se perceber o relativismo da interpretação histórica; desabou a ilusão da possibilidade de consenso na visão do passado e do presente, ainda que todos procedessem ao mais exaustivo, completo e idôneo levantamento de fatos. Passou-se a admitir que o conhecimento histórico reflete, em maior ou menor grau, a ordem social em que é produzido, e a posição, interesses e quadro de valores de seus produtores.4 4 Pretendemos conciliar as posições de Weber, segundo o qual a relevância do fato e a seleção dos fenômenos são determinados pela consciência do investigador, com a de Marx, que atribui à classe social a gênese das categorias básicas de explicação do social. Estamos cientes de que são posições divergentes quanto à epistemologia implícita, porém abrimos mão de uma distinção mais acurada, reconhecendo apenas seu ponto de convergência na negação da possibilidade de estabelecimento de verdades atemporais e irrefutáveis no conhecimento histórico-social. Daí que o fenômeno ideologia, antes concebido como manifestação de subjetivismo na análise dos processos históricos, e portanto superável pelo rigor científico, passou a ser encarado como o resultado da operação, sobre o historiador, da estrutura social em que se insere e da constelação de interesses que sua posição social lhe define; como um limite insuperável, enfim, a escamotear qualquer pretensão de construção de sistemas interpretativos unívocos e definitivos. A comprovar o reconhecimento da historicidade das concepções históricas, aí está o refinamento - não recente, aliás - da filosofia da história e da sociologia do conhecimento. Esta última propõe-nos que não só o conteúdo da explicação, mas também as próprias categorias de pensamento, de que nos valemos ao analisar passado e presente, são produtos das mesmas injunções sociais, ou, no dizer de Mannheim:

"Quando atribuímos a uma época histórica um mundo intelectual, e a nós um outro, ou se uma certa camada social, historicamente determinada, pensa em categorias diferentes das nossas, não nos referimos a casos isolados de conteúdo de pensamento, mas a sistemas de pensamento fundamentalmente divergentes e a modos de experiência e interpretação profundamente diversos. Tocamos no nível teórico ou noológieo sempre que consideramos, não só o conteúdo, mas também a forma e mesmo o quadro conceituai de um modo de pensamento, como função da situação de vida de um pensador."5 5 Mannheim, Karl. Ideologia e utopia, uma introdução à sociologia do conhecimento. Porto Alegre, Editora Globo, 1956. p. 53.

Se descartarmos a hipótese de que o gasto de energias intelectuais no discernimento do passado não é mero exercício da erudição diletante, devemos admitir que a sua prática tem algo a ver com o presente, isto é, que o conhecimento histórico desempenha sobre o presente, que amanhã será passado, alguma função que é preciso explicar. Esta só pode ser o entendimento do presente como momento de um longo processo que, se não feito inteligível, incapacita-nos a compreensão do que está ocorrendo; logo, impede-nos de nos situarmos devidamente como sujeitos e objeto do processo social, no efêmero momento de uma existência. Só o conhecimento histórico nos induz à percepção da transitoriedade do presente, mas desde que este seja incorporado à história.

Isso ocorre? Nem sempre. Quando sim, podemos falar de uma história dinâmica; quando não, de uma história estática e estéril, ou seja, de conhecimento que lembra erudição ou ilustração, com todas as conotações pejorativas de gratuidade que esses termos comportam. É claro que as condições de atualização do conhecimento histórico não dependem só da necessidade de refletir um presente em mudança acelerada, mas prendem-se também à concepção corrente do que seja história e dos procedimentos oficiais que controlam a alimentação de material de analise para essa disciplina. A prática, mais ou menos generalizada, de só se liberar ao estudo científico, documentos reservados de governo, 30 ou 40 anos após sua emissão, mostra que razões de Estado operam no sentido de sustentar a idéia de que o objeto da história é o passado, evitando que o contato do cientista com decisões, relevantes e recentes em torno das quais as paixões, os antagonismos e as críticas possam abrir polêmica, exaltar os ânimos e estimular a tomada de posição perante a política corrente, venha em prejuízo da "neutralidade" e da frieza de análise esperadas da ciência.

Partindo do princípio de que a reflexão histórica só se justifica em seu aspecto dinâmico, e da observação de que, ao contrário, em nosso sistema de ensino ela tende a se difundir em seu caráter estático, selecionamos para crítica um momento em que este se manifesta: a avaliação de candidatos a ingresso no ensino superior - o vestibular.

Como se sabe, o vestibular de história era feito originalmente na forma de apresentação de um tema a cujo respeito devia o candidato desenvolver uma dissertação, complementada por um exame oral, em que o examinador propunha uma série de perguntas mais ou menos amplas; em ambas as oportunidades, tinha o examinador condições de verificar não apenas as informações do estudante, mas principalmente sua capacidade de articular as informações obtidas em termos de exposição oral ou escrita. Dessa forma, garantia-se ao examinando condições de mostrar que compreendeu dada fase histórica, de fazer paralelos com outras fases, enfim de revelar se ele captou a história como processo inteligível, ou, ao contrário, se as informações foram memorizadas num mosaico fragmentário e sem utilidade.

Porém, a possibilidade de se praticar um contato direto e pessoal com o examinando supunha um pequeno número de inscritos; no momento em que esse número se eleva a uma quantidade tão grande que se torna impossível materialmente selecionar por meio de dissertação escrita e prova oral, a alternativa que se impõe é a de aplicar testes fechados - um conjunto de perguntas com determinado número de alternativas de resposta previstas. No caso, a técnica (em história) consiste em formular questões em que n-1 alternativas são reduzidas ao absurdo ou colocadas como muito pouco prováveis, visto que o consenso que permite sustentar uma afirmativa como certa ou errada, não existe, a não ser quanto ao local e data de determinadas ocorrências. Ora, como em história cada evento está relacionado a outros por infinitas relações de causação, a redução ao absurdo ou a diminuição da probabilidade de n-1 respostas tornam-se operações delicadas. Para contornar a possibilidade de questionamento da eficiência do teste, os seus formuladores são estimulados a recorrer a indagações de atributos de eventos que menor margem dêem à discussão, ou seja, os de local e data (isto é, perguntas chamadas factuais) e a evitar a proposição de relações causais ou a sugerir interpretações, sempre passíveis de debate, conforme o esquema interpretativo adotado. Reconhecemos assim que o teste fechado não é a melhor forma de estimar a formação do estudante em história; e, embora essa modalidade imponha-se em virtude do enorme número de candidatos - que na Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas já oscila em torno de 1.500 a dois mil por semestre - pode ser aperfeiçoada, se formada sob o conceito dinâmico já apontado.

Em primeiro lugar, sustentamos que as questões factuais devem ser eliminadas dos testes de história, visto que medem apenas a capacidade de memorização do estudante. Entendemos por pergunta factual aquela que indaga o local e/ou a data de ocorrência do evento, a denominação de uma instituição social ou padrão cultural, o autor de determinada obra artística ou o líder ou teórico de um movimento político, religioso, militar, etc. Em oposição, admitimos que o teste deva compor-se de perguntas de razão, ou seja, as que solicitam as causas ou conseqüências de eventos ou processos ou que indagam da intenção ou da finalidade de certa medida relevante tomada em grupo ou individualmente. Dois exemplos reais, retirados de testes de história geral de vestibulares passados da EAESP/FGV, parecem ilustrar bem nossa crítica:

"A Rainha Elizabeth I era irmã e sucedeu a:

a) Henrique VII;

b) Henrique VIII;

c) Robert Bruce;

d) Maria Stuart;

e) Maria Tudor."

Embora a questão envolva personagens importantes no processo de afirmação do absolutismo inglês, no século XVI, e a referida sucessão no trono se prenda às violentas crises religiosas que permearam o período na Inglaterra, o candidato pode atinar com a resposta certa ou pelo conhecimento desses processos ou pelo acompanhamento da genealogia aristocrática inglesa, isto é, no segundo caso a questão pode ser arrematada pelo simples recurso mnemónico: em si - tal como é enunciada - a pergunta nada coloca de importante.

Outro exemplo:

"Os cartagineses sofreram sua derrota definitiva, perante os romanos, na batalha de Naragara, no ano 202 a.C. em que foi derrotado:

a) Cipião por Fábio;

b) Amílcar por Druso;

c) Asdrúbal por Cláudio;

d) Aníbal por Cipião;

e) Fábio por Cipião."

Como se vê, a pergunta requer que se apontem os comandantes rivais de uma batalha e qual deles o vencedor, apenas. É claro que, para indagar algo relevante a respeito deveria o formulador da questão refletir anteriormente: a) qual a importância do conflito entre Roma e Cartago na dinâmica do Império Romano; b) qual a importância da batalha de Naragara na série de conflitos bélicos entre o Império e o entreposto fenício; e, c) qual a importância do desempenho do comandante no êxito da peleja, para os romanos, ou na derrota, para os cartagineses. Se essa regressão crítica fosse feita, dentro da concepção da história como processo inteligível, por certo a questão não seria formulada como foi. Se não se levar em conta que qualquer ação humana digna de registro só o é enquanto aproveitamento de possibilidades de transformação virtuais ou latentes, socialmente dadas e que, portanto, só pode ser entendida se inserida no contexto respectivo, cai-se na visão deformada de conceber o processo histórico como produto da ação de "heróis civilizadores" e seu discurso termina por se confundir com o relato apologético dos grandes feitos. Sem grande dificuldade, a tendência de formulação de questões factuais leva ao preciosismo, ao absurdo da preocupação com irrelevâncias, justificando a pilhéria corrente entre vestibulandos de que "o exame só faltou perguntar a cor das ceroulas do rei". Naturalmente, o recurso ao pormenor não é meio de tornar a disciplina história respeitável aos olhos do estudante em formação. Somente para ilustrar, apresentamos a proporção de questões factuais em alguns testes vestibulares de história geral da EAESP/FGV, selecionados dentro de um espaçamento de tempo entre os exemplares disponíveis para consulta.

Vestibular de história geral de:

junho de 1966: 18 questões factuais no total de 40, ou seja, 45%;

junho de 1969 : 33 questões factuais no total de 50, isto é, 66%;

julho de 1971: nove questões factuais no total de 50, quer dizer, 18%.

Desde que não examinamos todos ou a maioria dos testes aplicados no período (em número de 10, a contar de junho de 1966), os resultados não servem como amostragem para inferir tendências, visto que também a composição das bancas varia a cada semestre. Note-se apenas que alguns testes apresentam elevada proporção de questões de fato. Essas ressalvas são válidas para os demais usos dos dados neste artigo.

Em segundo lugar, admitimos que os vestibulares de história devem preocupar-se mais com o presente, ao invés de tratar com a mesma ênfase todas as "idades" da história universal.

Traduzindo em proposta a consideração anteriormente feita de que o exame do passado só se justifica em termos de sua contribuição ao entendimento do presente, somos levados a admitir que o programa oficial de história geral do ensino médio, que os vestibulares procuram seguir, apresenta sérios obstáculos a uma visão mais atualizada e profunda de seu objeto de estudo: remete o estudante ao Egito antigo e, a partir daí, leva-o às demais civilizações da antiguidade, exigindo dele um volume tal de informações que necessariamente prejudica um tratamento mais aprofundado da época contemporânea e dos dias correntes. Geralmente, endossa-se o pressuposto de que a história universal começa no Egito antigo e termina nas conseqüências imediatas da II Guerra Mundial. Em conseqüência de sua enorme amplitude temporal, a história ensinada no nível médio, ao invés de ir aprofundando à medida que se aproxima do presente, opera por uma seleção de assuntos que deixa de lado muitos processos, sem os quais não se pode refletir os grandes dilemas contemporâneos. Em suma, o aluno acaba por acreditar que a "história universal", que, entre nós, confunde-se com a do Ocidente, termina no projeto recuperador do Plano Marshall (muito questionado nos vestibulares), ou seja, no elogio da salvação americana à destruição e descapitalização da Europa após 1945. Da mesma forma, a história da Rússia, tão precariamente estudada, termina com a ascensão dos bolcheviques ao poder. A China simplesmente não aparece, como se não fosse hoje reconhecida potência mundial. Da periferia do capitalismo, ou do chamado "Terceiro Mundo", que ressurge na cena mundial, há mais de 20 anos, como o grande centro explosivo, pouco ou nada se questiona, como se a problemática do desenvolvimento só fosse cabível no discurso dos economistas e sociólogos. A história latino-americana encerra-se (enquanto tal) com os movimentos de autonomia política, como se os processos subseqüentes nada tivessem de geral em termos do continente ou do mundo subdesenvolvido, e fossem assuntos da história nacional de cada república. Em contrapartida, continua presente no programa e nos vestibulares a preocupação com o Egito, a Mesopotâmia, com os hebreus, fenícios.

A nosso ver, o presente é satisfatoriamente inteligível a partir da plena configuração do sistema feudal de produção e da estrutura social sobre ele montada. É das pressões endógenas e exógenas que essa ordem social sofre, que surge a estrutura capitalista, cujas transformações subseqüentes (ou fases) podem ser vistas como o desenrolar de uma certa lógica de desenvolvimento. Nesse sentido, nossa proposta não é a de que o vestibular de história geral deva - para exprimir uma visão mais atualizada - unicamente aumentar a proporção de questões sobre a época contemporânea. Antes, trata-se de buscar uma fórmula para traduzir na organização do teste a noção de que o capitalismo é uma ordem ou tipo social,6 6 Entendemos por tipo social a abstração que apanha os traços essenciais da ordem social, assim como os princípios específicos que a regem. Pensamos necessariamente em termos de tipos ou modelos sempre que ultrapassamos o relato descritivo dos eventos ou a visão evolucionista de história, segundo a qual toda a humanidade está orientada para um mesmo destino. cuja estrutura é nitidamente diferenciável das ordens ou tipos anteriores - seja dos impérios antigos, seja do feudalismo - e que passa, em função de seus princípios ordenadores internos, por uma série de fases enlaçáveis em suas leis (ou tendências) específicas de transformação, ordem essa irredutível aos limites geopolíticos do Estado-Nação, porque internacional desde sua origem.

À alegação possível de que limitar as exigências, no vestibular de história, ao conhecimento do período compreendido entre o feudalismo e os dias correntes, constituiria um ponto de partida arbitrariamente estabelecido, respondemos que o recorte arbitrário em história é inevitável, pois toda regressão causal nela é, por definição, infinita. Freund assim exprime a posição de Weber a respeito da regressão causal:

"O que aprendemos a conhecer, pela causalidade (tanto na esfera natural como na cultural) não passa de uma visão fragmentária e parcial da realidade, sobre a base de uma estimativa de caráter probabilista. Sendo a diversidade do real infinita tanto do ponto de vista extensivo quanto do intensivo, a regressão causal é indeterminada. Se quiséssemos esgotar o conhecimento causal de um fenômeno, seria necessário levar em conta a totalidade de vir a ser, pois todo o vir a ser finalmente contribuiu para a produção do efeito singular que constitui o objeto de estudo."7 7 Cf. Freund, J. op. cit. p. 43.

Não pretendemos sustentar a tese radical da inutilidade de exame das civilizações antigas, mas apenas sugerir que, para o entendimento do presente, sua importância é limitada, e a atenção a elas dedicada - principalmente às vésperas do vestibular - retira do estudante um tempo precioso, mais aproveitável no estudo de processos do século atual, de modo a suprir as lacunas já apontadas.

Adotando-se a divisão convencionada da história universal por idades, e distribuindo-se as perguntas dos testes examinados segundo essa divisão, chegamos ao quadro 1 apresentado a seguir: o esquecimento do presente fica bem claro no fato de que, embora a maioria das perguntas (40% nos últimas dois testes) refira-se à chamada Idade Contemporânea, aberta com a ascensão da burguesia ao poder na França (1789), nenhuma diz respeito a algo que se tenha passado nos últimos 20 anos.


Nossa terceira proposição é a de que os vestibulares de história devem enfatizar mais o sistema de produção e as relações de produção daí decorrentes e a estratificação social, ao invés de se limitar, quase exclusivamente, a questões que digam respeito direto ao sistema de poder.

A concepção tradicional da história concede privilégios, de maneira exagerada, à manifestação, ao nível imediato do poder, dos antagonismos e conflitos sociais decorrentes da transformação da ordem econômica e da posição dos grupos sociais estruturalmente decisivos. Em decorrência, abundam perguntas sobre o desfecho das crises ao nível da decisão política ou da iniciativa militar, como se competisse à história revelar apenas a ponta do iceberg - o âmbito político-militar. Uma história mais integrada deveria ser mais econômicosocial e menos exclusivamente política; deveria dizer-nos (ou perguntar-nos) não apenas mediante que medidas ou atos manteve-se, alterou-se ou destruiu-se determinada relação de dominação, mas principalmente como essa dominação materializou-se ou materializa-se estruturalmente, definindo relações de classes ou de estratos e como se altera, acompanhando ou resistindo, às mudanças da técnica produtiva e das relações de produção. Embora todos reconheçam a impossibilidade de uma distinção inquestionável entre o político, o social e o econômico (não obstante se abuse dessa classificação), e mesmo que se aceite que qualquer evento ou processo contenha elementos das três ordens, arriscamos distribuir as perguntas dos vestibulares segundo a ordem dos fatos ou processos envolvidos, de que resultou o quadro 2.


Para esclarecer melhor o quadro apresentado, arrolamos em "político-militar" as questões que indagam: a) o local e a data de alguma decisão de poder; b) a autoria ou a participação de grupos em medidas de poder; c) a denominação de partidos ou outros agrupamentos da esfera do poder; d) o conteúdo de filosofias políticas ou das razões dadas para certas decisões; e) a origem, o conteúdo e a finalidade de medidas legais ou normas administrativas. Reunimos em "sociais" as questões em que se destaca a preocupação com a estratificação social. Como exemplo, reproduzimos uma questão relativa à estratificação oriunda do contato de espanhóis com as sociedades nativas da América, na situação de dominação dos primeiros:

"Nas colónias espanholas da América do Sul, os espanhóis da metrópole eram chamados 'chapetones' e aqueles nascidos na América eram os 'crioulos'.

a) os 'crioulos' tinham facilidade em participar do alto comércio, mas eram excluídos dos postos administrativos da colónia;

b) os 'crioulos' estavam praticamente alijados do alto comércio e da administração pública, além de serem socialmente discriminados;

c) os 'crioulos' estavam praticamente alijados do alto comércio e da administração pública, mas ocupavam cargos eclesiásticos;

d) os 'chapetones' consideravam os 'crioulos' seus iguais, mas estes se sentiam inferiorizados por seu nível cultural baixo;

e) todas as alternativas estão corretas."

Finalmente, enquadramos em "econômicas" perguntas que destacam as técnicas de produção e de troca ou que indagam das repercussões sobre o sistema de produção-distribuição-consumo de qualquer evento ou processo. E em "culturais" juntamos as que estudam as manifestações artísticas, científicas e religiosas.

O quadro evidencia que nos testes vistos a metade ou mais da metade das questões diz respeito ao subsistema do poder, e apenas o de julho de 1971 revela mais atenção com os níveis "social" e "econômico", propriamente ditos. Para usar uma linguagem corrente, poderíamos dizer que se enfatiza a superestrutura - as decisões políticas e as manifestações culturais (religiosas, artísticas, científicas) - em detrimento dos níveis por nós considerados mais significantes.

Considerações finais

Dado que tomamos como referência para a crítica da concepção corrente de história um caso muito particular - ou seja, testes vestibulares na instituição a que pertencemos - queremos deixar claro que não pretendemos questionar o conhecimento, a capacidade analítica e a visão de mundo daqueles professores que, ao final de cada semestre letivo, são convocados ao desempenho de uma tarefa indispensável para o funcionamento da escola: a seleção de novas turmas. Em verdade, todos sabemos que a participação do professor nas bancas de vestibular afasta-o intelectualmente de suas preocupações prioritárias com ensino e pesquisa, e, por algumas semanas, coloca-o como membro anônimo de uma equipe, que se renova semestralmente. As circunstâncias de a formulação de questões ser trabalho ocasional nas atividades do professor e de a organização do vestibular requerer um sistema que realize múltiplas e diversificadas tarefas com rapidez e pontualidade, operam no sentido de imprimir um caráter rotineiro à montagem do vestibular. Cabe acrescentar, ainda, que no caso de história, as questões são preparadas usualmente por professores das áreas afins (sociologia, ciência política e economia) que, embora mais familiarizados que seus colegas de outros departamentos com o assunto da disciplina, não têm nela seu principal foco de interesse. No conjunto, essa série de circunstâncias desfavorece a reflexão mais demorada sobre o conteúdo do vestibular, permitindo que se perpetuem, a cada semestre, muitas das diretrizes tradicionalmente adotadas, e condizentes com as normas e procedimentos vigentes nas demais instituições de ensino superior. Nesse sentido, nossa crítica não se dirige exclusiva nem principalmente ao vestibular da EAESP, mas à orientação generalizada dos vestibulares de história que, em geral, procura adaptá-lo à matéria do programa oficial da disciplina no ensino médio.

A justificativa da crítica situa-se no reconhecimento de que, tendo a instituição de ensino superior liberdade no estabelecimento de diretrizes quanto ao conteúdo de seu exame de seleção, no caso de história achamos que uma reorientação no sentido de enfatizar mais a época contemporânea, de reduzir ou eliminar as questões factuais e de solicitar melhor conhecimento da estrutura social, dos processos de estratificação e do sistema econômico, traria enormes vantagens. O estudante seria estimulado a conceber a história como processo inteligível; a percebê-la como condição de entendimento do presente, e não como um grande arquivo de informações arduamente memorizáveis e facilmente esquecíveis.

Como muitos colégios e toda a rede suplementar informal dos cursinhos orientam-se pelas exigências do vestibular, acreditamos que aperfeiçoamentos no sistema de seleção têm, por si, efeito multiplicador de influência sobre o ensino médio, não se podendo esquecer o caráter pedagógico aí contido.

  • 2 Sodré, Nelson Werneck et alii. História nova do Brasil. 2. ed. Editora Brasiliense, s. d. v. 4, p. 7.
  • 5 Mannheim, Karl. Ideologia e utopia, uma introdução à sociologia do conhecimento. Porto Alegre, Editora Globo, 1956. p. 53.
  • 1
    Agradecemos a sugestão do titulo a Maurício Tragtenberg.
  • 2
    Sodré, Nelson Werneck et alii.
    História nova do Brasil. 2. ed. Editora Brasiliense, s. d. v. 4, p. 7.
  • 3
    Cf. Freund, Julien.
    Sociologie de Max Weber. 2. ed. Paris, Presses Universitaires de France, 1968. p. 41-51.
  • 4
    Pretendemos conciliar as posições de Weber, segundo o qual a relevância do fato e a seleção dos fenômenos são determinados pela consciência do investigador, com a de Marx, que atribui à classe social a gênese das categorias básicas de explicação do social. Estamos cientes de que são posições divergentes quanto à epistemologia implícita, porém abrimos mão de uma distinção mais acurada, reconhecendo apenas seu ponto de convergência na negação da possibilidade de estabelecimento de verdades atemporais e irrefutáveis no conhecimento histórico-social.
  • 5
    Mannheim, Karl.
    Ideologia e utopia, uma introdução à sociologia do conhecimento. Porto Alegre, Editora Globo, 1956. p. 53.
  • 6
    Entendemos por
    tipo social a abstração que apanha os traços essenciais da ordem social, assim como os princípios específicos que a regem. Pensamos necessariamente em termos de tipos ou modelos sempre que ultrapassamos o relato descritivo dos eventos ou a visão evolucionista de história, segundo a qual toda a humanidade está orientada para um mesmo destino.
  • 7
    Cf. Freund, J. op. cit. p. 43.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Maio 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1972
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