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Tecnocracia como modo de produção

ARTIGOS

Tecnocracia como modo de produção

Carlos Estevam Martins

Professor do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas

Por assim dizer, o termo "tecnocracia" possui dimensões negativas e dimensões positivas. Em outros trabalhos,1 1 Tecnocracia ou tecnoassessoria? e Tecnocracia e burocracia. Publicados, respectivamente, pela Revista de Administração de Empresas e pela revista Estudos (CEBRAP). procuramos mostrar que o termo tecnocracia não teria qualquer utilidade teórica, embora possa ter várias serventias ideológicas, se fosse apenas um sinônimo de outras expressões já existentes (como, por exemplo, burocracia, secularização, assessoria técnica, etc), usadas para denotar manifestações da realidade que são, de fato, distintas do fenômeno tecnocrático. Chamamos esses equívocos de "dimensões negativas" do conceito, tendo em vista que seu emprego acarreta a negação do valor científico do termo.

As "dimensões positivas", ao contrário, referem-se às acepções que poderíamos qualificar de teoricamente cabíveis, no sentido de que conferem ao termo um significado inteligível e uma utilidade real para os propósitos da análise científica e da investigação empírica. Em princípio, essas acepções positivas ocupam uma posição bem determinada no conjunto sistemático de conceitos e proposições que constituem (ou deveriam constituir) a ciência social.

Neste trabalho examinaremos uma dessas dimensões positivas, qual seja, aquela em que a tecnocracia é concebida como um tipo específico de modo de produção. Outras dimensões, nas quais a tecnocracia é representada como regime político, como componente de um sistema de alianças ou como mera ideologia, não serão discutidas no presente texto.

Na verdade, essas quatro dimensões positivas poderiam ser postas numa ordem decrescente em função da maior ou menor envergadura do fenômeno a que se referem. Se assim fizermos, a primeira e, portanto, a mais forte acepção com que nos deparamos é aquela em que o termo tecnocracia é interpretado como um tipo específico de modo de produção. Essa acepção de tecnocracia é a que domina, por exemplo, a obra de Galbraith, ainda que se deva admitir que o próprio autor nunca tenha se mostrado plenamente consciente desse fato. Não obstante, cientistas sociais mais sérios e responsáveis, como Veblen, fizeram cabalmente as duas coisas: referiam-se à tecnocracia como um novo modo de produção e, ao mesmo tempo, sabiam que era sobre isso mesmo que estavam falando. O fato de que os Veblen sejam poucos, enquanto que os Galbraith superabundam, é apenas um motivo a mais para que nos detenhamos na discussão do assunto.

A tecnocracia como modo de produção seria, no mundo contemporâneo, pura e simplesmente o substituto do capitalismo e, naturalmente, também do socialismo. Nesse sentido ultraforte e, não obstante, extremamente freqüente, a asserção de que vivemos numa sociedade tecnocrática é rigorosamente equivalente à asserção de que a sociedade em que vivemos não é escravagista, nem socialista, feudal ou capitalista mas, ao contrário, é uma sociedade dominada por um novo modo de produção que, por motivos quase sempre ignorados ou propositalmente omitidos, chamamos de tecnocrático.

No contexto histórico do "mundo ocidental", parecem existir dois usos alternativos da expressão "tecnocracia" no sentido de modo de produção: um ideológico e o outro científico. Na alternativa ideológica a expressão é usada para denotar um estado de coisas que é suposto ser efetivamente existente. Insinua-se assim que o modo de produção tecnocrático é, por excelência, a novidade histórica de nosso tempo, daí resultando muitas e notáveis conseqüências:

a) em primeiro lugar, a imagem de que, finalmente, o capitalismo acabou. Ademais, isso teria acontecido assim, imperceptivelmente, sem lutas nem lutos e, por incrível que pareça, sem nem sequer ressentimentos por parte dos velhos interesses burgueses;

b) não existindo mais o capitalismo perguntar-se-ia: que sentido continuariam a ter as correntes de opinião e os movimentos políticos de tendência anticapitalista? Absolutamente nenhum;

c) como o modo de produção tecnocrático tende também a substituir o modo de produção socialista, tampouco teria sentido o socialismo como projeto uma vez que o socialismo como fato é apenas uma realidade agonizante;

d) graças ao predomínio real do modo de produção tecnocrático é lícito concluir que, finalmente, passamos a viver numa sociedade sem classes que substituiu o princípio social da exploração do trabalho humano pelo princípio técnico da contínua elevação da produtividade e da máxima rentabilidade dos recursos investidos pela sociedade;

e) sendo tal sociedade sem classes, o poder concentrado ao nível do Estado não é mais usado para fins opressivos, nem para a manutenção de uma ordem social injusta. Não se trata mais do Estado burguês mas de um Estado orientado pelos ditames da ciência e da técnica a serviço do desenvolvimento de todas as potencialidades da nação;

f) os poderes repressivos que ainda permanecem em uso só se justificam pelo fato de que ainda restam alguns poucos indivíduos e grupos que relutam em compreender o significado da revolução tecnocrática. Quando chegarem a essa compreensão, o aparelho repressivo será desfeito automaticamente e o modo de produção tecnocrática terá atingido sua plenitude que consiste em produzir o máximo de prosperidade individual e coletiva, possível a partir de uma dada constelação de recursos disponíveis.

Estas seriam as principais teses representativas do uso ideológico do termo. Isso, entretanto, não esgota as possibilidades do conceito de tecnocracia tomado no sentido de modo de produção. Na verdade, como dissemos, essa acepção é perfeitamente cabível e justificável quando subordinada aos fins próprios da investigação científica. Para tanto, porém, torna-se necessário determinar o conteúdo específico do conceito e indagar das condições de possibilidade do fenômeno por ele referido.

Não sendo uma tradição da ciência social o sair-se bem em testes de maturidade, é fácil imaginar que uma empresa dessa envergadura suscita muito mais perguntas do que consegue encontrar respostas aceitáveis. Isso, entretanto, não diminui a importância da discussão, pois é justamente nas indagações imediatamente irrespondíveis que reside o valor de qualquer problemática.

Para precisar melhor os termos da questão, comecemos por supor uma hipótese do seguinte tipo. As sociedades capitalistas industriais avançadas tendem a transformar-se em sociedades tecnocráticas: quanto mais se desenvolve a industrialização capitalista e tanto mais progridem a ciência e a técnica a ela associadas, tanto menos capitalista a sociedade se torna e, em troca, tanto mais tecnocrática ela passa a ser. Diante de uma hipótese como essa, que é aliás corrente tanto na literatura especializada quanto na parlance política cotidiana, cabe levantar a seguinte questão de base: que pré-requisitos precisam ser satisfeitos para que a relação proposta possa ser, em princípio, verificável? Em outras palavras, qual seria o ônus da prova para os autores que têm produzido enunciados desse gênero?

Pondo de lado o aspecto empírico, do qual trataremos em outra oportunidade, não cabe dúvida de que a hipótese em questão requer, como pré-requisito de sua demonstração, a construção prévia do conceito teórico de modo de produção tecnocrático. Colocada nesses termos, essa exigência parece óbvia. Não obstante, com a discutível exceção de Thorstein Veblen, não se tem notícia de autores que se sentiram obrigados a enfrentar essa tarefa preliminar, a despeito da obviedade com que ela se impõe. Via de regra, o que a literatura registra é a passagem imediata do enunciado da hipótese à sua demonstração, como se o constructo teórico envolvido no caso fosse um dado de senso comum. Daí resulta a importante conseqüência de que, em sua totalidade, os estudos dedicados à demonstração empírica da tese tecnocrática são rigorosa e inapelavelmente inconclusivos. Em última análise, as evidências que se unem ao fato de substanciar a relação anteriormente conjecturada simplesmente não podem ser aceitas como indicadores daquilo que se deseja medir, ou seja, como indicadores da maior ou menor incidência do modo de produção tecnocrático, pela simples razão de que o conteúdo conceituai desta variável não se encontra objetivamente explicitado. Nessas condições, os dados utilizados na "demonstração" são, a rigor, mudos, pois embora queiram dizer alguma coisa, já que são dados da realidade, não se tem o direito de presumir que eles se referem ao modo de produção tecnocrático ou a qualquer um de seus elementos constitutivos. Para que os dados possam falar, confirmando ou rejeitando a hipótese tecnocrática, justamente o que faz falta é a prévia tarefa de determinar o que se entende por modo tecnocrático de produção. Daí a necessidade de nos determos na discussão desse ponto.

Aplicando ao caso a observação de Étienne Balibar sobre os modos de produção em geral, o primeiro pressuposto teórico do conceito de tecnocracia seria a concepção de que "a história da sociedade é redutível a uma sucessão descontínua de modos de produção".2 2 Balibar, Étienne. Sur les concepts fondamentaux du materialisme historique. In: Althusser, L. & Balibar, E. Lire le capital. Paris, Maspero, 1968, t. 2 p. 84. Assim sendo, o modo tecnocrático de produção seria, antes de mais nada, uma unidade de periodização da história, unidade que demarcaria o fim de uma "era", ou de um "tipo de civilização" e o início de um novo momento do tempo histórico, estruturalmente distinto dos que o antecederam. Se é esse o status teórico do conceito, daí resulta que ele só estará cientificamente constituído na medida em que forem identificadas as determinações que o distinguem em sua contraposição às demais unidades de periodização da história. Em linguagem menos pretensiosa, trata-se de mostrar o que há de original e de irredutível no modo pelo qual, numa sociedade tecnocrática, são produzidos os bens necessário à sobrevivência material dos homens. Numa palavra, por que razão esse modo de fazer as coisas é inconfundível, no sentido de que seria um erro não distingui-lo de outros modos passados, existentes ou possíveis de fazer a mesma coisa? No caso específico do mundo ocidental, essa exigência se traduz na necessidade de explicitar o conceito de modo tecnocrático de produção ao mesmo nível em que se encontra explicitado o conceito de modo capitalista de produção, de tal forma que ganhem sentido teórico as proposições relativas à dissolução de um e ao surgimento do outro, ou à substituição de um pelo outro. Caso contrário, não há como demonstrar que expressões tais como "sociedade tecnocrática" sejam algo mais que um simples eufemismo para designar a própria e mesma sociedade capitalista. Os que desejam evitar tão decepcionante desenlace assumem, portanto, querendo ou não, o compromisso de solucionar certas questões teóricas cruciais, algumas das quais podemos examinar imediatamente.

Comecemos por lembrar o que foi assinalado por Marx a respeito. Dizia ele que "quaisquer que sejam as formas sociais de produção, os trabalhadores e os meios de produção são sempre seus fatores. Mas tanto uns quanto outros só o são a título virtual enquanto permanecem separados. Para que haja produção é preciso combiná-los. É a maneira especial de operar essa combinação que distingue as diferentes épocas econômicas pelas quais a estrutura social tem passado".3 3 Marx, Karl. O Capital, v. 4, p. 38. Segundo esse argumento, a pequena produção mercantil, por exemplo, constitui uma "época econômica" típica pelo fato de consistir no conjunto de relações sociais estabelecidas entre pequenos produtores, proprietários de seus próprios meios de produção, que atendem suas necessidades de consumo trocando entre si o produto do trabalho de cada qual. Uma sociedade organizada segundo a forma da pequena produção mercantil supõe uma divisão social do trabalho tal que o produtor, embora permaneça unido aos seus meios de produção, separa-se do produto do seu trabalho no sentido de que este não lhe interessa por seu valor de uso mas como objeto de troca para a aquisição dos bens que o produtor tenciona consumir. Trata-se, é claro, de produção de mercadorias, mas realizada no quadro de uma matriz social que não inclui relações estruturais de dominação entre os agentes da produção. Com efeito, não só os meios de produção pertencem aos produtores como também são as suas necessidades de consumo que determinam em última análise o volume e a diversidade da produção global, uma vez que se supõe que o intercâmbio entre produtores consiste apenas na troca de valores equivalentes.

Por outro lado, esse modo de produzir distingue-se da simples produção de valores de uso para o consumo de uma comunidade fechada sobre si mesma. Distingue-se pelo fato de que as relações que estabelece entre os produtores não incluem a sua subordinação a um organização coletiva do processo de produção e distribuição da riqueza. Em outras palavras, esse modo de produzir não supõe a apropriação real do processo de trabalho por parte da própria coletividade dos produtores, o que implica em que o trabalho humano não se realiza aí como atividade direta e imediatamente social. Faz parte da configuração desse modo de produzir a existência de um mecanismo de troca por intermédio do qual a lei do valor organiza a repartição, entre os vários ramos produtivos, do conjunto global de horas de trabalho disponíveis na sociedade, na medida em que, com a sistematização das trocas, a lei do valor assegura que cada mercadoria seja trocada apenas por valores equivalentes ao seu.

Por essas e por outras razões que é dispensável mencionar aqui, tem sentido teórico pleno a asserção de que a pequena produção mercantil constitui uma forma de organização da vida econômica cabalmente distinta do modo capitalista de produção. Com efeito, comparando-se entre si vemos que se trata de dois objetos de conhecimento que satisfazem, em primeiro lugar, a condição de se encontrarem ao mesmo nível de abstração e de análise e, em segundo lugar, a condição de serem reciprocamente irredutíveis.

É justamente por isso que a constituição histórica do modo de produção capitalista acarreta a destruição e a superação efetiva da matriz de relações sociais que informa a pequena produção mercantil. O capital é precisamente a relação social - entre proprietários dos meios de produção e produtores diretos sem outra propriedade que não seja a sua própria força de trabalho - que substitui as relações sociais prevalecentes entre pequenos produtores mercantis, da mesma forma como substitui outros tipos alternativos de relações pré-capitalistas de produção.

Com efeito, não existe capitalismo sem que haja produção de mais-valia e isso só é possível se o produtor direto estiver separado dos seus meios de produção num universo econômico em que a generalização da produção de mercadorias transforma a sua força de trabalho na única mercadoria da qual ele pode dispor em troca dos meios necessários à sua subsistência, mercadoria essa que, por outro lado, sendo capaz de produzir um valor superior ao custo de sua compra, seja valorizada ao invés de ser destruída. Com isso, torna-se possível o funcionamento de um modo de produção que se baseia precisamente na acumulação de capital, ou seja, na produção de mais-valia.

O modo capitalista de produção fundamenta-se assim numa relação social que atrela o produtor, inapelavelmente, aos imperativos do processo de valorização do capital. Fora dessa relação não só a sua subsistência deixa de ser materialmente possível como, o que é mais importante, não existe nenhuma razão para que ele próprio subsista. A idéia do produtor que subsiste por si mesmo, a idéia que traduz a essência da pequena produção mercantil, torna-se , no modo capitalista de produção, rigorosamente impensável.

Com efeito, com a passagem ao capitalismo inaugura-se uma relação estrutural que garante a oferta de mão-de-obra assalariada ao mesmo tempo que condiciona sua utilização ao requisito da circulação produtiva do capital. Em outras palavras, isso significa que a compra da força de trabalho não decorre da necessidade de sobrevivência dos proprietários dessa mercadoria; essa necessidade individual não tem força de necessidade social, não constitui razão de ser suficiente para justificar a existência do contrato capitalista de trabalho. Na verdade, se dependesse apenas dela, tal contrato jamais se celebraria uma vez que a troca de força de trabalho por salário não tem o menor sentido do ponto de vista do capital se for apenas uma troca de equivalentes. Ao contrário, o capital só compra essa mercadoria se for para realizar o seu valor de uso o qual consiste em sua capacidade de fornecer sobre trabalho, ou seja, trabalho suplementar ao que é necessário para produzir o equivalente do salário. O interesse do capital reside na realização da mais-valia (uma vez que é dela que depende a sua própria sobrevivência acrescida) e não no trabalho necessário (do qual só a sobrevivência do produtor depende).

Tendo em vista as noções elementares acima reproduzidas, eis aqui algumas das indagações que precisam ser respondidas pelos propagandistas da tecnocracia. Por exemplo: que forma assumiriam as relações de produção no modo tecnocrático de produção? Em que sentido elas seriam diferentes das que caracterizam o modo capitalista? As relações tecnocráticas de produção seriam tão irredutíveis às de tipo capitalista como o são as relações de tipo pré e pós-capitalistas?

Por mais elementares que essas questões possam parecer ao leitor sofisticado, a verdade é que os estudos contemporâneos sobre tecnocracia não as enfrentam face a face. Talvez, quem sabe, porque a virtude das coisas elementares consiste na qualidade que elas têm de serem decisivas. Veja, por exemplo, o extraordinário esforço desenvolvido por Galbraith para demonstrar que, no "novo sistema industrial", as decisões empresariais não mais se orientam pelo princípio da maximalização dos lucros. Na obra de Galbraith esse enunciado assume um significado absolutamente crucial. De fato, ele o erige em uma das premissas da qual depende o argumento central que estabelece a superação do capitalismo pelo "novo estado industrial".

Ora, o abandono do princípio de maximalização dos lucros, se é que na realidade tal princípio já teve alguma vez força de lei, não implica em qualquer alteração substancial do modo capitalista de produção. Na verdade, a mais importante mudança acarretada pelo reconhecimento de que esse princípio foi abandonado consiste apenas na provável reformulação dos manuais de economia adotados nas escolas. É evidente que se a teoria econômica, ocupada em descrever as manifestações fenomênicas do capitalismo, incorreu no erro de assumir a vigência de uma norma não vigente, cabe a ela corrigir-se e nada mais. É exorbitante, não resta dúvida, exigir que a realidade do capitalismo seja tida como superada todas as vezes que a "ciência econômica" passa por uma crise de ajustamento. Como é mais do que sabido, as transformações da teoria econômica burguesa não são necessariamente resultado da transformação da economia burguesa, mas apenas um dos aspectos desta que se reflete naquela.

De fato, a relevância do princípio da maximalização dos lucros dissolve-se automaticamente quando se pergunta que outro ou que outros objetivos teriam tomado o seu lugar segundo a referida teoria. Imagine-se qualquer um deles: maximalização da taxa de crescimento da empresa, da segurança da empresa, da força econômica ou posição competitiva da empresa, do tamanho da empresa. Que diferença faz, em termos da continuidade ou não do processo de acumulação de capital, ser este ou aquele o objetivo motivado do comportamento empresarial? Como foi observado por Baran e Sweezy, pode-se admitir, sem maiores problemas, que força, taxa de crescimento ou tamanho sejam as metas das grandes corporações: "Não existe uma fórmula geral para quantificar e combinar esses objetivos. Mas tampouco é necessário, uma vez que são todas redutíveis ao denominador comum da lucratividade. Os lucros fornecem os recursos internos que financiam a expansão. Os lucros são os tendões e os músculos que dão força, a qual, por sua vez, dá acesso aos recursos externos que se fizerem necessários. Expansão interna, aquisição e fusão são os modos pelos quais as corporações crescem em tamanho. Assim sendo, os lucros, mesmo que não sejam a meta última, são os meios necessários para todas as metas últimas. Como tais, eles constituem o alvo único, unificador, imediato e quantitativo da política empresarial, a pedra de toque da racionalidade empresarial, a medida do sucesso empresarial."4 4 Baran, Paul & Sweezy, Paul. Monopoly capital. N. York, Monthly Review Press, 1967. p. 39-40.

Quanto ao método de deduzir a natureza do modo de produção a partir da categoria social em que são classificadas as pessoas encarregadas de dirigir os centros econômicos, encontramos aqui reproduzido o mesmo equívoco que discutimos, em outra oportunidade, com respeito à tese de que o contingente técnico-científico constitui uma classe social, cujo papel histórico seria o de moderna sucessora da burguesia. Em resumo, trata-se do equívoco de conceber as classes como sujeitos e não como suportes das relações de produção.

Este é um dos pontos freqüentemente enfatizados pelos althusserianos. Nas palavras de Balibar, "não é a definição de classe capitalista ou de classe proletária que precede a definição das relações sociais de produção mas, inversamente, é a definição das relações sociais de produção que implica uma função de suporte definida como uma classe".5 5 Balibar, Étienne. op. cit. p. 123. A análise marxista do modo capitalista de produção põe em destaque justamente o fato de que o consumo produtivo dos meios de produção e da força de trabalho só pode ter lugar na medida em que o trabalhador é transformado num apêndice do capital e o empresário num instrumento do processo de acumulação. Assim sendo, para argüir que os tecnólogos constituem uma classe social específica não basta demonstrar, ainda que isso fosse possível, que eles se ligam entre si pelos mais variados vínculos intersubjetivos e que os interesses por eles representados em conjunto são conflitivos com os interesses de outros agregados sociais. É necessário ir além, é necessário cavar a crosta dessa configuração social para encontrar a raiz que, se existe, encontra-se engastada nas relações objetivas de produção que instituem um nexo necessário entre cada membro de uma dada classe e as outras classes porventura existentes.

As teorias tecnocráticas contemporâneas têm-se revelado incapazes de detectar esse "fio invisível" cuja descoberta permitiria a construção teórica do conceito de tecnocracia como modo de produção. Em lugar disso, elas se perdem em trivialidades como a hipótese de que a tecnocratização está em marcha desde que se observe o estreitamento das relações entre os técnicos do setor público e os técnicos do setor privado, em prejuízo da interação tradicional entre capitalistas e políticos. Muito mais proveitoso seria antes indagar se "setor privado" e "sociedade tecnocrática" não são termos mutuamente excludentes e em que consiste o "setor público" de uma sociedade tecnocrática. Questões como essas não são formuladas nem, muito menos, respondidas. De que forma compatibilizar-se-ia a existência conjunta de empresa privada e de tecnocracia? De que forma, num sistema tecnocrático, constitui-se a relação entre produtores diretos e meios de produção? As questões estão aí à procura de equacionamento. Qual seria o móvel do processo produtivo? O modo tecnocrático de produção baseia-se na valorização do capital mediante a extorsão de mais-valia? Se sim, nada tem de tecnocrático. Se não, que razão explicaria a ocorrência da atividade cotidiana graças à qual os produtores processam o consumo produtivo dos meios de produção? Por meio de que mecanismos objetivos e conduzido por qual necessidade material o trabalho vivo combinar-se-ia com o trabalho acumulado sob a fôrma de meios de produção? Em uma palavra, qual seria a estrutura e a dinâmica do modo tecnocrático de produção?

Por suposto, tal questão não é tratada, nem muito menos solucionada, na literatura tecnocrática contemporânea. Não obstante, tendo asas a imaginação, haveria muito o que especular a respeito. Assim sendo, e considerando que o exercício da fantasia faz parte do labor científico, procuraremos a seguir esboçar um modelo ideal de tecnocracia como modo de produção. É de se supor que algum benefício resulte deste intento, mesmo que falhemos ao tratar de realizá-lo. Quanto mais não seja, com isso proporcionaremos uma amostra do tipo de elaboração teórica que em vão tem sido esperada do pensamento tecnocrático.

Para começar, a simples palavra tecnocracia sugere que, a exemplo do capitalismo, embora de forma inteiramente distinta, a sociedade tecnocrática, mesmo na sua pura concepção, constitui uma sociedade de classes. Com efeito, se por tecnocracia não se entende o exercício de uma forma de dominação, não haveria por que designar de "tecnocrático" esse tipo de sociedade pós-capitalista. Antes lhe conviria, já que suprime as classes, o qualificativo "socialista" ou, se se quer, "comunista".

Tratando-se de uma sociedade que é, ao mesmo tempo, de classes e pós-capitalista, torna-se necessário concebê-la como fundada numa ordem econômica em que a extorsão do sobre-trabalho, ou seja, a forma específica da relação social que vincula as classes entre si, por um lado verifica-se de fato e, por outro, não é mistifiçada sob a forma de mercadoria, ou seja, sob a forma de uma relação entre as próprias coisas. Para que essas condições sejam simultaneamente satisfeitas, faz-se mister introduzir a noção hipotética de uma sociedade voltada, não para a produção de valores de troca, mas para a produção de "valores técnicos", sociedade na qual o fetichismo da mercadoria teria sido substituído por uma espécie de fetichismo da técnica.

Em princípio, essa possibilidade estaria dada pelo fato de que, além de possuírem um valor de uso, os objetos possuem também um "valor técnico" ou uma "virtude tecnológica". Dir-se-ia assim que, se a utilidade de um objeto o converte em valor de uso, a eficiência com que ele permite a realização de sua própria utilidade o converte em "valor técnico". De acordo com essa definição, uma máquina que produz mil parafusos por minuto encerraria o dobro do valor técnico contido numa outra que só produz 500 por minuto. Em outras palavras, se, conforme sustenta Marx, "o que constitui um valor de uso é a materialidade do próprio objeto", o que constitui um "valor técnico" seria o grau de eficiência ou de racionalidade que o objeto encarna.

É certo que se poderia argumentar que o valor tecnológico, no fundo, é valor de uso. Mas também pode-se dizer que o conceito de valor de uso tem duas dimensões: uma, representada pelo que sempre se entendeu por valor de uso e que pode ser quantificada tal como quando se diz que 2 kg de carne têm o dobro do valor de uso de 1 kg; e outra, representada pelo poder técnico ou eficácia do objeto.

Assim sendo, a primeira dimensão do conceito está presente tanto numa escova de dentes comum quanto numa escova de dentes elétrica; ao passo que, no que diz respeito à segunda dimensão, poderíamos dizer que a escova de dentes elétrica possui mais valor técnico do que a comum. Em suma, a primeira dimensão refere-se ao que o objeto é capaz de fazer ou ao conteúdo da necessidade que ele satisfaz; enquanto que a segunda dimensão refere-se ao modus operandi ou à forma em que ela é capaz de satisfazer a mesma necessidade. Quando surgiram os primeiros automóveis as pessoas que exclamavam: "para que tanta correria!" provavelmente não apreciavam as virtudes tecnológicas da nova máquina, mas disso não se infere que não estimassem a utilidade das carruagens, ou seja, dos automóveis com cavalos naturais em vez de cavalos a explosão.

Caso seja razoável admitir a distinção entre "valores de uso" e "valores tecnológicos", estaríamos em condições de conjecturar a respeito de um imaginário modo de produzir constituído essencialmente por dois setores: um setor T (tecnológico) e um setor PD (produtivo-direto). Tomando as liberdades que o gênero science-fiction tolera, poderíamos estipular, sem maiores detalhes, que todos os meios de produção do setor PD, assim como todo o produto gerado nesse setor, pertencem coletivamente aos próprios produtores diretos, os quais se encontrariam organizados em sindicatos ou federações encarregadas de administrar a produção do referido setor. Por outro lado, no setor T concentrar-se-ia o contingente técnico-científico da sociedade. Este, por sua vez, deteria o monopólio do produto do seu trabalho, assim como controlaria os meios produtivos necessários à realização das atividades específicas do setor.

Que tipo de coisas seria produzido no setor T? Sendo formado como é pelo conjunto de tecnólogos disponíveis, ele se define como o setor especializado na produção de idéias ou, mais especificamente, modelos, planos, projetos, designs, esquemas, arquétipos, pré-protótipos, etc. A rigor, deveríamos dizer que o setor T produz arquétipos artificiais. Artificiais porque nem todo arquétipo é intencional ou adredemente produzido. A divisão técnica do trabalho é um exemplo disso: muitas de suas formas surgiram espontaneamente da prática cotidiana e só foram "descobertas" como tais depois de já estarem em uso; outras formas, no entanto, como as sugeridas por Taylor, existiram primeiro como projeto e depois como prática.

Embora nem toda idéia seja um arquétipo artificial, parece ser correto dizer que todo arqué tipo artificial é uma idéia no sentido de ser "uma idéia de como fazer as coisas". Sendo a idéia de como fazer uma coisa, um arquétipo é, virtualmente, um elemento produtivo. Mas ele o é ao seu próprio modo pois, na realidade, um arquétipo não é nem um meio material utilizado para fazer as coisas, nem a matéria-prima com que as coisas são feitas, nem a energia física, natural ou humana, graças à qual os meios materiais são postos em movimento para transformar a matéria-prima em coisas. Na realidade, por mais complexo e intrincado que um arquétipo artificial seja, sua natureza consiste em ser uma idéia de fazer alguma coisa de um modo e não de outro.

Quando analisados em termos de produção, os arquétipos artificiais revelam dois aspectos: 1. Por um lado, eles são o resultado do tipo específico de produção que se convencionou chamar de produção técnico-científica na qual estão envolvidos, além de matérias-primas e fontes de energia, uma variedade de meios de produção que inclui desde um simples lápis, até máquinas de calcular, equipamentos de laboratório, etc. Esses elementos, uma vez propositalmente combinados com doses adequadas de "massa cinzenta", dariam lugar ao produto que aqui estamos chamando de arquétipos artificiais. 2. Enquanto permanecem na qualidade de um simples produto, os arquétipos não revelam o seu segundo aspecto que consiste na propriedade de serem fatores produtivos. Para que isso ocorra, entretanto, é necessário que eles sejam usados como tais no processo efetivo da produção.

É aí, porém, que se nota uma peculiaridade. Se adequadamente combinamos com os demais elementos produtivos, os arquétipos artificiais exercem uma influência tangível sobre o processo produtivo. Assim sendo, eles são fatores de produção. Mas o são de um modo sui generis. Com efeito, é uma contradição termos a idéia de um fator de produção dispensável à produção. Tal idéia não se aplica nem aos instrumentos de trabalho, nem às matérias-primas, nem à força de trabalho, nem mesmo à terra e ao clima. Todavia aplica-se aos arquétipos artificiais. Tanto assim que, se nunca tivesse existido um único arquétipo artificial, continuaria a haver produção. Não do mesmo modo, por suposto, mas produção.

Todavia, isso acontece por uma razão muito simples. É que não é por serem artificiais que os arquétipos são fatores produtivos e sim por serem arquétipos. Como, além dos arquétipos artificialmente produzidos pela prática técnicocientífica, existem os que são resultados espontâneos da prática social em geral, nada impede que, na falta dos primeiros, os segundos sejam suficientes para que haja produção. Antes de terem sido inventadas as técnicas de planejamento, por exemplo, ninguém sentia a falta que elas faziam: um arquétipo natural qualquer, como é o caso da concorrência, podia fazer as suas vezes. Assim se explica o modo peculiar em que os arquétipos artificiais são fatores de produção. Dá-se, porém, que eles formam uma segunda peculiaridade.

Com efeito, por ser apenas uma idéia de como fazer uma certa coisa, ainda que utilizável tanto no processo de produzir quanto no de consumir, não se pode dizer que um arquétipo tenha valor de uso no sentido convencional do termo. Ao que parece, a noção de valor de uso encontra-se indissoluvelmente associada à noção de consumo, não importando se consumo final ou produtivo. Normalmente o valor de uso é pensado como algo que se gasta e que, portanto, termina por ser destruído no processo de sua utilização. Ora, isso é exatamente o que não pode suceder à idéia de como fazer uma determinada coisa. Uma idéia pode, isto sim, ficar obsoleta e, portanto, inútil apenas no sentido de que num certo momento ninguém deseja utilizá-la. Porém, por mais que seja usada, uma idéia nunca se gasta e, por isso mesmo, nunca é consumida. A antigüidade da idéia de roda, por exemplo, não faz com que ela se ache hoje menos apta a ser usada quanto o era no dia em que surgiu pela primeira vez como arquétipo.

Se os arquétipos não têm um valor de uso no sentido convencional e, ao mesmo tempo, alteram a natureza das coisas às quais são incorporados, isso se deve ao fato de que eles são a origem ou o fundamento dos valores tecnológicos que distinguem as coisas mais eficientes de seus sucedâneos menos eficientes. Por outro lado, admitindo-se que eles sejam o fundamento dos valores tecnológicos, é de se imaginar que uma sociedade primariamente voltada para a produção de tais valores não se contente com a safra aleatória de arquétipos espontaneamente surgidos da prática social em geral e organize-se com o propósito consciente não só de produzir arquétipos artificiais como de fazê-los a taxas crescentes. Essa seria, em resumo, a função precipuamente conferida ao setor T no esquema de divisão social do trabalho da sociedade tecnocrática que estamos hipotetizando. Ao setor T caberia, portanto, a responsabilidade pela produção específica de nova tecnologia, ou seja, de arquétipos artificiais relativos a novos meios, métodos e produtos os quais seriam, em seguida, transferidos ao setor PD segundo a forma de intercâmbio que passaremos a examinar.

Como poderiam ser estruturadas as relações entre o setor PD e o setor T? Que condições teriam que ser satisfeitas para que o primeiro entregue ao segundo bens de produção e de consumo em troca dos arquétipos de que necessita para elevar o valor tecnológico de sua própria produção?

Entre outras possibilidades, uma das alternativas abertas à imaginação estaria em supor a existência de uma relação análoga à que se manifesta na aquisição de força de trabalho pelo capital. Conseqüentemente, assim como no capitalismo o salário não representa, em si mesmo, um roubo (uma vez que a remuneração auferida pelo trabalhador corresponde ao justo valor da mercadoria que vende ao capital), assim também a aquisição da nova tecnologia cedida pelo setor T poderia ser feita de tal modo que não envolvesse qualquer relação visivelmente espoliativa desde que a compensação entreque pelo setor PD correspondesse ao "justo valor" do produto que recebe do setor T. Qual seria, entretanto, esse "justo valor"?

Para responder a essa questão, convém comparar entre si dois produtos do setor T: um produto T, já em uso, e um novo produto T, adredemente criado para substituir com vantagens o produto T que, embora ainda útil, tende a tornar-se obsoleto em face da existência de T'. A partir desses dados, diríamos que o valor do produto T é composto de dois elementos: um valor objetivo e um valor subjetivo. O valor objetivo do produto T nada tem de problemático: ele é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à produção de T. O valor subjetivo, ao contrário, é de natureza controvertida. Em princípio, ele seria representado pela diferença T'-T, isto é, a diferença em termos de virtudes técnicas entre T' eo produto de tecnologia mais baixa que T vem substituir. Assim sendo, a diferença T'-T representa o valor técnico líquido adicionado a T no processo da produção de T'. Isso significa que o valor subjetivo de T, o valor de sua substituição por T, não é determinado pelo tempo de trabalho necessário à sua produção uma vez que essa é a medida do seu valor objetivo, ou seja, de seu valor real. O valor subjetivo de T, ao contrário, é determinado pelo tempo de trabalho que ele poupa aos seus eventuais consumidores caso estes substituam por T' o produto T que antes consumiam. Assim, o valor técnico líquido é, por definição, um valor irreal de T. Acontece, entretanto, que esse valor irreal produz efeitos reais na sociedade. De fato, ao ser transferido para o setor PD, ele contribui para a elevação do nível de produtividade do trabalho que é aí realizado. Em outras palavras, o valor irreal de T valoriza o trabalho do resto da sociedade na medida em que, graças a ele, é possível manter constante o volume da produção gastando menos tempo de trabalho, ou, inversamente, aumentar o volume da produção conservando constante o tempo de trabalho.

Se é que é plausível a análise precedente, surgem aqui duas alternativas: o setor T pode ou não receber uma recompensa extra em troca desse ganho extra que ele proporciona ao resto da sociedade. Se o produto T for adquirido pelo valor objetivo, representado pelo custo real de sua produção, o setor PD adquire gratuitamente o valor técnico líquido contido em T. Nesse caso, teríamos que a sociedade global em questão não seria nem uma sociedade de classes, nem uma sociedade tecnocrática. Isso porque as transações entre os dois setores seriam feitas em termos de troca de valores equivalentes, ou seja, o setor T não estaria extorquindo qualquer tipo de sobrevalor do setor PD. Ao contrário, ele estaria simplesmente trabalhando para o resto da sociedade dentro de um esquema de divisão social do trabalho em que competiria ao setor T a criação de valores técnicos para o benefício da sociedade em seu conjunto, segundo um regime de trocas que não supõe termos de intercâmbio favoráveis a uma parte em detrimento de outra. A segunda alternativa seria justamente a oposta: um esquema de divisão de trabalho acoplado com um regime de trocas cujos termos forçariam o resto da sociedade a realizar um sobre-trabalho a favor do setor T. Nessa segunda alternativa o setor T criaria valores tecnológicos para, em primeiro lugar e acima de tudo, beneficiar-se a si mesmo, ou seja, movido pelo auto-interesse, embora objetivamente a criação de tais valores representa também um benefício para a sociedade em seu conjunto e para o setor PD em particular. A existência dessa coincidência entre o interesse particular do setor T e o interesse particular do setor PD seria justamente a condição que permitiria a universalização do auto-interesse do setor T erigido em interesse geral de uma sociedade em que a acumulação de valores tecnológicos institui-se como índice da riqueza social. A condição necessária para a concretização dessa alternativa seria dada por um sistema de trocas em que o produto T figuraria com seu valor objetivo acrescido do adicional fictícioreal constituído pelo seu valor subjetivo.

Como, por sua vez, tal transação não constitui uma troca entre equivalentes, ela implica em que o resto da sociedade teria que realizar um sobre-trabalho para produzir um excedente equivalente ao "mais-valor" adicionado ao valor real de T. Isso, entretanto, levanta três questões que precisam ser esclarecidas. Primeira: por que razão o setor PD seria levado a realizar trabalho gratuito para o setor T? Segunda: por que razão o setor T, em vez de expandir-se utilizando um excedente gerado fora dele (no resto da sociedade), não gera esse excedente no seu próprio interior? Terceira: quem garante a permanência (e a reprodução no tempo) no nexo de produção e troca do qual depende a relação espoliativa entre os dois setores básicos da sociedade?

A primeira questão refere-se ao tempo de trabalho gratuitamente cedido ao setor T. Teria o setor PD algum motivo para trabalhar mais? Ora, é cem por cento certo que sim se esse motivo fosse trabalhar menos. Porque razão um indivíduo se recusaria a trabalhar mais tempo quando, objetivamente, trabalhar mais tempo significa trabalhar menos tempo? Pois bem: esse é justamente o efeito real produzido pelo valor irreal ficticiamente adicionado ao valor real do produto T. Formulando a questão numa linguagem menos enigmática, teríamos concretamente a seguinte conta de somar:

Imaginemos que um meio de produção T durante a sua vida útil seja capaz de produzir 1 milhão de unidades de um certo bem e que nesse período sejam gastas 12 mil horas de tempo de trabalho humano. Suponhamos agora um meio de produção T (ou seja, um meio de produção que incorpora o arquétipo artificial T) que tem a mesma vida útil e produz o mesmo número de unidades gastando apenas a metade, ou seja, 6 mil horas de tempo de trabalho. Admitamos, ademais, que seja necessário usar a metade da quantidade total produzida (isto é, 500 mil unidades) para repor tanto o valor global de T quanto o de T e que o valor global de T fosse decomposto meio a meio: 250 para o meio de produção T e 250 para arquétipo T. Assim sendo, medido em termos de quantidade de trabalho, o custo da reposição global de T é igual a 6 mil horas, enquanto que o de T é igual a 3 mil horas. Na hipótese de que os produtores desejem criar para si próprios a mesma quantidade de unidades que criaram para fazer face à depreciação do equipamento, teríamos que o tempo de trabalho para si seria de 6 mil horas para os que usam T e 3 mil horas para os que usam T'.

Em resumo, supondo-se que o setor T fosse retribuído apenas em termos do valor objetivo dos arquétipos que produz, teríamos o seguinte quadro:


Suponhamos agora que o valor subjetivo do arquétipo T seja estimado como sendo equivalente à metade do tempo de trabalho por ele poupado. Nessas condições, o que aconteceria se os eventuais consumidores de T dispusessem-se a adquiri-lo do setor T não pelo seu valor objetivo como no quadro 1, mas por seu valor global-fictício (valor objetivo mais valor subjetivo) ? Na realidade eles estariam pagando, pela vantagem de trabalhar 6 mil horas a menos, com a desvantagem de trabalhar 3 mil horas a mais. As horas a serem gastas seriam assim distribuídas:

A primeira coisa que se nota ao comparar os quadros 1 e 2 é que o setor T passa a receber três vezes mais pelo seu produto quando este passa a ser retribuído como se tivesse um valor duplo objetivo-subjetivo. A despeito disso, entretanto, é precisamente essa magnitude triplicada do arquétipo T que pode ser considerada como sendo o seu "valor justo". Na verdade, é nesse segundo nível de grandeza, e não no primeiro, que se concretizaria uma perfeita troca de equivalentes entre o setor T e o setor PD. Com efeito, ao entregar ao setor T 4t 500 horas, o setor PD estaria, em primeiro lugar, devolvendo ao setor T as 1 500 horas de trabalho abstrato que este gastou na produção do arquétipo T', o que não envolve nenhuma desigualdade entre o que um setor recebe do outro em troca do que cedeu. Entretanto, deduzidas as 1 500 horas das 4 500, caberia ainda ao setor T receber outras 3 mil horas do setor PD. Porém, isso passa a ser perfeitamente justo se se considera que o setor PD está, por sua vez, também ganhando, graças ao setor T, justamente outras tantas 3 mil horas.


Dessa perspectiva verifica-se, portanto, uma troca de equivalentes: o resto da sociedade dá 3 mil horas de mais-trabalho ao setor T em retribuição às 3 mil de menos-trabalho que o setor T lhe proporciona. Caso contrário, Dir-se-ia que o setor PD estaria beneficiando-se "às custas" do setor T. Como, por outro lado, pelo menos uma parte do excedente assim desviado para o setor T provavelmente seria reinvestido na expansão do próprio setor T, a expectativa de futuros ganhos em menos-trabalho tornaria a transação duplamente vantajosa aos olhos dos produtores do setor PD. A seu favor é possível inclusive alegar que ao pensar assim, na realidade eles estariam sendo menos ingênuos do que os seus colegas que vendem força de trabalho no modo capitalista de produção.

De fato, há algo de análogo entre as duas situações. No modo capitalista, a espoliação consiste em que o produtor vende por menos uma mercadoria que vale mais. No modo tecnocrático aqui imaginado seria o oposto: ao invés de perder pelo lado de uma venda barateada, o produtor perde do mesmo jeito, mas pelo lado de uma compra encarecida.

Todavia, sendo análogas, as duas situações são diferentes. No aspecto que estamos analisando, a diferença importante estaria em que a lei do valor perderia sua vigência no sistema econômico tecnocrático. De fato, numa economia regulada pela lei do valor não teria sentido a transação acima referida. Nesse caso, o "justo valor" do produto T não poderia ser determinado senão pela quantidade de substância criadora de valor que ele acaso contivesse, ou seja, pelo tempo de trabalho abstrato requerido para a sua produção. Com efeito, em termos de valor não tem nenhuma relevância o fato de que no setor T, comparado com o setor PD, concentrase a força de trabalho de caráter técnico-científico e, portanto, a mais altamente qualificada existente na sociedade. Tanto essa característica como, conseqüentemente, a natureza mais sofisticada dos produtos T, dissolvem-se em face da lei do valor na medida em que esta exige que se compute no próprio cálculo do que acima chamamos de "valor objetivo" a existência das referidas diferenças entre níveis de qualificação. Conforme foi salientado por Marx, é claro que "todo trabalho de caráter mais elevado ou mais complicado do que o trabalho médio gasta mão-de-obra de um tipo mais caro, uma vez que a produção dessa mão-de-obra custou mais tempo de trabalho. (Assim sendo) em todo processo criativo de valor, é necessário fazer a substituição de trabalho especializado por trabalho social médio. Por exemplo: um dia de trabalho especializado por seis dias de trabalho não especializado".6 6 Marx, Karl. op, cit. p. 179. Seja qual for a forma natural que revista, desde um simples lápis até um complicado computador, sempre que a lei do valor esteja em vigor, os diferentes trabalhos privados são equiparáveis e as diferenças existentes entre eles são canceladas pelo próprio processo de determinação do "valor objetivo" como cristalização de trabalho humano composto por unidades de tempo abstratas e indistintas.

Se se considera que tudo que há de específico no trabalho qualificado é levado em conta pela lei do valor na medida em que esta o trata como trabalho composto e, assim fazendo, restaura a igualdade entre os setores T e PD, conclui-se que até onde vai a jurisdição da lei do valor, o "valor justo" do produto T é integralmente expresso pelo seu "valor objetivo". Em conseqüência, a parcela da renda do setor T que se deriva do valor subjetivo atribuído ao produto T constitui, em última análise, trabalho não pago ou sobre-trabalho extorquido ao setor PD. E como o setor T é formado pelo conjunto dos tecnólogos e o setor PD pelo conjunto dos produtores diretos o fato de que as relações entre ambos se estruturem desse modo converte o setor T em classe dominante e o setor PD em classe dominada, assim como erige a sociedade como um todo em sociedade tecnocrática de classes fundadas, em última instância, no modo tecnocrático de produção.

A natureza da exploração que expressaria a essência dessa sociedade estaria em que os ganhos de produtividade realizados graças ao concurso do conjunto das forças produtivas da coletividade seriam monopolizados por uma parte do todo como se fossem o resultado de uma propriedade metafísica inerente à classe tecnocrática enquanto tal. Quando, na realidade, os ganhos de produtividade só podem ser o fruto do trabalho social, pois os tecnólogos só podem ser tecnólogos e produzir tecnologia enquanto são e porque são uma parte integrante de um todo social concreto. Com efeito, desde que os homens trabalham uns para os outros, o que faz com que o trabalho seja o trabalho é a sua natureza eminentemente social. Contudo, as condições segundo as quais se objetiva a reciprocidade entre os trabalhos individuais podem confirmar ou negar o caráter social do trabalho humano. Â tecnocracia requer a negação desse caráter social. Sem isso ela se dissolve. Não fosse por essa negação ela seria socialista em economia e democrática em política, em lugar de ser economicamente classista e politicamente autoritária.

Quando falam de tecnocracia, os seus propagandistas costumam insistir na idéia de uma sociedade cientificamente planejada tendo em vista o bem-comum e na qual, conseqüentemente, as capacidades individuais de trabalho expressar-se-iam como elementos indistintos da força coletiva de trabalho da sociedade. O propósito dessa descrição, no entanto, não é o de retratar a sociedade tecnocrática mas o de descrever o seu real significado. Com efeito, descrita dessa maneira essa espécie de sociedade é enaltecida exatamente por aquilo que ela mais nega. Trocada em miúdos, a mistificação reside na manobra barata de apagar toda e qualquer diferença qualitativa que possa existir entre o modelo ideal de uma sociedade socialista e o modelo ideal de uma sociedade tecnocrática, mesmo que seja ao preço de insinuar que a segunda é apenas uma modalidade da primeira. Eis porque é indispensável enfatizar a tese de que qualquer especulação sobre a tecnocracia só tem sentido se parte da premissa de que uma sociedade, para ser tecnocrática, há que ser de classe. Caso contrário, não é tecnocrática.

Páginas atrás, formulamos três questões a respeito do modo tecnocrático de produção. A primeira, que acabamos de examinar, dizia respeito às relações de produção. A segunda, que agora discutiremos, consiste em indagar por que razão o setor T não gera, em seu próprio interior, o excedente que retira do resto da sociedade. Ao que parece, há muitas razões que explicam esse comportamento da classe tecnocrática:

1. A primeira delas seria que, para tanto, o setor T teria que trabalhar mais do que necessita trabalhar utilizando não o seu mas o excedente do resto da sociedade.

2. Além disso, teria que preferir trabalhar mais numa sociedade que, graças a ele, está trabalhando cada vez menos.

3. Dada a enorme diferença de tamanho entre o setor T e o resto da sociedade, para gerar um excedente igual ao que extrai do setor PD, cada membro do setor T teria que trabalhar desproporcionalmente mais do que passa a ser necessário para cada membro do outro setor quando o sistema socializa o ônus da produção de tal excedente.

4. Uma quarta razão seria a de que o excedente pode ser extorquido sem dor, ou seja, sob a aparência de uma troca de equivalentes e, portanto, sem, por si mesmo, suscitar qualquer resistência.

5. Em quinto lugar, porque se a sociedade deseja aumentar o tempo disponível para o lazer ou, alternativamente, consumir mais e melhor, a maximalização da taxa de expansão do setor produtor de nova tecnologia torna-se coincidente com uma aspiração central da sociedade em seu conjunto.

6. Cumpre considerar ainda que a renúncia do setor T ao excedente alheio requereria a introdução de um postulado altruísta que, a essa altura da história, seria prematuro enunciar, quer seja com respeito ao gênero humano em geral, quer seja com respeito ao contingente técnico-científico em particular.

7. Finalmente, é preciso não esquecer que o edifício social representado por uma sociedade de classes não fica em pé se não for sustentado pelo poder do Estado. Como nenhuma classe dominante jamais custeou os gastos requeridos pelo exercício da dominação, é de se esperar que a classe tecnocrática faça como as outras e jogue esse ônus sobre as costas dos seus próprios dominados, utilizando-se, para tanto, da parte do excedente extorquido que seria destinada ao financiamento da burocracia civil, da força armada, dos tribunais, assim como de todos os demais ingredientes do aparelho estatal.

Ao que tudo indica, esse conjunto de razões parece ser mais do que suficiente para explicar o fato de a classe tecnocrática não dedicar-se ela mesma à produção dos recursos destinados a custear o seu próprio domínio e a sua própria expansão.

Embora estejamos lidando com uma ficção, vale a pena assinalar que o sistema capitalista contemporâneo encerra traços que prenunciam a situação ideal descrita nos parágrafos anteriores. Com efeito, um dos autores especializados na problemática da inovação tecnológica, Constantino Vaitsos, em trabalho recentemente apresentado ao Development Advisory Service da Universidade de Harvard,7 7 Vaitsos, Constantino. Development Advisory Service, Universidade de Harvard. salienta uma série de aspectos do processo atual de comercialização de tecnologia que poderiam ser vistos como elementos embrionários de um sistema tecnocrático puro. Em primeiro lugar, diz ele, a tecnologia é concebida no sistema capitalista contemporâneo como uma unidade econômica, uma mercadoria que entra nas atividades produtivas juntamente com outras unidades econômicas como o capital e a mão-de-obra. Ela é percebida não no nível abstrato de "fórmula científica ou manual de produção" mas no nível mais pedestre das entidades econômicas. "Da mesma forma que as demais entidades econômicas, a tecnologia tem um mercado especial (inclusive um 'lugar de negociação'), com estrutura e propriedades particulares, mecanismos de determinação dos preços e quantidades, assim como regras de intercâmbio."

Em seguida Vaitsos assinala que no processo de comercialização da tecnologia, compradores e vendedores enfrentam considerações de custo marginal completamente distintas: "para o vendedor, o processo de utilização ou venda incrementai de uma tecnologia já desenvolvida não implica nenhum custo incrementai (custo marginal = zero). Para o comprador, ao contrário, o custo marginal do desenvolvimento de uma tecnologia alternativa com base na sua própria capacidade técnica pode alcançar milhões de dólares. Ocorre freqüentemente que o receptor é incapaz ou se considera incapaz de desenvolver por si mesmo a tecnologia de que necessita e, nesse sentido, o custo para ele é infinito. Dadas as disponibilidades do mercado, o preço (de zero a infinito) é determinado exclusivamente com base no poder relativo da negociação".

Um terceiro aspecto do processo de comercialização de tecnologia é dado pelo "paradoxo fundamental" expresso no fato de que o mercado de transferência de informação só se comportaria adequadamente, com os preços indicando as preferências dos consumidores, se os compradores tivessem um conhecimento adequado do produto que pretendem adquirir. Na ausência de um prévio "conhecimento sobre o conhecimento", verifica-se "um desmoronamento das regras comumente aceitas para o funcionamento adequado do mecanismo de mercado".

Segundo Vaitsos, o mercado de tecnologia é sumamente imperfeito, caracterizado por fortes elementos monopolísticos, resultando daí que, para corrigir as imperfeições existentes, faz-se necessário a intervenção da ação estatal ou de alguma forma de ação coletiva. Finalmente, ele conclui que devido às condições de mercado imperfeito, por um lado, e a variável introduzida pela ignorância do comprador, por outro lado, poder-se-ia propor como hipótese geral a idéia de que o "o conhecimento ou informação possuída pelo receptor a respeito do know-how a ser adquirido é inversamente proporcional à renda monopolista paga ao fornecedor. Em outras palavras, a transferência de tecnologia é realizada em condições de monopólio discriminatório, sendo que o grau de discriminação é determinado pelo grau de conhecimento ou informação do receptor". A intensidade com que o fornecedor explora sua posição monopolista é função crescente da posição de relativa ignorância e impotência técnico-científica em que se encontra o comprador de tecnologia.

Finalmente, resta examinar a terceira questão anteriormente formulada, a qual se refere ao papel de matriz desempenhado pelo modo tecnocrático de produção. Essa é, sem dúvida, uma indagação fundamental para a análise de qualquer modo de produção e, portanto, não pode deixar de ser feita com respeito ao modo tecnocrático.

Conforme tem sido enfatizado pelos althusserianos, todo modo específico de produção tende a determinar as relações que se estabelecem entre as diferentes instâncias que compõem a estrutura da sociedade. Mais concretamente, se admitimos, por exemplo, que tal estrutura é constituída por três instâncias (o econômico, o político e o ideológico) trata-se de saber de que maneira o modo de produção em vigor faz com que as relações entre essas instâncias sejam de um certo tipo e não de outro. Em outras palavras, o modo de produzir a vida material relaciona-se com a forma de articulação da estrutura e vice-versa, de tal sorte que, variando o modo de produzir, as instâncias tendem a se relacionar umas com as outras de forma diferente. Assim sendo, dizem os althusserianos, o modo de produção desempenha um papel de matriz.

Ao analisar a sociedade feudal, Marx tenta mostrar de que forma o modo de produzir requer que a classe dominante lance mão de razões extra-econômicas para conseguir que a classe dominada realize trabalho não pago. Dado o fato de que, nesse tipo de sociedade, o produtor direto possui os meios materiais necessários para garantir a sua subsistência através do cultivo da terra e do artesanato doméstico, "são necessárias razões extra-econômicas para obrigá-lo a trabalhar por conta do titular da propriedade fundiária (...) . É preciso que existam, necessariamente, relações pessoais de dependência, uma privação da liberdade pessoal, qualquer que seja o grau dessa dependência; é preciso que o homem seja um simples acessório da gleba; em suma, é necessária a servidão na plena acepção da palavra".8 8 In: Balibar, Étienne. op. cit. p. 106. Em outras palavras, a renda fundiária feudal, como se observa claramente no caso mais patente da corvéia ou renda em trabalho, não brota imediata e diretamente do próprio funcionamento do sistema econômico. A análise da instância econômica revela justamente que não há nenhuma razão de ordem econômica capaz de obrigar o produtor direto á realizar trabalho não pago para o senhor feudal. Isso porque o modo de produzir, na medida em que supõe o controle dos fatores produtivos pelos próprios produtores diretos, torna economicamente desnecessário, do ponto de vista do produtor, o tempo de trabalho gratuitamente gasto a serviço da classe dominante. Nessas condições, determinadas pelo modo de produção, a renda feudal, a "forma transformada" do sobre-trabalho na sociedade feudal, deve sua origem e razão de ser à intervenção do ideológico e do político sobre a instância econômica, intervenção graças à qual o produtor se vê transformado em servo da gleba, encontrando-se, por esse motivo, naturalmente forçado a assumir a quota de trabalho para outrem que lhe é assignada pelo direito costumeiro. Em conclusão, a servidão é o resultado de uma forma particular de articulação da estrutura social na qual a instância do ideológico exerce uma função preponderante. Eqüivale dizer, a servidão não é diretamente determinada pelo modo de produção, mas pelo papel de matriz desempenhado pelo modo de produção.

No capitalismo, ao contrário, o sobre-trabalho não é extraído sob a forma de trabalho forçado. Dado o fato de que os produtores encontram-se separados dos meios de produção, não é necessária nenhuma razão de ordem extra-econômica para obrigá-los a realizar trabalho não pago; a sua própria posição econômica institui o sobre-trabalho em condição de sua sobrevivência como seres humanos. O trabalhador livre, ao contrário do servo, não tem por onde escapulir. Sendo assim, torna-se desnecessária a intervenção direta do ideológico e do político a esse. nível da relação entre as classes. O lucro, a "forma transformada" que a mais-valia assume como renda capitalista, é, assim, como sublinha Balibar, uma "forma diretamente econômica". Assim, exercendo sua função de matriz, o modo capitalista de produção determina uma forma particular de inter-relacionamento entre as instâncias tal que cabe ao econômico o papel principal na articulação da estrutura social. O edifício social não só se apoia sobre o econômico mas é por ele modelado.

A que vem, então, o Estado na sociedade capitalista? Se bem que, a rigor, a função desempenhada pelo Estado só pode ser plenamente esclarecida mediante a análise de formações socioeconômicas nas quais, por definição, encontram-se entrelaçados diferentes modos de produção, não resta dúvida de que cada modo específico de produção impõe requisitos genéricos que devem ser atendidos pela ordem política. Nesse sentido, é possível afirmar que, na sociedade capitalista, as relações sociais econômicas requerem o reforço proporcionado pelas relações sociais políticas, notadamente por aquelas que garantem o exercício dos direitos de contrato e de propriedade. Dito de um modo mais direto, as relações capitalistas de produção são geradas e reproduzidas pela economia, sob a tutela e a proteção do Estado. Na linguagem liberal, essa relação é expressa pela norma segundo a qual cabe ao Estado apenas um papel supletivo no desenrolar quase automático da vida econômica propriamente dita. Como teremos ocasião de enfatizar num capítulo posterior, o caráter supletivo do Estado é tão congênito ao modo capitalista de produção que a prática do planejamento governamental jamais foi levada ao extremo de romper com esse princípio, por mais iconoclasta que tenha sido com respeito aos outros elementos do credo liberal.

O caráter específico dessa relação entre economia e política é ressaltado pela análise marxista do assim chamado modo de produção antigo. Neste, a existência do Estado é um pressuposto necessário das relações entre as classes, uma vez que a propriedade privada de terra e escravos não apenas depende da proteção do Estado mas, ao contrário, deriva da participação no Estado, sendo uma conseqüência de que se beneficiam os indivíduos na medida em que, em primeiro lugar, encontram-se integrados no corpo do Estado.

No caso do chamado modo de produção germânico, o Estado não é nem supletivo, como no capitalismo, nem primordial, como na antigüidade clássica. Dado que esse modo caracteriza-se pela existência separada de uma pluralidade de famílias auto-suficientes, a comunidade formada por essas unidades produtivas não é, como assinala Marx, uma união mas, apenas, uma associação. Por essa razão "a comunidade não tem diretamente uma existência como Estado, como entidade política".

Retomando a questão anteriormente formulada a respeito da sociedade tecnocrática, vemos que o modelo anteriormente proposto dá margem a algumas especulações a respeito das relações que podem estabelecer-se entre os diferentes níveis da vida social.

Para começar, é inevitável que o modo tecnocrático de produção requeira uma forma específica de articulação da estrutura social, pois ao estabelecer relações de produção de um tipo novo, seu papel de matriz torna-se igualmente distinto do dos demais modos. Com efeito, ao supor a divisão da sociedade em duas classes (T e PD), o modo tecnocrático distingue-se tanto do feudalismo quanto do capitalismo pelo fato de que o controle global sobre os fatores da produção e o produto do trabalho encontram-se repartidos entre as duas classes. Distingue-se do modo germânico pelo fato de que essa repartição não é feita entre segmentos homogêneos, intercambiáveis e auto-suficientes, mas ao contrário, obedece a um critério de divisão funcional do trabalho de tal sorte que cada parte necessita de sua relação com a outra. Este traço leva, por sua vez, a uma analogia com o chamado modo asiático de produção onde também se verifica uma relação de complementaridade entre, por um lado, o Estado que fornece aos produtores diretos condições coletivas tais como irrigação e meios de comunicação que permitem a apropriação real por parte do trabalho e, por outro lado, os produtores diretos que geram o excedente destinado à manutenção do Estado. A semelhança entre o modo tecnocrático e o asiático é realmente bastante pronunciada à medida que cabe à classe tecnocrática suprir o setor PD com produtos de tipo T. Uma diferença decisiva, entretanto, reside no fato de que a aquisição das "condições coletivas" proporcionadas pelo setor T não é função de necessidades inadiáveis de sobrevivência dos produtores diretos, mas depende, essencialmente, do grau de concorrência que se estabeleça entre eles com respeito à realização de ganhos de produtividade.

Essa última característica, por sua vez, indica um outro aspecto em que o modo tecnocrático difere tanto do feudal quanto do capitalista. De fato, ele distingue-se do primeiro no sentido de que não são necessárias razões de natureza extra-econômica para que o sobre-trabalho possa ser extraído dos produtores diretos. Todavia, ele difere igualmente do capitalismo pelo fato de que, embora os produtores diretos vejam-se na contingência da sobretrabalhar movidos por razões econômicas ponderáveis, acontece que tais razões não têm o caráter imperativo que assumem no capitalismo uma vez que lhes falta a qualidade drástica do dilema "aceite ou morra". Em termos mais crus, períodos prolongados de greve, assim como a própria greve geral, são possibilidades muito mais viáveis no modo tecnocrático do que no modo capitalista. Do ponto de vista dos produtores diretos, a seqüência feudalismo-capitalismo-tecnocracia corresponde à passagem do servo ao trabalhador livre e ao produtor coletivo funcionalmente autônomo. Isto é, tais produtores bastam-se a si mesmos enquanto parte de um esquema de divisão de trabalho, mas não constituem uma coletividade efetivamente emancipada porque o sentido social do trabalho funcional-parcial que realizam só se revela a eles pela mediação de uma outra classe da qual, portanto, dependem para se converterem em membros integrais da comunidade.

Dada à divisão da sociedade em dois setores e dada à relativa autonomia do setor PD, a renda tecnocrática, uma espécie de royalty redefinido, ao contrário do que acontece tanto no capitalismo, quanto no feudalismo, caracteriza-se por brotar apenas indireta e mediatamente da pressão exercida pelas razões de natureza exclusivamente econômica. A peculiaridade da "forma transformada" do sobre-trabalho na sociedade tecnocrática consiste em que as razões econômicas em que se baseia são, por si mesmas, insuficientes para produzi-la. Para tanto, faz-se mister a introdução do elemento interveniente representado pela ideologia tecnocrática. É graças à mediação de uma ideologia que hipostasia o significado do progresso tecnológico para o progresso de desenvolvimento do homem social que os membros do setor PD se vêem a si mesmos como objetivamente envoltos nos laços de dependência que os subordinam a uma potência estranha e inatingível, a potência do intelecto humano, objetivado na forma do saber técnico-científico. Em suma, para que a renda tecnocrática se constitua sob a forma de trabalho não pago, realizado para "pagar" a aquisição do produto T, é necessário que a ideologia construa as relações entre os dois setores de um modo tal que o produto T se erija diante dos produtores diretos como um fetiche de que necessitam para viver sem que o necessitem para sobreviver e que só pode chegar a lhes pertencer satisfazendo à condição de não lhes pertencer.

Assim sendo, a apropriação do sobreproduto social pela classe dominante cristaliza-se numa forma de renda que é específica do modo tecnocrático de produção pelo fato de ser uma forma diretamente econômica e diretamente ideológica. Em suma, é nessa especificidade que se expressa o papel de matriz do modo tecnocrático de produção. Com efeito, ele determina uma forma de inter-relacionamento entre as instâncias tal que cabe diretamente ao ideológico, respaldado no econômico, o papel principal na articulação da estrutura social.

Finalmente, o que seria o Estado na sociedade tecnocrática. Sendo, como qualquer Estado, a parte que se veste de universal a fim de erigir-se em representante do todo que ela não é, a autoridade do Estado tecnocrático apresenta-se especificamente como a corporificação política da potência intelectual humana, do mesmo modo que o Estado teocrático legitimava-se como corporificação terrena da potência espiritual divina. Em termos reais, o Estado seria a própria classe tecnocrática no papel de mediadora das relações de produção e de troca entre o setor T e o setor PD. O desempenho desse papel implicaria, em primeiro lugar, no monopólio exercido pelo Estado da função dè planejamento para a qual a classe tecnocrática se sente congenitamente vocacionada. E, em segundo lugar, como as relações econômicas entre os dois setores dependem fundamentalmente das relações sociais ideológicas, o Estado atuaria como braço político da classe dominante assenhoreando-se, pela força, como todo Estado, do monopólio das funções de socialização, comunicação e doutrinação político-ideológica. Dessa forma, fechar-se-ia o círculo do sistema de dominação tecnocrático. Essa conclusão não implica negar que o modo tecnocrático de produção, se é que tal coisa pode existir, permitiria um notável avanço das forças produtivas, da riqueza material e mesmo, embora não tanto, da herança cultural da sociedade. A passagem do capitalismo para a tecnocracia eqüivaleria à substituição de relações de produção menos favoráveis por outras mais favoráveis ao desenvolvimento do potencial produtivo. No capitalismo, a ciência e a técnica estão subordinadas aos interesses de uma classe dominante que lhes cerceia o passo muito mais do que seria o caso sob o dominação da classe tecnocrática.

Esquematizando a questão a partir de uma perspectiva histórica mais ampla, poder-se-ia dizer que nas sociedades onde a produção de mercadorias é inexistente ou restrita, a acumulação de riquezas pelas classes dominantes realiza-se principalmente sob a forma de acumulação de valores de uso. Toda a riqueza acumulada, inclusive em certo sentido o próprio dinheiro, retira seu significado direta, ou quase que diretamente, do valor de uso, desde que a finalidade do processo de acumulação seja o consumo imediato ou o entesouramento visando futuras necessidades de consumo. Do ponto de vista dessas classes não há interesse em desenvolver a produção de uma forma sistematicamente ilimitada pois a sua própria capacidade de consumo, abstraídas as oscilações conjunturais, estabelece um teto máximo que seria irracional tentar incessantemente transcender. Nessas condições, a demanda das classes dominantes por bens de consumo até certo ponto estimula e, daí por diante, freia o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade.

Mesmo com a ampliação das trocas promovida pela expansão do grande comércio e a transformação do sobretabalho agrícola em renda monetária, esse quadro não se modifica substancialmente. Na realidade, simplesmente alarga-se a gama de bens de consumo postos à disposição das classes dominantes, os quais passam a incluir artigos mais ostentatórios ou inessenciais, assim como meios mais sofisticados de fazer a guerra.

Radicalmente distinta, contudo, é a situação que se configura desde que se generaliza a produção de mercadorias e os recursos acumulados são instituídos em capital nas mãos de uma nova classe social para a qual o sentido da riqueza não reside na possibilidade de ser gasta para atender a necessidades humanas mas ao contrário, na sua capacidade de automultiplicarse indefinidamente. Do ponto de vista da burguesia, trata-se de fazer a riqueza "trabalhar", trata-se de realizar as operações necessárias para que o capital circule, e no processo de sua circulação, transforme-se, acidentalmente, em instalações, equipamentos, matéria-prima, força de trabalho e "massa cinzenta", com o exclusivo propósito de, no final do processo, voltar a ser ele próprio aumentado e, naturalmente, disposto a recomeçar.

É desse modo que a culminação da economia monetária assinalada pela penetração do capital na esfera da produção abre um novo horizonte para o desenvolvimento das forças produtivas. Desde que não são mais as aspirações de consumo das classes dominantes - mas é a ilimitada necessidade em si mesma de autovalorização inerente ao capital que passa a impulsionar a expansão do sistema - só existe um único freio para o desenvolvimento das forças produtivas, o qual é expresso na crucial condição de que tal desenvolvimento signifique, em primeiro lugar, e antes de mais nada, o desenvolvimento do próprio capital, a possibilidade de que o capital se realize crescendo e cresça ao se realizar.

Essa relação de subordinação sublinha toda a história do desenvolvimento tecnológico moderno. O detalhe crucial desse processo tem sido o fato de que, como assinala Ernest Mandei, "para que uma máquina seja comprada por uma empresa capitalista, ela deve ser a um só tempo capaz de economizar trabalho humano e de gerar lucro; ela deve ser labour-saving e profit-increasing.9 9 Mandel, Ernest. Traité d'économie marxiste. Paris, Juillard, 1962. t. 1. p. 165. Labour-saving é a qualidade que ela tem como manifestação da ciência; profit-increasing é a qualidade que ela precisa ter para ser cobiçada pelo capital. Não existe nada na ciência que a torne capaz de se sobrepor ao poder que o capital possui de estancar os investimentos quando a taxa de lucro desce a um nível considerado excessivamente baixo. Nessas condições, não é o capital que participa do desenvolvimento autônomo da ciência, mas a ciência que faz seus os objetos próprios à expansão capitalista. Conseqüentemente, a história da ciência moderna tem muito mais a ver com a história do capital do que com a história da ciência moderna. O capital é filho da tecnologia no sentido de que ele é o produto histórico do aumento da produtividade do trabalho, sem o qual a captação de mais-valia não se tornaria exeqüível. De fato, quando o produto do trabalho é apenas igual aos custos de reprodução da força de trabalho, não existe base objetiva para a exploração capitalista. Contudo, o dilema de saber quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha, perde inteiramente sua relevância quando se trata de uma galinha que bota ovos de ouro. No mundo do capital, é inevitável que o capital comande e a ciência obedeça.

O resto, por mais meritório que seja, não passa de atividade subversiva e, portanto, marginal e desprezível diante do que a ciência oficial faz pelo progresso do sistema dominante. Assim sendo, o resultado mais notável da aplicação do conhecimento técnico-científico ao processo produtivo tem consistido justamente no aumento da mais-valia relativa que é proporcionado ao capital graças ao emprego de meios e métodos produtivos mais eficazes. Outra contribuição de monta tem sido a de permitir que as empresas pioneiras na introdução de tecnologia nova sejam capazes de faturar lucros extraordinários derivados do fato de passarem a operar acima da taxa média de lucro em virtude dos seus custos unitários terem sido barateados pelo aumento da produtividade. Por essa mesma razão, quando o capital se desloca de seu torrão natal para fazer as Américas, que ficam além da taxa média de lucro, realmente não lhe importa muito que o seu jogo seja descrito como o ascender das luzes da civilização moderna. E já que tem sido a cabeça, rebaixada a braço direito, da mesma empresa capitalista, não lhe custou muito (à ciência) tornar-se o braço esquerdo do Estado capitalista. Suas contribuições nessa área fizeram história, pois elas vão desde as carnificinas memoráveis propiciadas pelos modernos meios de guerra genocida até a inesquecível sensação de desconforto experimentada pelo cidadão comum, cuja vida privada é invadida pelos olhos e ouvidos eletrônicos dos modernos serviços de espionagem concebidos, desenhados e aperfeiçoados pelas melhores "cabeças" do nosso contingente técnico-científico.

De uma ponta a outra, o estabelecimento científico agita-se para superar-se a si mesmo no cumprimento das tarefas que lhe são assignadas pelo capital. A contribuição das ciências naturais é o que se vê tanto na pletora de bens materiais empilhados sem qualquer sentido de serventia social, quanto na poluição do ambiente natural e na destruição do patrimônio histórico-cultural. A contribuição das ciências sociais é o que se esconde atrás da racionalização do processo produtivo e do planejamento da vida nacional, mas que se pode ver simbolicamente retratado em façanhas tão notáveis quanto a "organização científica do trabalho", elaborada pela escola taylorista do scientific management e hoje reproduzida em grande escala por qualquer Comissão Nacional de Planejamento.

Qual seria a posição da ciência na sociedade tecnocrática aqui idealmente esquematizada? Constituiria ela o teatro em que se representa a epopéia da emancipação da ciência? É claro que não. O casamento da tecnologia com o capital representado pela união do filho com a própria mãe não é mais nem menos espúrio aos olhos da sociedade do que o casamento da tecnologia consigo mesma que é a forma onanista em que a ciência se realiza na sociedade tecnocrática.

No que diz respeito à ciência, o tecnocratismo padece do mesmo vício que o capitalismo. Tanto num quanto noutro sistema a ciência não está primordial e necessariamente subordinada ao homem. Daí resulta que os seus logros conservem apenas uma relação acidental com o significado profundo que a própria ciência atribui ao ser do homem na história. Um exemplo disso é dado pelo tipo de "racionalização" do esforço produtivo que seria, por excelência, o apanágio do setor T. Como a expansão do setor T, e, portanto, o dinamismo da sociedade tecnocrática em seu conjunto, depende dos ganhos de produtividade decorrentes da introdução de inovações tecnológicas, passaríamos da técnica pelo capital para a técnica pela técnica em lugar da técnica pelo homem. O processo de racionalização que teria lugar seria presidido pela racionalidade formal da técnica - que aumenta a eficiência dos meios com respeito a fins dados cujo valor é assumido acriticamente - e não pela racionalidade substantiva própria ao pensamento científico - que envolve a crítica tanto dos meios quanto dos fins buscados pela ação.

O que o tecnocratismo pede à ciência não é mais nem menos do que aquilo que satisfaz também ao capitalismo, pois ambos se limitam a cobiçar o conhecimento que permite a manipulação das coisas e das pessoas em lugar do conhecimento que conduz à autoconsciência e à liberdade criadora do homem na história. Libertando-se do capitalismo, o tecnólogo livra-se da obrigação de se submeter às exigências do tipo profit-increasing. Mas, ao limitar-se a produzir resultados do tipo labour-saving, ele restringe-se a uma definição puramente negativa da ciência, sem ser capaz de afirmar positivamente, como força social, a força que é intrínseca à ciência.

O foco fundamental do interesse científico reside no homem, quer seja nas suas relações com o meio natural, quer seja nas suas relações com os outros homens. Onde falta essa verdade simples e elementar pode ser criado um corpo de conhecimentos científicos mas é ao preço da morte do espírito científico que se formulam as questões essenciais para o homem e leva o afazer científico às suas últimas conseqüências. Essa é a razão pela qual a sociedade tecnocrática fracassa justamente naquilo que ela acredita ser o seu título de legitimação, ou seja, na sua capacidade de libertar a ciência das peias que impedem o seu franco desenvolvimento. Nesse tipo de sociedade a ciência efetivamente se liberta do jugo do capital, mas apenas para voltar a alienar-se no culto narcisista de si mesma. O pecado capital do pensamento tecnocrático consiste justamente em crer, e fazer crer, que a emancipação econômica e política dos tecnólogos redunda na emancipação social da ciência, quando na verdade apenas a emancipação do próprio homem social seria capaz de conduzir a ciência a libertar-se de todas as discriminações que a distorcem e a assumir todos os compromissos que a realizam. O Estado tecnocrático cria a liberdade da ciência às custas da submissão do homem. Para tanto, necessita impedir que os homens reconheçam e mobilizem suas próprias faculdades criadoras como potencialidades sociais que são, pois tal Estado só pode existir sob a condição de separar dos homens a força social da ciência para erigi-la à parte como entidade soberana pairando acima do alcance humano. Por isso mesmo o Estado tecnocrático apenas reproduz a imagem invertida do Estado teocrático na qual se substitui o império terreno de uma entidade divina pela dominação divinizada de uma potência deste mundo.

  • 3 Marx, Karl. O Capital, v. 4, p. 38.
  • 4 Baran, Paul & Sweezy, Paul. Monopoly capital. N. York, Monthly Review Press, 1967. p. 39-40.
  • 7 Vaitsos, Constantino. Development Advisory Service, Universidade de Harvard.
  • 9 Mandel, Ernest. Traité d'économie marxiste. Paris, Juillard, 1962. t. 1. p. 165.
  • 1
    Tecnocracia ou tecnoassessoria? e Tecnocracia e burocracia. Publicados, respectivamente, pela
    Revista de Administração de Empresas e pela revista
    Estudos (CEBRAP).
  • 2
    Balibar, Étienne. Sur les concepts fondamentaux du materialisme historique. In: Althusser, L. & Balibar, E.
    Lire le capital. Paris, Maspero, 1968, t. 2 p. 84.
  • 3
    Marx, Karl. O
    Capital, v. 4, p. 38.
  • 4
    Baran, Paul & Sweezy, Paul.
    Monopoly capital. N. York, Monthly Review Press, 1967. p. 39-40.
  • 5
    Balibar, Étienne. op. cit. p. 123.
  • 6
    Marx, Karl. op, cit. p. 179.
  • 7
    Vaitsos, Constantino. Development Advisory Service, Universidade de Harvard.
  • 8
    In: Balibar, Étienne. op. cit. p. 106.
  • 9
    Mandel, Ernest.
    Traité d'économie marxiste. Paris, Juillard, 1962. t. 1. p. 165.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1973
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