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As culturas negras

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

As culturas negras

Marineide do Lago Salvador dos Santos

As culturas negras

Por Arthur Ramos. Rio de Janeiro; Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, v. 3 (Coleção Arthur Ramos).

Esta obra faz parte de um conjunto mais amplo de estudos realizados pelo autor (ao todo 485 trabalhos publicados) em que determinados assuntos são tratados com mais vagar aqui ou ali, recebendo atenção específica. A análise dos fenômenos aculturativos e contra-aculturativos, por exemplo, é mais Intensiva em outros textos do que neste de que nos ocupamos. O fenômeno da possessão pelos orixás, a mitologia, a literatura e as danças afro-brasileiras estão interpretados psicanaliticamente por Arthur Ramos no livro O negro brasileiro (ainda que a aplicação da psicanálise "européia" à situação dos negros no Brasil não seja de todo adequada, conforme realça Roger Bastide). Sobre as associações negras, dedicou um capítulo intitulado O espírito associativo do negro brasileiro, no livro A aculturação negra no Brasil. A respeito do folclore há um tomo específico: O folclore negro; sobre os fenômenos aculturativos, As culturas negras no Novo Mundo e A aculturação negra no Brasil.

Todas estas obras foram recomendadas pelo próprio autor, à medida que o texto sugeria maior profundidade, além de um extenso rol indicado na bibliografia final. Em As culturas negras não há preocupação interpretativa; trata-se de um estudo etnológico interessado em catalogar as culturas africanas que para cá foram transportadas. Os sincretismos que resultaram do processo aculturativo (transformação da magia em feitiçaria, do totemismo em festas populares e folclóricas, etc.) não cabem nos limites deste texto. A esse respeito citamos as palavras do autor: "Como já deixei assinalado, não abordarei neste volume o problema da mudança cultural e da aculturação, que será estudado noutro volume desta obra, visto que meu intento agora é identificar, pelo método comparativo, as origens tribais do Negro no Brasil, e assim reconstituir a sua personalidade cultural, perdida em séculos de escravidão e modificada pelas mudanças de sociedade e de cultura", (p. 50.)

Portanto, para se fazer justiça a um estudioso do porte de Arthur Ramos, é imprescindível a lembrança de que sua obra flui entre um estudo e outro. Ousamos sugerir que esta, ora em resenha, seja tomada como introdutória, porque trata apenas da procedência (geográfica e cultural) dos negros brasileiros e da constatação de sua presença em determinadas regiões do País.

O autor parte de pesquisas que efetuou diretamente e também da sistematização da contribuição de outros autores, principalmente daqueles que estudaram o continente negro. Abre perspectivas para estudos posteriores, já que se trata dos primeiros passos para a sistematização dos estudos antropológicos sobre o negro no Brasil. Recorre freqüentemente ao apoio das pesquisas de Nina Rodrigues, feitas em fins do século passado, com material humano remanescente da escravidão, e dos estudos de Herskowits sobre as culturas, especialmente as africanas.

O apelo ao método comparativo, anteriormente utilizado com sucesso por Nina Rodrigues, vem sanar algumas dificuldades ou obstáculos no estudo das culturas negras no Brasil: como não há documentação exata sobre a procedência dos escravos, ele permite apreender as várias culturas heterogêneas que forneceram os participantes do "maior movimento migratório passivo da história", suas origens tribais e a constatação de transformações que sucederam no novo meio. Arthur Ramos reconhece que há dificuldades na aplicação desse método, principalmente porque alguns fatores barram a reconstrução dos padrões culturais. São eles: a) quantidades desiguais de transportadores dás culturas; b) migrações secundárias que redistribuíram internamente os negros; c) a ocorrência de fenômenos aculturativos entre os diferentes grupos de negros, entre estes e os "brancos" ou entre os negros e os ameríndios; d) a deformação de muito traços culturais mediante o cativeiro; e) a falta de documentos relativos ao período da escravidão.

O autor esmera-se ao tentar compor um quadro científico de cada área cultural, seja em solo africano, seja no Brasil, a começar pelo rigor na terminologia, passando pela localização fisiográfica dos grupos, pela caracterização bio-social típica de cada grupo, pela literatura e mitologia por eles desenvolvida, etc. Parece-nos ter ele sido sensibilizado pela necessidade de catalogar, tão extensamente quanto possível, as culturas negras daqui e de além-mar, ameaçadas de extinção em maior ou menor grau, num processo mais ou menos rápido. Nessa tarefa mostrou-se batalhador incansável, dando impulso aos trabalhos etnográficos sobre o negro no Brasil, pois anteriormente, exceção feita a Nina Rodrigues, eram os estudos indigenistas os que monopolizavam as atenções. Aliás, é o próprio Arthur Ramos quem levanta a voz para denunciar a "conspiração do silêncio" por parte dos intelectuais brasileiros da época, o desinteresse pelo tema do negro, que revelava um preconceito intrínseco. A antropologia cultural começava a ganhar vulto no Brasil da época (década de 20), fornecendo o arcabouço teórico para as pesquisas de campo. A essa altura a sociologia permanecia eminentemente ensaística.

Entretanto, algumas considerações precisam ser feitas:

1. Nesta obra a cultura é percebida mecanicamente, como agregação de traços culturais e não como um sistema que tem organicidade, composto de elementos interdependentes. Assim, ela pode ser decomposta em segmentos, até atingir áreas não complexas. Isto significa uma visão atomizada da cultura, que, ao difundir-se pelo mundo, pode ser transmitida parceladamente, em itens culturais isolados ou em complexos mais amplos. Desse ponto de vista, recepção-doação no processo aculturativo faz-se deixando sobrevivencias, restos culturais. No caso brasileiro, as culturas negras teriam "sofrido" a aculturação diante do contato com a cultura ocidental aqui dominante. Não havia condições favoráveis para a resistência, pois sofreram pressões tanto de ordem fisiográfica quanto social e cultural, e a situação de dependência do mundo dos brancos a que foram constrangidos levou a uma descaracterização quase completa do universo do negro. Não havia "claros" para a cultura negra, e, além disso, dada a heterogeneidade das culturas trazidas com os africanos, qual ou quais delas preservar? Aos poucos, então, foi ocorrendo a assimilação, persistindo apenas resíduos culturais. A esfera mais resistente ao processo de assimilação foi a religiosa, daí os estudos culturalistas enfatizarem as sobrevivencias nesse campo.

2. Há uma excessiva ênfase atribuída ao negro enquanto expressão de cultura, sendo abstraídos seus problemas reais que surgiram na adaptação à sociedade inclusiva. No dizer do sociólogo L. A. Costa Pinto, enquanto os negros morriam pelos morros, os antropólogos permaneciam preocupados com os "produtos culturais" do elemento negro; suas tradições, festividades, cultos, etc. A supervalorização do folclore negro correspondia à exaltação da brasilidade, da cultura popular, típica dos anos 20. Era uma reação à ameaça de descaracterização da nacionalidade brasileira pela onda imigrantista, daí o interesse estratégico pelo negro enquanto "homem do povo". Se antes o negro e o mestiço eram vistos negativamente como entrave ao desenvolvimento nacional, pois portavam caracteres raciais "inferiores", na fase de grande preocupação intelectual culturalista, da qual Arthur Ramos é indubitavelmente o expoente máximo, o "mal", sendo localizado nos aspectos culturais e não raciais, poderia ser contornado e, então, a nação se redimiria do seu subdesenvolvimento e da degenerescência precoce de que falava Nina Rodrigues. Não houve preocupação em interpretar o processo de mudança que se esboçava na época, envolvendo especialmente os pólos dinâmicos da vida nacional, e por isso muitos dos intelectuais da época revelaram-se nitidamente conservadores. À luz dos trabalhos sociológicos sobre o elemento negro que floresceram no Brasil a partir da década de 50, podemos perceber que a focalização do negro como "problema social" e como expressão de estrutura nos leva a questões de extrema significação, impossíveis de serem apreendidas através da abordagem culturalista, porque se referem à mobilidade, competição, integração social, formação de ideologias etc.

Temos hoje também, à mão, abundante material sobre as culturas africanas, estudadas interpretativamente, do qual destacamos apenas a obra de Janheinz Jahn, Muntu - las culturas neoafricanas, a título de exemplo. Nela ganha realce a filosofia bantu, que predomina em quase todos os povos negros ao sul do Equador, porque ela constitui a argamassa para todas as facetas da vida dos negros dessa extensa área do continente africano; traz à luz a concernente visão do mundo, o significado das artes, da religião, o conteúdo da ética social, etc. Essa filosofia repousa no princípio da "força vital", que anima todos os seres vivos e especialmente os homens, conferindo-lhes existência, vivência e poder; inclusive os antepassados possuem parte dessa força vital. A sociedade é composta de indivíduos vivos e mortos, entre os quais há um intercâmbio de serviços e de forças. Em conseqüência, encontramos um unitarismo tanto filosófico quanto ideológico e social, em que o sagrado e o profano identificam-se. Assim, toda obra de arte é operação mágica, toda operação técnica liga-se a ritos, etc. A religião é a aplicação prática da filosofia na vida diária; a força vital pode ser usada para aumentar ou debilitar outros seres ou coisas, daí a existência das práticas mágicas. Mas a feitiçaria só aparece depois do contato colonial, quando assume caráter reativo, à espera de condições para a reorganização da ação política, tanto que os movimentos contemporâneos pró-independentização ou reconstituição das nações recém-independentes lançam combate incisivo sobre ela. Por isso observamos com certas reservas a classificação genérica dos africanos como fetichistas idólatras, que Arthur Ramos lhes confere, e a superficialidade no tratamento das cerimônias e ritos funerários ou do culto dos antepassados, como consta na obra que comentamos nesta resenha.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1973
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