Acessibilidade / Reportar erro

Les alliances de classes

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Les alliances de classes (sur l'articulation de modes de production).

Pierre-Philippe Rey, Maspero, Paris, 1973.

A importância da teoria da renda da terra para a compreensão do processo de desenvolvimento do capitalismo na agricultura já foi apontada por autores que se preocupam com a realidade rural, como Henri Lefebvre. Entretanto, poucos estudos tomam como referência analítica esta teoria e menos ainda tentam aprofundá-la em seus aspectos considerados incompletos.

O trabalho de Rey pretende realizar esta difícil tarefa. Trata-se de um estudo heurístico e sistematizador da teoria marxista da renda da terra contida basicamente em O capital, livro III, seção VI. O estudo da renda da terra surge, porém, para este autor, como produto de preocupação anterior, qual seja, a de construir a teoria da articulação de modos de produção diferentes porque ele considera as realidades sociais concretas como a luta, o enfrentamento ou a aliança de classes produzidas por diversos modos de produção. Daí, o título de sua obra As alianças de classes ser acompanhado do subtítulo Sobre a articulação de modos de produção.

O tema-chave para a discussão da articulação de modos de produção é, para Rey, a renda capitalista da terra. Mas, diz ele, esta categoria não foi completamente estudada não só por Ricardo, mas também por Marx. Assim, ele aponta uma série de vazios explicativos no estudo marxista sobre a renda capitalista da terra. Estes vazios são:

1. Ausência de definição sobre que tipo de relação econômica exprime a renda da terra: é uma relação de produção ou de distribuição?

2. Ausência de definição sobre a qual modo de produção corresponde a renda da terra: é um elemento do modo de produção capitalista ou do modo de produção feudal?

3. Ausência ainda de definição sobre quais são as classes sociais determinadas pela renda da terra: o texto de Marx leva a pensar que a renda territorial gera a luta entre duas classes proprietárias de meios de produção (proprietário territorial e capitalista).

4. Finalmente, incapacidade da teoria marxista de explicar a renda absoluta, isto é, diante de uma realidade estatística que mostra a existência de uma pesada renda absoluta da terra, Marx só conseguiu elaborar uma teoria que dá conta de uma renda absoluta nula ou quase nula.

Depois de retomar alguns pontos da teoria marxista da renda da terra, tais como: diferença específica entre a renda diferencial e o lucro extraordinário de outros setores produtivos, diferença de origem entre a renda diferencial e a renda absoluta e, depois de mostrar a propriedade territorial ao mesmo tempo como "condição histórica" (na medida em que possibilita a destruição do campesinato) e como "resultado histórico específico" do sistema de produção capitalista, Rey assume posição teórica diante do problema da renda capitalista da terra, definindo-a nestes termos: "A renda capitalista da terra é uma relação de distribuição do modo de produção capitalista e esta relação de distribuição é o efeito de uma relação de produção de um outro modo de produção com o qual o capitalismo se encontra articulado." (p. 60.) Portanto, a renda da terra com relação de produção não-capitalista separa proprietário territorial e camponês, e enquanto relação de distribuição do modo de produção capitalista separa proprietário territorial e empresário capitalista.

Mais ainda, rompendo com a idéia de que a renda absoluta deve ser explicada no quadro do modo de produção capitalista - ponto de partida tanto de Ricardo como de Marx - Rey afirma: "... nada impede que uma propriedade que, estando alugada a um capitalista, só produza o lucro médio ou mesmo um lucro inferior ao lucro médio, portanto nenhum sobrelucro transformável em renda (levando em conta os preços do mercado), possa ser alugada a um não-capitalista e produza renda. A taxa desta renda é então determinada não no quadro do modo de produção capitalista, mas no quadro do modo de produção feudal". (p. 58.)

Quanto ao processo de articulação propriamente dito, dois aspectos podem ser destacados na teoria de Pierre-Philippe Rey:

1. O processo de articulação do modo de produção capitalista com outro modo de produção ou, o que vem a dar no mesmo, o processo de desenvolvimento do capitalismo no campo se faz por etapas ou fases. Três podem ser distinguidas: na primeira o modo de produção capitalista não é ainda dominante em relação a outro modo de produção; a propriedade da terra tem um papel importante no desenvolvimento do capitalismo na medida em que expulsa parte da população camponesa de suas terras (ou impede que trabalhadores "livres" se estabeleçam por conta própria) e, ao mesmo tempo, faz com que os produtores diretos lancem cada vez mais no mercado seus produtos através do pagamento da renda da terra (o desenvolvimento do capitalismo nesta fase se dá portanto na base de outro modo de produção); numa segunda fase - embora esta situação se inverta - o modo de produção capitalista passa a ser dominante e o grande capital destrói radicalmente o artesanato agrícola, tornando o camponês produtor de alimentos para o mercado capitalista, e, ao mesmo tempo, comprador, nesse caso, de bens de produção e de subsistência (industrializados) - ele ainda não penetrou inteiramente na agricultura de alimentos, ficando tributário de modos de produção pré-capitalistas para o abastecimento das cidades (esta é a etapa atual por que passa a maior parte dos países chamados subdesenvolvidos, diz Rey); finalmente, a terceira fase só foi alcançada, segundo aquele mesmo autor, pelos EUA e está em vias de ocorrer na França, onde a empresa capitalista pode concorrer com o estabelecimento camponês na produção de alimentos. No posfácio desta obra escrito em novembro de 1972, Rey reconsidera sua concepção sobre esta terceira fase, dizendo que a dominação do capitalismo não se faz pela destruição do pequeno estabelecimento camponês, mas por sua manutenção sob a dominação do capital industrial ou financeiro. E acaba concluindo que o futuro do capitalismo na agricultura é: "a utilização da pequena propriedade camponesa, que leva o camponês a se super-expropriar em benefício do capital, mais do que poderia suportar a classe operária (tempo de trabalho mais longo, nível de vida mais baixo)". (p. 216.)

2. A articulação do modo de produção capitalista - como modo de produção dominante - com outro modo de produção se faz através da circulação do mercado capitalista. Rey faz esta afirmação com base em texto marxista: "A circulação de dinheiro e de mercadorias pode unir os sistemas de produção de estruturas as mais diversas cuja organização interna orienta ainda essencialmente para a produção de valores de uso." "Pouco importa que as mercadorias sejam o produto de um sistema fundado sobre a escravidão, ou o produto de camponeses (...) é como mercadorias que elas funcionam sobre o mercado e como tais que elas entram no ciclo do capital industrial tanto quanto na circulação da mais-valia." (p. 118-9.)

Com bases nestas observações de Rey, acredito ser possível explicar as seguintes situações concretas da agricultura brasileira, entre outras: 88% dos estabelecimentos produtores de leite de São Paulo, correspondendo a 40% da produção1 1 Conjuntura Econômica, v. 28, n. 6, p. 106, jun. 1974. e 78% dos estabelecimentos produtores de arroz de Goiás, correspondendo a 38% da produção daquele estado2 2 Cassimiro, M. et alii. Análise preliminar para uma diagnose do estado de Goiás. Departamento Estadual de Cultura, Goiânia, 1971, p. 43. são unidades produtivas camponesas, isto é, trabalhadas por mão-de-obra familiar, bem como 10% do arroz que é vendido no Grande Rio, proveniente do Maranhão.3 3 Guilherme Velho, Otávio. Frentes de expansão e estrutura agrária. Rio, Zahar, 1972. p. 124. Isto significa que na medida em que a produção de alimentos nestas áreas não pode ser feita em moldes capitalistas (remunerando renda da terra para o proprietário territorial, salário para os trabalhadores assalariados e lucro para o capitalista), porque os preços tabelados dos alimentos não o permitem, ela se faz em moldes camponeses (remunerando apenas a renda da terra e a subsistência para os produtores diretos). Configura-se assim uma situação de produção não-capitalista realizada na base do mercado capitalista.

Todavia, ressalvas devem ser feitas ao texto de Rey. A primeira delas refere-se ao marco do processo de articulação que ele localiza apenas no mercado capitalista. Ao contrário, pude encontrarem pesquisa empírica em que a articulação do capitalismo com uma relação de produção não-capitalista como a parceria ocorre não só no nível do mercado, mas também no nivel do próprio processo produtivo, com a relação de produção assalariada, pela mediação da propriedade da terra.4 4 Loureiro, Maria Rita Garcia. Parceria e capitalismo. 1975. mimeogr. A segunda ressalva que se pode fazer ao texto de Rey e, a meu ver, a mais importante, é aquela relativa à questão da articulação de modos de produção diferentes. Rey elabora esta teoria a partir de análise sobre o Congo, onde talvez possa existir outros modos de produção, mas para o caso brasileiro, por exemplo, cuja situação concreta nos é mais próxima, parece-nos extremamente dificil supor a existência de diferentes modos de produção articulados entre si, sob a dominância do capitalismo. É claro que a sociedade brasileira, como um todo, é bastante heterogênea, mas acredito que em termos de relações de produção e não em termos de modos de produção. Isto, inclusive, se considerarmos a noção de modo de produção nos termos de Balibar,5 5 Acerca de los conceptos fundamentales del materialismo histórico. In: Althusser & Bal¡bar. Para leer el capital. 11. ed. Argentina, Siglo Veintiuno. 1974. cuja orientação teórica é a que serviu de base para as próprias formulações de Rey. Grosso modo, a distinção feita entre relação e modo de produção pode ser assim resumida: enquanto a noção de relação de produção se refere apenas à esfera econômica, a de modo de produção comporta uma totalidade mais ampla abrangendo não só a infra-estrutura econômica, mas também a supra-estrutura jurídicopolítica e ideológica. A parceria, por exemplo, encontrada na agricultura brasileira, nos termos apontados, não poderia nunca ser pensada como um modo de produção, mas apenas como uma relação de produção não-capitalista (que não quer dizer feudal) articulada ao modo de produção capitalista dominante.

Para terminar, devo esclarecer que não pretendi considerar aqui as possíveis críticas que se poderia fazer a Rey pela "leitura" estruturalista ou althusseriana efetuada nos textos de Marx. Minha intenção foi, deixando de lado aquele debate, aliás já bastante conhecido, tentai observar que contribuições se poderiam tirar do trabalho deste autor que inegavelmente representa um dos poucos esforços de discutir um tema que necessita ser discutido.

Maria Rita Garcia Loureiro

  • 1 Conjuntura Econômica, v. 28, n. 6, p. 106, jun. 1974.
  • 2 Cassimiro, M. et alii. Análise preliminar para uma diagnose do estado de Goiás. Departamento Estadual de Cultura, Goiânia, 1971, p. 43.
  • 3 Guilherme Velho, Otávio. Frentes de expansão e estrutura agrária. Rio, Zahar, 1972. p. 124.
  • 4 Loureiro, Maria Rita Garcia. Parceria e capitalismo. 1975. mimeogr.
  • 5 Acerca de los conceptos fundamentales del materialismo histórico. In: Althusser & Bal¡bar. Para leer el capital. 11. ed. Argentina, Siglo Veintiuno. 1974.
  • 1
    Conjuntura Econômica, v. 28, n. 6, p. 106, jun. 1974.
  • 2
    Cassimiro, M. et alii.
    Análise preliminar para uma diagnose do estado de Goiás. Departamento Estadual de Cultura, Goiânia, 1971, p. 43.
  • 3
    Guilherme Velho, Otávio.
    Frentes de expansão e estrutura agrária. Rio, Zahar, 1972. p. 124.
  • 4
    Loureiro, Maria Rita Garcia.
    Parceria e capitalismo. 1975. mimeogr.
  • 5
    Acerca de los conceptos fundamentales del materialismo histórico. In: Althusser & Bal¡bar.
    Para leer el capital. 11. ed. Argentina, Siglo Veintiuno. 1974.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Out 1975
    Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: rae@fgv.br