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Crise do petróleo e evolução recente da economia brasileira

ARTIGOS

Crise do petróleo e evolução recente da economia brasileira

Luís Antonio de Oliveira Lima

Professor do Departamento de Planejamento e Análise Econômica da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas

1. Uma das características dos comportamentos individual e de grupos em sociedades que passam por mudanças bruscas e adversas é a tendência de explicar tal situação não por suas causas reais, mas de interpretá-la como a conseqüência da divisão do mundo entre os bons, aos quais se pertence, e os maus, isto é, o inimigo criado expressamente para ser responsabilizado pela adversidade. Tal característica psíquica, nas palavras dos autores que melhor a estudaram, Adorno e Horkheimer, é "o produto de fenômenos contemporâneos, como a dissolução da pequena e média propriedades, da crescente impossibilidade de existência econômica autônoma, de certas variações na estrutura da família e de certos erros na orientação da economia".1 1 In: La sociedad - leciones de sociologia. Buenos Aires, Editorial Proteo, 1969.

No Brasil, nos últimos dois anos, têm-se verificado tendências que apresentam algumas analogias com a situação acima descrita: uma delas é a tentativa de se apontar a majoração do preço do petróleo importado, como a principal responsável pelas dificuldades que afligem nossa economia. Alega-se que em apenas três anos, depois de uni período de crescimento e euforia, inclusive com superávit na balança comercial o País passou a acumular um déficit no valor de US$ 10 bilhões - o que absorveu mais de um terço das nossas divisas, bem como obrigou-nos a importar financiamentos que levaram a perigosos índices de endividamento externo.

Afirma-se ainda que a contenção desse déficit nos dois últimos anos provocou grandes prejuízos para a atividade econômica que passou de um regime de produção crescente e inflação declinante para uma situação de altas taxas inflacionárias e de taxas de crescimento declinantes.

Os números do quadro 1 ilustram as afirmações relacionadas com o balanço de pagamentos.


Os saldos dos mesmos anos, correspondentes ao balanço de serviços também revelam valores negativos, conforme o quadro 2.


Somando-se os valores dos dois primeiros quadros obteremos os saldos para o balanço de transações correntes desses anos (quadro 3).


Até que ponto a majoração do preço do petróleo é uma explicação adequada para as tendências mostradas pelos dados dos quadros? Até que ponto não é uma tentativa de se escolher um bode expiatório e responsabilizá-lo pelas conseqüências de uma dada opção de política econômica, como fez um competente economista ao afirmar que "tudo ia muito bem até que os árabes descobriram que tinham petróleo"?2 2 In: Diário do Comércio Industrial (Especial), dez. de 1975, jan. 1976. p. 16.

Para respondermos tais questões de forma correta, sem porém nos aprofundarmos nas causas últimas do problema, basta-nos um exame mais detido de alguns componentes do balanço de pagamentos e os efeitos que tiveram sobre eles a chamada "crise do petróleo". Assim, em princípios de 1974 os preços do petróleo cresceram de três a quatro vezes, fazendo com que o valor das importações brasileiras do produto aumentassem 388% em 1974 em relação a 1973. No entanto, este aumento de US$ 2,049 das importações, sendo portanto os demais itens responsáveis por 67% desse aumento. De outro lado, a participação dos itens óleo bruto e derivados no total importado não chegou a dobrar, passando de 11,5% em 1973 para 22% em 1974, o que indica também um crescimento substancial nos demais itens importados, que passam a corresponder a 78% das importações do período.3 3 Conforme Conjuntura Econômica, dez. 1975, p. 74.

O quadro 4 dá uma idéia mais precisa dos principais itens de nossas importações, onde sobressai em 1974 o grande volume da importação de máquinas e equipamentos.


Em contrapartida é interessante notar que grande parte desse aumento das importações foi de responsabilidade de empresas multinacionais. Um estudo realizado pela Subsecretaria de Cooperação Econômica e Técnica Internacional da Secretaria de Planejamento4 4 Dados transcritos do Jornal do Brasil, 30 maio 76, p. 40. revela que no ano de 1974 as 115 maiores empresas multinacionais tiveram um déficit comercial de US$ 2,116 bilhões (equivalentes a 46% do déficit comercial do País); um déficit em serviços de US$ 251,1 milhões (11% do déficit nacional) e um déficit corrente (mercadorias e serviços) equivalente a US$ 2,412 bilhões correspondentes a 35% do déficit corrente nacional. Destas empresas, as colocadas no setor de perfumaria, farmácia e química - setores altamente ligados ao processo de diversificação do consumo das camadas de renda mais alta - foram responsáveis por um déficit em conta corrente no valor de US$ 741,4 milhões.

O quadro 4 ilustra também o fato de que não se fez um esforço de substituição nos setores básicos da economia, no sentido de se substituir a importação de fertilizantes, trigo, cobre, alumínio e equipamentos, os quais (bens), se não se optasse pela maximização de crescimento a curto prazo em detrimento de um processo de crescimento mais equilibrado, poderiam ter sido produzidos em grande parte no País.

O que é mais importante, no entanto, é que se não fosse pelo aumento de preços de nossos produtos primários durante 1973, um déficit da balança comercial já teria ocorrido neste ano, com o aumento de 46,2% do valor das importações. Vale a pena ressaltar ainda que este aumento do preço de nossas exportações não corresponde a uma tendência secular da economia mundial e portanto dificilmente poderia persistir para anos seguintes, o que nos permite inferir que, de qualquer forma, a nossa balança comercial já ao iniciar-se o ano de 1973 apresentava uma tendência estrutural para o déficit, apenas antecipado com todas as suas conseqüências pela crise do petróleo. (A elevação do preço de nossas exportações se explica pela grande procura de matéria-prima pelos países industrializados que viram na estocagem desses bens uma forma de fugir aos efeitos da inflação mundial. Segundo The Economist, em 1973, as matérias-primas alimentícias tiveram seus preços aumentados em 38,6% e as industriais em 76,5%.)5 5 Conjuntura Econômica, dez. 1975, p. 70. Deve-se notar, ainda que o índice de relações de trocas evoluiu a favor do Brasil de 105 em 1972 para 116 em 1973.

Outro fato cuja importância se procura minimizar na explicação da crise atual da economia brasileira é o papel desempenhado pela balança de capital especialmente pelo serviço da divida externa. Os números do quadro 5 ilustram a dimensão de tal problema.


Se aos valores das amortizações adicionássemos apenas juros teríamos o serviço da dívida com os totais mostrados no quadro 6.


De outro lado, devemos perguntar se os recursos que originaram nosso endividamento foram utilizados para aumentar a capacidade produtiva da economia brasileira, me diante substituição de importações nos seus setores mais estratégicos, principalmente bens de capital: a resposta é negativa, o que pode ser justificado por motivos de duas ordens: o primeiro já consideramos rapidamente: boa parte dos recursos que entraram foram destinados a cobrir déficits de importações principalmente de empresas multinacionais, produtoras de bens de consumo de luxo; o segundo diz respeito à própria maneira pela qual os dólares entraram no País. O afluxo de empréstimos em moeda aumenta sensivelmente a partir de 1969, passando de US$ 1,604 milhão nesse ano para US$ 11,211 milhões até setembro de 1974. Tais empréstimos se fizeram através de uma série de dispositivos legais (a Instrução n.º 289, permitindo repasse das matrizes multinacionais para as subsidiárias; a Lei n.º 4/131 permitindo remessas feitas por bancos para financiamento de capital de giro das filiais, e a nº 63 permitindo a qualquer empresa nacional ou estrangeira obter dinheiro para o mesmo fim mediante intermediações do sistema financeiro), que facilitavam grandemente as aplicações em especulação. Assim se considerarmos a estrutura da dívida externa nos anos de 1969 e até setembro de 1974 veremos o seguinte: em 1969 os US$ 4,392 bilhões da dívida estavam distribuídos entre US$ 1,604 de empréstimos em moedas (36% do total), US$ 1,355 para financiamento de importações (31%) e 33% para outros empréstimos. Em setembro de 1974 os US$ 15,913 milhões estavam distribuídos em US$ 10,553 para empréstimos em moeda (66% do total), US$ 4,153 para financiamento de importações (26%), e US$ 1,206 para outros empréstimos (8%). Neste contexto ainda é interessante notar-se que no ano de 1974 os empréstimos em moeda aumentaram em US$ 4,372 milhões o que é muito mais do que o aumento das importações devidas ao petróleo, de maneira que não se pode ligar um fato ao outro.6 6 Conforme Relatório Anual do Banco Central 1974/76.

Talvez possamos associar a atividade especulativa realizada com esses recursos com o fato de que de 1969 a 1972 triplicou o valor das letras imobiliárias, pois o Governo permitia que se aplicassem recursos externos na aquisição de tais letras. A criação do open-market permitiu também o aumento da atividade especulativa com recursos externos. Tal aconteceu quando os juros internos, estando mais elevados que o custo do dinheiro de fora, estimulavam os empresários a levantar recursos do exterior, para os aplicar em letras e obrigações do Tesouro Nacional e não em atividades produtivas. Talvez tal prática tenha sido uma das responsáveis pelo aumento do volume das ORTNs, que passou de Cr$ 9,412 bilhões em 1970, para Cr$ 60,112emmarço de 1975. Neste mesmo período a relação entre dívida pública em ORTN e LTN e o PIB passou de 4,9 para 10,9.7 7 Relatório Anual do Banco Central do Brasil 1975.

O fato da especulação pode ser confirmado diretamente pelo exame dos balanços e do endividamento de algumas grandes empresas, correspondentes aos anos de 1974 e 1975.

O quadro 7 permite-nos estabelecer uma associação entre a dívida externa de algumas empresas e os seus lucros não-operacionais, isto é, lucros advindos de atividades desvinculadas das operações normais das empresas, aplicações financeiras, aluguéis, participação acionária em outras empresas etc.


2. Da mesma forma que se procurou explicar os problemas do balanço de pagamentos e a redução das taxas de crescimento do produto pela elevação de preços do petróleo, procurou-se também atribuir a este fato a elevação das taxas inflacionárias a partir de 1974, sob o nome consagrado de "inflação importada". Tal interpretação, no entanto, deixa de considerar que desde o primeiro trimestre de 1973 a economia atinge um nível de funcionamento que se pode considerar de plena utilização da capacidade (90%). Alguns cálculos sobre a diferença entre o produto potencial e o produto real indicam que esta diferença se aproxima de zero em 1973/74.8 8 Conjuntura Econômica, dez. 1975, p. 70. Assim, atingida a capacidade plena, se a demanda agregada continua a expandir-se, o resultado será o aumento de importações e/ou de preços. Se a isto juntarmos o fato de que as taxas de crescimento dos meios de pagamento foram muito elevadas em 1973 (47 e 53%), se considerarmos o período novembro/72 a novembro/73, teremos as peças adequadas para explicar a inflação reprimida de 73 e aquela que se manifesta em 74 em torno de 35%. Sob este ponto de vista, um analista de Conjuntura Econômica é bastante explícito: "Pode verificar-se que o início da aceleração da inflação coincide aproximadamente com o aumento do petróleo. Porém observa-se também, com um hiato de seis a nove meses, o efeito dos meios de pagamento sobre o nível de preços. O aumento crescente daqueles provoca movimentos semelhantes nos preços em meados de 1974".

O mesmo também é observado adequadamente por Carlos Langoni em entrevista recente: "A economia brasileira vive, de fato, um clima de permanente excitação em que eventuais folgas na política monetária ou fiscal têm repercussão quase que imediatamente em termos de crescimento e um impacto relativamente mais defasado em termos de inflação". Da mesma forma Langoni procura lembrar que a inflação e o déficit comercial crescente dos últimos anos estão umbilicalmente ligados: "a expansão monetária excessiva, e especialmente no crédito a partir de 1971, alimentou o boom 1972/1973 e ao mesmo tempo facilitou a aceleração inflacionária a partir de 1974. Neste ano a permanência do excesso de liquidez, combinado com a antecipação de dificuldades crescentes no setor externo em face da efetivação do aumento do preço do petróleo, explica o sensível crescimento ocorrido nas importações de outros bens essenciais, completando aí o quadro de agravamento do déficit".9 9 Jornal da Tarde, O Estado de São Paulo. 29.jan. 77.

De outro lado, se tais análises são corretas ao identificarem as causas imediatas do processo inflacionário, elas são incompletas na medida em que sugerem que os fatos poderiam ser outros, caso fossem tomadas medidas de política monetária e fiscal adequadas. Em outras palavras, supõem que tais medidas decorrem da simples decisão dos responsáveis pela política econômica, esquecendo-se de que elas surgem de necessidades que vão nascendo do próprio bojo da economia, decorrentes da estrutura do modelo econômico em consideração. Ou como observa Inácio Rangel, supõem que a inflação tem origem no gabinete do ministro da Fazenda.

É possível ir mais longe na análise do processo inflacionário e se tentar mostrar, invertendo a ordem causal admitida pela análise econômica tradicional, que os mencionados aumentos dos meios de pagamento já se constituem um efeito e não a causa real do processo inflacionário. Tal argumento fortalece a idéia de que o processo inflacionário que se acentua a partir de 1974 já estava presente em potencial nas condições de funcionamento da economia e não se constituiu em simples reflexo de condições exógenas ao sistema econômico.

Vejamos como é possível ocorrer o fato mencionado, isto é, o de que as autoridades monetárias ajam passivamente ao regularem as variações dos meios de pagamento. Consideremos inicialmente uma elevação autônoma do nível de preços, que pode decorrer da elevação do preço de alguns produtos, não compensada pela redução nos preços de outros produtos. Em uma situação como esta - dado um certo nível de produção, um certo valor da velocidade de circulação da moeda, e um certo valor dos meios de pagamento - ou aumentam os meios de pagamento, de tal maneira que o mesmo valor real de produção possa circular ao nível geral de preços mais elevado, ou simplesmente, uma parte da produção deixa de circular devendo ser retirada do mercado com o conseqüente declínio do nível de renda. Ora, se a última situação ocorrer, as empresas elevarão o seu realizável à custa do disponível, uma vez que seus estoques tenderão a crescer. Dado que os estoques inflados das empresas justificam por parte do sistema bancário uma elevação de seus empréstimos, estes são realizados gerando problemas de liquidez no nível do próprio sistema de bancos comerciais e levando ao afrouxamento do crédito pelo Banco Central. Com isto restabelece-se o equilíbrio, até que uma nova pressão originada do próprio aumento da produção ou de uma nova elevação de preços leve de novo as autoridades monetárias a elevar os meios de pagamento.10 10 Uma discussão mais detalhada dessas hipóteses pode ser encontrada em Rangel, Inácio. Inflação brasileira. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1963. p. 6 e segs.

Poderemos admitir assim uma certa ordem de causalidade no processo inflacionário em discussão: o nível da renda real da economia encontra um teto no início de 1973 dado pela plena utilização da capacidade produtiva da economia; as empresas com maior poder de monopólio passam a elevar seu mark-up (percentual que incide sobre os custos diretos de produção, tendo em vista obter uma margem para lucros e overhead) e, portanto, a elevar seus preços. Tal elevação de preços induz mediante os mecanismos mencionados a uma elevação dos meios de pagamento. Foi o que ocorreu no Brasil, no segundo semestre de 1973, e que levou ao processo inflacionário de 1974. No caso da elevação dos custos diretos de produção, mantido o valor do mark-up, pode ocorrer também um processo de realimentaçâo inflacionária, uma vez que os preços finais incorporam não apenas a elevação dos custos diretos de produção, como também o valor correspondente à elevação da massa de lucros, na medida em que se mantém a mesma margem sobre uma base maior, isto é, sobre os custos diretos de produção.

Tal argumento está baseado na análise de SyllosLabini11 11 In: Oligopoly and technical progress. Rev. ed. Harvard University Press, 1969. e o seu rationale foi claramente exposto por Franco Modigliani:

"Especificamente, ele (Syllos) sugere que onde o princípio do full-cost é utilizado como critério de determinação de preços pode ser interessante para as grandes firmas elevar o preço dos fatores que compõem o custo direto de produção; de fato, admitindo-se que a curva de demanda tenha elasticidade suficientemente baixa, tal política aumentará o total de lucros da indústria. Onde as grandes firmas são também importantes produtoras de matérias-primas estratégicas elas podem melhor atingir esse propósito elevando tais preços... Entretanto, a vantagem no aumento dos custos diretos pode ser realizada somente onde o princípio do full-cost vigora de maneira generalizada a despeito do excesso de capacidade..."12 12 Em "New development in oligopoly front". Reading in the economics of organization. Holt & Hinehart, p. 208. A análise acima tem grande relevância teórica pois mostra a futilidade de se atribuir a um fator a responsabilidade pela elevação de preços pois como nota Syllos-Labini: "Através de uma análise mais cuidadosa nós observamos que um fator inflacionário igualmente ou talvez mais importante é o poder de mercado que as firmas maiores desfrutam na venda de seus produtos. É fútil procurar pelo culpado (do processo inflacionário) - em última análise a estrutura da indústria moderna é ela mesma responsável pela elevação de preços". (Oligopoly and technical progress. p. 69.)

De tal análise decorre que se os salários permaneceram com valores monetários constantes, a participação dos lucros em relação aos salários aumentará elevando a taxa de exploração do sistema definida como a relação Valor Agregado Bruto - Salários/Salários. Assim o mecanismo descrito explica o início do processo de elevação de preços ocorrido a partir de 1973 em nossa economia. Tanto que, de 1972 para 1973, pode-se perceber claramente em quase todos os ramos do setor industrial uma elevação das taxas de exploração como mostram os números do quadro 8.13 13 Um aumento em tal coeficiente indica que aumentou a margem por unidade de gasto em mão-de-obra destinada a cobrir despesas fixas e lucro. O âmbito deste trabalho não nos permite discutir a maneira pela qual no Brasil a partir de 1964, criou-se uma estrutura industrial que permitiu elevações tão bruscas nesse coeficiente. Tal problema, no entanto, foi discutido de maneira exaustiva por Celso Furtado, em Análise do modelo brasileiro. Ed. Civilização Brasileira; Maria Conceição Tavares em Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Zahar Editores e por Malan e Wells em Aná lise do modelo brasileiro in Pesquisa e Planejamento, v. 2, dez. de 1972, p. 441.


Prosseguindo a análise, observamos que a própria elevação da taxa de exploração pode realimentar o processo inflacionário mediante uma nova expansão do crédito. Assim, se a expansão dos meios de pagamento no segundo semestre de 1973 decorreu de uma elevação das necessidades transacionais da economia em função do aumento dos preços e da produção, vamos verificar, de outro lado, que o aumento da taxa de exploração juntamente com uma expectativa de novos aumentos de preços induz ao que Inácio Rangel chamou de elevação da taxa de imobilização da economia. Primeiramente, porque o excedente gerado sobre os salários aumenta, criando fundos internos para a reinversão; segundo porque, dadas as expectativas inflacionárias, "as empresas e os próprios órgãos do poder público investirão mais, isto é, realizarão imobilizações não necessárias à operação das indústrias e serviços, mas que se justificam à vista do esperado comportamento futuro dos preços para fins de revenda ou de antecipação do dispêndio, nos casos em que o investimento seja necessário"... 14 14 Conforme Inácio Rangel, op. cit p. 19. Assim é que as empresas com o realizável inflado pelos referidos imobilizados, apresentando índices elevados de solvabilidade têm facilitada a obtenção de crédito no sistema bancário. Exemplo disto é o fato de que em 1974 apesar de o Governo ter tentado restringir o aumento dos meios de pagamento em relação a 1973, teve parte de seus esforços frustrado na medida em que-em 1974, o crédito privado aumentou em relação a 1973. A oferta monetária e o crédito privado cresceram respectivamente em 33,5% e 55,5% em 1974 contra 45,2% e 50% no ano anterior.15 15 Conjuntura Econômica, dez. 1975, p. 79.

Outro indício do aumento do excedente disponível para as empresas foi a euforia de investimentos por parte dos empresários no começo de 1974, quando alguns propunham mesmo ampliar sua capacidade produtiva em até 30%. É natural portanto que, nesta situação de expectativas favoráveis e com a capacidade ociosa se esgotando, a conseqüência fosse elevação de preços internos e/ou aumento das importações de equipamentos e insumos básicos. Se eliminarmos os efeitos dos preços, veremos que naquele ano algumas importações aumentaram sensivelmente em termos de quantidades como mostra o quadro 9.


Apesar desse substancial aumento de importações os preços continuaram subindo, o que sugere mais uma vez a existência de pressões inflacionárias internas.

Parece claro, portanto, que tendências inflacionárias já se manifestavam no ano de 1973, mascaradas em parte pela manipulação dos índices oficiais de preço. Estas tendências já eram tão evidentes a ponto de o próprio ministro da Fazenda, no início de 1974, propor uma fórmula de absorção dos custos pelas empresas semelhante ao que ocorria na política salarial. Tal proposta deveu-se ao fato de o CIP se constituir em instrumento de realimentação do processo inflacionário, pois ao manter o mark-up como um percentual fixo dos custos diretos de produção, transferia ao consumidor toda a elevação dos custos, e em caso de demanda inelástica elevava mesmo o valor dos lucros, como já discutido anteriormente.

Os números do quadro 10 ajudam-nos também a mostrar que a economia no período de 1972 a 1974 foi criando condições para altas taxas de imobilização e as conseqüências que disso advêm: um aumento da necessidade de créditos e do grau de endividamento das empresas.


Um primeiro ponto a ser observado é o de que de 1972 a 1973 não há uma tendência muito clara para a elevação da margem de lucros16 16 Margem de lucro - conceituada como a relação entre lucro operacional (já deduzidas as despesas financeiras mas não o imposto de renda, e a renda operacional líquida) (faturamento global líquido do IPI). reduzindo-se mesmo para alguns gêneros industriais como o caso de material de transportes, metalurgia, produtos alimentares etc, ao contrário da tendência mostrada pela taxa de exploração (quadro 7) que se elevou praticamente para quase todos os gêneros industriais, no mesmo período. Tais resultados no entanto, não são inconsistentes se admitirmos que já em 1973 ocorre um processo de imobilização que eleva sensivelmente os custos fixos das empresas, absorvendo a parte da margem obtida sobre os custos diretos.

A partir de 1974 no entanto, torna-se claro que as empresas, tendo utilizado seus recursos para a expansão e imobilização, passam a recorrer ao endividamento para poder financiar suas atividades, o que é ilustrado pela tendência muito clara da elevação das margens de despesas financeiras17 17 Margem de despesa financeira - significa a parcela da despesa financeira (juros + correção monetária) embutida no preço final dos produtos vendidos, ou seja, o quociente entre despesas financeiras e o faturamento (líquido do IPI). neste ano.

Assim verifica-se um processo em que escasseando as fontes internas de capitalização, as empresas - não tendo um mercado acionário forte - vão recorrer ao crédito o que as conduz a uma baixa relação recursos próprios/recursos de terceiros, com a conseqüente elevação de seus encargos financeiros e conseqüente reflexo sobre os preços. A correção monetária reverte contra as próprias empresas agravando mais sua situação, voltando elas de novo a recorrer ao financiamento e assim por diante. Esta situação, no entanto, torna-se mais crítica na medida em que por uma série de mecanismos existentes no sistema financeiro montado nos últimos anos, o custo do dinheiro tendeu a elevar-se cada vez mais, em benefício das atividades especulativas e em detrimento da produção. São tais mecanismos que serão mencionados rapidamente na parte 3 deste trabalho.

3. A partir de 1974, verifica-se um grande aumento na procura de títulos governamentais. Tal se deveu em boa parte ao fato de os juros cobrados pelos bancos comerciais em seus empréstimos terem sido tabelados, e pela coexistência de títulos emitidos pelo Governo: a LTN vendida a preços variáveis e as ORTNs com juros variando de 4 a 8%, mais correção monetária. Assim, em função da existência de um processo inflacionário que praticamente neutralizava os ganhos dos empréstimos realizados pelas instituições bancárias, estas passaram a preferir as aplicações em títulos públicos com correção monetária plena. É natural que numa situação como esta, se reduzisse o crédito disponível para o setor produtivo privado, com todas as conseqüências em termos de elevação do custo do dinheiro e de redução do nível de funcionamento do sistema econômico.

Em meados de 1975, no entanto, o Governo visando recuperar o nível da atividade econômica promove uma política monetária expansionista, ampliando as reservas dos bancos através do chamado refinanciamento compensatório. No entanto, os bancos ampliavam muito pouco seus empréstimos comerciais uma vez que eram estimulados a continuar aplicando em open-market em função dos baixos juros que pagavam ao Banco Central, inferiores mesmo algumas vezes às próprias taxas de correção monetária. Assim, estimulou-se ainda mais a expectativa de ganhos nesse mercado. Comprar-se-ia uma letra hoje com a expectativa de que a demanda crescente elevasse ainda mais seu preço a curtíssimo prazo. Obviamente, nesta situação os recursos que eram destinados à atividade produtiva, só seriam deslocados do setor especulativo para os produtivos (comércio, indústria e serviços) mediante o pagamento de juros tão altos quanto os esperados naquele setor.

Tal processo foi estimulado ainda pela existência das chamadas cartas de recompra. Tais cartas levam à existência de um fato que do ponto de vista da aplicação da política monetária é absurdo, isto é, a coexistência de liquidez e rentabilidade.18 18 Sabemos que autoridades monetárias podem controlar a liqüidez do sistema mediante alterações na estrutura da dívida pública. Mas para que tal aconteça torna-se necessário que os diferentes componentes da dívida tenham diversos graus de liqüidez. Se isto não acontecer, só será possível modificar-se a liqüidez mediante alterações líquidas no total da dívida, criando uma ligação necessária entre déficit fiscal e oferta monetária.

Vejamos como isto se pode dar: se um investidor, ou melhor, um especulador comprar uma letra do tesouro com prazo de 180 dias, ou mesmo um título privado no open paralelo, em princípio só poderá receber o que aplicou mais juros e correção monetária após tal prazo ter decorrido. No entanto, através da carta de recompra as instituições financeiras que vendem tal título se comprometem a readquiri-lo a qualquer momento. No entanto, como bem observou o ex-ministro Octávio Gouvêa de Bulhões: "a garantia de plena liquidez e rentabilidade às aplicações através dos compromissos de recompra e a redução dos prazos de negociações, acabaram, por outro lado, por gerar uma pressão inflacionária. Os títulos se transformaram em meios de pagamento... Tratando-se de títulos de prazo curto e de resgate indubitável as letras são destituídas de risco. Mas, alguma renúncia à liquidez não pode deixar de existir. Se, por exemplo, alguém desejar o resgate pelo exíguo prazo de uma semana, ó recebimento de juros há de ser insignificante, pois uma letra resgatável dentro de uma semana deve achar-se valorizada em relação a outras de resgate de prazo superior. A preocupação de imprimir-se liquidez à poupança deturpa o mercado monetário inflacionando-o além de fazê-lo invadir ou destruir o mercado de capitais. O motivo é simples. Quem há de inclinar-se a adquirir ações, se a poupança disponível encontra aplicações no mercado monetário em operações rentáveis e dotadas de plena liquidez? "19 19 Gazeta Mercantil, 15 dez. 76, p. 1 e 9.

Os problemas infelizmente não se resumem apenas aos aí mencionados. Ê claro que empresas financeiras como as nossas, sem garantias patrimoniais adequadas, só podem honrar os compromissos da recompra se o papel que elas tornaram líquido hoje puder ser vendido imediatamente por um preço maior ou igual. No entanto, a partir do momento em que o Governo restringiu de novo as condições de crédito para o setor bancário, desestimulando assim a demanda por papéis, as financeiras não puderam mais honrar seus compromissos, pois não tinham condições de colocar as letras novamente. Verificou-se então, não uma crise de liquidez, mas uma crise de cheques sem fundos, como lembrou bem Dionísio Dias Carneiro em entrevista concedida a um jornal de São Paulo. Na medida em que o Governo decidiu sustentar o sistema e impedir as quebras ele teve de emitir. Assim dos 43% de crescimento dos meios de pagamento ocorrido no ano de 1975, uma boa parte foi destinada a essa sustentação. É óbvio que o efeito dessa emissão foi sentida durante este ano contribuindo para a elevação dos índices de preço.

Deve-se notar também que este fenômeno gera outras repercussões no sistema produtivo. Se os novos meios de pagamento são utilizados em ultima instância para manter a rentabilidade do setor financeiro, sobra cada vez menos recursos para o sistema produtivo privado, o que se manifesta pela elevação do custo do crédito e o seu conseqüente racionamento.

Além destas, outras distorções podem ser apontadas: a aplicação especulativa de empréstimos que algumas empresas deveriam alocar para as atividades produtivas, por exemplo, empresas que obtêm recursos a juros reais negativos como estímulo a atividades ligadas a exportações ou ao setor agrícola. Ou ainda, o próprio open tendo uma rentabilidade alta, estabelece também uma taxa mínima muito elevada para as empresas obterem empréstimos a bancos comerciais, elevando os custos e a produção e os preços. É interessante notar-se que em uma situação como esta o conflito latente está entre o setor produtivo (industrial) e o setor financeiro, e não entre aquele e o Governo como pretendem as campanhas antiestatizantes.

Concluindo: dificilmente se poderá aceitar que a origem dos nossos problemas atuais encontra-se simplesmente na majoração dos preços do petróleo. A crise do petróleo na verdade atingiu uma economia caracterizada pela dependência da entrada de recursos externos e caracterizada pela hipertrofia de um setor financeiro altamente especulativo e cujo principal objetivo era o de financiar a diversificação do consumo dos grupos de renda mais alta e não a diversificação da capacidade produtiva da economia em seus setores básicos.

Seria de prever, portanto, que uma economia deste tipo se tornasse excepcionalmente vulnerável a qualquer tipo de crise. Uma economia com tais características não só tem pouca flexibilidade para adaptar-se a condições novas como também apresenta mecanismos que amplificam toda e qualquer perturbação, seja ela de origem interna ou externa; como ocorreu no nosso caso, mostrando as limitações do modelo econômico que se constituiu nos últimos anos.

  • 5Conjuntura Econômica, dez. 1975, p. 70.
  • 7 Relatório Anual do Banco Central do Brasil 1975.
  • 8Conjuntura Econômica, dez. 1975, p. 70.
  • 9 Jornal da Tarde,
  • O Estado de São Paulo. 29.jan. 77.
  • 13 Um aumento em tal coeficiente indica que aumentou a margem por unidade de gasto em mão-de-obra destinada a cobrir despesas fixas e lucro. O âmbito deste trabalho não nos permite discutir a maneira pela qual no Brasil a partir de 1964, criou-se uma estrutura industrial que permitiu elevações tão bruscas nesse coeficiente. Tal problema, no entanto, foi discutido de maneira exaustiva por Celso Furtado, em Análise do modelo brasileiro. Ed. Civilização Brasileira; Maria Conceição Tavares em Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Zahar Editores e por Malan e Wells em Aná
  • 15Conjuntura Econômica, dez. 1975, p. 79.
  • 19Gazeta Mercantil, 15 dez. 76, p. 1 e 9.
  • 1
    In:
    La sociedad - leciones de sociologia. Buenos Aires, Editorial Proteo, 1969.
  • 2
    In:
    Diário do Comércio Industrial (Especial), dez. de 1975, jan. 1976. p. 16.
  • 3
    Conforme
    Conjuntura Econômica, dez. 1975, p. 74.
  • 4
    Dados transcritos do
    Jornal do Brasil, 30 maio 76, p. 40.
  • 5
    Conjuntura Econômica, dez. 1975, p. 70. Deve-se notar, ainda que o índice de relações de trocas evoluiu a favor do Brasil de 105 em 1972 para 116 em 1973.
  • 6
    Conforme Relatório Anual do Banco Central 1974/76.
  • 7
    Relatório Anual do Banco Central do Brasil 1975.
  • 8
    Conjuntura Econômica, dez. 1975, p. 70.
  • 9
    Jornal da Tarde, O Estado de São Paulo. 29.jan. 77.
  • 10
    Uma discussão mais detalhada dessas hipóteses pode ser encontrada em Rangel, Inácio.
    Inflação brasileira. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1963. p. 6 e segs.
  • 11
    In:
    Oligopoly and technical progress. Rev. ed. Harvard University Press, 1969.
  • 12
    Em "New development in oligopoly front".
    Reading in the economics of organization. Holt & Hinehart, p. 208. A análise acima tem grande relevância teórica pois mostra a futilidade de se atribuir a um fator a responsabilidade pela elevação de preços pois como nota Syllos-Labini: "Através de uma análise mais cuidadosa nós observamos que um fator inflacionário igualmente ou talvez mais importante é o poder de mercado que as firmas maiores desfrutam na venda de seus produtos. É fútil procurar pelo culpado (do processo inflacionário) - em última análise a estrutura da indústria moderna
    é ela mesma responsável pela elevação de preços".
    (Oligopoly and technical progress. p. 69.)
  • 13
    Um aumento em tal coeficiente indica que aumentou a margem por unidade de gasto em mão-de-obra destinada a cobrir despesas fixas e lucro. O âmbito deste trabalho não nos permite discutir a maneira pela qual no Brasil a partir de 1964, criou-se uma estrutura industrial que permitiu elevações tão bruscas nesse coeficiente. Tal problema, no entanto, foi discutido de maneira exaustiva por Celso Furtado, em
    Análise do modelo brasileiro. Ed. Civilização Brasileira; Maria Conceição Tavares em
    Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Zahar Editores e por Malan e Wells em Aná lise do modelo brasileiro in
    Pesquisa e Planejamento, v. 2, dez. de 1972, p. 441.
  • 14
    Conforme Inácio Rangel, op. cit p. 19.
  • 15
    Conjuntura Econômica, dez. 1975, p. 79.
  • 16
    Margem de lucro - conceituada como a relação entre lucro operacional
    (já deduzidas as despesas financeiras mas não o imposto de renda, e a renda operacional líquida) (faturamento global líquido do IPI).
  • 17
    Margem de despesa financeira - significa a parcela da despesa financeira (juros + correção monetária) embutida no preço final dos produtos vendidos, ou seja, o quociente entre despesas financeiras e o faturamento (líquido do IPI).
  • 18
    Sabemos que autoridades monetárias podem controlar a liqüidez do sistema mediante alterações na estrutura da dívida pública. Mas para que tal aconteça torna-se necessário que os diferentes componentes da dívida tenham diversos graus de liqüidez. Se isto não acontecer, só será possível modificar-se a liqüidez mediante alterações líquidas no total da dívida, criando uma ligação necessária entre déficit fiscal e oferta monetária.
  • 19
    Gazeta Mercantil, 15 dez. 76, p. 1 e 9.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 1977
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