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Coronelismo, enxada e voto

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Maria Cecília Spina Forjaz

Coronelismo, enxada e voto (O município e o regime representativo no Brasil).

Por Victor Nunes Leal. São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1976.

Coronelismo, enxada e voto de Victor Nunes Leal, publicado pela primeira vez em 1949, já se tornou um clássico da literatura política brasileira, tanto que vem de ser reeditado pela Alfa-Omega, quase 30 anos após sua primeira edição. Tendo em vista a sua atualidade e o seu caráter fundamental para a compreensão da realidade brasileira contemporânea, passamos a resumi-lo.

Nos capítulos primeiro e sétimo, o autor conceitua o fenômeno do coronelismo considerando-o inicialmente "como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constitui fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa" (p. 20). Assim, o coronelismo implica um compromisso entre o poder público, progressivamente fortalecido; e o poder privado, cada vez mais decadente, dos chefes locais, principalmente donos de terras. A propriedade da terra constitui, portanto, o fundamento em que se baseia o coronelismo. Proprietário de terras e dono de votos, eis a essência do coronel.

Esse compromisso coronelista pressupõe um certo grau de debilidade de ambos os lados, ou seja, do coronel e do poder público - a extensão da cidadania a um vasto contingente de eleitores do meio rural, incapacitados para o exercício de seus direitos políticos (graças à dependência econômica, social e política dos donos de terras), vinculou os detentores do poder público aos condutores desse rebanho eleitoral, isto é, os coronéis. Em contrapartida, estes últimos não mantêm o seu poder focal sem o apoio e a cumplicidade do poder público. Portanto, "os dois aspectos - o prestígio próprio dos coronéis e o prestígio de empréstimo que o poder público lhes outorga - são mutuamente dependentes e funcionam ao mesmo tempo como determinantes e determinados. Sem a liderança do coronel' - firmada na estrutura agrária do país - , o governo não se sentiria obrigado a um tratamento de reciprocidade e, sem essa reciprocidade, a liderança do 'coronel' ficaria sensivelmente diminuída" (p. 43).

O fortalecimento do Estado no Brasil não tem sido acompanhado de correspondente enfraquecimento do coronelismo. "Os próprios instrumentos do poder constituído é que são utilizados, paradoxalmente, para rejuvenescer, segundo linhas partidárias, o poder privado residual dos 'coronéis', que assenta basicamente numa estrutura agrária em fase de notória decadência. Essa decadência é imprescindível para a compreensão do 'coronelismo' porque, na medida em que se fragmenta e dilui a influência 'natural' dos donos de terras, mais necessário se torna o apoio do oficialismo para garantir o predomínio estável de uma corrente política local" (p. 255). Nesta situação, a falta de autonomia legal do município sempre foi compensada com uma ampla autonomia extralegal, doada pelos governos estaduais aos partidos locais de sua preferência. "Esta contraprestação estadual no compromisso coronelista explica, em grande parte, o apoio que os legisladores estaduais - homens em sua maioria do interior - sempre deram aos projetos de leis atrofiadoras do município" (p. 255).

Embora a época áurea do coronelismo tenha sido a I República, ele persiste até hoje nas regiões menos desenvolvidas do Brasil e "parece evidente que a decomposição do 'coronelismo' só será completa quando se tiver operado uma alteração fundamental em nossa estrutura agrária" (p. 257).

No capítulo segundo, o autor analisa as atribuições municipais ao longo da história brasileira, desde o período colonial até a Constituinte de 1946. A partir da extrema concentração de atribuições (políticas, administrativas, policiais e judiciárias) das Câmaras Municipais na fase colonial, a tendência geral tem sido a progressiva perda de atribuições por parte dos municípios. Essa tendência se acentua no Império e persiste na I República, já que nosso federalismo não implicou o fortalecimento do município mas, ao contrário, os estados se consolidaram com o sacrifício da autonomia municipal.

Após a revolução de 30, a tendência geral permanece, com a total submissão dos municípios durante o Estado Novo. A relativa reversão dessa tendência ocorre na Constituinte de 1946, caracterizada por um enternecimento municipalista, compensado pela crescente intervenção econômica do Estado no Brasil, que retira do município algumas de suas atribuições: "No mundo moderno, porém, essa intervenção depende de um planejamento que transcende os limites do município e do Estado e que há de ficar, por isso mesmo, confiado a autoridades federais" (p. 98).

No capítulo terceiro, Nunes Leal dedica-se à análise da eletividade da administração municipal. Apesar de as Câmaras Municipais terem uma longa tradição eletiva no Brasil (o que não significa absolutamente representatividade política), o Executivo municipal só é criado pela Constituição de 1891, embora já no Império algumas províncias tivessem instituído o cargo de prefeito. Na República Velha, os estados têm ampla autonomia na organização das eleições municipais, sendo que em muitos deles vigoraram restrições à eletividade dos prefeitos.

As Constituições de 1934 e 1946 estabeleceram a eletividade como regra obrigatória, havendo, no entanto, a possibilidade de nomeação do prefeito em alguns casos excepcionais: capitais de estado, estâncias hidrominerais e áreas de segurança nacional (só de acordo com a Constituição de 46). No Estado Novo, todos os prefeitos são nomeados e Francisco Campos tentou justificar essa centralização autoritária alegando o caráter técnico do exercício da prefeitura. O autor demonstra a ideologia subjacente a essa posição contra-argumentando com o caráter eminentemente político das eleições municipais no Brasil: elas constituem peça básica das campanhas eleitorais já que é através da mediação dos chefes locais que a grande maioria da população brasileira exerce os seus direitos políticos.

O capítulo quarto é dedicado à receita municipal. A esse respeito há uma constante na história brasileira, ou seja, a exiguidade das rendas municipais. Elas são escassas na Colônia, no Império e nas Repúblicas, sendo a União a parte sempre mais bem aquinhoada na repartição dos impostos. Mesmo no regime de 91, a União continua mantendo a primazia. Nessa época o poder tributário dos municípios deriva do Estado e só na Constituição de 1934 os municípios passam a ter uma esfera tributária própria, discriminada constitucionalmente.

No regime de 46 há um aumento das rendas municipais (embora elas permaneçam muito aquém das necessidades do município). Este aumento é explicado pelo autor como uma forma indireta de elevar o nível de vida das populações do interior e, conseqüentemente, expandir o mercado interno. No entender de Nunes Leal, tal medida teria sido expressão de grupos industrializantes: "A Constituinte de 1946 exigiu que os municípios apliquem, obrigatoriamente, em 'benefícios de ordem rural' pelo menos metade do acréscimo de receita que lhes advém da distribuição de 10% do imposto de renda; (...) nem todos quantos se deixarem envolver pela atmosfera municipalista dos nossos dias estarão conscientes de que o aumento da receita dos municípios é, com muita probabilidade, uma conseqüência indireta da necessidade de ampliarmos o mercado interno, pela inversão de tais recursos na melhoria de vida das populações rurais" (p. 168 e 172).

A explicação para a debilidade financeira dos municípios brasileiros é, também, política: "A maior cota de miséria tem tocado aos municípios. Sem recursos para ocorrer às despesas que lhes são próprias, não podia deixar de ser precária sua autonomia política. O auxílio financeiro é, sabidamente, o veículo natural da interferência da autoridade superior no governo autônomo das unidades políticas menores" (p. 178).

No quinto capítulo, o autor analisa a organização policial e judiciária brasileira, desde a Colônia até à Constituinte de 46. Depois de fazer observar o acúmulo de funções administrativas, judiciárias e policiais nas mãos das mesmas autoridades na fase colonial, o autor mostra como essas atribuições acumuladas ajudaram a constituir a prepotência do senhoriato rural; e como, a partir de meados do século XVII, principalmente pela mão dos ouvidores e juízes de fora, favoreceram a submissão dos colonos à Coroa portuguesa.

No Império, o traço marcante da organização policial e judiciário é a persistência do acúmulo de funções e o fato de que, após a reação centralizadora de 1841, o controle das autoridades judiciárias é transferido para o governo central. Apesar dessa centralização, também é característica fundamental do período imperial o fato de que a polícia e o judiciário são dominados pelo espírito partidário e constituem instrumentos básicos de sustentação do poder dos coronéis.

Na República, subsiste a polícia como instrumento de ação política, só que esta passa a servir às situações estaduais, quando antes obedecia aos desígnios do poder central. Quanto ao judiciário, inicia-se um processo de estabelecimento de garantias da magistratura, garantindo-lhe um mínimo de autonomia, que se irá acentuando gradativamente. Mas, apesar desse processo de autonomização do judiciário, nos regimes de 34, 37 e 46, não é totalmente afastada a participação da Justiça na política local.

Quanto ao júri, instituído pela Constituição Imperial, vai tendo suas atribuições reduzidas progressivamente - o tribunal popular, bastante sujeito à influência dos coronéis, assegurava freqüentemente a impunidade dos amigos, assim como a culpabilidade dos inimigos desses coronéis.

Neste mesmo capítulo, o autor faz um breve apanhado histórico sobre a Guarda Nacional. Ainda hoje persiste a prática da "nomeação de delegados e subdelegados por indicação dos dirigentes dos municípios, ou com instruções para agir em aliança com eles, isto é, para 'fazer justiça' aos amigos e 'aplicar a lei' aos adversários. Daí a ligação indissolúvel que existe entre o 'coronelismo' e a organização policial. Em relação à Justiça, essa ligação já foi muito mais estreita do que é hoje (época em que o livro foi escrito), e diminui na proporção em que aumentam as garantias do poder judiciário" (p. 217).

O capítulo seguinte é dedicado à legislação eleitoral brasileira. São enumeradas detalhadamente todas as leis eleitorais mais importantes desde a proclamação da independência, passando pelos códigos eleitorais de 1932 e 1935, até à Constituição de 1946. O autor demonstra persistência da fraude eleitoral - verdadeiro flagelo do Império e da I República - e que, embora atenuada, ainda se mantém nos regimes posteriores, apesar do contínuo aperfeiçoamento do sistema eleitoral no Brasil e da progressiva ampliação do número de eleitores.

Porém, não é a fraude o componente principal da falsificação da representatividade política no Brasil e sim a própria existência do fenômeno coronelista: "Neste longo período, tivemos vários regimes políticos e numerosas reformas eleitorais; não obstante, permaneceu o fato fundamental da influência governista na expressão das urnas, conquanto diminuída nas eleições que sucederam à Revolução de 30. A explicação do fenômeno está no governismo dos chefes locais, já analisado anteriormente; e na sujeição do eleitorado do interior, especialmente do rural, a esses mesmos chefes, como conseqüência direta da nossa estrutura agrária, que deixa o trabalhador do campo ignorante e desamparado", (p. 248).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1978
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