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1980/81: a revolução autogestionária na Polônia

ARTIGO

1980/81: a revolução autogestionária na Polônia* * Este artigo foi escrito após minha viagem à Polônia, em julho de 1981. Agradeço a meus companheiros de viagem Eduardo e Marta Suplicy e a Mário Dowbor, um "polonês médio", como ele próprio se autodenominou, que nos guiou e conosco debateu a realidade polonesa durante toda a viagem.

Luiz Carlos Bresser Pereira

Professor do Departamento de Planejamento e Análise Econômica, da EAESP/FGV

Na Polônia foi esmagada a primeira revolução de trabalhadores da história da humanidade. Houve muitas revoluções antes dessa em que trabalhadores participaram, mas sempre como forças auxiliares ou simplesmente como massa de manobra. Nas revoluções burguesas os trabalhadores não foram outra coisa senão massa de manobra. Nas revoluções tecnoburocráticas, impropriamente chamadas de socialistas, foram forças auxiliares de uma vanguarda de intelectuais que afinal serviram à tecnoburocracia. Em muitas ocasiões houve, sem dúvida, revoltas de trabalhadores. Entre julho de 1980 e dezembro de 1981, entretanto, uma revolução esteve em marcha na Polônia, cujos atores principais foram os trabalhadores, mais especificamente, os operários. Em dezembro de 1981, através da brutal intervenção dos militares, a democracia que começava a surgir na Polônia foi liquidada.

Os resultados do golpe de Estado do General Jaruzelski foram garantidos pelo apoio ostensivo da URSS. A tecnoburocracia foi vitoriosa a curto prazo. Nada garante, entretanto, que o pequeno grupo de altos tecnoburocratas, que domina o país, tenha condições de se manter no poder a longo prazo, mesmo com o apoio de seu poderoso vizinho do Leste.

É claro que a alta tecnoburocracia se aproveitou dos erros cometidos pelos líderes mais radicais do Sindicato Solidariedade. Apesar de todo o esforço em prol da moderação de Lech Walesa, por todos conhecido pelo seu caráter apaziguador, e mesmo da parte dos líderes intelectuais como Jacek Kuron, geralmente considerado um radical, mas que na realidade tinha uma perfeita consciência dos limites políticos a curto prazo da Revolução Polonesa, apesar desses esforços não foi possível conter os mais exaltados. Em conseqüência, o grau de desordem econômica e política, que estava tomando conta da Polônia, tornou-se insustentável, facilitando a intervenção militar.

O Solidariedade sempre afirmou que não pretendia o poder político e que se dispunha a manter todos os compromissos políticos e militares com a URSS. Por outro lado, sabia da necessidade de uma reforma econômica que reduzisse salários, adequando a renda à produção. Mas, nos últimos meses de 1981, essa estratégia de moderação foi aos poucos sendo derrotada no seio do próprio Solidariedade. A gravação dos debates do Congresso do Solidariedade nas vésperas do golpe pelo sistema de informações estatal e a proposta de um plebiscito para decidir sobre o futuro da Polônia foram provavelmente as gotas d'água que faltavam para provocar o golpe militar.

Talvez esse radicalismo tenha também reduzido um pouco a própria e extraordinária unidade de todo o povo polonês em torno do Solidariedade contra a opressão tecnoburocrática interna e externa. Foi essa união, foram os 9,5 milhões de associados do Solidariedade (em uma força de trabalho urbana de 12 milhões de trabalhadores), mobilizados em torno dos ideais de democracia e autogestão operária, que fizeram a força da Revolução Polonesa.

Mas, se houve um enfraquecimento dessa unidade, devido ao radicalismo de alguns líderes do Solidariedade, provavelmente esse enfraquecimento não será definitivo. Raramente na história, todo um povo se uniu tão fortemente em torno de uma idéia revolucionária como aconteceu na Polônia sob a liderança de Lech Walesa e com o apoio da Igreja Católica.

Essa revolução não se desmoralizou, embora talvez tenha se desgastado um pouco, dada sua falta de perspectiva a curto prazo. De fato, dada a proximidade ameaçadora da URSS, o povo polonês sabia que não podia caminhar muito em direção ao socialismo autogestionário e à democracia. Sabia que era preciso fazer concessões, partilhar o poder, caminhar lentamente.

A crise econômica, por sua vez, embora de responsabilidade direta da alta tecnoburocracia comunista, foi usada por essa mesma tecnoburocracia contra o Solidariedade. E à medida que a falta de alimentos se agravava devido, em primeiro lugar, aos erros de planejamento do Governo, mas em segundo lugar à desordem causada pela situação revolucionária, o próprio Solidariedade também se desgastava.

Mas é pouco provável que esse desgaste tenha sido definitivo. Muito maior será o desgaste da própria tecnoburocracia comunista, obrigada mais uma vez a utilizar da violência contra os trabalhadores. Ao agir assim, a tecnoburocracia revelou ao mesmo tempo sua força e sua fraqueza. A força bruta do momento. A fraqueza intrínseca da falta de perspectiva histórica.

Por isso, a esperança que o mundo todo e especialmente o próprio povo polonês colocaram na sua revolução não está morta. A tecnoburocracia, apoiada na organização, apesar de todo seu poder, possui uma fragilidade essencial que afinal acabará por predominar. Aliás, a burguesia ocidental, apoiada no capital, é mais poderosa, mais sólida, e resiste mais a mudanças. Mas também ela tem sido obrigada a ceder. A tecnoburocracia provavelmente cederá mais depressa. É certo que os fatos do momento desmentem esse otimismo. A tecnoburocracia aparenta vencer mais uma vez. Mas esta vitória na Polônia lhe custará muito caro. A primeira revolução de trabalhadores sofreu um revés. Isto era razoável esperar. É preciso, porém, considerar como esperança que esta foi a primeira. Certamente não será a última revolução dos trabalhadores da história.

Neste artigo, vamos procurar, em primeiro lugar, definir a natureza da Revolução Polonesa ocorrida entre julho de 1980 e dezembro de 1981. Foi uma revolução popular realizada contra a tecnoburocracia. Houve outras revoluções anteriormente: na Hungria em 1956; na Tchecoslováquia em 1969; na própria Polônia em 1956, 1968,1970 e 1976. Em todas elas a tecnoburocracia local saiu vitoriosa, graças ao apoio da URSS. Na última revolução polonesa os trabalhadores foram afinal derrotados, mas, seja pela sua profundidade, seja por sua duração, ela já tem um papel definitivo na história.

Na verdade, talvez esta revolução venha a ter importância na história da humanidade, na medida em que abriu claramente perspectivas para o socialismo democrático e autogestionário. Este é um segundo assunto que trataremos neste trabalho. Houve uma insistência por parte da URSS e da esquerda burocrática do Ocidente em acusar a Revolução Polonesa de anti-socialista. Esta posição foi significativamente compartilhada pela direita no Ocidente, que vê anti-socialismo em todos os movimentos de protesto nos países estatais erroneamente chamados de socialistas por suas próprias tecnoburocracias dominantes (que assim pretendem legitimar-se) e pelos críticos nos países capitalistas, que assim podem atribuir ao socialismo os defeitos do estatismo. Na verdade, a Revolução Polonesa só foi anti-socialista se identificarmos socialismo com estatismo e autoritarismo.

Os dois objetivos fundamentais da Revolução Polonesa foram a democracia e a autogestão. A exigência de liberdade de palavra, de informação e de participação era dominante em toda parte. A autogestão era a expressão política e econômica dessa exigência de democracia. Já que o retorno ao capitalismo era impensável ("não é uma questão no quadro polonês", como nos disse Leszek Kolakowski),1 1 Entrevista em São Paulo, em agosto de 1981. Apesar de exilado e de adotar uma posição basicamente conservadora, o filósofo polonês conhecia suficientemente seu país para não atribuir à Revolução Polonesa um caráter anti-socialista. a autogestão era a forma pela qual seria possível aos trabalhadores tirarem o poder da tecnoburocracia e assumi-lo diretamente. Examinaremos o problema da autogestão na terceira parte deste artigo.

Antes, entretanto, faremos uma análise da crise econômica polonesa, que condicionou e ao mesmo tempo foi causada pela revolução política. Essa crise profunda, em uma sociedade relativamente igualitária, fez com que as reivindicações na Polônia fossem mais políticas do que econômicas. As reivindicações econômicas foram também importantes, mas o fato é que os rendimentos na Polônia antes e durante a revolução eram maiores do que a produção. Não havia falta de dinheiro nas mãos dos trabalhadores, havia falta de produção, que se desorganizou. Os preços foram mantidos artificialmente baixos através de um enorme sistema de subsídios. Os salários reais, em conseqüência, aumentaram, enquanto a produção, que vinha crescendo até 1979, entrou em colapso a partir de 1980. Foi por isso que um dos líderes do KOR (Comitê de Defesa Operária), declarou, no final de 1980, preocupado com a crise econômica: "Todos exigem aumentos, nossa unidade e nossa solidariedade são fantásticas, mas isto não pode durar muito tempo. Esse tipo de contrato social, onde todos exigem o máximo, não é possível."2 2 Michnick, Adam. Ce que nous voulons et ce que nous pouvons. L'Alternative, (8): 10, jan./fev. 1981. Conferência pronunciada em Varsóvia, em 14 de novembro de 1980. Em julho de 1981, os limites das demandas econômicas estavam relativamente claros para todos. As reivindicações políticas superavam as econômicas. E a autogestão, demanda ao mesmo tempo política e econômica, era vista como a forma de realizar as reformas econômicas necessárias, que exigiriam sacrifícios de todos, com a legitimidade necessária.

No final deste artigo discutiremos brevemente o problema da tecnoburocracia enquanto classe e do estatismo enquanto modo de produção. Veremos, então, que as sociedades estatais são muito menos sólidas e monolíticas do que pretendem seus defensores e seus críticos. Ficará patente, assim, a fragilidade ou precariedade da tecnoburocracia enquanto classe dominante. A propriedade pela tecnoburocracia de organização burocrática estatal não tem a mesma solidez da propriedade privada dos meios de produção pela burguesia, de forma que a transitoriedade histórica dessa classe social e do respectivo modo de produção tornam-se patentes. Esta transitoriedade, dramaticamente evidenciada pela Revolução Polonesa, nos permitirá, afinal, uma conclusão otimista sobre as perspectivas do socialismo democrático, apesar da derrota recente.

1. A REVOLUÇÃO POLONESA

Havia uma revolução em marcha na Polônia. Pela primeira vez, a formação social em que o modo estatal de produção é dominante era abalada a partir de suas próprias bases. E a alta tecnoburocracia do Partido Comunista (Partido Operário Unificado), no poder há pouco mais de 30 anos, via sua posição gravemente ameaçada. Era toda a sociedade polonesa que se movimentava. Não eram apenas os trabalhadores, ou seja, os operários e camponeses clássicos, mas também a média tecnoburocracia, a grande maioria de técnicos e administradores de nível médio da Polônia, que se revoltavam contra a dominação da alta tecnoburocracia e contra o modo estatal de produção.

Solidarinosci, o grande sindicato independente Solidariedade, que surgiu e se firmou a partir das greves de Gdansk, em julho e agosto de 1980, era o grande instrumento dessa revolução. Mas o Solidariedade tornou-se subitamente tão grande, somou em tão pouco tempo cerca de 9,5 milhões de trabalhadores para uma força de trabalho não-agrícola de 12,5 milhões de trabalhadores e técnicos que, na verdade, transformou-se na manifestação do próprio povo polonês. Os camponeses - ou seja, o restante da população - também se organizaram à base dos sindicatos independentes, Solidariedade, com o apoio decisivo do Solidariedade operário.

Essa revolução pacífica, enquanto durou, derrubou dois governos - o Governo Gierek e o Governo Kania - e provocou profundas transformações no Partido Comunista e no Estado polonês, do qual o partido é parte integrante. O Governo, ao mesmo tempo que resistia a certas reinvidicações do Solidariedade, procurava ou era obrigado a fazer concessões de todas as naturezas às reivindicações populares. A alta tecnoburocracia estatal revelava uma flexibilidade que só não era surpreendente porque a rigor não lhe restava outra alternativa. Mas é preciso admitir que esta liberdade era também um fenômeno real, que mostrava, de um lado, que as bases do seu poder - a propriedade coletiva da organização burocrática estatal - não são tão sólidas quanto as da burguesia, e, de outro lado, que, quando sob pressão a tecnoburocracia é capaz de se adaptar e de se purgar de maneira efetiva. Além do primeiro-ministro, o número de membros do Partido Comunista Polonês que foram expulsos do partido por corrupção, incompetência e autoritarismo, ou que simplesmente não foram reconduzidos a seus postos, foi enorme.

O Congresso do Partido Comunista, realizado em julho de 1981, revelou mudanças extraordinárias. Os delegados que compareceram ao Congresso foram eleitos livremente, de forma que provavelmente cerca de 30% eram membros do Solidariedade. As decisões importantes no Congresso foram todas tomadas por voto secreto. Foi a primeira vez que isto ocorreu em um partido comunista governamental, e representou uma mudança radical no sentido da democracia do partido. O resultado foi uma renovação completa da cúpula do partido. Dos 15 membros do Bureau Político, apenas quatro foram reeleitos, inclusive o Secretário Geral do Partido, Kania, que havia anteriormente deposto Gierek e vinha fazendo insistentes manifestações a favor da renovação e democratização do partido e da sociedade polonesa. Dos 200 membros do Comitê Central, que também foi amplamente renovado, 20% eram membros do Solidariedade.

Do lado da sociedade civil as modificações não foram menores. Não foi apenas o Solidariedade que assumiu um papel decisivo na fiscalização e crítica ao Governo. Conforme declarou Lech Walesa, que entrevistamos rapidamente, o papel do Solidariedade não pretendia ser de confronto, mas também não de participação e muito menos de colaboração. Era de fiscalização, era de controle. Na prática, a fiscalização e o controle acabaram terminando em confronto, e a revolução foi liquidada.

Mas não foi só no plano estritamente político que a sociedade se transformou naqueles 18 meses de revolução. De um lado, havia um sentimento muito forte e muito generalizado de crítica e de desencanto em relação ao Governo, ao seu "socialismo", ao seu "marxismo". Quando alguém perguntava a um polonês se ele era a favor ou contra o socialismo, a resposta imediata era: "Mas o que é que você entende por socialismo?" Ninguém era a favor do capitalismo, mas todos estavam profundamente revoltados com o estatismo que ali recebeu o nome de "socialismo".

Por outro lado, como se fosse para compensar o pessimismo que os momentos difíceis passados e presentes inspiravam, havia em um grande número de poloneses uma clara atitude de esperança no futuro, ao mesmo tempo em que se notava uma melhoria sensível nas relações interpessoais. O medo e as atitudes cerimoniosas, senão agressivas e desconfiadas, entre os cidadãos estavam dando lugar a um relacionamento muito mais livre e relaxado. Solidariedade não era apenas um nome ou um slogan - era urna atitude que se desenvolvia entre a população, que sabia que teria de passar por grandes dificuldades econômicas e políticas antes de superar aquela fase revolucionária da sociedade polonesa.

Esta revolução, conforme nos declarou Jacek Kuron, em Varsóvia, tinha, entretanto, um caráter paradoxal, "As demais revoluções visaram sempre a tomar o poder. O Solidariedade não está preparado para assumir o poder." E acrescentaríamos que não só não estava preparado, mas que também não se dispunha a assumir esse poder. Só abandonou essa postura no final, quando os radicais do movimento assumiram o controle efetivo da organização. Ainda nas palavras de Kuron, que, como dirigente do KOR (Comitê de Defesa dos Operários) - um pequeno grupo de intelectuais que deu as bases teóricas para o Solidariedade - tinha uma clara autoridade sobre p assunto, "o Solidariedade é uma organização que defende os direitos: 1. profissionais, 2. dos cidadãos, 3. da nação como um todo. É um movimento para defender a população contra o poder. No passado, quando havia uma revolução, as massas que a haviam realizado tornavam-se imediatamente indefesas diante do poder. Aqui é diferente: o Solidariedade é uma organização contra qualquer poder."

Essas declarações de Walesa e de Kuron, no sentido de que o Solidariedade não aspirava ao poder, devem ser entendidas em termos relativos. Na verdade, o Solidariedade sabiá que as condições internacionais o impediam de entrar em confronto generalizado com o Partido Comunista. Mas, na medida em que a Revolução Polonesa era um processo em marcha, isto não impediu que o Congresso, do Solidariedade, encerrado em 7 de outubro de 1981, aprovasse um programa de ação de 43 páginas, que era praticamente um programa de governo. Entre outras coisas foi proposto e aprovado: l.a separação entre o poder político e o poder econômico com a criação de duas câmaras no parlamento; 2. a autogestão; 3. o incentivo às pequenas empresas privadas; 4. o fim do monopólio governamental dos meios de comunicação; 5. eleições livres em todos os níveis da sociedade; 6. criação de um poder judiciário independente; 7. despolitização da polícia; 8. total independência do Parlamento e dos conselhos locais.

O programa não fazia qualquer alusão ao socialismo, mas isto não significava que se tratasse de um programa anti-socialista. Era, claramente, um programa contra o "socialismo" autoritário do tipo soviético, ou seja, contra o estatismo. Mas não propunha o retorno à propriedade privada dos meios de produção. Estes deveriam obviamente permanecer socializados, com exceção de algumas atividades próprias de microempresas, em que a iniciativa particular deveria ser incentivada. Para as médias e grandes empresas, o que se desejava não era o retorno ao capitalismo e sim o seu apoio: a autogestão.

A conseqüência dessa revolução foi um vácuo no poder. O Governo e o Partido Comunista perderam sua autoridade. Desacreditaram-se completamente perante toda a população. Suas ordens já não eram mais obedecidas. Ainda nas palavras de Kuron: "Nós estamos em um impasse. Aparentemente, o velho sistema continua existindo, mas na verdade foi descartado. Qualquer ordem é contestada. A população não permite que nada lhe seja imposto. Por exemplo: o programa de reforma econômica elaborado pelo Governo para superar a gravíssima crise econômica, ao qual eu dou nota positiva, está sendo rejeitado."

Havia, portanto, uma revolução em marcha na Polônia. Uma revolução pacífica, mas profunda, cujo único, mas poderoso, instrumento era a organização de toda a população contra a alta tecnoburocracia estatal. As armas utilizadas eram as greves, porém mais importantes do que elas era a consciência de toda a sociedade que era preciso mudar.

Esta revolução teve como causas básicas, de um lado, o autoritarismo, senão totalitarismo, da alta tecnoburocracia, de outro, a crise econômica.

No plano econômico o objetivo fundamental da revolução era simplesmente Uberdade. Ou, se quisermos usar uma expressão mais simples e direta, o estado de direito. O que se desejava era a liberdade de informação, de opinião e de participação no poder. Mais amplamente, era o respeito aos direitos individuais na forma em que eles aparecem na Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Uma tese insistente da esquerda autoritária, burocrática, de que a ênfase nesses direitos seria fruto de uma ideologia burguesa ou seria a expressão da "democracia burguesa" fica, assim, totalmente desmentida. Definitivamente, a Revolução Polonesa não tinha caráter burguês. Ela, simplesmente, defendia, no plano político, alguns valores que se tornaram universais.

Por outro lado, a Revolução Polonesa tinha também causas econômicas. Mas isto não significava que, no plano econômico, o objetivo principal fosse reclamar uma melhor distribuição de renda. Isto também era reivindicado, mas nesse plano a crítica maior do Solidariedade e do povo polonês era contra as ineficiências do sistema de planejamento.

Depois de um "milagre econômico" muito semelhante ao brasileiro, e ocorrido também na primeira metade dos anos 70, a Polônia mergulhou em uma profunda crise econômica, que refletiu o desmoronamento do sistema rigidamente centralizado de planejamento econômico adotado pela alta tecnoburocracia estatal. A produção industrial e mineral polonesa, em 1981, caiu cerca de 15%. Apenas as boas safras agrícolas minoraram um pouco esta situação. O Solidariedade culpava o Governo por essa situação e entendia que só com a sua participação os problemas econômicos da Polônia poderiam ser resolvidos.

A revolução política e a grande crise econômica na Polônia eram acompanhadas de uma grande esperança. Os poloneses misturavam sua crítica impiedosa ao passado e sua angústia diante das dificuldades presentes com uma clara atitude de esperança. E a esperança na Polônia tinha uma palavra-chave: a autogestão dos trabalhadores em todos os níveis da sociedade. O autogoverno, não apenas ao nível das fábricas, das lojas, das empresas e dos escritórios, mas também ao nível político regional e nacional, tornou-se a grande palavra de ordem na Polônia. Através da autogestão o socialismo seria renovado, o socialismo deixaria de ser um slogan, que irritava profundamente os poloneses, para se transformar em uma realidade.

2. A CRISE ECONÔMICA

A brutal redução da produção nacional em 1981 é o melhor indicador da profundidade da crise econômica polonesa. Isto jamais acontecera neste país nem em nenhum outro país estatal. Havia uma escassez generalizada de alimentos e de alguns bens industriais importantes. Havia filas para tudo: para carne, pão, cigarros. Filas que sempre existiram, mas que, até o início de 1981, eram bem menores e menos generalizadas.

Na verdade, conforme nos disse o Prof. Joseph Balcerek,3 3 Joseph Balcerek é professor da renomada Escola de Planificação e Estatística da Universidade de Varsóvia. É membro do Partido Comunista, mas extremamente crítico da política econômica dos anos 70, que levou a Polônia à crise. "não se trata de uma crise cíclica. Houve crises cíclicas na Polônia em 1948, 1956, 1968, 1976. Agora encontramo-nos diante de uma catástrofe econômica sem precedentes."

Havia várias causas para a crise. Embora os poloneses, exceto os membros do Governo, não gostassem de admitir que a revolução política em marcha tinha um papel importante no agravamento da crise, não há dúvida de que esse fenômeno era verdadeiro. Afinal, todas as revoluções provocaram crises econômicas graves.

A economia polonesa encontrava-se desarticulada. A produção caiu não apenas devido às greves, mas porque o enorme endividamento externo, as restrições às importações e os erros de planejamento conduziram à falta de matérias-primas e componentes industriais essenciais para que a indústria pudesse trabalhar. O sistema de planejamento central polonês entrou em colapso, não apenas por falta de autoridade dos planejadores, em que ninguém jamais acreditava, mas também devido aos erros cometidos no planejamento econômico.

Isto não significa que o sistema de planejamento econômico centralizado tenha sido um fracasso na Polônia. Muito pelo contrário, até há alguns anos ele vinha apresentando resultados extraordinariamente favoráveis em termos de 1. aumento da produção por habitante, 2. aumento do padrão de vida, 3. melhor distribuição de renda.

Entre 1950 e 1970, a produção por habitante aproximadamente duplicou. Entre 1970 e 1979, segundo os dados do Banco Mundial, a renda per capita na Polônia cresceu a uma taxa média anual de 4,9%, o que pode ser considerada uma taxa excelente. Este aumento da produção ocorreu principalmente na indústria pesada e na mineração. O modelo soviético de desenvolvimento, que privilegia os insumos básicos e a indústria de bens de capital, foi claramente seguido. Á produção de bens industriais de consumo também cresceu, mas a taxas menores, e a agricultura, depois de alguns êxitos no início da década, apresentou uma taxa de crescimento claramente insatisfatória.

O aumento da produtividade, somado ao igualitarismo econômico, permitiu que o padrão de vida da população crescesse de maneira significativa. "Em 1970, os rendimentos da população, em comparação com os do período entre as duas guerras, quase duplicaram (fazendo-se os cálculos com grandezas comparáveis)."4 4 Bozik, Pawel. A economia da Polônia contemporânea. Lisboa, Editorial Estampa, 1977. p. 25. A partir de 1970, certamente os salários reais e o padrão de vida continuaram a aumentar, pelo menos à mesma taxa de crescimento da produtividade (4,9% ao ano). Ou talvez ainda mais rapidamente, tendo sido provavelmente esta uma das causas da crise econômica atual.

O aumento do padrão de vida foi acompanhado ou possibilitado por um extraordinário igualitarismo econômico. As variações em torno do salário médio mensal de cerca de 5.000 slots por mês são pequenas. Os engenheiros e a intelligentsia, de um modo geral, ou seja, á média tecnoburocracia, ganham tanto quanto um operário semiqualificado é certamente menos do que um operário qualificado ou do que um mineiro, este devido às condições adversas de seu trabalho. Os mais mal remunerados são os empregados de escritório e trabalhadores em serviços - comércio, restaurantes, limpeza etc.

Certamente, existem os privilegiados. São uns poucos pequenos proprietários agrícolas, que conseguiram alta produtividade produzindo em estufas, durante todo o ano, hortaliças e outros produtos especiais, e também, naturalmente, os altos tecnoburocratas, que recebem ordenados e vantagens especiais do Estado. Seus ordenados propriamente ditos não são especialmente elevados, porém os mais corruptos (e uma certa corrupção tende a se generalizar nestas esferas) tendem a se beneficiar de uma série de privilégios indiretos, cuja extinção foi uma das 21 reivindicações dos operários de Gdansk, em agosto de 1980. Esta camada de altos tecnoburocratas, entretanto, é pequena, de forma que seus privilégios não chegam a afetar o nível geral de vida da população polonesa.

Este padrão de vida elevado podia ser observado em toda parte: na população bem-alimentada e bem-vestida apesar da crise; no consumo social em nível bastante satisfatório dos serviços de educação, saúde, esportes e lazer; nos prédios residenciais semelhantes às superquadras de Brasília, com apartamentos pequenos, mas confortáveis, de cerca de 70 m2 para famílias de quatro a cinco pessoas; no número crescente de automóveis; na beleza de Varsóvia e na reconstrução cuidadosa dos monumentos históricos poloneses.5 5 Paul M. Sweezy, em Post-revolutionary society (New York, Monthly Review Press, 1980), atribui este fato à "politização do processo de utilização do excedente" nas sociedades pós-revolucionárias (que correspondem basicamente às "sociedades estatais" na minha terminologia). Esta politização permitiu maiores avanços em termos de emprego, educação, saúde, previdência social e reforma agrária nas sociedades estatais, quando comparadas com as capitalistas com nível de renda per capita similar. Mas adverte, quase antecipando a revolução polonesa: "Qualquer tentativa de reduzir ou minar esses avanços sociais poria em questão a legitimidade não apenas da liderança, mas do próprio sistema" (p. 147-8).

Embora a renda por habitante na Polônia seja pouco mais que o dobro da brasileira, é inegável que o padrão de vida é muito superior ao dos trabalhadores brasileiros. Pude verificar inclusive o padrão de vida dos camponeses, alguns dos quais entrevistei em suas propriedades. É semelhante ao dos trabalhadores e técnicos urbanos.

Mas esse sistema econômico entrou em crise. Por quê? A causa básica obviamente não foi a revolução do Solidariedade. Esta foi mais uma conseqüência do que uma causa, embora, em seguida, tenha tendido a agravar a situação.

A causa básica provavelmente se encontra na conjugação de um "milagre" econômico na primeira metade dos anos 70, quando a renda crescia cerca de 10% ao ano, com a quadruplicação dos preços do petróleo em 1973, que, dé um lado, desequilibrou a balança comercial dos países sem petróleo e, de outro, provocou uma súbita abundância de crédito internacional devido à necessidade de reciclagem dos petrodólares. Esses fatos, conjugados com a recusa sistemática dos trabalhadores de permitir que os preços dos bens básicos aumentassem e se ajustassem ao seu verdadeiro valor, ou, mais simplesmente, ao seu custo de produção, provocaram erros de planejamento e distorções na economia, que começaram a aparecer com toda violência.

De uma maneira muito semelhante à brasileira, a euforia do "milagre", exatamente no momento em que ocorria o primeiro choque do petróleo, levou a Polônia a um processo acelerado de endividamento externo. Em julho, o país devia mais de USS 25 bilhões, dos quais, cerca de US$ 16,2 bilhões aos bancos ocidentais, segundo estimativas do Bank for International Settlements. Seja em relação às exportações, seja em relação ao PIB, este volume de dívida externa é altíssimo.

Por outro lado, o crédito fácil levou à compra apressada e indiscriminada de máquinas e licenças de fabricação. Na esperança de reduzir rapidamente o gap tecnológico, compravam-se licenças que não eram usadas ou que não se adequavam às necessidades da economia polonesa, faziam-se .investimentos mal planejados, sem a articulação necessária com os demais setores, resultando em capacidade ociosa e desperdício.

O planejamento econômico, como um substituto do mercado na coordenação da economia, é sempre um processo de tentativa e erro, de aproximações sucessivas. Ele está sempre sujeito a distorções, aliás como o mercado também está. Mas, quando o crédito internacional se toma fácil e o clima é de euforia, os erros tomam-se muito mais graves.

No caso polonês, esse tipo de distorção, decorrente de investimentos planejados apressadamente, somou-se a um sistema de preços de produtos alimentares básicos completamente descolado do valor das mercadorias. No caso da carne, do leite, do trigo, os preços pagos pelo Estado aos produtores chegava a ser cerca de três vezes superior ao pago pelos consumidores. Em conseqüência, foi necessário montar um enorme sistema de subsídios, ao mesmo tempo em que todos os indicadores da economia se confundiam, e as distorções se agravavam ainda mais.

Some-se a isto um desempenho sempre insatisfatório da agricultura, dados os preços relativamente arbitrários que lhe eram impostos, e, especialmente, a permanente ameaça em que os camponeses viviam de verem expropriadas suas pequenas propriedades (diversas vezes discutiu-se e algumas vezes iniciou-se, sempre com maus resultados econômicos, o processo de estatização da agricultura), e teremos as causas básicas da crise econômica polonesa.

Essa gravíssima crise ainda não estava perfeitamente clara para os trabalhadores do Solidariedade quando eles organizaram seu movimento social histórico no verão de 1980, embora já tivessem uma idéia razoável de que os problemas econômicos eram sérios. Tanto assim que, entre as suas 21 reivindicações, constava "a publicação de informações sobre a situação do país e permissão para que todos os grupos e camadas sociais participem das discussões do programa de reformas". Um ano depois, entretanto, a gravidade e a profundidade da crise, então expressa em queda da produção e falta de alimentos,' estava clara para todos.

3. A PROPOSTA AUTOGESTIONÁRIA NA POLÔNIA

Havia, aparentemente, duas soluções possíveis para a revolução política e a crise econômica em pleno curso na Polônia: ou o país caminhava para o socialismo autogestionário ou era invadido pela URSS. Afinal, o que ocorreu foi uma terceira alternativa: diante dadesmoralização da tecnoburocratica civil comunista, a tecnoburocracia militar deu o golpe e assumiu o poder com o apoio da URSS.

O caminho em direção à autogestão foi, entretanto, defendido por praticamente todas as correntes durante a Revolução Polonesa. Para o Solidariedade, transformou-se em uma palavra de ordem. Todos criticavam o centralismo do planejamento burocrático-estatal. O controle burocrático e centralizado da economia era considerado ineficiente, incompatível com a democracia.

Mas essa crítica à tecnoburocracia e ao controle estatal e centralizado da economia não significava que se desejasse a restauração da propriedade privada. Não havia, praticamente, ninguém que propusesse ou defendesse uma alternativa capitalista para a Polônia. Isto era inimaginável para os poloneses. Conforme declarou insistentemente Lech Walesa em uma entrevista ao jornal France Soir, "não podemos imaginar na Polônia outro sistema social diferente do que existe atualmente. Queremos apenas que ele funcione sob a direção dos operários, a serviço dos operários, mas não queremos mudá-lo".

Nenhum dos poloneses que tive oportunidade de entrevistar, inclusive os mais críticos da situação, defendeu ou citou a existência de correntes favoráveis ao capitalismo em seu país. Defendiam apenas a privatização de pequenas lojas, restaurantes e atividades semi-artesanais. A grande indústria, o grande comércio, o sistema financeiro deveriam permanecer socializados. Por isso, Walesa falava que não queria mudar o regime.

É claro que a proposta de entregar a direção das empresas e, afinal, de toda a economia aos operários implicava em enorme mudança. Era,uma revolução. Significava retirar o poder da tecnoburocracia e entregá-lo aos operários.

Já existia na Polônia, desde as grandes greves de 1956, um sistema de autogestão. Mas esse sistema foi esvaziado, submetido à direção do POUP em 1958, com a lei da autogestão, que criou as KSR (Conferências de Autonomia Operária) ao nível das empresas. Segundo essa lei, as decisões passavam a caber a um coletivo controlado pelo Partido e pelo sindicato oficial. A partir de 1978, o presidente da KSR passou a ser o primeiro secretário do Partido na empresa.

A autogestão proposta pelo Solidariedade era uma coisa totalmente diferente. A Seção de Varsóvia (Mazowie) do Solidariedade publicou, em março de 1981, as 10 condições para uma reestruturação do sistema de autogestão operária:

"1. O pessoal da empresa é o perfeito soberano dos órgãos de autogestão; somente sua vontade plenamente definida pode constituir a base dessa reestruturação.

2. A liquidação imediata das Conferências de Autonomia Operária (KSR) é a condição indispensável para a reestruturação da autogestão autêntica.

3. Os membros de um órgão de autogestão autêntica são eleitos exclusivamente pelo pessoal; o conselho dos operários (ou dos trabalhadores) deve ser independente em suas decisões.

4. O órgão de autogestão não tem razão de ser se a autonomia das empresas não for assegurada.

5. O sindicato é o único órgão apto a preparar as atividades indispensáveis à instalação da autogestão nas empresas.

6. Os trabalhadores e o conselho operário definem a política da empresa, ou seja, tomam as decisões mais importantes sobre a produção e seu desenvolvimento.

7. A designação e a exoneração do diretor pertencem ao conselho operário.

8. O direito à informação é muito importante para os trabalhadores.

9. Os conselhos operários (ou de trabalhadores) têm o direito de cooperar e de se coordenar ao nível local e regional.

10. A criação de uma Câmara autogerida (ou "segunda câmara") no Parlamento é a condição para garantir aos conselhos operários e aos outros órgãos autogeridos uma influência social direta nas decisões econômicas nacionais."6 6 Para cada um desses itens havia uma pequena explicação redigida pelo Solidariedade de Mazowie. Texto completo em L'Alternative, (12):41-2, set./out. 1981.

Por outro lado, no I Congresso do Solidariedade, em outubro de 1981, quando as posições ideológicas do movimento já estavam claramente definidas, a primeira das 37 teses que constituíam o Programa do Solidariedade então aprovado afirmava:

"Primeira tese: nós exigimos a introdução, em todos os níveis de direção, de uma reforma democrática autogestionária que permitirá ao novo sistema econômico e social reunir o plano, a autonomia e o mercado."7 7 O texto completo do programa e um dossiê de toda a revolução encontra-se em Pologne, le dossier de Solidante: Gdansk, aoüt 1980 - Varsovie, dec. 1980, número especial de L 'Alternative, Paris, 1982.

Conforme nos declarou JacekKuron: "Nós queremos democracia política, social e da produção. Não queremos de maneira alguma restaurar a propriedade privada, a não ser para restaurantes, cabeleireiros. Mas é preciso que ao lado do aparelho do Estado existam cooperativas, exista uma organização social do trabalho. Veremos então o que funciona melhor. No Ocidente existem pequenas fábricas familiares que produzem pequenas peças. Na Polônia constroem-se enormes "combinados", fábricas imensas. Os resultados são péssimos.

A proposta autogestionária significava o controle direto da produção e, portanto, o controle da economia pelos trabalhadores. Não significava apenas o controle das empresas. Não bastava que os trabalhadores elegessem, ao nível das empresas, os seus dirigentes. Isto representaria o risco de criar o que os poloneses chamam de "propriedade de grupo". Seria transformar os trabalhadores de uma determinada fábrica, de uma determinada organização, em seus proprietários e, dessa forma, colocá-los defendendo seus interesses privados contra os interesses mais gerais da sociedade.

Quando se falava em autogestão, o que se pretendia era um processo de descentralização e de democratização profundo da economia polonesa. As eleições para a escolha dos dirigentes ocorreriam em todos os níveis: na seção, no departamento, na divisão, na empresa, na cidade, na região, no setor industrial ou de serviços, no país como um todo. Em todos esses níveis, haveria representantes dos trabalhadores dirigindo, decidindo, coordenando.

Autogestão significava também descentralizar a atividade econômica e estabelecer as bases de uma economia de mercado. O planejamento econômico seria mantido, mas o mercado teria um papel maior como indicador na alocação dos recursos e na determinação da eficiência das atividades empresariais. E o plano não seria o pro duto da decisão de alguns tecnoburocratas, mas o resultado do debate, em todos os níveis, realizado pelos representantes dos trabalhadores. A autogestão atingiria, assim, não apenas a nível das empresas, das escolas, das organizações locais, mas o da sociedade global. O planejamento econômico tornar-se-ia parte do processo autogestionário.

Conforme nos declarou Joseph Balcerek, "a autogestão significa a socialização autêntica dos meios de produção. Se limitarmos a autogestão às empresas teremos a propriedade de grupos. Sou contra essa solução. A única via que vejo é a do desenvolvimento da autogestão em todos os níveis, vertical e horizontalmente".

A proposta autogestionária polonesa baseava-se sem dúvida, na experiência iugoslava. Alguns de nossos entrevistados negaram este fato, mas Kuron, por exemplo, o reconheceu claramente. Todos, entretanto, faziam questão de estabelecer as diferenças. A proposta autogestionária em debate na Polônia era muito mais ampla e profunda. "Na Iugoslávia a autogestão limita-se às empresas", disse Joseph Balcerek, "e está subordinada aos burocratas." Kuron, por sua vez, nos afirmou: "A diferença fundamental entre a autogestão iugoslava e a polonesa é que a primeira foi estabelecida de cima para baixo, enquanto que aqui o processo será de baixo para cima. Na Polônia, a autogestão proposta deverá ser um movimento de massas, organizado por regiões e em escala nacional."

Também o Partido Comunista aceitava parcialmente a idéia de reestruturar o sistema de autogestão. A tecnoburocracia nele dominante percebeu que talvez através dela se pudesse sair da crise política, devolvendo-se a legitimidade e a autoridade ao Estado, com o qual o Partido Comunista se confunde. Significativamente, a proposta autogestionária dos anarquistas clássicos transformava-se em uma eventual condição para restabelecimento de um mínimo de ordem na economia polonesa.

Na verdade, o sistema de autogestão, antes de ser regulamentado, já estava sendo implantado. À medida que o Governo perdia o controle efetivo do Estado, sublinhando o caráter revolucionário da situação polonesa, sistemas de autogestão iam sendo implantados. Conforme informa L 'Altemative, "uma pesquisa por sociólogos do Solidariedade, em março de 1981, junto a 178 empresas da região de Varsóvia indica que em 68% das empresas consideradas surgiram, nos últimos meses, novas formas de autogestão operária".8 8 L'Alternative, (12):40, set./out. 1981.

Mas é claro que a alta tecnoburocracia estatal tinha uma visão muito mais limitada do que deveria ser a autogestão do que tinha o Solidariedade, ou o KOR, ou mesmo a ala democrática do Partido Comunista. Este, naturalmente, estava muito longe de ser uma organização monolítica. Entre a ala neo-estalinista eaala democrática existia uma posição de centro, dominante, representada por Kania e pelo Primeiro-Ministro Militar Wojcieck Jaruzelski.9 9 Jaruzelski, no final de outubro, substituiu Kania na direção do Partido Comunista, mostrando que talvez só o Exército tivesse condições de negociar com o Solidariedade, dada a desmoralização do partido. Mas, afinal, o Exército optou pela clássica solução de força. Este grupo aceitava formalmente a idéia de autogestão, mas queria limitar a amplitude dos poderes delegados aos trabalhadores. Admitia que o atual sistema de planejamento centralizado estava em ruínas, mas temia por uma anarquia ainda maior caso a proposta autogestionária fosse aceita integral e subitamente. É claro que, dessa forma, a alta tecnoburocracia defendia seu poder e era fiel à sua concepção hierárquica e autoritária, que parte do pressuposto de que o seu conhecimento técnico e racionalizador é insubstituível.

A resistência da tecnoburocracia à proposta autogestionária do Solidariedade sofreu um golpe decisivo em setembro de 1981, quando, pela primeira vez na história de um Partido Comunista no poder, este foi derrotado no Parlamento. Depois de negociações, nas quais o papel do KOR foi importante, o Governo e a direção do Solidariedade haviam chegado a um difícil compromisso e apresentaram um projeto de lei comum sobre a autogestão no dia 21 desse mês, considerado ainda insatisfatório por muitos membros do Solidariedade.10 10 Na segunda parte do I Congresso do Solidariedade, na semana seguinte, ocorreu um fato que ilustra, de um lado, essa insatisfação e, de outro, as contradições da Revolução Polonesa. Neste congresso a liderança de Lech Walesa foi confirmada ao mesmo tempo que a direção do Solidariedade era criticada por haver aceito "antidemocráticamente" o compromisso com os parlamentares do Governo sem haver antes consultado amplamente seus membros. Dois dias depois, entretanto, os membros do Governo, também insatisfeitos, informaram que não estavam mais de acordo e que desejavam retornar ao seu projeto inicial ligeiramente modificado. Sua intenção era a de dar ao Governo direito de definir, sem a participação dos sindicatos, uma lista de empresas estratégicas, cuja administração ficaria fora do sistema de autogestão. Os membros do Solidariedade no Parlamento, além de uma série de outros deputados, cuja posição não se definira até então, reagiram. O próprio Partido Comunista se dividiu. Uma maioria se formou contra o Governo, e afinal este foi obrigado a ceder no dia 25. O projeto de lei original foi aprovado por unanimidade, e deveria entrar em vigor a ÍP de janeiro de 1982.

É preciso, entretanto, assinalar que a tecnoburocracia governamental não resistia a uma liberalização excessiva da autogestão apenas com receio de perda de poder. Havia, também, uma legítima preocupação de ordem econômica ou, mais precisamente, de ordem administrativa. Embora o nível cultural dos operários poloneses seja razoavelmente elevado, de fato eles não estavam preparados para assumir, de uma hora para outra, tantas responsabilidades. Pude verificar, contudo, que muitos deles tinham consciência dessa limitação. Por isso, tendiam a se apoiar nos técnicos e nos engenheiros, que recebem salários praticamente iguais aos recebidos pelos operários. Nos casos em que ocorreram eleições para representação dos trabalhadores, a presença de técnicos, membros da intelligentsia, junto aos operários era uma constante.

Nesse sentido, o presidente do Solidariedade da região de Varsóvia (Mazowie) e operário eletricista na cidade de Ursus, Zbgniew Bujak, quando lhe perguntamos sobre os conflitos que existiriam na Polônia entre a média tecnoburocracia (técnicos, professores, administradores, que os poloneses chamavam de intelectuais) e os operários, ele foi taxativo: "São todos trabalhadores. O Solidariedade nasceu da simbiose entre intelectuais e trabalhadores." A proposta autogestionária da Polônia, se afinal se concretizasse, seria também o resultado de uma aliança entre operários e técnicos. Só assim ele seria viável.

Mas para isto seria necessário que a URSS não interviesse e que aceitasse essa proposta autogestionária. Seria esta uma alternativa realista? Os poloneses acreditavam que sim. A revolução política e a crise econômica em marcha na Polônia só poderiam ter uma solução satisfatória, segundo esse raciocínio, se o Governo recuperasse sua autoridade. Ora, isto só seria possível, dado o alto nível de organização e conscientização dos trabalhadores, se estes participassem do poder. Os poloneses percebiam isso. Os soviéticos também já deveriam estar começando a perceber este fato. Por outro lado, os poloneses não queriam, de forma alguma, hostilizar os soviéticos. Estavam dispostos às mais diversas formas de solução de compromisso, desde que recuperassem a democracia interna, da qual a autogestão era parte essencial.

Nesse sentido, a idéia básica era a de estabelecer na Polônia um sistema de representação política baseada em duas Câmaras. Uma seria a Câmara Política, controlada pelo Partido Comunista, e que garantiria os acordos políticos, econômicos e militares com a URSS, e a outra seria a Câmara Econômica, resultado do sistema autogestionário apoiado no Solidariedade. Talvez essa fosse uma solução aceitável para ambas as partes. De qualquer forma, conforme afirma o Prof. Wojeieck Lamentovicz, em um artigo não publicado, "o modelo polonês de autogestão socialista surge da crise do poder". Essa crise não era apenas do poder da alta tecnoburocracia polonesa, mas da alta tecnoburocracia soviética. A proposta autogestionária era uma solução para essa crise.

A segunda Câmara do Parlamento polonês, citada explicitamente pelo documento do Solidariedade de Varsóvia (Mazowie), era uma solução imaginosa na medida em que, dividindo o poder e o especializando, reconhecia a dependência política e militar da Polônia em relação à União Soviética, e ao mesmo tempo reclamava o controle interno da sociedade para os próprios poloneses representados pelo Solidariedade.

4. UMA COMPARAÇÃO

A crise política e econômica que atravessou a Polônia teve uma série surpreendente de pontos comuns com a crise brasileira, apesar de a Polônia ser uma formação dominantemente estatal, enquanto o Brasil é dominantemente capitalista, apesar de a renda por habitante da Polônia ser o dobro da brasileira e a distribuição de renda na Polônia ser muito mais igualitária que no Brasil.

De fato, tanto o Brasil quanto a Polônia encontravam-se, em 1981, em uma crise econômica grave e em um processo de transformação política. Certamente, a crise econômica polonesa era mais aguda do que a brasileira e a transformação política mais profunda, importando mesmo em uma revolução. O Brasil caminha para a democracia nos quadros de um capitalismo tecnoburocrático que permanece intocado, enquanto que era possível que a Polônia não apenas se democratizasse, mas que sua formação social deixasse de ser dominantemente estatal e se tornasse crescentemente socialista graças ao projeto de autogestão em todos os níveis da sociedade, que os poloneses estavam tendendo a ver como solução básica para seus problemas.

A crise política, tanto em um país como em outro, teve duas causas: a crise econômica e o autoritarismo de uma alta tecnoburocratica estatal. Esta alta tecnoburocracia, que no Brasil perdeu o apoio da burguesia, na Polônia dividiu-se. Em ambos os casos, a crise política foi fundamentalmente uma crise de legitimidade, faltando inclusive aos dois governos qualquer representatividade efetiva da população.

A crise econômica, por sua vez, teve algumas características e causas comuns aos dois países. Tanto o Brasil como a Polônia viveram um "milagre" econômico no início dos anos 70. As altas taxas de crescimento econômico levaram não apenas a uma concentração de renda11 11 De acordo com Henryk Flakierski, "a Polônia em 1970 experienciou um considerável crescimento na desigualdade dos rendimentos. Em contraste com a experiência de outros lugares do Leste da Europa, a liderança polonesa não usou a distribuição dos benefícios sociais para contrabalançar o crescimento na dispersão relativa de ganhos" (Economic refbrm and income distributiori in Poland: the negative evidence". Cambridge Journal of Economics, 5 (2): 56, June 1981). (no Brasil muito mais grave do que na Polônia), mas também à realização de investimentos excessivos e mal planejados, que ficaram incompletos ou produziram altos índices de rapacidade ociosa. Levaram ainda à criação de um complexo sistema de subsídios que distorceu gravemente o sistema de preços (estes dois erros foram provavelmente mais acentuados na Polônia). Em ambos os casos, a conseqüência foi a inflação, na Polônia reprimida, no Brasil aberta.

Por outro lado, nos dois países, a euforia do "milagre" levou os governantes a não dar atenção ao primeiro choque "do petróleo, em 1973, e a continuar seus planos grandiosos. O resultado foi um endividamento externo, que se transformou na principal limitação econômica que a Polônia e o Brasil enfrentam.

5. PRECARIEDADE DA TECNOBUROCRACIA

Embora a tecnoburocracia militar tenha afinal saído vitoriosa, graças ao apoio soviético, um fato fica claro quando analisamos a Revolução Polonesa de 1980/81: uma sociedade estatal está muito longe de ser monolítica, ao contrário do que pretende sua classe dominante tecnoburocrática e do que afirmam seus críticos no Ocidente. Uma segunda conclusão correlata refere-se ao caráter de classe dessas sociedades: a alta tecnoburocracia é, sem dúvida, a classe dominante nos países estatais, mas sua posição é muito mais instável ou precária do que os próprios tecnoburocratas gostariam que fosse, e (novamente) do que seus críticos imaginam.12 12 Examinei o problema da tecnoburocracia enquanto classe social e emergente e do estatismo enquanto modo de produção em A sociedade estatal e a tecnoburocracia (São Paulo, Brasiliense, 1981), livro em que reuni todos os meus trabalhos sobre o assunto, publicados esparsamente desde 1972.

Muitas vezes, especialmente quando temos em mente uma sociedade estatal como a soviética, somos levados a acreditar que essa sociedade é toda ela uma rígida e disciplinada organização burocrática. Lembrando-nos do modelo ideal de burocracia de Max Weber, pensamos logo em uma estrutura hierárquica em que a impessoalidade e a autoridade racional-legal prevaleceriam sobre a sociedade de alto a baixo, não deixando espaço para qualquer manifestação mais livre, para qualquer criatividade, e muito menos para qualquer crítica ou qualquer conflito.

Ora, apesar de todos os esforços da alta tecnoburocracia das formações estatais para alcançar esse resultado, apesar de todo o seu autoritarismo, senão totalitarismo, e apesar do reconhecimento por parte dos ideólogos da burguesia no Ocidente de que esse objetivo foi alcançado, o fato é que não o foi, nem na URSS e muito menos nos países do Leste europeu. E é claro que na Polônia, mesmo depois da revolução, qualquer idéia sobre uma sociedade monolítica é absolutamente insustentável. Em meio à revolução em marcha, o grau de conflito e de Uberdade eram ambos muito grandes. Terminada a revolução, acabou-se a Uberdade, mas não os conflitos.

De fato, não apenas na Polônia, mas também na URSS e nos demais países chamados socialistas ou comunistas, esse monolitismo, que é insistentemente repetido e defendido pelas autoridades e pelos documentos oficiais, não existe. O monolitismo seria um sinal da coesão da sociedade e, portanto, da inexistência de lutas de classes no seu interior. Como os ideólogos burgueses procuram sempre negar que haja luta de classes no capitalismo, o mesmo fazem os ideólogos estatais em seus países, falando no "caráter monolítico da Uberdade socialista".

Na verdade, uma sociedade desse tipo está cheia de brechas, de espaços a serem preenchidos pela liberdade. Por mais que os altos dirigentes tecnoburocráticos procurem garantir a ordem e disciplina, 1. seja através de uma maciça propaganda ideológica, 2. seja através de concessões econômicas crescentes aos trabalhadores, 3. seja, finalmente, através de um pesado aparato policial, o fato é que as sociedades industriais contemporâneas são excessivamente complexas para poderem ser colocadas facilmente em uma camisa-de-força. O resultado é que se forma toda uma série de relações que escapam ao plano. Muitas são permitidas. Outras são toleradas. Algumas, reprimidas.

O fato de que as atividades não planejadas sejam permitidas ou toleradas não significa qualquer atitude democrática por parte dos dirigentes. Significa apenas que transformar a sociedade em uma pirâmide monoliticamente estruturada é rigorosamente impossível.

Para ter um mínimo de eficiência, a sociedade estatal, aliás como qualquer organização, precisa descentralizar-se, precisa conceder autonomia local, precisa estimular a competição entre os seus diversos setores, precisa recompensar a criatividade. Nas empresas existe, ao lado da organização formal, uma organização informal. Nas sociedades estatais, independentemente da vontade de seus dirigentes, a organização informal é, também, inescapável.

Contudo, mais importante do que está inviabilidade a longo prazo do monolitismo estatal, é a conclusão que os acontecimentos na Polônia entre julho de 1980 e dezembro de 1981 sublinham, de maneira definitiva, quanto à instabilidade, senão precariedade, do poder da classe tecnoburocrática.

Sem dúvida, existem duas classes básicas no modo estatal de produção: a tecnoburocracia e os trabalhadores. A tecnoburocracia é uma classe, enquanto detém a propriedade, ou seja, o controle efetivo das organizações burocráticas em geral e principalmente da organização burocrática estatal que engloba todas as demais. Nos próprios países estatais, é comum os sociólogos locais dividirem a sociedade em duas classes - a intelligentsia e os trabalhadores - ou em três, quando os camponeses são separados dos trabalhadores porque, na verdade, nos países do Leste europeu, são pequenos burgueses proprietários de duas terras.

Mas a existência da tecnoburocracia ou intelligentsia como uma classe distinta dos operários e dos camponeses não significa que todos os privilégios fiquem para a tecnoburocracia. Esta é uma visão simplificada e errônea, na qual até certo ponto eu próprio incidi no passado. A tecnoburocracia é uma classe de trabalhadores coordenativos, ao contrário dos operários, que são trabalhadores operativos. Ora, ao nível da tecnoburocracia, só a alta tecnoburocracia, uma pequena minoria de dirigentes estatais, tem rendimentos superiores aos dos operários especializados. Estes, em geral, tendem a ganhar tanto ou mais do que a média tecnoburocracia (engenheiros, por exemplo), e certamente mais do que a baixa tecnoburocracia (empregados de escritório).

Na verdade, o próprio conceito de classe, enquanto grande grupo social definido pela sua inserção nas relações de produção, perde, em parte, validade nas sociedades estatais. A tecnoburocracia deve ainda ser considerada uma classe na medida em que é detentora de uma relação de produção específica - a organização - cuja propriedade lhe pertence. Além disso, a tecnoburocracia tem uma forma específica de apropriação do excedente econômico (os ordenados); realiza um trabalho coordenativo ao invés de operativo ou manual; possui uma ideologia própria, baseada na eficiência técnica ou na superioridade da administração e do planejamento; transforma a autoridade em um fetiche; faz da expansão da organização burocrática seu objetivo por excelência; e procura transmitir a seus filhos os mesmos poderes e privilégios.

Entretanto, se tudo isto é verdade, é preciso reconhecer que não é toda a tecnoburocracia, mas apenas sua camada superior, que ocupa os principais postos do Estado e do partido, que goza de privilégios e possui realmente poder. Nesse sentido, o conceito de camada, que em absoluto é uma exclusividade ou uma invenção da sociologia funcionalista (afinal, sempre tivemos uma média e uma alta burguesia), é até certo ponto mais útil do que o de classe para caracterizar uma sociedade estatal.

A média e a baixa tecnoburocracias na Polônia se sentem tão ou mais exploradas e oprimidas pela alta tecnoburocracia do que os operários. É por isso que o movimento revolucionário polonês contou com a participação ativa dos funcionários e intelectuais. Não foi por outra razão que o Presidente do Solidariedade da região de Varsóvia, Zbgniew Bujak, não apenas negou que houvesse conflito entre os operários e os intelectuais na Polônia, mas ainda acrescentou que fora a simbiose entre a intelligentsia e os operários que permitira o surgimento e que garantia a força do Solidariedade.

Na verdade, o que fica claro na análise da Polônia é a precariedade e a instabilidade da alta tecnoburocracia, enquanto classe dominante. A base do seu poder - o monopólio do conhecimento técnico e organizacional - é cada vez menos decisiva, não porque esse conhecimento venha perdendo importância (pelo contrário), mas porque ele vai deixando de ser monopólio de uns poucos. Por outro lado, a simples ocupação de cargos burocráticos é obviamente algo muito menos sólido e concreto do que a propriedade privada dos instrumentos de produção pela burguesia.13 13 Este fato leva Joseph. Balcerek a negar o caráter de classe da tecnoburocracia, ainda que admita seus privilégios. Não aceito esta opinião, que limita muito o conceito de classe social. A tecnoburocracia é uma classe enquanto grande grupo social inserido em relações de produção específicas que a definem. Mas é uma classe com uma mobilidade e uma instabilidade maiores do que a da burguesia, da mesma forma que esta era mais móvel e precária do que a aristocracia feudal. Não bastasse isso, os tecnoburocratas, dando um sinal de fraqueza ideológica, sempre negaram sua própria condição de classe, pretendendo sempre estar falando em nome dos trabalhadores e do ideal socialista.

Por todas essas razões, a posição da tecnoburocracia nos países estatais é frágil e instável, obrigando-a a ser muito mais flexível do que geralmente se imagina. Apenas em situações muito especiais, como, por exemplo, diante da ameaça de invasão externa, a tecnoburocracia tem condições de acelerar o processo de acumulação de meios de produção em detrimento dos salários dos trabalhadores. Fora dessas circunstâncias excepcionais, a tecnoburocracia é obrigada a transferir praticamente todos os ganhos de produtividade para os trabalhadores. E muitas vezes é levada a realizar essa tarefa de maneira irracional, congelando os preços de produtos essenciais para os consumidores ao mesmo tempo em que cria um enorme sistema de subsídios ao consumo, já que os produtores devem receber preços adequados.

Observe-se que esta prática, que provoca distorções graves na economia, não é uma exclusividade na Polônia. Também na URSS a situação é semelhante. Todas as vezes que os dirigentes poloneses quiseram elevar os preços da carne, do leite, do pão, os protestos foram tão fortes que eles foram obrigados a desistir. Foi preciso o golpe de Estado de dezembro de 1981 para que a tecnoburocracia tivesse condições de corrigir essas distorções. Na URSS, os dirigentes não chegaram ainda a tentar aumentar os preços. Em consequência, os preços dos bens de consumo básico estão congelados desde meados dos anos 50, obrigando também o Governo soviético a montar um complexo e economicamente perigoso sistema de subsídios.

A inflexibilidade e o autoritarismo da alta tecnoburocracia nos países estatais é, na verdade, um sinal muito mais de fraqueza do que de força. Como a ameaça de invasão por parte das potências ocidentais é hoje muito menor do que foi em 1917, em 1939 ou em 1945, sua manutenção no poder depende fundamentalmente de sua capacidade de proporcionar uma elevação sistemática nos padrões de consumo de toda a população. Os mecanismos ideológicos e repressivos também são importantes, mas vão se tornando cada vez menos eficientes, não resistindo a uma crise econômica mais profunda, como o caso polonês deixou muito claro.

No caso da Polônia, é preciso assinalar que o golpe militar de dezembro de 1981 não foi apenas uma forma de a tecnoburocracia local se manter no poder com o apoio da URSS. Foi também, e contraditoriamente, uma forma de os tecnoburocratas militares poloneses evitarem a iminente invasão soviética. Esse fato deu um caráter paradoxalmente nacionalista ao golpe e facilitou-lhe a vitória.

Esta é mais uma demonstração da precariedade essencial da tecnoburocracia. Sua vitória, esmagando a Revolução Polonesa, deveu-se, de um lado, à desordem em que a sociedade estava imergindo e à radicalização do Solidariedade, no final do processo revolucionário e, de outro, ao apoio e, ao mesmo tempo, à ameaça de invasão da URSS. Foram esses fatores, mais do que a força intrínseca da tecnoburocracia, que permitiram o êxito do golpe de Estado. Através dele o domínio da tecnoburocracia foi restabelecido, mas não a sua legitimidade, e muito menos a estabilidade a médio prazo.

  • 2 Michnick, Adam. Ce que nous voulons et ce que nous pouvons. L'Alternative, (8): 10, jan./fev. 1981.
  • 4 Bozik, Pawel. A economia da Polônia contemporânea. Lisboa, Editorial Estampa, 1977. p. 25.
  • 5 Paul M. Sweezy, em Post-revolutionary society (New York, Monthly Review Press, 1980), atribui este fato à "politização do processo de utilização do excedente" nas sociedades pós-revolucionárias (que correspondem basicamente às "sociedades estatais" na minha terminologia). Esta politização permitiu maiores avanços em termos de emprego, educação, saúde, previdência social e reforma agrária nas sociedades estatais, quando comparadas com as capitalistas com nível de renda per capita similar. Mas adverte, quase antecipando a revolução polonesa: "Qualquer tentativa de reduzir ou minar esses avanços sociais poria em questão a legitimidade não apenas da liderança, mas do próprio sistema" (p. 147-8).
  • 7 O texto completo do programa e um dossiê de toda a revolução encontra-se em Pologne, le dossier de Solidante: Gdansk, aoüt 1980 - Varsovie, dec. 1980, número especial de L 'Alternative, Paris, 1982.
  • 8L'Alternative, (12):40, set./out. 1981.
  • 11 De acordo com Henryk Flakierski, "a Polônia em 1970 experienciou um considerável crescimento na desigualdade dos rendimentos. Em contraste com a experiência de outros lugares do Leste da Europa, a liderança polonesa não usou a distribuição dos benefícios sociais para contrabalançar o crescimento na dispersão relativa de ganhos" (Economic refbrm and income distributiori in Poland: the negative evidence". Cambridge Journal of Economics, 5 (2): 56, June 1981).
  • *
    Este artigo foi escrito após minha viagem à Polônia, em julho de 1981. Agradeço a meus companheiros de viagem Eduardo e Marta Suplicy e a Mário Dowbor, um "polonês médio", como ele próprio se autodenominou, que nos guiou e conosco debateu a realidade polonesa durante toda a viagem.
  • 1
    Entrevista em São Paulo, em agosto de 1981. Apesar de exilado e de adotar uma posição basicamente conservadora, o filósofo polonês conhecia suficientemente seu país para não atribuir à Revolução Polonesa um caráter anti-socialista.
  • 2
    Michnick, Adam. Ce que nous voulons et ce que nous pouvons.
    L'Alternative, (8): 10, jan./fev. 1981. Conferência pronunciada em Varsóvia, em 14 de novembro de 1980.
  • 3
    Joseph Balcerek é professor da renomada Escola de Planificação e Estatística da Universidade de Varsóvia. É membro do Partido Comunista, mas extremamente crítico da política econômica dos anos 70, que levou a Polônia à crise.
  • 4
    Bozik, Pawel.
    A economia da Polônia contemporânea. Lisboa, Editorial Estampa, 1977. p. 25.
  • 5
    Paul M. Sweezy, em Post-revolutionary society (New York, Monthly Review Press, 1980), atribui este fato à "politização do processo de utilização do excedente" nas sociedades pós-revolucionárias (que correspondem basicamente às "sociedades estatais" na minha terminologia). Esta politização permitiu maiores avanços em termos de emprego, educação, saúde, previdência social e reforma agrária nas sociedades estatais, quando comparadas com as capitalistas com nível de renda
    per capita similar. Mas adverte, quase antecipando a revolução polonesa: "Qualquer tentativa de reduzir ou minar esses avanços sociais poria em questão a legitimidade não apenas da liderança, mas do próprio sistema" (p. 147-8).
  • 6
    Para cada um desses itens havia uma pequena explicação redigida pelo Solidariedade de Mazowie. Texto completo em
    L'Alternative, (12):41-2, set./out. 1981.
  • 7
    O texto completo do programa e um dossiê de toda a revolução encontra-se em Pologne, le dossier de Solidante: Gdansk, aoüt 1980 - Varsovie, dec. 1980, número especial de
    L 'Alternative, Paris, 1982.
  • 8
    L'Alternative, (12):40, set./out. 1981.
  • 9
    Jaruzelski, no final de outubro, substituiu Kania na direção do Partido Comunista, mostrando que talvez só o Exército tivesse condições de negociar com o Solidariedade, dada a desmoralização do partido. Mas, afinal, o Exército optou pela clássica solução de força.
  • 10
    Na segunda parte do I Congresso do Solidariedade, na semana seguinte, ocorreu um fato que ilustra, de um lado, essa insatisfação e, de outro, as contradições da Revolução Polonesa. Neste congresso a liderança de Lech Walesa foi confirmada ao mesmo tempo que a direção do Solidariedade era criticada por haver aceito "antidemocráticamente" o compromisso com os parlamentares do Governo sem haver antes consultado amplamente seus membros.
  • 11
    De acordo com Henryk Flakierski, "a Polônia em 1970 experienciou um considerável crescimento na desigualdade dos rendimentos. Em contraste com a experiência de outros lugares do Leste da Europa, a liderança polonesa não usou a distribuição dos benefícios sociais para contrabalançar o crescimento na dispersão relativa de ganhos" (Economic refbrm and income distributiori in Poland: the negative evidence".
    Cambridge Journal of Economics, 5 (2): 56, June 1981).
  • 12
    Examinei o problema da tecnoburocracia enquanto classe social e emergente e do estatismo enquanto modo de produção em
    A sociedade estatal e a tecnoburocracia (São Paulo, Brasiliense, 1981), livro em que reuni todos os meus trabalhos sobre o assunto, publicados esparsamente desde 1972.
  • 13
    Este fato leva Joseph. Balcerek a negar o caráter de classe da tecnoburocracia, ainda que admita seus privilégios. Não aceito esta opinião, que limita muito o conceito de classe social. A tecnoburocracia é uma classe enquanto grande grupo social inserido em relações de produção específicas que a definem. Mas é uma classe com uma mobilidade e uma instabilidade maiores do que a da burguesia, da mesma forma que esta era mais móvel e precária do que a aristocracia feudal.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1982
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