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Façonismo: produção familiar em tecelagem

ARTIGO

Façonismo: produção familiar em tecelagem

José Carlos Durand

Professor adjunto no Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração da EAESP/FGV

1. INTRODUÇÃO

Este artigo focaliza uma categoria subalterna de produtores de tecidos, concentrada na cidade de Americana e suas imediações, no interior do estado de São Paulo. São os produtores a fação, ou façonistas, conforme são conhecidos corriqueiramente no âmbito do setor têxtil. Eles são donos de pequeno número de teares e vivem dos serviços de tecelagem que prestam a outras empresas industriais, comerciais ou a qualquer intermediário.

A análise que se segue é desdobramento de um estudo mais amplo que investigou a situação das pequena e média empresas (a saber: a relação entre o pequeno e o grande capital) nos setores têxtil e de autopeças do Brasil. Esse estudo foi realizado entre 1981 e 1983 na Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas, por uma equipe que incluiu, além do autor, Henrique Rattner, José Paulo Carneiro Vieira, José Roberto Ferro, Roberto Venosa e Vera Helena Thorstensen, e um grupo de estudantes. Ele contou com financiamento do International Development Research Center (IDRC), do Canadá.1 1 . O relatório final foi intitulado Inovação tecnológica e acumulação de capital na pequena e média empresa, e está em versão mimeografada em quatro volumes, devendo ser em breve editado comercialmente.

A investigação compreendeu uma pesquisa de campo, na qual foi visitado um grupo amostral de empresas de cada um dos dois setores mencionados e sediadas na Grande São Paulo. No caso do têxtil, como não poderia deixar de ser, em virtude das interdependências setoriais, a análise precisou abarcar o ramo de confecções. Precisou também, dado o gênero de hipóteses levantadas, incorporar uma perspectiva histórica e reconstituir as fases principais desse que, tanto na velha Europa quanto no Brasil, é o setor mais antigo e mais importante da industrialização capitalista, no que diz respeito às transformações sociais que sua expansão acarretou.

Quando chegou o momento de analisar as transformações sofridas pelas pequenas e médias indústrias têxteis de São Paulo no correr dos anos 70, percebeu-se que era grande a freqüência com que empresários que se dedicavam à tecelagem estavam desativando seus teares próprios e deslocando atenção e investimento para tinturaria e beneficiamento de tecidos ou para confecção, até chegar ao fim da linha, que é a venda a varejo de roupa pronta. Enfim, eles promoviam uma verticalização para a frente, ficando cada vez mais próximos do pólo de consumo.

Ficou nítido também, na observação das condições de fundação e crescimento dessas empresas, que funciona no País, e já faz bom tempo, amplo mercado de máquinas e equipamentos usados. Nele podem ser encontrados, a preços bem díspares, teares de várias gerações. Dado isso, e dado o fato de que o têxtil é um imenso parque produtivo com muitos subsetores, a história das empresas e de suas estratégias de acumulação mostrou que são muitos os arranjos que os industriais e comerciantes do setor têm podido inventar quando se trata de abrir uma nova firma, de ampliar o negócio, de partilhar o equipamento entre sócios e sucessores, ou, simplesmente, de suportar fases recessivas do mercado consumidor.

Quando os entrevistadores foram a campo, a crise internacional deflagrada em 1979 já corria solta e transparecia, no discurso dos informantes, queixa insistente contra as perversidades do "modelo", que contemplava o especulador improdutivo e punia o industrial operoso. Só que essa crítica à política econômica federal mesclava-se no caso com queixas também abundantes contra as investidas oligopolísticas que se passavam no setor. A esse respeito, quando indagados dos porquês de se movimentar de um a outro subsetor dentro da produção têxtil, os donos de pequenas empresas têxteis alegaram que o avanço dos oligopólios no setor, valendo-se de tecnologia recente e de produção em alta escala, tornava impraticável que eles continuassem concorrendo, com suas máquinas mais antigas e mais lentas. Lembravam, também com freqüência, que concorrentes minúsculos "de fundo de quintal" começaram a imitar os seus produtos e a penetrar em seus mercados, e que só podiam enfrentá-los arranjando outra coisa que fazer.2 2 . Entre os tantos indicadores de concentração no setor têxtil brasileiro, considere-se que, apesar do forte ritmo de crescimento do mercado consumidor, o número de empresas têxteis no país tem-se mantido constante, em torno de 5 mil unidades, 80% das quais são empresas de pequeno porte. 514 empresas, entre 4.901 unidades, concentravam em 1981 nada menos de 84% da renda do setor. No caso do estado de São Paulo, o número de estabelecimento chegou a cair entre 1970 e 1980, tanto em termos absolutos (de 3.251 a 2.912) quanto em termos relativos no conjunto do Brasil: de 61 para 53% dos estabelecimentos.

Foi justamente esse emaranhado de queixas e deslocamentos que provocou a curiosidade do autor em saber quem eram, afinal, aqueles produtores que acabavam se incumbindo de atividades tendencialmente relegadas, como acontecia com o trabalho de tecer. Uma visita a Americana, em fevereiro de 1982, permitiu-lhe travar contato com um grupo de façonista locais,3 3 . É justo que se agradeça a Lino Bragagnolo, José Magossi e Antonio Pilotto, entre outros façonistas de Americana, as ricas entrevistas concedidas ao autor. e de se pôr a par de uma monografia acadêmica anos atrás escrita acerca deles.

Assim, o material utilizado na análise que se segue compreende entrevistas com industriais têxteis de São Paulo (que, no fim das contas, são os principais clientes dos façonistas), com façonistas de Americana, afora o exame do texto do geógrafo João Antonio Rodrigues. É ele o autor da referida monografia acadêmica, que se chama Façonismo: um sistema de trabalho na indústria têxtil - o exemplo de Americana.4 4 . Stein, Stanley. Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil - 1850/1950. Rio de Janeiro, Campus, 1979.

O leitor precisa ser informado de que a compreensão do têxtil aqui implícita passou pelo exame de uns poucos títulos fundamentais, dois dos quais de citação obrigatória a quem pretender aprofundamento: Stanley Stein, Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil 1850/19505 5 . Rodrigues, J. A. Façonismo: um sistema de trabalho na indústria têxtil - o exemplo de Americana. Síntese de tese de mestrado. São Paulo, Instituto de Geografia, 1978. (Coleção Geografia das Indústrias, n. 6.) continua sendo a obra mais compreensiva acerca do conjunto do setor em amplitude histórica dilatada. Alice Rangel de Paiva Abreu apresentou à USP, em 1980, tese de doutoramento que focaliza o façonismo na montagem de roupa, ou seja, como diz o título: O trabalho industrial a domicílio na indústria de confecções. Bibliografia mais completa estará disponível quando vier à luz, proximamente, a edição comercial da pesquisa feita por professores da FGV, de São Paulo.

Uma segunda e última advertência ao leitor diz respeito ao território teórico dos assuntos envolvidos no artigo. Como sabem os que lêem ciências sociais no Brasil, a observação intensiva, participante ou não, característica da antropologia, e a teoria marxista do valor, vêm-se fecundando reciprocamente na tentativa de compreender as formas concretas que assume o capitalismo no País. As razões e as tendências da produção familiar na agricultura, os porquês do trabalho autônomo a domicílio na cidade, as percepções de operários quanto ao ritmo de trabalho imposto pelas máquinas modernas e tantas outras questões do gênero estão sendo tratados ultimamente em um espaço quase que de especialistas. Embora o autor não se alinhe entre os leitores assíduos de O Capital, nem se considere especialista no estudo das relações de trabalho na produção material, acredita ele que os resultados de sua incursão no façonismo servirão a quem queira conhecer melhor certas relações de dominação-subordinação que estruturam a classe proprietária em seu conjunto, e que realimentam continuamente o projeto de emancipação do trabalhador pela via de atividade autônoma, e, por meio desta, à propriedade de pequenos negócios.

2. O FAÇONISMO NO PÓLO TÊXTIL DE AMERICANA, SP

O regime de fação, como tudo o que se refere à prática da subcontratação de serviços entre empresas, não é exclusivo do setor têxtil ou de Americana. O termo fação é aportuguesamento sumário de a façon, que, segundo o Petit Larrouse, "se diz de um trabalho executado sem fornecimento de material". Ele remete a vínculos de trabalho que antecederam à industrialização, no século passado, da produção de tecidos e de roupas na França.

O trabalho a fação também é coisa corriqueira em outros domínios industriais, como é o caso da montagem de peças de roupa ou de guarda-chuvas. A indústria calçadista vale-se muito dele, como acontece na cidade de Franca, em São Paulo.

No caso, o que importa é o trabalho a fação em tecelagem. A contratação de serviços reúne, aí, empresas de tecelagem ou intermediários comerciais que possuem a matéria-prima - o fio - e proprietários de teares que entram com suas máquinas e força de trabalho na transformação dos fios de terceiros. Essa transformação é feita sob encomenda, sendo os preços preestabelecidos e calculados por metro linear tecido.

A indústria têxtil paulista começou em fins do século passado na região de Sorocaba e Itu, e posteriormente desenvolveu-se em São Paulo, na medida em que para esta convergiam força de trabalho, capital e mercado consumidor.

Americana é cidade de porte médio, situada a uns 150 quilômetros ao norte de São Paulo. A rigor, a especialização têxtil de Americana sucedeu no tempo ao desenvolvimento dessa indústria na capital, tendo impulso a partir dos anos 30. De todo modo, as primeiras empresas têxteis de Americana têm história mais longa.

Vários fatores contribuíram para o surgimento de indústrias têxteis em Americana, desde fins do século passado. Além de estar no eixo de expansão da cultura do café e de receber, em 1873, um ramal da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, Americana situa-se em uma região onde se desenvolveu a lavoura de algodão, quando a produção algodoeira nos EUA foi prejudicada pela Guerra de Secessão (1865-71). Uma vez recuperada a cotonicultura dos EUA após a Guerra, sobrevieram dificuldades para a venda do algodão brasileiro no mercado exterior. Contando com fibra disponível, e com meios de transporte, foi instalada em 1873, em Americana, uma primeira indústria de fiação e tecelagem de algodão, pela firma Queiroz e Ralston. Em 1904 essa fábrica encontrava-se em nome de uma firma inglesa - Rawlison Müller e Cia. - e, segundo Rodrigues, ela era naquela ocasião a segunda maior empresa têxtil do País.

Por volta de 1929/30, outras poucas e grandes empresas já haviam-se estabelecido na região e se registraram as primeiras experiências de trabalho a fação. Essas tentativas iniciais surgiram de circunstâncias diversas. Uma delas, por exemplo, teria sido a proposta de uma tecelagem de remunerar com serviços de transformação os fios que comprara e não conseguira pagar. Consta ainda a iniciativa de um vendedor de fios que, sabedor da existência de teares ociosos em uma firma de sua clientela, propôs e conseguiu que eles lhe fossem vendidos para pagamento sob forma de prestação de serviços. Esse vendedor, de nome Luiz Bertoldo, chegou ao cabo de dois anos a trabalhar autonomamente, isto é, com matéria-prima própria, e a dar serviço a fação para empregados da grande indústria Carioba (Rawlison Müller). Esta empresa havia, tempos antes, vendido teares antigos a alguns tecelões, que assim suplementavam sua renda com trabalho doméstico após a jornada regular na empresa.

Entre 1931 e 1937, o governo brasileiro cedeu à pressão dos industriais e dificultou a importação de teares,6 6 . Desde meados dos anos 20 os grandes industriais têxteis vinham insistindo junto ao governo que era necessário proibir a importação de teares e de outros equipamentos, sob o argumento de que a capacidade instalada já excedia à necessidade de consumo do mercado interno. O governo protelou a decisão, percebendo a manobra cartelística envolvida na reivindicação, mas acabou cedendo aos industriais e, entre 1931 e 1937, houve de fato sérias restrições legais à expansão do parque têxtil nacional. O processo está descrito em Stein, Stanley, op. cit. esp. cap. 9 e 10. dando ensejo a que três fábricas de teares começassem a funcionar em São Paulo (Irmãos Ribeiro, Andreguetti e Coltro). Com o mercado interno legalmente protegido, essas empresas concederam aos clientes facilidades para aquisição de teares que chegavam em muitos casos ao alcance de tecelões que haviam começado no façonismo em teares usados das empresas que os empregavam. Foi nesse momento que tais tecelões façonistas decidiram procurar comerciantes de tecidos da Rua 25 de Março e adjacências,7 7 . Trata-se da principal rua do comércio de tecidos, roupas e armarinho da capital, onde a maior parte dos estabelecimentos, desde os anos 20, está em mãos de sírios, libaneses e nacionalidades afins. oferecendo serviços. Rodrigues observa que, entre 1930 e 1950, o façonismo se expandiu aumentando o número de operários que conseguiam adquirir um ou dois teares e os operavam em casa, com a ajuda da família.

"Os primeiros estabelecimentos a fação não poderiam receber o nome de 'indústria façonista', pois se limitavam a um ou dois teares, instalados em cômodos comuns da residência de um operário capacitado (mestre ou contramestre) da Indústria de Fiação e Tecelagem da Carioba, ou da Indústria de Seda. Estas máquinas eram movimentadas após o chefe de família ter encerrado o trabalho regular, ou seja, nas primeiras horas da noite. A matéria-prima era fornecida pela própria indústria onde trabalhavam e consistia em um rolo (urdume) pronto e de uma quantidade necessária de espulas já preparadas para servirem de trama. Este material era transportado na maioria das vezes em pequenas carrocinhas, carro de mão e até mesmo na traseira de bicicleta, o que nos leva a crer que a produção não deveria ser muito grande. Entretanto, com o passar do tempo, a mulher ou alguns filhos mais crescidos aprendiam a trabalhar no tear, o que permitia ampliar as horas de funcionamento da máquina. O auxílio dado pela mulher levou alguns dos primeiros a instalar tear até na cozinha, possibilitando à mulher operar simultaneamente o tear e as panelas do fogão. Mesmo assim, o rendimento era pequeno e portanto era demorada a cobertura do valor das máquinas, a ponto de permitir a compra de outra. Após muitos meses de trabalho familiar, instalava-se outro tear ainda dentro da própria casa. Quando, no entanto, se conseguia um terceiro, era necessário transferir as máquinas para barracões ou telheiros construídos no quintal. Alguns façonistas, entusiasmados pela possibilidade de conseguir, em casa, rendimento igual ou superior ao que recebiam na indústria, deixaram seu emprego e passaram a trabalhar integralmente com suas máquinas, auxiliados pela esposa e filhos, dando início a uma pseudo-indústria. Adquiriam logo que pudessem uma espuladeira, a fim de prepararem, eles mesmos, o material necessário para a trama e, numa segunda fase, uma urdideira, máquina que os libertava parcialmente das indústrias autônomas da cidade, pois poderiam agora preparar o urdume e, conseqüentemente, receber pedidos de serviços provenientes de indústrias de fora ou mesmo de comerciantes que, adquirindo grandes quantidades de fios, industrializavam-nos através dos serviços prestados pelos façonistas."8 8 . Rodrigues, J. A. op. cit. p. 17-8.

Daí seguia-se o passo de

"(...) ampliar o salão e o número de máquinas, contratando alguns empregados, desempenhando o façonista o papel de mestre e contramestre, e deixando para os familiares e empregados as demais funções (tecelão, espulatriz, urditriz etc.)."9 9 . Id. ibid.p. 18.

O influxo inicial do trabalho a fação em Americana entre 1930 e 1950 ganhou continuidade e vigor nos anos seguintes. Entra em conta a introdução no mercado nacional dos fios artificiais e sintéticos na segunda metade dos anos 50.10 10 . Fios artificiais são de origem química não-petrolífera, e os sintéticos são os derivados de petróleo. A importância da introdução de fios de origem química ou petroquímica na indústria têxtil está no fato de que, afora os vários tecidos feitos exclusivamente com eles, inúmeros outros foram concebidos como mistura ou mixagem, em proporções múltiplas, de fios artificiais com fios naturais. Considere-se ainda que a elasticidade dos fios químicos ou sintéticos levou a tecidos que se ajustam facilmente ao corpo, permitindo por conseguinte que certas peças de roupa que antes dependiam muito da perícia do artesão costureiro pudessem ser fabricadas em linha de produção. Em suma, eles tornaram possível uma enorme variedade de produtos têxteis, o que teve por conseqüência alargar temporariamente o espaço do pequeno capital no conjunto do setor, tanto nos subsetores de fiação, tecelagem, beneficiamento de fios e de tecidos, quanto sobretudo no de confecções. No relatório final da citada pesquisa feita na FGV/SP, são examinados esses efeitos dentro da lógica do oligopólio competitivo, em que se estrutura o setor. Esses fios são mais facilmente operáveis em teares antigos, nos quais a fibra de algodão se quebra muito. Ademais, sendo mais baratos do que o algodão, os fios artificiais e sintéticos tornaram-se sem demora matéria-prima mais propícia a tecidos de baixo custo destinados a faixas de mercado populares. Estas, por sua vez, absorviam mais facilmente as imperfeições causadas por máquinas mais antigas ou por operários menos treinados. Assim, aos poucos, a transformação de fibras não-naturais passou a predominar nas encomendas a façonistas.

A instalação em Americana, em 1946, de uma fábrica de teares (Nardini), de uma grande fiação de raiom, em 1949, e de duas grandes fiações de capital nipo-brasileiro (Toyobo e Nishibo), em meados dos anos 50, garantiu provisão mais regular de fibras e de máquinas, o que, por sua vez, favoreceu a abertura de tecelagens autônomas. A especialização têxtil que se delineava em Americana foi reforçada a seguir pela instalação de escritórios de representantes de fabricantes de máquinas, que também supriam o mercado local de peças e serviços de manutenção. As tecelagens autônomas que iam se instalando geravam, segundo Rodrigues, aumento regular nas demandas de serviço a fação. Calculou ele que para cada empresa autônoma instalada se abria espaço para três novos façonistas.

Em fins dos anos 60 inicia-se um movimento mais firme, a nível nacional, de renovação de equipamentos no setor, com importação de teares automáticos. Isso se deu em uma conjuntura em que as tecelagens da capital de São Paulo se ressentiam de restrições legais e de desvantagens econômicas para ampliação da capacidade produtiva, nas fábricas instaladas no Brás, na Moóca, no Bom Retiro e em outros bairros que abrigaram indústrias em épocas mais antigas.11 11 . O encarecimento do espaço físico afeta mais diretamente as tecelagens de tecido liso, cujos teares são de grandes dimensões, e menos, comparativamente, a tecelagem em máquinas circulares das malharias, que são de porte menor e produzem artigos mais caros. Essa a razão por que as tecelagens de tecidos lisos buscaram mais intensamente sair da capital. Esses fatores movimentaram a venda de teares usados de São Paulo para Americana, onde surgiram empresas que se incumbiam da reforma de teares usados e de sua venda a façonistas. Como o FGTS foi introduzido nessa fase, muitas das tecelagens de São Paulo e de Americana que tinham operários antigos com direito à indenização ofereceram teares usados em pagamento dos direitos devidos. Como se sabe, quando se criou o FGTS, as empresas decidiram liquidar rapidamente seus débitos com empregados estáveis, a fim de ajustarem-se ao novo regime trabalhista. Rodrigues assim relatou a transferência de maquinário têxtil a Americana nessa ocasião:

"(...) tornou-se um fato comum a chegada quase diária de caminhões transportando máquinas têxteis, principalmente teares, atingindo, segundo voz corrente na cidade, média anual de 500 a 800 teares, que imediatamente eram absorvidos por indústrias (autônomas ou não) já existentes ou por outras que se instalavam."12 12 . Rodrigues, J. A. op. cit. p. 23-24.

O gráfico a seguir, emprestado da síntese de Rodrigues, mostra a regularidade e a firmeza da expansão da indústria têxtil autônoma e a fação em Americana, até o ano em que concluiu sua pesquisa.

Alternativamente, podia a empresa que substituísse equipamento encontrar para as máquinas velhas destino melhor do que a sucata,13 13 . Essa é a destinação última dos teares mais deteriorados. Eles seguem de Americana para Piracicaba, onde fabricantes de usinas de álcool os reaproveitam como matéria-prima. vendendo-as a façonistas que as pagavam com produção. Esses eram os façonistas "cativos", que ficavam interditados de oferecer serviços a terceiros enquanto não houvessem amortizado a compra das máquinas por meio de serviços a seus credores.

Os façonistas foram recrutados em sua maior parte entre tecelões qualificados de grandes empresas de Americana e de suas proximidades. O trajeto de dois terços dos "patrões" de oficinas a fação que Rodrigues entrevistou em 1967 indicou experiência anterior no ramo. No terço restante abundavam pequenos proprietários agrícolas, que aplicaram na compra de teares o produto da venda ou do arrendo de sua terra. Ao deixar a agricultura, em razão das dificuldades do pequeno produtor relativamente aos preços de seus produtos, eram como que obrigados a cumprir um estágio de iniciação em alguma tecelagem local, a fim de conhecer minimamente os caprichos da máquina e do processo produtivo, antes de abrirem estabelecimentos próprios. Analfabetos, ou, no máximo, com escola elementar, os façonistas oriundos da agricultura ou das tecelagens estabelecidas em Americana não dispunham de capacidade de negociação necessária para enfrentar a competição de preços que lhes impunham os intermediários. Mesmo os façonistas das tecelagens estabelecidas tinham parca experiência urbana e comercial, pois eram no mais das vezes descendentes de italianos que se instalaram na região como trabalhadores em fazendas de café e que chegaram a operários no processo de desenvolvimento industrial têxtil da região.

Como o projeto de vida autônoma que estimula a conversão do tecelão assalariado em façonista exige que ele se utilize comumente de toda a força de trabalho familiar, resulta que as famílias de façonistas sejam bastante coesas, envolvidas em um único ciclo anual de trabalho. Assim, as férias anuais também são gozadas conjuntamente por toda a família: os mesmos veículos utilitários em que transportam os rolos de tecidos aos clientes locais ou de São Paulo servem para as viagens de descanso à praia.

Rodrigues averiguou que a maior parte dos façonistas conseguia manter nível de consumo familiar satisfatório, quando medido pela posse de casa própria, de veículos e de eletrodomésticos. Cerca de 90% deles eram donos de casas onde moravam e tinham geladeira e televisão, ao passo que eram raros os que não dispunham de um veículo, geralmente uma perua Kombi, para entregas e lazer familiar. Todavia, eram apenas 30% os que tinham suas salas de tear instaladas em prédio próprio,14 14 . Rodrigues, J.A. op. cit. p. 29 e 33. e que não precisavam alugar galpões.

Os estabelecimentos façonistas geralmente tinham em 1967 até 15 empregados, sendo o grupo modal o de 6 a 10 empregados, que, somente ele, reunia um terço dos casos. O volume mais freqüente de teares estava compreendido em dois grupos: o de 6 a 10 e o de 16 a 23 máquinas; cada um deles reunia 30% do total dos casos de estabelecimentos façonistas. A tipologia que Rodrigues montou com base nas observações relativas ao porte e ao tipo de máquinas dos façonistas é bastante simples. Ela distingue basicamente no ponto inferior da escala as oficinais com até cinco empregados que são aquelas em que o tecelão proprietário é ajudado pela esposa, filhos e alguns aprendizes menores. Nesses estabelecimentos é muito restrita a disponibilidade de acessórios necessários à preparação; à tecelagem e ao acabamento do tecido, e por isso eles têm de limitar-se à produção de tecidos mais modestos.

No limite superior estava a "burguesia" façonista, que compreendia estabelecimentos com mais de 100 empregados e setores completos de preparação, manufaturação e acabamento, não raro com teares automáticos e que funcionavam em prédio próprio. O quadro a seguir sumaria as subdivisões que Rodrigues observou nos 266 estabelecimentos façonistas que chegou a visitar.

A existencia dessa diferenciação entre façonistas indica que esse regime de trabalho permite uma margem, pequena que seja, de acumulação. Muito embora essa acumulação se dê a taxas bem inferiores à média do setor ou da indústria em geral, ela parece suficiente para que boa parte dos façonistas alcance o patamar de consumo familiar satisfatório que foi mencionado e que consiga reproduzir sua condição social de trabalhadores-proprietários por meio de seus filhos. A análise de Rodrigues não explora projetos concretos de famílias de façonistas nem fornece os percentuais de filhos que reproduziram a condição social paterna nesse domínio. À página 24, todavia, menciona que a multiplicação dos estabelecimentos façonistas em Americana também resultou do acesso de uma segunda geração à maioridade: "Os filhos, ao atingirem a maioridade e principalmente após o casamento, acostumados àquele tipo de atividade, eram inclinados a montar sua própria fábrica." Logo a seguir, Rodrigues incorpora outro elemento que teria contribuído, a partir de 1961, para reforçar a separação de estabelecimentos correlata à fase de amadurecimento, emancipação e casamento dos filhos de façonistas. Ele refere-se a uma lei de âmbito estadual, que parece ter vigido entre 1961 e 1966, e que favorecia tributariamente indústrias com menos de 25 teares. Embora as referências do autor ao dispositivo legal não sejam muito precisas, tudo indica que a mencionada lei tenha estimulado os donos de número maior de máquinas a dividí-las entre os filhos. No caso, essa divisão era puramente pro forma, para fins de registro comercial, permanecendo as máquinas e as pessoas no mesmo prédio e sob o comando do chefe de família.15 15 . É oportuno lembrar aqui uma particularidade tecnológica do têxtil que muito favorece a continuidade dos sucessores no setor: é a divisibilidade do equipamento. O proprietário de tecelagem que precise partilhar as máquinas entre os filhos pode fazê-lo sem dificuldade, pois não se trata de um processo contínuo de produção. Se o mercado de teares usados enfraquece as "barreiras à entrada" do ponto de vista de capital mínimo necessário a ingressar no setor, a divisibilidade do equipamento como que coloca "barreiras à saída".

De posse dessas informações, é plausível supor que o ciclo de acumulação restrita e incerta propiciado pelo trabalho a fação compreendesse um período de trabalho intenso de ex-tecelões assalariados, de sua mulher e de seus filhos. As margens reduzidas de saldos positivos em relação aos custos, ou seja, os ganhos que excediam à simples reprodução da força de trabalho pessoal e familiar eram reinvestidos na compra de novos teares, a fim de aumentar a capacidade produtiva. Daí o façonismo ser percebido como uma "indústria de poupança", expressão usada para salientar que os saldos positivos16 16 . Usa-se saldo positivo para afastar a idéia de um excedente regularmente acumulado, tal como implícito na acumulação capitalista propriamente dita. Quer dizer: a noção de eventualidade de um excedente retido pelo pequeno produtor, por oposição à regularidade implicada no conceito de lucro. geralmente aí aparecem sob a forma de teares amortizados com o próprio trabalho. Se um façonista deixou a condição assalariada por volta dos 25 anos, pode-se admitir que aos 50 ele tivesse conseguido comprar de uma a duas dezenas de teares usados. Com os filhos já adultos e absorvidos na produção, não seria difícil dar continuidade à firma de família ou, em caso contrário, partilhar os teares entre seus herdeiros.17 17 . Conviria ver se os teares comprados com os frutos do trabalho comum de todos os membros da família (homens e mulheres) são, na hora da herança, partilhados entre todos ou apenas entre os homens. Se for apenas entre os homens, estarão vigindo relações de exploração dentro da unidade doméstica de produção, encobertas por laços de sangue e parentesco.

Talvez se possa afirmar que o desenvolvimento de um mercado de teares usados, compreendendo a especialização de firmas em reforma e revenda, tenha servido para baratear historicamente esse maquinário, diminuindo o tempo de trabalho necessário para aquisição de um tear adicional pelo façonista. Essa hipótese de barateamento a longo prazo do tear usado não exclui fortes oscilações conjunturais nos preços dessa mercadoria, determinadas pela procura súbita - devida à moda - de tecidos que são mais bem executados em máquinas mais antigas. Assim, se entra em moda um pano que "vai melhor" em tear mecânico - como aconteceu com as blusas e vestidos em lingerie18 18 . Não confundir com lingerie no sentido de roupa íntima feminina, mas na moda que difundiu o seu tecido em blusas e vestidos. - a procura por esse maquinário e, portanto, seu preço, aumentam rapidamente. Um informante contou que em um lapso de três a quatro meses, no começo de 1979, o preço do tear mecânico usado em Americana passou de Cr$ 3 mil a Cr$ 30 mil cruzeiros, em razão da lingerie.

3. FORMAS DE SUBORDINAÇÃO DO FAÇONISTA

Para configurar o caráter dependente do trabalho a fação, deve-se assinalar de início que é ilusória a igualdade entre as partes presumida na idéia de contrato - o contrato de prestação de serviços. Desde que se difundiu o façonismo, a relação entre façonista e seus clientes vem-se pautando pelo poder do fornecedor de fios de fixar o preço a ser pago pela transformação encomendada. Mantendo o preço da transformação sob controle, por meio de uma avaliação prévia (em suas próprias máquinas) do montante de força de trabalho necessário à produção de um metro de tecido com fios de determinada qualidade e tipo,19 19 . Essa e uma das razões pelas quais o industrial de tecelagem "por conta" jamais desmonta completamente sua própria sala de tecer, quando a desativa na intenção de passar a comerciar tecidos e/ou confeccioná-los. O cuidado em não encerrar completamente a tecelagem foi observado em várias firmas de pequeno e médio portes da capital de São Paulo entrevistadas na pesquisa de campo, em fins de 1981 e início de 1982. Ficou claro que a manutenção de uns poucos teares, na empresa capitalista que desativa a seção de tecelagem, tem a ver com a necessidade de conhecer melhor o quanto rende cada máquina em função da qualidade e tipo de fio, com o que então os fornecedores da matéria-prima têm condições de evitar que o trabalho a fação gere excedentes sistemáticos em beneficio do façonista. Mas seria interessante completar o argumento verificando se as empresas que tendencialmente deixam de tecer para empreitar a terceiros e se concentram no comércio auferem alguma vantagem fiscal e/ou tributária, de continuarem se apresentando como (parcialmente) industriais. e colocando os façonistas em concorrência permanente entre si, por intermédio do levantamento dos preços pedidos, num dado momento, pelo conjunto dos façonistas da localidade, o capitalista proprietário dos fios retém condições de deprimir constantemente as possibilidades de acumulação nas unidades que lhes prestam serviços. Não se chegue ao limite de considerar nulas essas possibilidades, porquanto o crescimento das instalações de alguns deles (até a mais de 100 teares) prova o contrário. Mas são casos esporádicos, sendo mais difícil ainda a passagem a produtor "por conta": segundo um façonista experiente entrevistado, apenas uns 5% dos seus pares chegaram algum dia a processar fios próprios. Pelo estudo de Rodrigues, os limites de acumulação do façonista que começou "do nada" se materializava em estabelecimentos com seis e 24 teares, e não mais de 15 empregados, aí compreendidos o dono e sua família.

Do ponto de vista econômico, a continuidade do pequeno façonista no mercado se explica pelo fato de fornecer uma força de trabalho a custo inferior ao da força de trabalho média empregada nas indústrias "por conta". É esse diferencial que define a "preferência" das tecelagens que operam matéria-prima própria em transferir parte da produção ao façonista.20 20 . Acrescente-se também o fato de elas não poderem responder de imediato à flutuação muito súbita da procura determinada pela moda.

A oferta de força de trabalho mais barata, do lado do façonista, é possível por meio de alguns procedimentos e de certas ilusões. Como pai de família, o façonista mobiliza na produção toda a força de trabalho familiar sem pagar salários por unidade de tempo ou de produção: ao contrário, ele raciocina em termos da receita total a ser obtida por período de empreitada (que varia comumente de três a seis meses). Desse total ele deduz o custo de manutenção das instalações e o pagamento eventual de força de trabalho não-familiar. O restante ele consome na manutenção da unidade doméstica. No dizer de um façonista entrevistado, assim se configuravam esses cálculos e seus resultados, em números de fevereiro de 1982:

"Uma família de quatro a cinco pessoas, com 12 teares, pode ter um rendimento bruto de uns Cr$ 300 mil mensais. Desses Cr$ 300 mil, Cr$ 100 mil vão de encargos (aluguel, energia elétrica etc.). Os Cr$ 200 mil restantes são um rendimento aparente, porque são subvencionados pela própria família. Assim, se deles deduzirmos os encargos sociais (férias, FGTS etc.) das quatro ou cinco pessoas, eles viram Cr$ 120 mil, o que dá um salário de Cr$ 20 mil para cada um. É pouquíssimo. Para ganhar isso eles poderiam facilmente trabalhar em outra coisa, mas preferem essa relativa liberdade de ser autônomos."21 21 . Nessa época, segundo o mesmo informante, um tecelão assalariado de grande empresa ganhava Cr$ 30 mil, e um menor auferia seus Cr$ 18 mil. O salário mínimo vigente para o estado de São Paulo na ocasião era de Cr$ 11.928,00.

Destarte, desde que as receitas não caiam abaixo do "ponto de equilíbrio" assim definido, ele continua no mercado como produtor autônomo. O custo necessário por trabalhador fica deprimido, seja pelas economias de escala implícitas na manutenção de uma única unidade doméstica, seja pela eliminação do custo de transporte da residência à unidade produtiva. Ademais, não mantendo uma relação jurídica de empregador com sua mulher e filhos, desonera-se o façonista do custo dos encargos sociais, o que equivale a dizer que ele desonera o seu contratante desses mesmos encargos, na medida em que não os inclui como itens de custo no preço que oferece. Como, finalmente, a permanência como produtor autônomo inscreve-se num projeto com significado mais profundo, porquanto representa um projeto familiar, e como ele próprio - o chefe da família - é trabalhador direto, não computa os custos de direção da produção, ou seja, a energia adicional que precisa despender após sua jornada pessoal sobre o tear, nos serviços de manutenção do estabelecimento e nos contatos com a clientela. O próprio fato de os façonistas terem aceito assumir, sem dificuldade, a transferência do custo de transporte do tecido ao estabelecimento do fornecedor, em cidade diversa,22 22 . Os façonistas antes entregavam o tecido ao cliente em Americana. Com o tempo, difundiu-se a prática de trazerem o produto ao estabelecimento do fornecedor, em São Paulo, sem remuneração adicional pelo transporte. Eles resignaram-se à imposição argumentando que essas vindas a São Paulo eram propícias a contatar novos clientes e a manter os antigos ao abrigo da bisbilhotice e da concorrência de outros façonistas. põe em evidência a sua incapacidade organizatória de negar a subordinação a que estão sujeitos.23 23 . A história associativa dos façonistas de Americana registra apenas uma iniciativa, em meados dos anos 70, de reunião institucional para provisão de assistência jurídica e técnica, que incluía o objetivo de fixação de preços mínimos e de captação centralizada de encomendas para repasse aos associados. O temor de que os diretores traíssem os associados carreando clientes para seus estabelecimentos fez arrefecer a idéia, e a associação não chegou a ser implantada.

A assimetria na definição do preço da transformação e o diferencial de custo da força de trabalho entre o estabelecimento façonista e aquele "por conta" parecem ser os elementos principais em que se sustenta esse regime de empreitada. Essa assimetria também se manifesta na recusa sistemática dos contratantes em oferecer garantia prolongada de serviço aos façonistas e no direito que eles se asseguram de desclassificar ex post o preço a ser pago pelas parcelas da produção que apresentem defeitos, as quais são remuneradas em até 50% abaixo do preço estipulado no começo, conforme a seriedade da imperfeição constatada.

Para estabelecer os fatores que impulsionam a difusão do façonismo, deve-se considerar que nos grandes estabelecimentos a incorporação de tecnologia mais recente deprime a quantidade de trabalho necessário por unidade de produto e assim ameaça progressivamente tornar inviáveis as tecelagens que operam equipamentos menos velozes. Esse fenômeno alimenta duplamente o mercado de máquinas usadas: através da revenda das máquinas substituídas nas grandes empresas e através da desativação de teares nas firmas que se fazem demasiado onerosas, nas unidades de pequeno e médio portes.24 24 . O depoimento prestado ao autor pelo presidente do sindicato dos operários têxteis da capital de São Paulo, em abril de 1981, foi incisivo em reclamar da intensificação do trabalho no setor de tecelagem. Ele contou que a partir de 1968 a produção automatizou-se muito e afetou a organização do trabalho, a ponto de um tecelão, que antes cuidava de quatro teares (em média) ser impelido a controlar até 30 teares (proporção vigente nas empresas maiores). Foi necessário para isso que se diminuísse a distancia entre os teares, com efeitos negativos de aumento do ruído e do calor. Ademais, a difusão da cronometragem de tarefas vem aguçando a intensificação do trabalho. Numa descrição sumária, após essas mudanças o tecelão seria uma espécie de apertador de botões, que passa suas oito horas de trabalho andando em torno de um quadrilátero de 15 por 15 m (60 m) em cujas laterais alinham-se os trinta teares. Isso o obrigaria a andar diariamente uma distância equivalente à que separa São Paulo de Santos, ou seja, mais ou menos 100 km. A conseqüência mais flagrante desse processo de intensificação do trabalho na capital - segundo o mesmo informante - estaria na redução de 120 para 65 mil operários têxteis e no amesquinhamento da habilidade profissional do tecelão. Certas tarefas mais delicadas (como é o caso da realização do desenho na própria trama do tecido) foram transferidas ao maquinário (o desenho é transportado ao tecido pelas máquinas de estamparia). Uma análise aprofundada de como os operários têxteis vêm experimentando o processo intensificado de trabalho em época recente pode ser encontrada em Pereira, Vera Maria C. O Coração da fábrica (estudo de caso entre operários têxteis). Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1979. Ademais, os imponderáveis da moda e da instabilidade climática reforçam uma sazonalidade no consumo de vestuário de que as pequenas e médias empresas não podem aproveitar-se mantendo capacidade ociosa em instalações próprias para responder aos momentos de pico.25 25 . Daí resulta o recurso a uma remuneração diferencial por produtividade ao operário da empresa façonista. Consiste ela em uma remuneração por metro que é tanto maior quanto maior a produção do operário. O argumento acerca das vantagens que as empresas "por conta" têm, deixando uma parcela da procura sazonal a um grupo grande e fragmentado de microprodutores, deve considerar também que a dispensa de grandes contingentes nas fases de retração provoca forte reação sindical. Tal reação não acontece quando as demissões atingem poucos empregados por estabelecimento, ainda que as demissões se estendam a grande número de estabelecimentos. De qualquer modo, as empresas a fação têm probabilidade de continuidade quanto mais providas sejam de acessórios e de máquinas versáteis que permitam atender a encomendas de tipos de panos variados.26 26 . Em uma escala de cinco tipos, que vai dos estabelecimentos menores e mais frágeis aos maiores e mais sólidos, Rodrigues assim define o tipo superior: "Indústrias façonistas com teares automáticos: muito embora nenhuma ainda seja totalmente equipada com teares automáticos, algumas já possuem parte de seus teares automatizados, estando em condições de produzir tecidos bem mais perfeitos e, por essa razão, não tendo dificuldades para encontrar mercado de trabalho. São as indústrias façonistas em expansão, que se encontram mais próximas da autonomia, só não o fazendo porque não lhes interessa, por ora, a autonomia total, já que condições não lhes faltam. Preferem empregar o capital na constante renovação de acessórios e ampliação de maquinaria" (op. cit. p. 50). Observe-se que Rodrigues toma por condição suficiente para a autonomia a boa estruturação produtiva da empresa façonista, sem tomar em conta os trunfos de domínio estético e comercial sem os quais não é possível enfrentar com êxito o mercado. É possível supor que esses casos de façonistas de grande porte que jamais chegam a "por conta" concentrem pessoas e famílias socialmente retraídas e caipiradas. Reforça essa hipótese a verificação de que, nos casos opostos, ou seja, de gente que deixou a produção pelo comércio ou a tecelagem pela confecção, o diferencial de trunfos tenha sido de caráter mais simbólico que econômico. Nesse sentido, a conjuntura favoreceu mais quem tinha gosto mais "apurado", facilidade de contato social, trânsito nos setores mundanos das classes altas e médio-altas das grandes cidades, e habilidades correlatas. Um jovem administrador, afeito à linguagem do marketing moderno, que estava estabelecido, havia alguns anos, na cidade de Americana, com um escritório de representação de máquinas e insumos têxteis e de prestação de assessoria a produtores locais, contou ao autor o seguinte caso, que confirma a hipótese levantada: tendo estimulado a formação de um grupo de importantes industriais locais para visitar uma feira de produtos têxteis na Europa, teve ele muita dificuldade em ciceronear a excursão de negócios, tantas foram as gafes de gosto, de etiqueta social e de dificuldade de idioma manifestadas pelos excursionistas, que pela primeira vez viajavam à Europa. O autor trata da relação entre gosto e posição de mercado em confecções no artigo "Vestuário: gosto e lucro (o campo da moda no Brasil)", a ser publicado proximamente pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, em seleta de contribuições a seu 7º Encontro Nacional, havido em Águas de São Pedro, SP, outubro de 1983.

As encomendas a façonistas nem sempre são formuladas por industriais de tecelagem estabelecidos; são também feitas por comerciantes atacadistas ou varejistas de tecidos. Rodrigues assinalou inclusive a presença de corretores em Americana, cujo único trabalho era o de fazer a mediação entre tecelagens ou comerciantes de São Paulo e os façonistas locais. São, portanto, várias as categorias de agentes que se incumbem da colocação em concorrência dos fabricantes a fação, e, no caso de tratar-se de um intermediário que não seja o dono dos fios, o preço combinado para a transformação deve ainda ser suficientemente módico para remunerar o lucro da corretagem.

As possibilidades de o façonista capitalizar em termos da excelência do produto que eventualmente alcance são muito limitadas. Esses limites são dados pelo fato de o façonista jamais ter sua etiqueta no produto, e, portanto, jamais ser conhecido no conjunto do setor e perante o consumidor final. Como sinal de sua posição insegura, os façonistas exprimem temor acentuado de perder as encomendas com que são contemplados, mantendo sob o mais rígido sigilo, na cidade, os nomes de seus clientes, aos quais se referem "em código"27 27 . Rodrigues J. A. op. cit. p. 52. Assim, a incumbência adicional que os façonistas aceitaram de transportar o tecido acabado a São Paulo também tem a ver com a necessidade de discrição perante a concorrência quanto à composição de suas clientelas. No que se refere a sigilo, acrescente-se que o façonista comumente não recebe encomendas de tecido que constituem lançamentos de estação, pois as tecelagens que lhes dão serviços preferem não correr os riscos de divulgação prematura de suas "exclusividades".

Sumariando os indicadores do peso do trabalho a fação na indústria têxtil de Americana para 1970, Rodrigues assegura que os façonistas representavam três quartos das 600 indústrias têxteis do município, reuniam um terço da força de trabalho empregada no setor (parcela que compreendia umas 2 mil pessoas) e respondiam pela metade dos 6 milhões de metros tecidos na cidade. Admitindo que nesse ano Americana continuasse respondendo pelos 10% da produção têxtil do Estado, segundo dados do mesmo Rodrigues para 1967, é de se concluir que o setor façonista local representasse uma parcela não desprezível de 5% da produção de tecidos do Estado.28 28 . Id. ibid. p. 63 e tabela das p. 4 e 6. Um percentual de 5% na produção estadual é significativo para funcionar como bolsão de reserva de capacidade produtiva a ser intensificada nos períodos de aquecimento do mercado.

Das entrevistas conduzidas em Americana em fevereiro de 1982 resultaram depoimentos que confirmam amplamente a análise de Rodrigues, montada em 1970. O que parece haver de mais relevante nas transformações posteriores diz respeito ao tamanho e à composição do pólo façonista. Apesar de não se ter obtido estatística completa para os dias correntes, as informações recolhidas sugerem que os 450 estabelecimentos a fação de 1970 passaram a cerca de 700 em torno de 1974 e 1976, havendo mesmo informante que estimasse em mil os estabelecimentos a fação em 1973. Desse ano, ou, no máximo, de 1975 em diante, o espaço do façonismo começou a restringir-se, admitindo-se que em 1982 o número de estabelecimentos esteja em torno de 500. Afirmou-se também que a saída do mercado foi mais freqüente entre os façonistas de menor porte29 29 . Segundo cálculos de um façonista entrevistado, de 1975 em diante cerca de uns 4 mil teares foram vendidos por façonistas como sucata. e que, se se fizesse uma estratificação quanto à rentabilidade e à acumulação dos que sobreviveram, então se arrolariam uns 50 ricos, uns 200 que conseguem suportar os custos e manter-se em situação modesta e finalmente os demais 250 que se encontrariam em situação "precária". Mais do que em relação ao número de façonistas de 1982, havia consenso de que eles dependiam na ocasião muito menos de industriais e comerciantes de São Paulo do que há 15 anos. As opiniões então ouvidas acerca da importância das tecelagens locais diziam que elas contratavam de 60 a 80% dos serviços a fação. Um técnico que operava como representante comercial na região estimou o parque têxtil de Americana em 22 mil teares, dos quais 12 mil automáticos e 10 mil mecânicos, atribuindo ao pólo façonista cerca de um terço desse maquinário, subdividido entre 2.500 teares automáticos e 5 mil mecânicos.

Estudo técnico feito em 1977 por uma empresa de consultoria de São Paulo30 30 . Capelin Associados do Brasil S.A. Diagnóstico setorial da indústria de confecções. Estudo elaborado para o BNDE, BNB e Sudene. São Paulo,1977. 2 v. mimeogr. Apud Abreu, Alice Rangel de Paiva. O trabalho industrial a domicílio na indústria de confecções. Tese de doutoramento apresentada ao Depto. de Ciências Sociais da FFLCH/USP, 1980. mimeog. notou ser muito comum a praxe de empresas de confecção subcontratarem serviços de tecelagem a outras firmas. Segundo a mesma fonte, as empresas do estado de São Paulo subcontratavam tecelagem com mais freqüência do que as do Rio de Janeiro e do Nordeste. E firmas que faziam cuecas e camisetas subcontratavam mais freqüentemente, chegando a um quarto do total as empresas que davam serviço a outras. Das que faziam camisas, vestidos e temos, a proporção das que empreitavam tecelagem variava entre 14 e 18%; essa proporção era menor ainda nos sub-ramos de jeans, calças e lingerie (abaixo de 11%).

A única hipótese disponível para essa variação na intensidade do recurso à subcontratação segundo o tipo de confecção estaria no fato de que os segmentos de jeans, e, em ponto menor, de lingerie (roupa íntima feminina) estão mais oligopolizados do que os outros. O fenômeno é nítido no caso dos jeans, que representa a mais ampla e mais bem-sucedida investida de padronização relativa de produtos conseguida à base de maciça publicidade de marca. Em outras palavras, foi justamente pela via do aumento da produção própria do tecido básico de algodão azul e da imposição publicitária das marcas dos grandes fabricantes desse tecido (Alpargatas ou Santista, no caso brasileiro), que se conseguiu contrabalançar a tendência declinante à rentabilidade do subsetor de tecelagem no conjunto do setor têxtil. Portanto, não faria sentido dar à fação a tecelagem do brim grosso azul.

4. SÍNTESE FINAL

A argumentação precedente não chega a ser exaustiva quanto às razões que sustentam a continuidade do trabalho a fação em tecelagem, nem quanto ao peso provável que tende a manifestar esse sistema de trabalho que gera um patronato subalterno e um grande número de empresas familiares.

Não é exaustiva na medida em que não foram feitas observações mais prolongadas acerca do fluxo de novos estabelecimentos nesse sistema ou em regimes alternativos de trabalho ou empreitada. Ademais, não se levantaram os números da contabilidade deles, tal como é compulsório fazer para entender bem as condições de rentabilidade de unidades produtivas, familiares ou não.

Mas, apesar disso, é levantada uma série de particularidades da produção de tecidos e roupas, de ordem técnica, econômica ou social, que fornecem ao menos uma explicação provisória das razões desse bolsão de "livre iniciativa" na parte inferior do sistema produtivo.

Um dos suportes do sistema de trabalho a fação é o mercado de teares usados, cujas ofertas aumentam e diversificam-se à medida que o parque têxtil nacional fica mais antigo e à medida que é mais veloz a difusão de novas tecnologias a nível internacional.

O encarecimento do preço do espaço industrial em regiões metropolizadas, como a cidade de São Paulo, força a que se mudem prioritariamente os estabelecimentos que produzem menos valor por unidade de espaço, o que é seguramente o caso da tecelagem de tecidos lisos.31 31 . Já as malharias que não produzem tecido liso têm mais condição de permanência em zonas de terreno caro. Junto com o encarecimento da força de trabalho derivado da extensão do salário mínimo e outros direitos trabalhistas, o deslocamento geográfico da indústria favorece a especialização regional no interior, como é o caso de Americana, que abriga o maior contingente de façonistas em tecelagem. Até aí parece não haver muita dúvida a respeito das vantagens que se oferecem ao industrial estabelecido de São Paulo para desativar sua tecelagem e dar serviços a façonistas do interior.

A tecelagem tem certos caprichos técnicos que se articulam às inconstancias sociais do mercado do produto final, regulado pela moda. Dessa articulação resulta uma delicada equação de vantagens e desvantagens, que nem sempre dá para expor clara e convincentemente quando não se tem preparo especializado em máquinas. Não obstante, vários produtores asseguraram que os teares automáticos, que são mais velozes, não significam sempre, e sob quaisquer condições, tecidos mais finamente acabados. Alguns modelos de teares mecânicos prestam-se melhor a artigos de mais alta qualidade, assim como outros quebram mais os fios do que os automáticos e por isso são mais usados para tecer fios resistentes, como acontece com os artificiais e sintéticos, e menos para algodão e outras fibras naturais.

A oscilação sazonal de cores, padronagens e texturas dos tecidos é imposta pela moda, que, por sua vez, oscila cada vez mais rapidamente. A intensificação das viagens de pequenos e médios confeccionistas à Europa, para o fim de ver e trazer as novidades da moda, chega ao ponto de eles importarem simultaneamente a moda da estação presente na Europa e da estação futura antecipada pelos desfiles e pelas revistas, perturbando o timing das estações, tal como se dava antes dessa fase de viagens, ou seja, até os anos 60. (Descrição mais minuciosa do ritmo e das táticas de importação da moda consta da obra citada de Alice Rangel de Paiva Abreu.) Esse movimento toma de surpresa os pequenos e médios industriais têxteis estabelecidos que percebem que sua permanência no setor depende cada vez mais da capacidade de satisfazer às "preferências" do consumidor e menos de produzir completamente um bem final. Vai daí que, descontrolados por uma oscilação de "gosto" que eles não dominam, sejam obrigados a dirigir encomendas súbitas aos façonistas. Esses últimos assumem uma função de capacidade produtiva de reserva a ser acionada nas fases de aquecimento de mercado provocada pela moda ou por outros fatores. Se a moda contempla com encomendas súbitas os estabelecimentos façonistas, eles também se beneficiam de uma serie de produtos de aceitação constante, como acontece com as gabardinas atemporais usadas por gente mais velha e por segmentos mais rústicos de população rural. São produtos que não interessam mais às grandes tecelagens.

O vínculo que une a tecelagem dona do fio e o façonista que lhe presta serviço é inegavelmente assimétrico. As firmas que dão o serviço preservam para si duas tarefas fundamentais para manter rebaixado o preço real da transformação feita pelos façonistas: elas fazem o cálculo de custo com o fito de definir o preço da empreitada e controlam a qualidade do produto final, cortando o preço a ser pago pela produção com defeito.

Do lado do façonista, a manutenção da empresa doméstica significa um projeto de rejeição da condição de empregado. A família é uma entidade importante na produção façonista, e em cerca da metade dos estabelecimentos que operavam nesse sistema, em fins dos anos 60, não se comprava força de trabalho.32 32 . Vale dizer: não se contratavam operários estranhos à família. Na parte superior da categoria dos façonistas existem firmas de grande porte, com mais de 100 empregados, que são verdadeiras divisões de produção - juridicamente autônomas - de outras empresas, "preferindo" evitar a compra da matéria-prima e a venda do produto final.

Talvez seja enganoso ver na insistência das centenas de façonistas que compõem a base da pirâmide de sua categoria, e que trabalham apenas com a família, somente o empenho de manter negócio próprio comandado pelo mito da acumulação capitalista. O orgulho, mostrado por alguns entrevistados, da coesão entre pais e filhos e a circunstância de o façonismo proporcionar a todos um mesmo tempo de trabalho e de lazer, as férias e fins de semana na praia nos intervalos entre encomendas e a permanência prolongada de filhos e filhas sob a vigilância paterna parecem exprimir vantagens extra-econômicas levadas em consideração. Tudo isso unido ajuda a compensar aquelas situações em que - calculado na ponta do lápis - seria mais remunerador cada qual empregar-se em fábricas de terceiros a continuar tecendo junto com pais e irmãos.33 33 . O leitor familiarizado com o setor têxtil já há de ter notado que o regime de trabalho intensivo das famílias de migrantes coreanos em São Paulo, na montagem de roupa, oferece um plano de comparação interessante com o sistema de trabalho a facção em tecelagem. O autor pretende a seguir sistematizar documentação jornalística e analisar as relações de exploração que unem coreanos "legalizados", estabelecidos com comércio, e coreanos clandestinos (vale dizer, sem ingresso legal nem permanência regularizada no Brasil) que montam roupas a domicílio por encomenda dos primeiros.

BIBLIOGRAFIA

Capelin Associados do Brasil S.A. Diagnóstico setorial da indústria de confecções. Estudo elaborado para o BNDE, BNB e Sudene. São Paulo, 1977, Apud Abreu, Alice R. P. op. cit.

  • Abreu, Alice R. de Paiva. O trabalho industrial a domicílio na indústria de confecções. Tese de doutoramento apresentada ao Depto. de Ciências Sociais da FFLCH/ USP, 1980, mimeogr.
  • Durand, J. Carlos. Vestuário: gosto e lucro (o campo da moda no Brasil). Comunicação apresentada ao grupo de Cultura Brasileira, no 7ş Encontro Nacional de Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais. Águas de São Pedro, São Paulo, out. 1983. mimeogr.
  • Pereira, Vera Maria C. O Coração da fábrica (estudo de caso entre operários têxteis). Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1979.
  • Rattner, H. et alii. Inovação tecnológica e acumulação de capital na pequena e média empresa. Relatório de pesquisa. São Paulo, Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da FGV, 1983, 4. v. mimeogr.
  • Rodrigues, João Antonio. Façonismo: um sistema de trabalho na indústria têxtil - o exemplo de Americana. Síntese de tese de mestrado. São Paulo, Instituto de Geografia 1978. (Coleção Geografia das Indústrias, n. 6.
  • Stein, Stanley, J. Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil - 1850/1950. Rio de Janeiro, Campus, 1979.
  • 1
    . O relatório final foi intitulado
    Inovação tecnológica e acumulação de capital na pequena e média empresa, e está em versão mimeografada em quatro volumes, devendo ser em breve editado comercialmente.
  • 2
    . Entre os tantos indicadores de concentração no setor têxtil brasileiro, considere-se que, apesar do forte ritmo de crescimento do mercado consumidor, o número de empresas têxteis no país tem-se mantido constante, em torno de 5 mil unidades, 80% das quais são empresas de pequeno porte. 514 empresas, entre 4.901 unidades, concentravam em 1981 nada menos de 84% da renda do setor. No caso do estado de São Paulo, o número de estabelecimento chegou a cair entre 1970 e 1980, tanto em termos absolutos (de 3.251 a 2.912) quanto em termos relativos no conjunto do Brasil: de 61 para 53% dos estabelecimentos.
  • 3
    . É justo que se agradeça a Lino Bragagnolo, José Magossi e Antonio Pilotto, entre outros façonistas de Americana, as ricas entrevistas concedidas ao autor.
  • 4
    . Stein, Stanley.
    Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil - 1850/1950. Rio de Janeiro, Campus, 1979.
  • 5
    . Rodrigues, J. A.
    Façonismo: um sistema de trabalho na indústria têxtil - o exemplo de Americana. Síntese de tese de mestrado. São Paulo, Instituto de Geografia, 1978. (Coleção Geografia das Indústrias, n. 6.)
  • 6
    . Desde meados dos anos 20 os grandes industriais têxteis vinham insistindo junto ao governo que era necessário proibir a importação de teares e de outros equipamentos, sob o argumento de que a capacidade instalada já excedia à necessidade de consumo do mercado interno. O governo protelou a decisão, percebendo a manobra cartelística envolvida na reivindicação, mas acabou cedendo aos industriais e, entre 1931 e 1937, houve de fato sérias restrições legais à expansão do parque têxtil nacional. O processo está descrito em Stein, Stanley, op. cit. esp. cap. 9 e 10.
  • 7
    . Trata-se da principal rua do comércio de tecidos, roupas e armarinho da capital, onde a maior parte dos estabelecimentos, desde os anos 20, está em mãos de sírios, libaneses e nacionalidades afins.
  • 8
    . Rodrigues, J. A. op. cit. p. 17-8.
  • 9
    . Id. ibid.p. 18.
  • 10
    . Fios artificiais são de origem química não-petrolífera, e os sintéticos são os derivados de petróleo. A importância da introdução de fios de origem química ou petroquímica na indústria têxtil está no fato de que, afora os vários tecidos feitos exclusivamente com eles, inúmeros outros foram concebidos como mistura ou mixagem, em proporções múltiplas, de fios artificiais com fios naturais. Considere-se ainda que a elasticidade dos fios químicos ou sintéticos levou a tecidos que se ajustam facilmente ao corpo, permitindo por conseguinte que certas peças de roupa que antes dependiam muito da perícia do artesão costureiro pudessem ser fabricadas em linha de produção. Em suma, eles tornaram possível uma enorme variedade de produtos têxteis, o que teve por conseqüência alargar temporariamente o espaço do pequeno capital no conjunto do setor, tanto nos subsetores de fiação, tecelagem, beneficiamento de fios e de tecidos, quanto sobretudo no de confecções. No relatório final da citada pesquisa feita na FGV/SP, são examinados esses efeitos dentro da lógica do
    oligopólio competitivo, em que se estrutura o setor.
  • 11
    . O encarecimento do espaço físico afeta mais diretamente as tecelagens de tecido liso, cujos teares são de grandes dimensões, e menos, comparativamente, a tecelagem em máquinas circulares das malharias, que são de porte menor e produzem artigos mais caros. Essa a razão por que as tecelagens de tecidos lisos buscaram mais intensamente sair da capital.
  • 12
    . Rodrigues, J. A. op. cit. p. 23-24.
  • 13
    . Essa é a destinação última dos teares mais deteriorados. Eles seguem de Americana para Piracicaba, onde fabricantes de usinas de álcool os reaproveitam como matéria-prima.
  • 14
    . Rodrigues, J.A. op. cit. p. 29 e 33.
  • 15
    . É oportuno lembrar aqui uma particularidade tecnológica do têxtil que muito favorece a continuidade dos sucessores no setor: é a divisibilidade do equipamento. O proprietário de tecelagem que precise partilhar as máquinas entre os filhos pode fazê-lo sem dificuldade, pois não se trata de um processo contínuo de produção. Se o mercado de teares usados enfraquece as "barreiras à entrada" do ponto de vista de capital mínimo necessário a ingressar no setor, a divisibilidade do equipamento como que coloca "barreiras à saída".
  • 16
    . Usa-se saldo positivo para afastar a idéia de um excedente regularmente acumulado, tal como implícito na acumulação capitalista propriamente dita. Quer dizer: a noção de
    eventualidade de um excedente retido pelo pequeno produtor, por oposição à
    regularidade implicada no conceito de lucro.
  • 17
    . Conviria ver se os teares comprados com os frutos do trabalho comum de todos os membros da família (homens e mulheres) são, na hora da herança, partilhados entre todos ou apenas entre os homens. Se for apenas entre os homens, estarão vigindo relações de exploração dentro da unidade doméstica de produção, encobertas por laços de sangue e parentesco.
  • 18
    . Não confundir com
    lingerie no sentido de roupa íntima feminina, mas na moda que difundiu o seu tecido em blusas e vestidos.
  • 19
    . Essa e uma das razões pelas quais o industrial de tecelagem "por conta" jamais desmonta completamente sua própria sala de tecer, quando a desativa na intenção de passar a comerciar tecidos e/ou confeccioná-los. O cuidado em não encerrar completamente a tecelagem foi observado em várias firmas de pequeno e médio portes da capital de São Paulo entrevistadas na pesquisa de campo, em fins de 1981 e início de 1982. Ficou claro que a manutenção de uns poucos teares, na empresa capitalista que desativa a seção de tecelagem, tem a ver com a
    necessidade de conhecer melhor o quanto rende cada máquina em função da qualidade e tipo de fio, com o que então os fornecedores da matéria-prima têm condições de evitar que o trabalho a fação gere excedentes sistemáticos em beneficio do façonista. Mas seria interessante completar o argumento verificando se as empresas que tendencialmente deixam de tecer para empreitar a terceiros e se concentram no comércio auferem alguma vantagem fiscal e/ou tributária, de continuarem se apresentando como (parcialmente) industriais.
  • 20
    . Acrescente-se também o fato de elas não poderem responder de imediato à flutuação muito súbita da procura determinada pela moda.
  • 21
    . Nessa época, segundo o mesmo informante, um tecelão assalariado de grande empresa ganhava Cr$ 30 mil, e um menor auferia seus Cr$ 18 mil. O salário mínimo vigente para o estado de São Paulo na ocasião era de Cr$ 11.928,00.
  • 22
    . Os façonistas antes entregavam o tecido ao cliente em Americana. Com o tempo, difundiu-se a prática de trazerem o produto ao estabelecimento do fornecedor, em São Paulo, sem remuneração adicional pelo transporte. Eles resignaram-se à imposição argumentando que essas vindas a São Paulo eram propícias a contatar novos clientes e a manter os antigos ao abrigo da bisbilhotice e da concorrência de outros façonistas.
  • 23
    . A história associativa dos façonistas de Americana registra apenas uma iniciativa, em meados dos anos 70, de reunião institucional para provisão de assistência jurídica e técnica, que incluía o objetivo de fixação de preços mínimos e de captação centralizada de encomendas para repasse aos associados. O temor de que os diretores traíssem os associados carreando clientes para seus estabelecimentos fez arrefecer a idéia, e a associação não chegou a ser implantada.
  • 24
    . O depoimento prestado ao autor pelo presidente do sindicato dos operários têxteis da capital de São Paulo, em abril de 1981, foi incisivo em reclamar da intensificação do trabalho no setor de tecelagem. Ele contou que a partir de 1968 a produção automatizou-se muito e afetou a organização do trabalho, a ponto de um tecelão, que antes cuidava de quatro teares (em média) ser impelido a controlar até 30 teares (proporção vigente nas empresas maiores). Foi necessário para isso que se diminuísse a distancia entre os teares, com efeitos negativos de aumento do ruído e do calor. Ademais, a difusão da cronometragem de tarefas vem aguçando a intensificação do trabalho. Numa descrição sumária, após essas mudanças o tecelão seria uma espécie de apertador de botões, que passa suas oito horas de trabalho andando em torno de um quadrilátero de 15 por 15 m (60 m) em cujas laterais alinham-se os trinta teares. Isso o obrigaria a andar diariamente uma distância equivalente à que separa São Paulo de Santos, ou seja, mais ou menos 100 km. A conseqüência mais flagrante desse processo de intensificação do trabalho na capital - segundo o mesmo informante - estaria na redução de 120 para 65 mil operários têxteis e no amesquinhamento da habilidade profissional do tecelão. Certas tarefas mais delicadas (como é o caso da realização do desenho na própria trama do tecido) foram transferidas ao maquinário (o desenho é transportado ao tecido pelas máquinas de estamparia). Uma análise aprofundada de como os operários têxteis vêm experimentando o processo intensificado de trabalho em época recente pode ser encontrada em Pereira, Vera Maria C.
    O Coração da fábrica (estudo de caso entre operários têxteis). Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1979.
  • 25
    . Daí resulta o recurso a uma remuneração diferencial por produtividade ao operário da empresa façonista. Consiste ela em uma remuneração por metro que é tanto maior quanto maior a produção do operário. O argumento acerca das vantagens que as empresas "por conta" têm, deixando uma parcela da procura sazonal a um grupo grande e fragmentado de microprodutores, deve considerar também que a dispensa de grandes contingentes nas fases de retração provoca forte reação sindical. Tal reação não acontece quando as demissões atingem poucos empregados por estabelecimento, ainda que as demissões se estendam a grande número de estabelecimentos.
  • 26
    . Em uma escala de cinco tipos, que vai dos estabelecimentos menores e mais frágeis aos maiores e mais sólidos, Rodrigues assim define o tipo superior:
    "Indústrias façonistas com teares automáticos: muito embora nenhuma ainda seja totalmente equipada com teares automáticos, algumas já possuem parte de seus teares automatizados, estando em condições de produzir tecidos bem mais perfeitos e, por essa razão, não tendo dificuldades para encontrar mercado de trabalho. São as indústrias façonistas em expansão, que se encontram mais próximas da autonomia, só não o fazendo porque não lhes interessa, por ora, a autonomia total, já que condições não lhes faltam. Preferem empregar o capital na constante renovação de acessórios e ampliação de maquinaria" (op. cit. p. 50). Observe-se que Rodrigues toma por condição suficiente para a autonomia a boa estruturação produtiva da empresa façonista, sem tomar em conta os trunfos de domínio
    estético e
    comercial sem os quais não é possível enfrentar com êxito o mercado. É possível supor que esses casos de façonistas de grande porte que jamais chegam a "por conta" concentrem pessoas e famílias socialmente retraídas e caipiradas. Reforça essa hipótese a verificação de que, nos casos opostos, ou seja, de gente que deixou a produção pelo comércio ou a tecelagem pela confecção, o
    diferencial de trunfos tenha sido de caráter mais simbólico que econômico. Nesse sentido, a conjuntura favoreceu mais quem tinha gosto mais "apurado", facilidade de contato social, trânsito nos setores mundanos das classes altas e médio-altas das grandes cidades, e habilidades correlatas. Um jovem administrador, afeito à linguagem do
    marketing moderno, que estava estabelecido, havia alguns anos, na cidade de Americana, com um escritório de representação de máquinas e insumos têxteis e de prestação de assessoria a produtores locais, contou ao autor o seguinte caso, que confirma a hipótese levantada: tendo estimulado a formação de um grupo de importantes industriais locais para visitar uma feira de produtos têxteis na Europa, teve ele muita dificuldade em ciceronear a excursão de negócios, tantas foram as gafes de gosto, de etiqueta social e de dificuldade de idioma manifestadas pelos excursionistas, que pela primeira vez viajavam à Europa. O autor trata da relação entre gosto e posição de mercado em confecções no artigo "Vestuário: gosto e lucro (o campo da moda no Brasil)", a ser publicado proximamente pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, em seleta de contribuições a seu 7º Encontro Nacional, havido em Águas de São Pedro, SP, outubro de 1983.
  • 27
    . Rodrigues J. A. op. cit. p. 52.
  • 28
    . Id. ibid. p. 63 e tabela das p. 4 e 6. Um percentual de 5% na produção estadual é significativo para funcionar como bolsão de reserva de capacidade produtiva a ser intensificada nos períodos de aquecimento do mercado.
  • 29
    . Segundo cálculos de um façonista entrevistado, de 1975 em diante cerca de uns 4 mil teares foram vendidos por façonistas como sucata.
  • 30
    . Capelin Associados do Brasil S.A.
    Diagnóstico setorial da indústria de confecções. Estudo elaborado para o BNDE, BNB e Sudene. São Paulo,1977. 2 v. mimeogr. Apud Abreu, Alice Rangel de Paiva.
    O trabalho industrial a domicílio na indústria de confecções. Tese de doutoramento apresentada ao Depto. de Ciências Sociais da FFLCH/USP, 1980. mimeog.
  • 31
    . Já as malharias que não produzem tecido liso têm mais condição de permanência em zonas de terreno caro.
  • 32
    . Vale dizer: não se contratavam operários estranhos à família.
  • 33
    . O leitor familiarizado com o setor têxtil já há de ter notado que o regime de trabalho intensivo das famílias de migrantes coreanos em São Paulo, na montagem de roupa, oferece um plano de comparação interessante com o sistema de trabalho a facção em tecelagem. O autor pretende a seguir sistematizar documentação jornalística e analisar as relações de exploração que unem coreanos "legalizados", estabelecidos com comércio, e coreanos clandestinos (vale dizer, sem ingresso legal nem permanência regularizada no Brasil) que montam roupas a domicílio por encomenda dos primeiros.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 1985
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