Acessibilidade / Reportar erro

BASTOS, Uma nova contribuição ao estudo das Ligas Camponesas

RESENHAS BIBLIOGRÁFICAS

Rubem Murilo Leão Rêgo

Sociólogo, mestre em ciências sociais pela Universidade de São Paulo, professor no DCS-Unicamp e autor de Terra de violência: estudo sobre a luta pela terra no sudoeste do Paraná

Bastos, Élide Rugai. Uma nova contribuição ao estudo das Ligas Camponesas. Petrópolis, Vozes, 1984. 142 p.

Recuperar e reinterpretar a história de movimentos sociais agrários no Brasil é contribuir tanto para avivar a memória sobre as lutas sociais travadas pelo povo brasileiro contra a exploração, a miséria e a opressão, como para a revisão crítica dos rumos e estratégias que adotaram. É com esse sentido que este novo texto sobre as Ligas Camponesas procura dar a sua contribuição para o entendimento do caráter das lutas sociais que ocorreram no Nordeste e no Brasil no período de 1954-64.

Ao longo de seus cinco capítulos, o livro de Élide Rugai Bastos faz a reconstituição de aspectos fundamentais do modo de vida camponês no engenho Galiléia (Pernambuco), através da representação que o trabalhador "foreiro" tem de seu trabalho e de sua luta pela terra; analisa o processo de expansão regional das Ligas e o caráter defensivo de sua luta; interpreta as alterações surgidas no processo de sua expansão nacional (período 1961-63) e a configuração da luta pela reforma agrária radical; elucida algumas das razões da crise interna do movimento que resulta na apresentação de um novo projeto político; finalmente, elabora algumas reflexões sobre as relações entre o movimento social e o Estado.

Sempre procurando recuperar as raízes do movimento social, o texto enfatiza as relações, entre as condições de existência social e as modalidades de consciência que se expressam. Através da percepção de que o resultado de seu trabalho pode não ser suficiente para o pagamento da renda da terra, o camponês "foreiro" vislumbra a ameaça de sua expulsão do engenho, compreende a sua "condição de privação". Como diz o camponês: "E por aí tudo era fraco e vivia esse viver pobre. (...) Então tinha que fazer qualquer coisa, que não tinha saída: ou morrer ou viver de retirante."

De uma atuação defensiva, o sentido de garantir a posse da terra, o camponês passa a questionar o seu uso provisório. Pela percepção de uma "consciência da privação e da desigualdade" que tem o camponês a respeito de suas condições de vida e de trabalho é que Élide Rugai Bastos demonstra como se constitui a identidade do movimento social. Esta identidade se configura, segundo a autora, na luta do camponês pela posse da terra.

Entretanto, ao analisar o processo de expansão regional do movimento (1955-61), no qual o oponente da luta camponesa deveria configurar-se de maneira cada vez mais clara, o texto aponta (polemicamente) para uma perda do sentido nuclear e básico de sua reivindicação, tanto gestada pela ampliação de base social do movimento (incorporação do parceiro, do arrendatário, do pequeno proprietário, do "morador" etc.) como pela identificação, pelas lideranças urbanas e político-partidárias da mobilização, do contexto social que se antepunha à luta: a persistência de "formas atrasadas, retrógradas e extremamente penosas de exploração semi-feudal" configuradas no latifúndio. A autora identifica aí uma má definição do adversário: "(...) não se trata do latifúndio, mas da propriedade capitalista. O direcionamento dado ao movimento afasta a luta do núcleo que daria unidade ao projeto camponês, a discussão clara de suas reais condições de existência social, condições essas que estão balizadas pelo processo de expansão do capitalismo no campo."

O texto ressalta a importância de se perceberem as causas reais da transformação das condições de vida dos camponeses. Analisando as diferentes relações de produção por eles vividas, aponta para a existência de um significativo "avanço do processo de subordinação desses trabalhadores ao capital" (configurado na reconcentração da propriedade de terras pelas centrais de usinas, na procura de aumento da produtividade do setor e na diminuição dos trabalhadores incorporados à produção) que conduz a um único destino: a proletarização. À medida que as reivindicações do movimento originariamente reafirmariam a manutenção da autonomia do camponês através da persistência de seu controle sobre o seu processo de trabalho, a autora esclarece que "o que ameça essa autonomia não é o 'velho', o latifúndio, mas o 'novo', o avanço do capital. (...) é a crescente subordinação do trabalho e da terra ao capital que interfere na possibilidade de controle pelo camponês, de seu processo de trabalho".

Ao analisar o processo de expansão nacional do movimento (1961-63) que se encarna na criação do Conselho Nacional das Ligas, o texto mostra dois aspectos importantes para a definição de seus rumos: a sua paulatina transformação à medida que nele penetram a atuação de partidos políticos, correntes religiosas e órgãos do poder estatal, e a atribuição de uma generalidade crescente à reivindicação básica, transferindo a bandeira de luta para a defesa da reforma agrária. Através das disputas políticas pelo controle do movimento, dos seus avanços e recuos, emerge o novo projeto das Ligas, "projeto em que o Estado desempenha importante papel, desapropriando e distribuindo terras, garantindo a livre associação, o crédito, a aplicação da lei, a liberdade, punindo aqueles que infringem o bem comum, outorgando benefícios, presidindo a cooperação entre os trabalhadores, defendendo direitos, planejando a produção e o acesso aos bens sociais".

Mas este projeto sofre de um mal radical, pelo descolamento de sua vanguarda política ele é formulado num contexto em que já ocorre uma defasagem entre o movimento social e as condições sociais de trabalho e de vida do arrendatário, parceiro, posseiro, morador e assalariado. "As metamorfoses do movimento social, ao longo do percurso local, regional e nacional, deixaram em segundo plano, atrás, ao lado, na beira da estrada, longe, os trabalhadores rurais, os galileus que colocaram em causa a nova fase de expansão do capital no campo."

Por estas razões, o livro de Elide Ruga; Bastos constitui uma contribuição decisiva para um enriquecedor debate sobre o papel das Ligas Camponesas no conjunto das lutas dos trabalhadores brasileiros.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 1985
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rae@fgv.br