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Democracia e participação

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Antonio Mendes Júnior

Professor no Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração da EAESP/FGV

Lucas, John Randolpoh. Democracia e participação: Trad. Cairo Paranhos Rocha. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1985. 228 p.

Antes de mais nada, duas palavras sobre a coleção da qual faz parte este volume, denominada Pensamento Político. Raras vezes encontramos no Brasil, no campo da ciência política, um conjunto de bras que reúna, a um só tempo, a alta qualidade dos textos e autores, o ineditismo, a excelente impressão, as qualificadas traduções e o preço acessível, como nesta. Já tendo publicado em torno de 70 títulos, a Pensamento Político coloca ao alcance de estudantes e pesquisadores nomes como Norberto Bobbio, Hannah Arendt, Raymond Aron, Karl Deutsch, além de clássicos (Montesquieu, Thomas Morus, entre outros). Trata-se, por conseguinte, de importante contribuição nesta área em que pululam os trabalhos desimportantes e - principalmente - as péssimas traduções.

Não é, certamente, o caso deste Democracia e participação de Randolph Lucas. Embora escrito em 1973 (primeira edição inglesa pela Penguin Books, em 1975), seu texto perdeu muito pouco em atualidade. Ao contrário, no caso do Brasil de 1986, nunca duas palavras estiveram tão intimamente ligadas, principalmente após a edição do "pacote" econômico de fevereiro e do aparecimento dos "fiscais do Presidente Sarney". Jamais, neste país, a participação popular atingiu, na defesa do interesse comum, tamanho grau. Em nenhum momento foi tão importante a consciência da ligação entre o conceito de democracia e o conceito de participação.

Lucas inicia seu trabalho, ainda na introdução, com uma frase muito significativa: "Democracia é um substantivo, mas deveria ser um adjetivo." De certa maneira, e em que pese a alguns ângulos de abordagem diferenciados, o livro busca demonstrar tal afirmação.

Enquanto substantivo, acredita o autor, "democracia" deveria designar um determinado sistema de governo, com suas especificidades e características. E o que se observa, na realidade, é que países com as mais variadas particularidades, com sistemas políticos os mais diversos, reivindicam o título de "democracias". Em nome dela, os mais hediondos crimes contra a humanidade foram e são cometidos (vide Stalin, Pinochet, Medici... - a lista é interminável).

Randolph Lucas reconhece que "todo sistema de governo possui alguns aspectos demcráticos e não-democráticos". O que não significa, de maneira alguma, que ela não seja um objetivo desejável e que não devamos aspirar a uma aproximação cada vez maior de um processo decisório onde quase todos participam e onde a decisão é tomada através de discussões, críticas e acordos, ou seja, um processo de mocrático de deliberações.

A chave fundamental da questão está na forma de participação. "Não há um único e definitivo argumento a favor da democracia, como não há uma única forma de governo que possa ser considerada uma democracia. Há, isto sim, diferentes argumentos, com diferentes graus depersuasão, sobre diversos aspectos, nem todos compatíveis, passíveis de diferentes objeções e que originam diferentes expectativas e desaponta mentos quanto à democracia."

O livro está dividido em 12 capítulos, nem todos homogêneos em relação à relevância para o tema geral. Os mais significativos, em nossa opinião, são: Ação, discussão e acordo, onde o autor procura discutir a essência do ente democrático em função dos processos deliberativos relativos às ações da sociedade; autoridade e estado, em que se abordam os conceitos de poder e autoridade e os mecanismos coercitivos do Estado; Profissionalismo platônico, que envereda pela discussão do elemento competência para a tomada de decisões, e da delegação de poderes a uma minoria para isto; Participação, um dos mais importantes, discute o que é e como se dá a atividade participativa.

Mas é provavelmente no capítulo Votos e vetos que se atinge a essência da discussão teórica que o volume procura analisar: o conflito entre o pensamento de John Locke e de Jean-Jacques Rousseau, tomados simbolicamente como represntantes de duas tendências do pensamento democrático.

Em poucas palavras, se chegamos a um impasse numa determinada decisão, a ser tomada entre diversas pessoas, duas posturas são possíveis: assumimos o impasse, concluindo pela impossibilidade de escolha, ou apelamos para alguma regra em que a decisão seja tomada pela maioria, ainda que nem todos concordem com a opção desta. De acordo com Lucas, a primeira hipótese, que pressupõe uma unanimidade em torno da opção, é representativa do pensamento político de Locke, enquanto a segunda encarnaria um paradigma do ideário de Rousseau. A aceitação da regra da unanimidade, mostra ele, pode levar a uma imobilidade total, o que foi contornado por Locke através de duas postulações: o contrato, através do qual todos deleguem as dècisões a governantes - desde que estes respeitem os direitos gerais - ea descentralização do poder decisório.

A segunda hipótese, ainda que não condene ao imobilismo, corre o risco de perpetuar uma ditadura de maioria, sem levar em consideração os direitos individuais.

Sem assumir nenhuma das duas posturas integralmente, Lucas propõe quase uma fusão das duas colocações. "Mesmo de maneira extrema, eles têm algo para nos ensinar, uma vez que cada um está fundamentado em uma intuição sobre osseres humanos, e ambos estão corretos. Locke, assim como a tradição da democracia liberal, é uma tentativa de chegar à compreensão de que todos os homens são diferentes - o que é verdade. Rousseau, como a tradição da democracia igualitária, é uma tentativa de chegar à com preensão de que todos os homens são iguais, o que também é verdadeiro."

Uma última observação a respeito do livro e seu autor. Lucas é essencialmente inglês e escreve para ingleses. Assim - e este talvez seja o principal problema de sua obra - seus exemplos (em maioria) só têm sentido para ingleses, ou para quem tenha uma boa vivência britânica. "Suponhamos que cinco de nós queiram ir ao Bear, mas eu insisto em ir a Eastgate". Ou então: "As pessoas dizem se votam no Partido Conservador ou Trabalhista, e não para Woodhouse ou Luard." Ou ainda: "As eleições gerais decidem quem vai reinar, em vez da decisão pelas armas em Towton ou Tewkeswbwry." Apesar disso, o livro tem uma universalidade que ultrapassa este tipo de problema. Vale a pena ser lido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 1986
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