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Uma política salarial justa

NOTAS E COMENTÁRIOS

Uma política salarial justa

Antonio Carlos M. Mattos

Professor do Departamento de Informática e Métodos Quantitativos da EAESP/FGV e autor do livro A Inflação Brasileira, SP, Vozes, 1987

"A inflação é como um Robin Hood às avessas: ela tira do fraco e dá ao forte"

I. INTRODUÇÃO

Suponhamos que um assalariado seja contratado em março com um salário de Cz$ 10.000,00 custando um quilo de feijão Cz$ 50,00 no início desse mês. Vamos supor que todo seu salário seja gasto para comprar feijão. (Isto não altera em nada o que se segue, além de dispensar o uso da Cesta Básica, índice de Preços e outros termos complicados, tornando o texto mais didático.) E vamos admitir, ainda, que todo seu salário seja uniformemente gasto durante o mês de março, como ocorre com as classes de baixa renda, que recebem vales e antecipações.

Isto posto, e num ambiente de inflação zero, o assalariado consegue comprar 10.000/50 = =200 kg de feijão por mês, todo mês. Esta é a situação ideal, onde não há perdas inflacionárias. Em qualquer outra situação de inflação seu poder de compra será sempre inferior aos 200 kg por mês, e essa redução é o que se chama de "perdas".

Por exemplo, se a inflação em março for de 10%, o preço do feijão em 1º de abril será de Cz$ 55,00/kg e, com seu salário, o empregado comprará apenas 10.000/52,50 = 190,5 kg, onde 52,50 é o preço médio do kg de feijão em março (este cálculo é demonstrável matematicamente).

Assim sua perda seria de

200 -190,5 = 9,5 kg/mês

ou 4,8% de perdas inflacionárias (9,5/200). (Mediremos as perdas também em kg/mês, porque é mais fácil de entender o seu significado do que falar em 4,8%.)

Partindo daí, podemos fazer com que as perdas sejam anuladas, mesmo com a inflação de 10%. Basta que, no salário, elas sejam compensadas, por um pagamento adicional de 5% (metade da inflação de março). Seu salário ficaria, portanto:

Para ver que nesse caso as perdas se tornam nulas, basta calcular quantos kg podem ser comprados: 10.500/52,50 = 200 kg, ou seja, a mesma quantidade comprada com inflação zero (não consideramos os descontos e impostos, que já é outro assunto).

O problema prático é que a inflação de março só será conhecida em abril, após terem sido pagos os Cz$ 10.500,00. Assim, o que se deve fazer é, ao invés dos 5%, usar como percentual a metade da inflação prevista para março. A forma mais simples é utilizar a inflação média dos três meses anteriores (dezembro a fevereiro, no caso) como sendo a inflação prevista de março, em um procedimento parecido com o do cálculo da URP, unidade de referência de preços.

Essa aproximação poderá gerar ganhos ou perdas para o trabalhador, mas combinada a uma política de indexação mensal, será a que menos perdas provocará e, portanto, será a política mais justa sob essa perspectiva.

Nossa afirmação tem por base a simulação por computador de seis políticas salariais em sete ambientes inflacionários diferentes, com o cálculo das perdas correspondentes, da qual trataremos neste texto.

II. AS SIMULAÇÕES

Para tornar mais compreensível a simulação, é conveniente examinar antes um caso real, cujos dados são mostrados no Quadro 1. Vemos, nesse caso, que cobre o período compreendido entre março de 1986 e fevereiro de 1987, que a inflação provocou uma redução no poder de compra de 9,4 kg de feijão por mês (ou 4,7% do total que poderia ser comprado sem inflação: 2.408 kg). Observemos que aqui o preço do feijão cresce com a inflação e que os kg comprados são obtidos dividindo-se o salário pelo seu preço médio no mês (exemplos em outubro: 9.260/(52,19 + 52,93)/2 = 176 kg; 9.260/50 = 185 kg).


Nas simulações que realizamos foram incluídas as seguintes políticas:

1. Indexação mensal: o salário é reajustado mensalmente com base na inflação do mês anterior (ainda não usado no Brasil).

2. Gatilho de 20%: reajuste de 20% no salário quando a inflação acumulada supera esse valor; o resíduo é transferido para o mês seguinte (usado no Plano Cruzado).

3. Plano Bresser: reajuste fixo por três meses com base na inflação média dos três meses anteriores (em vigor em dez./87).

4. Reajuste semestral: o salário é reajustado a cada seis meses, com base na inflação acumulada dos seis meses anteriores; o congelamento é semestral (usado antes do Plano Cruzado).

5. Reajuste anual: o salário é congelado por doze meses, sendo reajustado pela inflação acumulada no período (usado até 1979).

6. Indexação compensada: política (1) acima com compensação mensal das perdas (metade da inflação prevista), como já foi mencionado (ainda não usada no Brasil).

Partimos sempre das seguintes bases:

- Salário básico em 30/março: Cz$ 10.000,00.

- Preço de 1 kg de feijão em 1º março: Cz$ 50,00.

- Perdas médias mensais (%) = kg comprados no ano com a política salarial indicada dividido por 2.600 kg (200 kg x 13 salários).

- O 13º salário é pago em novembro.

- A simulação vai de 1º de março a 28 de fevereiro do ano seguinte (12 meses).

- Observa-se também os números que aparecerão entre parênteses nas duas últimas simulações a serem apresentadas significam ganhos reais (com preços em baixa, o poder de compra do salário aumenta).

Seguem-se os resultados obtidos nas simulações realizadas.

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III. ANÁLISE DOS RESULTADOS

A partir das simulações acima, podemos determinar as perdas médias nos sete cenários apresentados.

De posse desses resultados, podemos analisar os impactos das seis políticas salariais, para quaisquer situações inflacionárias.

Uma primeira conclusão que se depreende é que as seis políticas podem ser divididas em dois grandes tipos: as de altas perdas (reajustes anual e semestral e gatilho) e as de baixas perdas (Bresser, indexação e indexação compensada).

Assim, as três primeiras só devem ser utilizadas em países desenvolvidos, onde a inflação é baixa, pois do contrário acarretarão pesadas perdas aos assalariados, isto é, o salário real irá sendo reduzido, chegando mesmo a 28,5% de seu valor inicial após 12 meses (hiperinflação com congelamento anual).

Quanto às três políticas de baixas perdas médias, o Plano Bresser e a Política de Indexação se equivalem, se a inflação for constante. Entretanto, havendo variação mensal, o Plano Bresser apresenta sérios problemas de estabilidade, na medida em que:

a) se a taxa subir, as perdas podem chegar a 17%, correspondendo então praticamente aos reajustes semestrais (cenário anárquico);

b) se a taxa cair, podem ocorrer ganhos reais de até 10,9%, um fato inédito, levando os empresários, naturalmente, a impedir que a taxa baixe, para não transferir parte de sua renda aos assalariados.

Assim, como o Plano Bresser apresenta resultados instáveis, além de impedir (na prática) a inflação de baixar, também deve ser descartado como uma política justa.

Restam as Políticas de Indexação e Compensada, que apresentam perdas estavelmente baixas (isto é, em qualquer cenário), não tendo ultrapassado a 13% ao ano.

Mas na Compensada, além de estáveis, suas perdas são ainda menores, não tendo ultrapassado a 1,5% ao ano para mais, ou 0,8% para menos, em nenhum caso analisado; junte-se a isso o fato de tal política ter apresentado uma perda média quase ideal (0,2% a/a). Por estas razões é ela que emerge como a política mais justa dentre as seis.

IV. COMO IMPLEMENTAR A NOVA POLÍTICA

No quadro 2 apresentamos um detalhamento de uma das simulações efetuadas, no qual se esclarece como os salários mensais podem ser determinados (cenário anárquico, onde esta Política apresenta as maiores perdas,de 1,5%, já mencionado).


Trata-se do caso de um assalariado que recebe um salário de Cz$ 10.000,00 em março.(1 1 . O que se segue vale para qualquer salário, e não apenas para o mencionado. ) Vamos primeiramente determinar qual deverá ser seu salário em abril, que é o mês em que estamos agora (por hipótese).

Como determinar o salário de abril

Na coluna 2 vemos as taxas de inflação (oficial: IPC - IBGE) verificadas até agora: 1% em março, - 0,64% em fevereiro, etc.

O salário de abril será obtido adicionando-se ao de março duas parcelas: a "correção monetária" de março (1%) mais a compensação de abril.

Acrescentando a primeira parcela, temos

10.000 + 1% = Cz$ 10.100,00,

que é o salário corrigido para abril (coluna 3).

A inflação média dos três últimos meses (como feito com a URP) foi de: (-2,27-0,64+l,00)/3 = = -0,64%. Assim, a metade deste percentual (-0,64/2 = -0,32%, coluna 4) deverá ser acrescida ao salário já corrigido, a título de compensação pela inflação durante o mês de abril:

10.100+(-0,32%) = 10.100 - 32 (col. 5) = Cz$ 10.068,

que será o salário a ser recebido em abril (coluna 6).

O mesmo procedimento indicado acima é válido para os demais meses, quaisquer que sejam eles.

Como analisar as perdas sofridas com esta nova política

0 restante do quadro 2 procura mostrar que esta nova política é justa, já que as perdas são mínimas.

Para tanto, completamos a coluna 2, incluindo as demais taxas de inflação que, por hipótese, tenham ocorrido efetivamente. Para simplificar, suponhamos que as taxas sofram aumentos constantes de 1,6364% ao mês. Assim, teríamos:

1 + 1,6364 = 2,6364% em abril (coluna 2)

2,6364 + 1,6364 = 4,2728% em maio (coluna 2), etc.

A partir dessas taxas podemos preencher as colunas 3,4, 5 e 6 com os valores indicados.

A coluna 7 mostra o comportamento do preço de 1 kg de feijão, que custava Cz$ 50,00 no dia 1º de março(2 2 . Essa análise é válida para qualquer preço considerado. ). Em 1º de abril seu preço terá subido para:

50 + 1% = Cz$ 50,50 (coluna 7)

e, em 1º de maio, para

50,50 + 2,64% = Cz$ 51,83 (coluna 7),

o mesmo valendo para as demais linhas dessa coluna.

A coluna 8 mostra quantos kg de feijão podem ser comprados com o salário recebido no início do mês, levando em conta que o preço do feijão vai aumentando durante o mês. São obtidos dividindo-se o salário recebido pelo preço médio do mês:

10.000 / (50,00 + 50,50)/2 = 199 kg (março)

10.068 / (50,50 + 51,83)/2 = 196,78 kg (abril)

A coluna 9 mostra a situação ideal, onde as perdas salariais são nulas, pois não há inflação. Nesse caso, o salário se mantém em Cz$ 10.000,00, e o preço fica constante e igual a Cz$ 50,00 kg. Conseqüentemente, todo mês é possível comprar sempre 200 kg de feijão.

Finalmente, o total da coluna 8 fornece quantos kg puderam ser comprados durante um ano (2.562 kg), enquanto o total da coluna 9 (2.600 kg) indica quantos kg poderiam ser comprados com inflação zero, isto é, sem perdas salariais.

A diferença dos valores acima fornece as perdas infligidas ao assalariado por essa política (38 kg/ano), ou 1,5% ao ano, em média (indicado no quadro 2), como, aliás, já mencionamos anteriormente.

V. CONCLUSÕES FINAIS

Perdas de 1,5% ao ano no pior cenário inflacionário possível (anárquico), jamais se viram na História brasileira. Na prática, esta percentagem significa que não há mais qualquer interesse em se manter a inflação no país, já que, a essa taxa de 1,5%, é impossível manter o nefasto processo de concentração de renda dos politicamente mais fracos para os mais fortes; o que, afinal, é o que motiva o mecanismo inflacionário.

Por essa razão, não será fácil implementar essa nova política, pois tira dos agentes econômicos todo o encanto da inflação, embora os e¬ conomistas a seu serviço naturalmente venham a levantar argumentos mil para mostrar que proteger salários é querer cancelar as sagradas leis do livre mercado, uma frase em que, convenhamos, nem eles mesmos acreditam mais...

  • 1
    . O que se segue vale para qualquer salário, e não apenas para o mencionado.
  • 2
    . Essa análise é válida para qualquer preço considerado.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1988
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