Acessibilidade / Reportar erro

A ÉTICA E O MERCADO: O QUE ESTÁ EM JOGO?

Sandel, Michael J.. O QUE O DINHEIRO NÃO COMPRA: OS LIMITES MORAIS DO MERCADO. 2012. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro

O QUE O DINHEIRO NÃO COMPRA: OS LIMITES MORAIS DO MERCADO

De Michael J. Sandel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 237 p.


Nos dias atuais, poucas coisas não são compráveis. As práticas comerciais pouco ortodoxas e muito polêmicas empregadas pelas instituições públicas e privadas em diversas situações ratificam que se vive na era do triunfalismo do mercado, onde praticamente tudo está à venda. Esse fenômeno surgiu após a Segunda Guerra, fundamentado na crença de que os mercados seriam capazes de se regular e gerir os próprios riscos. A crise de 2008 mostrou que as coisas não são bem assim, porém esperava-se que, dados os seus desdobramentos, novos rumos seriam adotados na maneira como o capitalismo funciona, o que não ocorreu.

Sandel, influente filósofo americano da atualidade e professor do curso Justice, na Universidade de Harvard, e autor de outros livros, como Justiça; o que é fazer a coisa certa, afirma que a ganância não foi a única culpada pela crise, mas também o papel ectópico atualmente desempenhado pelo mercado. Em vez de manter-se adstrito às esferas da transação de bens materiais, o mercado governa crescentemente a vida como um todo. Nesse modelo, as principais consequências nocivas dizem respeito à desigualdade e corrupção no seio da sociedade. No caso da primeira, quanto mais forte for o poder do capital, mais importante será sua falta; em outras palavras, as pessoas pobres terão uma vida mais difícil. Com relação à corrupção, ele aponta que as práticas desenvolvidas por algumas organizações comprometem o conceito de cidadania, ao passo que põem à venda itens que não deveriam, pela perspectiva moral, ser vendidos.

De acordo com o autor, os limites morais do mercado devem ser analisados publicamente, mesmo que as crenças sociais tenham de ser abertas, caso contrário, corre-se risco de ocorrer maior degradação ou corrompimento de aspectos valiosos da vida. Para ele, de maneira sutil e sem que as pessoas percebessem, a sociedade atual deixou de ter uma economia de mercado para ser uma sociedade de mercado.

Neste livro, o autor traz uma série de exemplos reais, os mais diversos possíveis, e questiona os limites morais das práticas comerciais. Ele afirma que, para determinados produtos, a ética do mercado deve ser empregada, porém, em outros casos, devem-se repensar as condutas.

No primeiro capítulo, "Furando a fila", Sandel discute a ética das filas. Companhias aéreas e parques de diversão que vendem acessos mais rápidos aos serviços, profissionais que esperam na fila de eventos gratuitos e/ou concorridos no lugar de outras pessoas, municípios que cobram pela utilização de vias expressas em horários concorridos, cambistas que cobram fortunas por eventos e até mesmo médicos de butique disponíveis 24 horas por dia. O que há de errado nisso? Segundo Sandel, a proliferação desse tipo de comércio "aumenta as vantagens da afluência e condena os mais pobres a ficarem sempre no fim das filas", ou seja, a lógica de que quem chega primeiro é atendido primeiro (ética da fila) cede passagem à lógica do "pagou, levou" (ética do mercado). Há argumentos contra e a favor de tais práticas, porém o autor defende que pagar e esperar são duas maneiras diferentes de distribuir os bens. Há outras maneiras de distribuição, portanto cada uma deveria ser tratada com regras específicas e válidas para todos.

O capítulo 2, "Incentivos", questiona práticas de bonificação ou punição financeira para comportamentos desejados ou não. Para o autor, quando esse tipo de incentivo é adotado, há limites morais que não são considerados, e isso pode gerar resultados desastrosos em longo prazo, pois as pessoas, principalmente as mais necessitadas ou com menor capacidade de julgamento, por exemplo, as crianças, serão coagidas a vender o que, em tese, não deveria ser vendido. Além disso, o estímulo monetário, extrínseco, substitui a responsabilidade pessoal pelos próprios atos.

No Capítulo 3, "Como o mercado descarta a moral", Sandel aponta duas objeções ao sistema estabelecido. A primeira versa sobre a desigualdade que as escolhas de mercado podem refletir (equanimidade). A segunda diz respeito à corrupção, ou seja, atitudes e normas sociais prejudicadas ou dissolvidas pelas regras do mercado. Ele ainda comenta a mudança no ponto de vista de alguns economistas a respeito da influência do mercado sobre os bens e práticas sociais por ele governados, bem como na mudança de papel do economista no contexto social. Em outras palavras, parte-se gradualmente da visão em que o mercado não interfere no bem comercializado para uma visão mais realista, em que o mercado altera consideravelmente seu caráter. Tal constatação traz à luz os perigos de se misturarem as normas do mercado em esferas da vida normalmente governadas por regras diferentes.

No capítulo 4, "Mercados na vida e na morte", é exposta a indústria multibilionária de seguros de vida que as empresas fazem para seus funcionários e até mesmo ex-funcionários (muitas vezes sem o conhecimento destes). O autor questiona a coisificação dos trabalhadores, os quais são tratados como mercadorias a futuro e têm mais valor (para as empresas) mortos do que vivos. Isso porque, sob a ótica fiscal, é mais atraente para as empresas realizar esse tipo de transação, pois, em caso de falecimento do segurado, a empresa receberá o valor acordado na apólice e a família do trabalhador não receberá nada.

O autor finaliza o livro com o capítulo 5, "Direitos de nome", que faz uma análise sobre as novas práticas econômicas no mundo dos esportes. Primeiramente, comenta a venda de autógrafos. Sobre tal prática, ele elucida que há jogadores que, teoricamente, não precisavam vender seus autógrafos, mas, mesmo assim, o fazem. Em contrapartida, há aqueles mais tradicionalistas, que se recusam. Também traz exemplos de comercialização de outros artigos esportivos e explica como ocorrem os procedimentos de "autenticação do material". Na sequência, questiona os investimentos privados no nome dos estádios e eventos específicos dentro de disputas esportivas, alegando que, ao se mudar o nome de um estádio, muda-se um marco cívico relevante.

Com enfoque diferente de sua já citada obra, onde aspectos sobre a justiça são debatidos, os diversos pontos abordados por Sandel neste livro propiciam aos leitores uma profunda reflexão sobre a influência das regras do mercado no cotidiano. Nesse sentido, a obra é muito esclarecedora, porém, em contrapartida, não aborda aspectos mais profundos sobre as causas dos casos analisados. Ao focar diretamente o fenômeno, perderam-se, em parte, a visão do todo e a visão pormenorizada das partes. Assim, as bases do sistema capitalista e o papel de cada agente na sociedade não foram tão esmiuçados como poderiam ter sido. Como exemplo de livros que abordam essas questões, O capitalismo na encruzilhada, de Hart (Bookman, 2006), elaborou de maneira pragmática soluções para problemas do mundo capitalista, e Ethics in practice: managing the moral corporation, de Andrews (Harvard Business Press, 1989), abordou as pressões e dificuldades éticas que os executivos enfrentam ao tomar decisões. Independentemente dessas considerações, a obra é eficaz em estimular o pensamento sobre em quais pressupostos as pessoas fundamentam suas escolhas e qual o papel do cidadão na sociedade brasileira da atualidade, principalmente em ano de eleições.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2014
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rae@fgv.br