Os impasses sociais e políticos vividos pelo Brasil desafiam o Estado tanto em seu papel, como também na sua relação com a sociedade e o mercado. Tudo parece se reconfigurar, apresentando-se, ao mesmo tempo, um tanto quanto à deriva, sem projetos de médio e longo prazos, com respostas reativas apenas, como tem sido de praxe, sem que sejam dimensionadas as implicações a todos os segmentos sociais, sobretudo os grupos mais vulneráveis, que veem suas condições de vida progressivamente pioradas.
Desse modo, tornou-se lugar comum afirmar que o Brasil passa por uma crise conjuntural sem precedente histórico semelhante, dada a sua amplitude. A aparente natureza já prolongada dos problemas e o fato de termos vários diagnósticos sobre as diferentes causas, sem vislumbrar, no entanto, saídas possíveis, levam a uma pergunta inevitável: será que podemos tratar esse conjunto de problemas como a manifestação apenas de uma crise conjuntural? Ao que parece, não. Temos naturalizado, cada vez mais, alguns problemas que antes nos incomodavam, vendo-os como desafios estruturais de nossa sociedade. As tensões sociais agravam-se quando se percebe que os dissensos coletivos generalizaram-se de tal forma, que deixaram de se constituir apenas como polarização de opiniões. A capacidade de se construírem diálogos nas diferenças para buscar soluções públicas possíveis parece estar paulatinamente mais distante. As divergências encontram-se num grau de fragmentação tão excessivo que acabam provocando conflitos sociais de diversas naturezas e dificultam a construção de diálogos, até mesmo entre grupos com visões próximas e que já caminharam juntos por muitas outras causas.
Assiste-se a uma sociedade à deriva quanto a manutenção de princípios básicos que orientaram o seu próprio processo civilizatório. Manifestações públicas de caráter preconceituoso, expressas até mesmo por autoridades governamentais em relação a condição socioeconômica, de origem e de gênero das pessoas, avançaram no espaço social sem que ainda exista uma reação significativa das instituições, e mesmo da sociedade, que cause constrangimento social suficiente para inibir que condutas desse tipo vigorem com a desenvoltura com que temos observado. Vale destacar que, recentemente, em discussão no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil juntou-se a países islâmicos como o Paquistão e a Indonésia na tentativa de esvaziar a resolução sobre direitos das mulheres, propondo a supressão de referências aos direitos reprodutivos e de saúde sexual das mulheres.
Para além das questões mencionadas, destaca-se, também, o recrudescimento do grau de solidariedade social a grupos mais vulneráveis, uma característica da sociedade brasileira num passado recente que viabilizou boa parte dos avanços sociais sob a forma de políticas públicas que legitimaram a necessidade de programas governamentais direcionados aos meninos e meninas de rua, à população de rua e a tantos outros grupos excluídos por razões de sexo, raça e idade.
Por exemplo, por mais que seja assustador presenciar a magnitude da desproteção social à qual estão sendo rapidamente submetidas comunidades indígenas e quilombolas, cujas conquistas de direitos vêm mobilizando diferentes segmentos sociais desde a Constituição de 1988, no atual momento a solidariedade social à situação destes grupos não tem sido suficiente para impedir que suas terras sejam violadas e suas vidas ameaçadas por diferentes tipos de interesses que antes estavam sob controle das autoridades, mesmo que ainda possuam garantias legais que os protejam. Antes, tais grupos, contavam com políticas de proteção no interior dos governos, agora dependem de decisão judicial, muitas vezes tardia, tomada depois de já terem sofrido todo tipo de violência.
O mesmo pode ser dito com relação ao desmonte de programas e políticas públicas de ações afirmativas, de enfrentamento à violência de gênero, ao trabalho infantil e àquele em condições análogas à escravidão (Cohn, 2020Cohn, A. (2020). As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 109, 129-160. Recuperado de https://doi.org/10.1590/0102-129160/109
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). A redução drástica do alcance dessas políticas públicas, escondida sob o manto de um discurso cuja narrativa apela à meritocracia, também ocorre sob um tipo de reação social que tem sido igualmente insuficiente para deter o desmonte de iniciativas observadas em governos com matrizes ideológicas distintas e que já colocaram o Brasil como vitrine mundial de boas práticas nessas questões. Parece ter se exaurido o aprendizado construído em tempos recentes, quando o diálogo sobre a produção baseada na exploração da terra e a proteção ambiental necessária permitia equacionar os objetivos, formular pactos nas arenas públicas que se transformavam em políticas governamentais. Tal dificuldade explicita-se no aumento dos focos de incêndio na Amazônia Legal, em terras não protegidas e, crescentemente, em terras protegidas, para expansão da pecuária, agricultura, mineração e projetos infraestrutura - retomando um padrão de desmatamento anual acima de 10 mil km2 em áreas de Floresta Amazônica e de Cerrado -, nos desastres ambientais do Pantanal, também para abertura de pastagens, e nos desastres tecnológicos decorrentes da atividade de mineração (Ferrante & Fearnside, 2020Ferrante, L., & Fearnside, P. M. (2020). The Amazon’s road to deforestation. Science, 369(6504), 634. Recuperado de https://doi.org/10.1126/science.abd6977
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).
A construção de um arcabouço regulatório ambiental que refletisse de forma equilibrada os interesses da sociedade parece difícil ante a desarticulação da ação coordenada dos governos federal e estaduais juntamente com a academia e as organizações da sociedade civil. Isso se reflete na desestruturação do Ministério do Meio Ambiente (MMA), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e na transferência de competências para o Conselho da Amazônia, uma espécie de militarização na implantação de políticas ambientais, algumas construídas desde antes da redemocratização. Esse desmonte, além de consequências locais de curto prazo nas regiões Norte e Centro-Oeste, também afeta a qualidade do ar e a regulação hídrica e climática nas regiões Sudeste e Sul.
No campo da política, a crise também se manifesta de maneira muito intensa e com consequências bastante danosas ao debate público, à ação coletiva e às políticas públicas. A cada eleição, o que se presencia é a diminuição da dimensão ideológica e programática no debate partidário (Carreirão, 2014Carreirão, Y. S. (2014). O sistema partidário brasileiro: um debate com a literatura recente. Revista Brasileira de Ciência Política, 14, 255-295. Recuperado de https://dx.doi.org/10.1590/0103-335220141410
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), o enfraquecimento dos partidos enquanto atores coletivos que deveriam organizar o debate público, sistematizar as demandas sociais e fazer a conexão entre Estado e sociedade buscando pressionar por respostas governamentais; além do que, sua dificuldade em protagonizar a competição política com programas governamentais. Entretanto, o que se tem observado com mais frequência é o fortalecimento de lideranças carismáticas que se enrobustecem a ponto de projetos partidários, que deveriam ser pensados coletivamente e expressar os debates entre seus filiados e simpatizantes, passarem a refletir preferencialmente os projetos de poder dos compromissos dos líderes partidários e seus asseclas, gerando aquilo que Robert Michels (1982Michels, R. (1982). Sociologia dos partidos políticos. Brasília, DF: Editora UnB.) chamou de ‘tendência a oligarquização dos partidos’ no seu clássico livro Sociologia dos Partidos Políticos, algo que ocorre quando as ações partidárias refletem muito mais os interesses de seus dirigentes do que a base social a que o partido propõe-se representar. A dependência do PT em relação a Lula, assim como a repentina força de João Dória em definir os rumos do PSDB segundo os seus projetos de poder, além do peso atual do bolsonarismo, são alguns dos exemplos mais recentes. Outras experiências de forte personalismo na política podem ser observadas na história do Brasil desde o Estado Novo.
Desse modo, como a crise de representação dos partidos afeta as políticas públicas e a ação governamental? De diferentes formas, desde a ausência de um programa de governo sólido para ser submetido ao debate durante a campanha eleitoral, passando pela baixa capacidade do partido em debater temas públicos durante os mandatos, tanto no papel de oposição como na condição de situação. Disso resulta a ausência de projetos concretos para enfrentar o conjunto de problemas comuns a qualquer transição de governo, mesmo quando essa se dá dentro da própria aliança partidária que já estava no poder.
Em sendo os partidos atores coletivos que detêm o monopólio das candidaturas, uma vez que no Brasil não pode haver candidaturas avulsas, é deles a responsabilidade pelos nomes que são lançados a qualquer cargo eletivo em todas as eleições. Sem a anuência partidária, não existe candidatura. Desse modo, as agremiações partidárias são as responsáveis diretas pela qualidade da política e dos políticos. Sem o bom cumprimento desse papel, o debate público empobrece e as decisões públicas, por consequência, também. Assim, quanto menos diálogo entre partidos e política, de um lado, e a sociedade, de outro, menor o número de atores e interesses representados nas decisões públicas, o que certamente amplia a exclusão.
Se temos uma enorme crise que afeta todos os segmentos das vidas pública e privada, ela é também reflexo de uma crise política, de uma baixa capacidade de incluir os vários interesses sociais, principalmente os mais vulneráveis no processo decisório. A melhor forma de sair da crise política é fazer mais política, é adensar a democracia incluindo mais pessoas no processo decisório.
Por fim, do ponto de vista da gestão e das políticas públicas, pensávamos que estaríamos no campo de transição das políticas públicas populistas para as políticas públicas programáticas. Entretanto, parece ter havido um retrocesso e nem uma coisa nem outra experimentamos neste contexto, mas, sim, um limbo em termos do que significa gestão e políticas públicas, em razão de uma paralisia e um anacronismo no processo decisório político atual. As questões aqui colocadas, ultimamente relegadas em algumas políticas governamentais, desafiam as pesquisas acadêmicas e a produção de conhecimento que se colocam como estratégia de transformação positiva da realidade. Estamos diante do desafio de reafirmar o óbvio em termos de civilidade: uma sociedade moderna é aquela que garante a diversidade, combate a exclusão social e está sempre em busca de democratizar suas relações e o seu processo decisório. Nunca o debate público foi tão necessário. Talvez vivamos um momento em que a saída mais simples e inevitável para a construção de uma realidade menos nociva à vida social está em conversar, negociar; e, em suma, fazer política.
REFERÊNCIAS
- Carreirão, Y. S. (2014). O sistema partidário brasileiro: um debate com a literatura recente. Revista Brasileira de Ciência Política, 14, 255-295. Recuperado de https://dx.doi.org/10.1590/0103-335220141410
» https://dx.doi.org/10.1590/0103-335220141410 - Cohn, A. (2020). As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 109, 129-160. Recuperado de https://doi.org/10.1590/0102-129160/109
» https://doi.org/10.1590/0102-129160/109 - Ferrante, L., & Fearnside, P. M. (2020). The Amazon’s road to deforestation. Science, 369(6504), 634. Recuperado de https://doi.org/10.1126/science.abd6977
» https://doi.org/10.1126/science.abd6977 - Michels, R. (1982). Sociologia dos partidos políticos Brasília, DF: Editora UnB.
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O espaço do Editorial desta edição da Revista de Administração Pública (RAP) foi cedido ao professor Marco Antonio Carvalho Teixeira, que foi editor adjunto do periódico no período de 2011 até 2017.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Nov 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Oct 2020