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Corporeidade Matsigenka: uma realidade não biológica sobre noções de consciência e a constituição da identidade

Resumos

Partindo do caso específico dos Matsigenka que habitam as selvas montanhosas do sudeste do Peru, este artigo questiona algumas das suposições associadas à concepção predominante sobre o perspectivismo amazônico. Por meio da análise de diversos registros culturais, como rituais de nascimento e narrativas míticas, noções dos Matsigenka sobre o ser, a alma e o eu são aqui discutidas e confrontadas com a importância freqüentemente atribuída à forma física na conceituação do mundo. Contrastando com a ênfase dada ao corpóreo, defendo que, segundo gente matsigenka, é o eu ciente e não corpóreo o que determina a perspectiva e a identidade. Em sintonia com isso, a transformação corporal é vista como conseqüência do desejo de sociabilidade do Eu, e não das intenções predatórias do Outro.

Amazônia; Peru; Matsigenka; pessoa; cognição; perspectivismo


Departing from the specific case of Matsigenka people in the montaña of southeastern Peru, this paper challenges some of the assumptions associated with predominant conceptions of Amazonian perspectivism. Examining different cultural registers such as birth rituals and mythology, Matsigenka peoples' notions about being, soul and self are discussed in relation to the importance that often is ascribed to physical shape for conceptualizing the world. In contrast to this stress on the corporeal, it is argued that Matsigenka people consider the non-corporeal cognisant self to determine outlook and identity. In accordance, corporeal transformation is seen as a result of the Self's convivial aspirations rather than an outcome of an Other's predatory intentions.

Amazonia; Peru; Matsigenka; personhood; cognition; perspectivism


SENTIDOS DESENCORPORADOS

Corporeidade Matsigenka: uma realidade não biológica sobre noções de consciência e a constituição da identidade1 1 Este artigo se beneficiou imensamente dos comentários inspirados e construtivos feitos por Lisa Akesson, Kaj Århem, Steven Rubenstein, Fernando Santos-Granero e Diana Walters, aos quais sou muito agradecido. O autor por si só é responsável por quaisquer erros remanescentes.

Dan Rosengren

Departamento de Antropologia Social - Universidade de Göteborg

RESUMO

Partindo do caso específico dos Matsigenka que habitam as selvas montanhosas do sudeste do Peru, este artigo questiona algumas das suposições associadas à concepção predominante sobre o perspectivismo amazônico. Por meio da análise de diversos registros culturais, como rituais de nascimento e narrativas míticas, noções dos Matsigenka sobre o ser, a alma e o eu são aqui discutidas e confrontadas com a importância freqüentemente atribuída à forma física na conceituação do mundo. Contrastando com a ênfase dada ao corpóreo, defendo que, segundo gente matsigenka, é o eu ciente e não corpóreo o que determina a perspectiva e a identidade. Em sintonia com isso, a transformação corporal é vista como conseqüência do desejo de sociabilidade do Eu, e não das intenções predatórias do Outro.

Palavras-chave: Amazônia, Peru, Matsigenka, pessoa, cognição, perspectivismo.

ABSTRACT

Departing from the specific case of Matsigenka people in the montaña of southeastern Peru, this paper challenges some of the assumptions associated with predominant conceptions of Amazonian perspectivism. Examining different cultural registers such as birth rituals and mythology, Matsigenka peoples' notions about being, soul and self are discussed in relation to the importance that often is ascribed to physical shape for conceptualizing the world. In contrast to this stress on the corporeal, it is argued that Matsigenka people consider the non-corporeal cognisant self to determine outlook and identity. In accordance, corporeal transformation is seen as a result of the Self's convivial aspirations rather than an outcome of an Other's predatory intentions.

Key-words: Amazonia, Peru, Matsigenka, personhood, cognition, perspectivism.

FILHA: Tenho a sensação que já dissemos essas palavras antes, noutro lugar.

POETA: Então você logo poderá discernir o que é a realidade.

FILHA: Ou o sonho!

POETA: Ou a poesia!

(Strindberg, A. A Dream Play)

Na etnografia dos povos amazônicos, as concepções que esses mesmos povos fazem sobre o corpo passaram a atrair muito interesse nos últimos trinta e poucos anos. Uma das razões para isso é que as noções amazônicas de corporeidade obviamente não se coadunam com aquilo que - do ponto de vista ocidental ou modernista - compõe as hipóteses convencionais fundadas em pressupostos biológicos. Uma vez que poucas pessoas - quiçá nenhuma - estariam dispostas a descartar as diferentes perspectivas amazônicas como se produzidas por visões de mundo irracionais, essas concepções vieram a confrontar as interpretações antropológicas convencionais da humanidade. Além disso, a riqueza das descrições etnográficas indica que o corpo e as idéias afins sobre corporeidade são coisas que os povos nativos da Amazônia consideram central para sua concepção de mundo. A recente atenção dada a noções acerca do corpo fez surgir uma ampla produção etnográfica, apresentando muitas e variadas idéias e perspectivas sobre isso. Uma questão que está no cerne de grande parte desse interesse é a relação entre corporeidade física e consciência, como tem sido descrita e analisada por pesquisadores como Århem (1993), Gray (1996) e sobretudo Viveiros de Castro em seu artigo verdadeiramente seminal sobre o perspectivismo ameríndio (1998). No presente artigo, quero examinar como a consciência e a corporeidade se articulam segundo gente matsigenka, habitantes das margens dos rios Urubamba e Manu no sudeste do Peru. Esta minha análise tem relação com o tema que perpassa este volume da Revista de Antropologia na medida em que trata de questões como: onde estaria localizada a faculdade da cognição; como essa localização influenciaria a percepção e a interpretação do mundo; como alguém interage com os vários habitantes desse mundo?

Duas tendências

Tolerando certo grau de generalização e simplificação, as várias perspectivas que tratam da relação entre corpo e consciência, e que têm alguma relevância para nós, podem ser agrupadas e descritas em termos de duas tendências principais. A primeira põe ênfase na forma corporal. Para quem segue essa tendência, o corpo funciona como o molde da subjetividade do "portador", cujo ponto de vista varia de acordo com a forma do corpo. Classes distintas de seres estão propensas a apreender o mundo de diferentes pontos de vista, de acordo com a forma de seus corpos (Viveiros de Castro, 1996, p. 128; 1998, p. 471). De mais a mais, todos os tipos de seres se imaginam na forma humana, e a alteridade é criada pela percepção de outras classes de seres em corpos físicos moldados de maneira diferente. Consciência e conhecimento são, portanto, concretizados ou realizados na forma física, o que significa que supostamente existe uma correlação simples e direta entre o corpo e a subjetividade percebida, ou apreendida, do Eu e dos Outros (Vilaça, 2005, p. 450). O foco na corporeidade significa que essa tendência enfatiza a uniformidade de cada espécie e, portanto, estudos que seguem essa tendência ocupam-se fundamentalmente das relações interespecíficas, ou seja, entre espécies diferentes.

Em se tratando de variação intra-específica e agência individual, essa abordagem não tem muito a dizer. Para entender como as pessoas vêem o mundo e atuam nele, precisamos nos voltar para a segunda tendência, em que a consciência é enfatizada e vista como constituindo o corpo como um sujeito social. Um princípio central dessa tendência é que cada ser é constantemente moldado por interações sociais, em que aspectos tais como moral, parentesco e afeto assumem importante papel: o raciocínio das pessoas é moldado, ou cria forma, porque elas são seres sociais e morais, não por sua forma física em particular (Overing, 1985a, 1988; Gow, 1991, 2000; McCallum, 1996; Belaunde, 2000; Londoño Sulkin, 2005; Santos-Granero, neste volume).

Os diferentes enfoques adotados por essas duas tendências têm como efeito a atribuição de modelos epistemológicos opostos aos povos da região. Estudos feitos em sintonia com a primeira das tendências acima tendem a assumir que a uniformidade epistêmica é um fundamento da ontologia amazônica. Concordando com tal postulação, Viveiros de Castro (1998, p. 470) sugere que os ameríndios concebem "uma unidade espiritual e uma diversidade corporal", indicando a existência de uma subjetividade comum entre seres num mundo multinatural. Em contraste, a segunda tendência reconhece um multiverso, a saber, universos múltiplos, em que o conhecimento é adquirido socialmente e em relação a situações específicas. Em sintonia com esta última perspectiva, argumento que a subjetividade para gente matsigenka emerge no ambiente social em que uma pessoa está inserida. O perspectivismo dos Matsigenka e suas interpretações das noções de transformações corporais diferem das concepções apresentadas por Viveiros de Castro (id.) no sentido de que, para gente Matsigenka, corpos são considerados de natureza eminentemente social, donde se conclui que é o eu ciente e não corpóreo (isure) o que determina a perspectiva e a identidade. Uma vez que esse aspecto do eu é constituído de maneira social e não física, ele tem precedência sobre o corpo e é, conseqüentemente, menos variável do que a forma corporal. Dadas condições sociais semelhantes, uma pessoa permanece a mesma independente de sua forma física, e o corpo físico é, em certos aspectos, apenas uma concha que contém o eu.2 2 No contexto deste artigo, coloco em foco o aspecto ciente do eu. O aspecto físico do eu não é desprovido de importância e, como fica claro adiante, para gente matsigenka, os aspectos físicos e não físicos estão ligados: a mente, por exemplo, depende do corpo e recorre a ele para ter uma experiência sensorial do mundo, corpo este que também é um instrumento de comunicação. Porém, o aspecto físi-co do ser é visto, sobretudo, como um invólucro do aspecto ciente, o formato do qual é principalmente o produto da sociabilidade do aspecto ciente. O conceito do "eu" pretendido aqui é, portanto, a consciência idiossincrática que emerge e é formada na interação com outras consciências similares dentro de contextos históricos específicos.

A concepção de "eu" da gente matsigenka, da maneira como a concebo aqui, tem muito em comum com outros conceitos como, por exemplo, a "subjetividade" de Viveiros de Castro (1998) e a "força vital" de Santos-Granero (neste volume). Porém, em contraste com esses conceitos que se referem primordialmente a princípios gerais e abstratos, "eu" refere-se ao que é individualmente específico naquilo que entre gente Matsigenka é conceitualizado como uma qualidade da alma. Todo ser animado tem uma alma que contém aspectos tanto da força vital quanto da subjetividade, mas cada alma expressa esses aspectos de maneira única. A junção individual de subjetividade e força vital se dá por meio das experiências e influências particulares às quais o vivente esteve exposto durante a vida. O fato de o eu ciente estar associado a um indivíduo em particular significa que ele está ligado ao corpo daquela pessoa. Porém, não é o formato físico do corpo que tem significância nesse contexto, mas sua função como receptor das percepções sensoriais e como veículo para transmitir e efetuar as intenções do indivíduo. A importância do corpo repousa, então, em estar localizado na interface entre pessoas diferentes, ou seja, na sua natureza social.

Via de regra, gente matsigenka não reflete sobre os pressupostos epistemológicos que formam parte de como eles vêem a si mesmos e ao mundo em que vivem. Com a exceção de noções que reputam a alma como objeto, esses pressupostos constituem, para a maioria dos Matsigenka, uma espécie de conhecimento tácito que, embora esteja longe de ser monolítico ou uniforme, é comumente tomado como certo. Uma vaga idéia da natureza desses pressupostos pode ser inferida da maneira pela qual Jordan Koriki solucionou o problema de encontrar uma expressão adequada para o conceito de nosure ao me ajudar a traduzir um canto sobre a cerveja de mandioca, no qual um verso que evidencia tal problema diz oga osuretaganakena nosure - que ele acabou traduzindo por "masato - ela me faz pensar - na minha alma e/ou nos meus pensamentos e/ou no meu verdadeiro eu". Embora os Matsigenka não reflitam sobre pressuposições epistemológicas desse tipo, elas podem ser reconhecidas nos ritos, por exemplo, e na mitologia. A apresentação pública de tais registros culturais cria condições para o surgimento de interpretações em comum, formadoras de uma fundação conceitual, aparentemente aceitas por muitos Matsigenka, e por isso raramente objetos de reflexão.

Gravidez e nascimento: a formação precoce do eu

Em vários ritos do ciclo da vida, pressupostos sobre o desenvolvimento do eu individual são claramente evidentes. Uma investigação, por exemplo, do comportamento ritualizado ligado ao primeiro período da vida de uma criança, desde o momento da concepção até alguns anos depois, permite-nos discernir algumas noções cruciais acerca da formação do eu do bebê. Segundo gente matsigenka, um ser animado é composto basicamente de três substâncias: sangue/carne, ossos e alma. Na formação do feto, geralmente se supõe que as mulheres contribuem com o sangue/carne, enquanto os homens contribuem com os ossos. As pessoas geralmente dizem ignorar a origem da alma, mas, quando pressionadas, costumam sugerir que sua origem é extrínseca à parte humana da procriação. Ainda assim, a alma precisa do corpo físico para vir ao mundo, embora posteriormente ela não precise ficar atada à carne e aos ossos e possa sair por períodos de tempo mais curtos ou mais longos sem sofrer danos ou qualquer efeito prejudicial. A alma se solta do corpo físico com facilidade e isso ocorre com regularidade durante toda a vida de uma pessoa, por exemplo, toda noite quando ela sonha.

O povo matsigenka não pratica a couvade, mas inúmeras regras associadas ao parto afetam a vida dos membros de uma família que tem um bebê. As regras não afetam somente os pais, mas também os outros moradores da casa, que precisam tomar cuidado para não violar nenhuma das regras, ou a criança poderá ficar exposta ao perigo. As regras são principalmente de natureza proibitiva, estipulando o que não pode ser comido ou o que não pode ser feito. Nas descrições etnográficas, tais proibições acerca de comer certos animais são comumente explicadas pelos efeitos que a carne terá na forma física do bebê, freqüentemente com conseqüências funestas durante o parto (cf. Baer, 1984, p. 251; Bennet, 1991, p. 169; Johnson, 2003, p. 114). Um exemplo de tabu alimentar é a interdição feita às grávidas acerca de comer carne de tapir, pois supostamente daria ao feto uma cabeça tão grande que o bebê teria dificuldades para sair do útero da mãe, o que colocaria mãe e filho em perigo. Obviamente, porém, não é a carne de tapir em si que produz esses efeitos, já que ela afeta apenas os fetos e ninguém mais. Essa interdição e outras semelhantes a ela estão aparentemente relacionadas à precariedade dos envolvidos dentro dos contextos específicos aos quais elas se aplicam. Se regras como essa não forem obedecidas durante a gravidez e durante os anos de formação da criança, os membros da família correm o risco de perder o controle e o monopólio sobre sua formação porque outros seres podem interferir e influenciar seu desenvolvimento. Se a alma do bebê3 3 Os Matsigenka reconhecem dois tipos de alma: a "alma do osso" ( itonki) e uma alma livre, chamada de isure, que é o tipo de alma a que me refiro aqui. Segundo Baer (1984, p. 129), alguns Matsigenka podem cogitar um terceiro tipo de alma, que Baer chama de "alma do olho" ( ishigentiaarite). Até onde sei, Baer é o único etnógrafo a mencionar essa terceira alma, e a crença nela parece não ser muito comum entre os Matsigenka. Entre os povos de língua arawak das selvas montanhosas do Peru, as concepções de alma parecem variar. Crenças em almas múltiplas são encontradas tanto entre os Yine (Piro) (cf. Gow, 2001, p. 64) quanto entre os Yanesha - entre estes últimos também já foram encontradas noções de uma "alma do olho" (cf. Santos-Granero, neste volume). Por outro lado, Weiss (1975, p. 427) afirma que os povos asháninka ribeirinhos acreditam apenas em uma única alma. for capturada e levada por um ser não humano, o bebê nascerá morto. Caso o bebê não perca sua alma, essa influência não humana produzirá alterações físicas e/ou mentais. Ter lábio leporino é um tipo de característica física considerada indício da influência de um demônio, kamagari, na formação do recém-nascido. Conta-se que, antigamente, bebês que nasciam com tais deformações eram mortos, pois poderiam se tornar perigosos, uma vez que a influência não humana não afetava apenas o físico, como também a personalidade do recém-nascido, que seria parte humano, parte demônio. As influências não humanas, entretanto, não necessariamente produzem transformações físicas; elas também podem gerar alterações mentais que talvez só fiquem evidentes bem mais tarde, no decorrer do desenvolvimento da criança, ao afetar a forma e as expressões do eu.4 4 Para um estudo detalhado dos efeitos de influências não humanas que não deixam sinais físicos, ver Londoño Sulkin (neste volume).

Os Matsigenka acreditam que a alma das crianças pequenas é particularmente volátil, uma vez que durante os primeiros anos de vida a alma estaria frouxamente atada ao corpo físico. O que faz com que a primeira infância seja mais precária que as outras fases da vida é que a alma nesse estágio ainda não conseguiu desenvolver laços sociais fortes com os pais, os irmãos ou qualquer outro membro da comunidade. As pessoas então acham que a alma pode perder a motivação para voltar ao corpo. Além do mais, quando a alma está fora de seu abrigo físico, ela se torna inacessível aos que mantêm a forma corporal deste mundo. A alma de uma criança que sai do corpo não pode ser adequadamente protegida das influências indesejáveis e corre o risco de ser cooptada por outros seres. Um motivo importante para muitos dos tratamentos a que um bebê é submetido é garantir o desenvolvimento do vínculo social de sua alma com os outros membros da família. Durante algum tempo depois do nascimento, por exemplo, os bebês tomam banhos quentes e perfumados várias vezes por dia. O propósito primordial desses banhos não é garantir a higiene. O perfume exalado pelas flores e folhas aromáticas postas em infusão na água serve para afugentar as forças malignas que, do contrário, poderiam interromper o processo de estreitamento de laços com a família e afetar o desenvolvimento do bebê.5 5 Banhos semelhantes são administrados como parte do processo de luto. Em sintonia com o argumento deste artigo, Shepard (2002, p. 214) interpreta os banhos tomados alguns dias depois do falecimento de alguém como uma defesa contra os espíritos da morte, kamatsirini. É interessante notar que, no nascimento, não só o bebê é banhado nessa água todos os membros da família também se banham nela, pois todos eles participam do ambiente imediato que circunda o bebê e estão, portanto, propensos a influir em seu desenvolvimento.

Uma vez que o ambiente social no qual o bebê nasce é potencialmente composto de entes desejáveis e indesejáveis tentando influenciar seu desenvolvimento, o principal motivo para seguir as muitas regras associadas à gestação e ao nascimento é, sobretudo, permitir a socialização da criança no mundo humano sem a intervenção de concorrentes não humanos. Devido ao receio de influências inoportunas, o objetivo principal das regras estabelecidas para essa fase da vida de uma criança é regulamentar a relação dos membros da família com seres não humanos para manter estes últimos a uma distância segura do bebê. Apenas indiretamente as regras afetam as relações diretas dos adultos com o bebê. As normas de comportamento que afetam a família de um bebê em gestação ou de um recém-nascido são, na verdade, um complemento à criação "regular" de uma criança, na medida em que servem para inibir influências indesejáveis na formação do eu e, ao fazerem isso, facilitam a socialização do bebê na comunidade humana de direito.

Perspectivismo e individualidade no discurso narrativo

Com respeito aos mitos dos Matsigenka, nota-se que a maioria deles envolve algum tipo de interação social entre representantes de espécies diferentes e, freqüentemente, também algum tipo de transformação física. Os mitos estão repletos de situações em que mulheres humanas têm relação sexual com criaturas não humanas e posteriormente dão à luz bebês com a forma física de seus parceiros. O mito a seguir, registrado pelo frei dominicano Secundino García (1936, p. 86-7),6 6 O relato de frei García sobre a estrutura narrativa segue as convenções literárias ocidentais, o que significa que certos aspectos do mito se perderam. Porém, para o propósito deste artigo, sua versão pode ser usada, uma vez que o que interessa é o conteúdo geral. Com respeito ao conteúdo, a versão não difere de maneira significativa de nenhuma outra versão que eu tenha ouvido ou visto (cf. Arias, 2003). insiste na percepção que os personagens têm uns dos outros, algo que normalmente não é explicitado tão claramente como neste caso específico.

Mito sobre um homem e seu encontro com porcos-do-mato

A roça de um homem era constantemente visitada por um bando de queixadas que vinham comer sua mandioca. Assim que ele dava pela presença deles, ele os espantava. Um dia, quando ele saiu pra caçar na floresta, ele encontrou o bando.

- Você é o homem que sempre nos espanta quando vamos comer mandioca - disseram.

- Não, eu não. Algum outro - respondeu ele, pensando que, se ele se entregasse, eles o matariam.

Mesmo assim eles queriam matá-lo. Um deles, porém, impediu os outros de dar fim ao homem observando que seria melhor levá-lo junto para usá-lo como criado. E assim ficou decidido. (Ibid.)

A narrativa continua com a jornada de volta à casa dos queixadas. No caminho, o bando se depara com árvores frutíferas e coqueiros. Os queixadas então obrigam o homem, que ainda preserva sua forma humana, a subir nas árvores e nos coqueiros e jogar frutas e cocos para eles comerem. O homem não está nada contente e, numa das vezes, tenta se livrar do bando de porcos permanecendo no alto da árvore em que havia subido. Como os porcos ameaçam derrubar a árvore, o homem é obrigado a descer e sua tentativa de fuga fracassa. Por fim, eles chegam a seu destino, e aqui retomamos o relato deixado por García:

O homem ficou vivendo com os queixadas, e com o tempo ele próprio se transformou num queixada. Um dia o bando volta para comer as mandiocas da roça do homem. Assim que eles chegam, um jovem os vê e reconhece um dos porcos como o dono da roça:

- Aquele parece meu vizinho de roçado - pensou o jovem consigo mesmo e ficou à espreita para apanhá-lo. O jovem se escondeu atrás de uma moita e, quando o homem que tinha se transformado em queixada se aproximou, ele deu um salto e agarrou o homem-queixada. O jovem falou com ele, mas ele não respondeu, pois já não falava como ser humano. O jovem o levou para casa e o escaldou com água quente.7 7 García (1936, p. 87) sugere que a escaldadura é utilizada para tirar os pêlos rijos como é feito com os porcos mortos antes de lhes cortarem as carnes. Contudo, acredito que o tipo de escaldadura dessa narrativa é de natureza inteiramente diferente, principalmente porque o homem-queixada não está morto e o jovem não tem intenção de matá-lo. É bem mais provável que o banho aqui relatado seja do tipo que as mães dão em seus bebês (veja acima) e pelo mesmo propósito, ou seja, purificá-los da influência não humana com o fim de manter a humanidade ou recobrá-la (como no mito). Ele imediatamente começou a falar e recobrou sua forma humana original. (Ibid.)

O fundamental nesse mito é que a transformação física do homem em queixada se dá apenas depois que os porcos e o homem estabelecem relações de convívio, isto é, apenas depois que eles começam a se tratar como semelhantes no plano social. Em conclusão, tornar-se igual é uma conseqüência do estar próximo e do compartilhar necessidades de maneira desinteressada. A transformação aqui ocorre por socialização - e não por predação, como alguns poderiam supor. Para o povo matsigenka, parece que a fisiologia (ou, pelo menos, aspectos importantes dela) pode ser vista em termos de sociologia.8 8 Isto, claro, é uma paráfrase de Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979) ao defender que a sociologia amazônica poderia ser vista como fisiologia. Como um corolário, a transformação física experimentada pelo homem é em grande parte efêmera. Sua consciência idiossincrática permanece a mesma enquanto ele se adapta fisicamente às condições de sua nova vida. Quando o jovem o encontra junto com o bando de queixadas verdadeiros, ele é imediatamente identificado como o dono da roça. Dessa maneira, muito embora o homem-queixada tenha, em certos aspectos, se tornado um queixada, ele ao mesmo tempo retém sua identidade individual, e o corpo físico lhe serve, com respeito à sua individualidade, principalmente como invólucro. Esse mito sugere que a identidade pessoal e o eu consciente não são tão instáveis quanto a forma física pode ser.

Não podemos saber, por esse mito, como é que o homem transformado em queixada vê a si mesmo. A capacidade de recuperação da identidade pessoal é, entretanto, corroborada em outras histórias. Num desses mitos, um homem é abandonado à míngua numa árvore alta pela mulher e pelo próprio irmão.9 9 Esse mito é muito conhecido na região do Alto Urubamba. Já tive oportunidade de ouvi-lo inúmeras vezes na voz de narradores diferentes, com pequenas variações produzidas principalmente pelo estilo narrativo individual dos vários atores. A versão usada aqui me foi contada na comunidade indígena de Koribeni pelo sr. Dario Mahuantiari. Empoleirado no alto de um galho e incapaz de descer, ele é salvo pelo japu-preto (Psarocolius decumanus) que vive na mesma árvore. Muito embora o homem seja transformado numa ave da espécie de seus salvadores depois de começar a viver com eles e de se casar com uma de suas fêmeas, ele ainda assim conserva o rancor pela ex-mulher e pelo irmão e acalanta o desejo de um dia vingar-se deles. Certo dia a oportunidade de retaliação aparece. Ele recobra a forma humana, acerta as contas, toma outra vez a forma de ave e voa para longe, ao encontro de sua nova família. É bom notar que o homem se transforma em ave apenas com respeito à forma, uma vez que ele permanece a mesma pessoa com a mesma maneira de compreender o universo social. O pressuposto de que a forma corporal não afeta a agência social nem a memória nem a consciência do sujeito aparece com freqüência nas narrativas, e podemos supor que essa idéia é comumente aceita entre os Matsigenka.

O eu em relações transdimensionais 10 10 O conceito de "relações transdimensionais" usado aqui está relacionado à noção de diferentes pontos de vista. O povo matsigenka entende o cosmos como um universo múltiplo ("multiverso"), com mundos ou dimensões interagindo entre si e se sobrepondo. De conformidade com isso, a mudança de dimensão não requer um deslocamento físico, uma vez que a transferência entre as dimensões é basicamente alcançada harmonizando-se de modos diferentes em relação ao cosmos.

A capacidade de recuperação do eu no pensamento matsigenka é crucial nas suas concepções do social e da sociabilidade nas relações cotidianas com os vizinhos, assim como nas relações transdimensionais que atravessam fronteiras cósmicas. As relações transdimensionais são fundamentais na concepção matsigenka da metempsicose, a saber, quando a alma de um é substituída no corpo pela alma de outro. Esse é um elemento central nas sessões xamânicas, nas quais a alma do xamã é substituída pela alma de seu espírito auxiliar quando o xamã viaja para lugares distantes, localizados em outras dimensões (cf. Baer, 1984; Rosengren, 2002). O corpo físico é claramente visto aqui como uma capa, e os próprios Matsigenka falam dele como imanchake isure, "a roupa da alma". O corpo, porém, não é um simples envoltório. O corpo é indispensável no ambiente social, uma vez que fornece ao espírito um meio físico de comunicação com os seres humanos que não cruzaram a fronteira entre as diferentes dimensões do universo. Conseqüentemente, o corpo é, nesse contexto, instrumental tanto como ferramenta social quanto comunicativa.

A importância do corpo como meio de comunicação está relacionada a condições de compreensibilidade, que requer que as partes que efetuam trocas verbais estejam localizadas na mesma dimensão de realidade para entenderem umas às outras, já que cada modalidade de comunicação verbal é exclusiva de uma dimensão particular. O grunhido, o trinado, o silvo e o rugido dos animais são considerados pelos Matsigenka como expressões lingüísticas que são comumente ininteligíveis para os seres humanos, mas perfeitamente compreensíveis para porcos, aves e cobras, que produzem essas variadas formas de linguagem. Para que um ser humano entenda uma linguagem não humana, ele precisa passar para outras dimensões da realidade; e é interessante notar que, nos mitos matsigenka, os animais nunca são vistos produzindo nada além de linguagem.11 11 Os Asháninka também interpretam os sons dos animais como linguagens distintas (Weiss, 1975, p. 426). Assim, quando o homem-queixada é resgatado, de início ele é incapaz de falar com seu salvador, uma vez que os dois se encontram em dimensões diferentes e, portanto, comunicam-se em modalidades diferentes de linguagem. Apenas quando o homem-queixada é forçado a retornar à dimensão humana com o banho escaldante, é que ele se torna capaz de falar como ser humano e de se fazer entender por seus semelhantes humanos.

A capacidade do homem de falar com os porcos-do-mato no momento em que ele os encontra na floresta no início da história é, na verdade, um sinal de que ele havia passado para uma dimensão não comumente ocupada pelos seres humanos. Enquanto esse homem não desenvolve relações estreitas com os queixadas, sua aptidão para falar com eles não afeta sua forma física, pelo contrário, é a manutenção de seu corpo humano que permite aos porcos usá-lo como criado. Por conseguinte, para gente matsigenka, a forma física não determina a consciência, na verdade, é o contrário.

A movimentação entre as dimensões cósmicas geralmente é facilitada pelo uso de drogas psicoativas, tais como ayahuasca, datura e tabaco. Os movimentos transdimensionais também ocorrem durante o sonho e quando o corpo está inconsciente. Além disso, em ocasiões comumente (mas nem sempre) associadas a algum tipo de crise, o movimento pode acontecer de maneira espontânea, sem necessidade de nenhuma dessas medidas. Viagens cósmicas, porém, são geralmente feitas com o expresso propósito de encontrar certas pessoas-espírito (saangarite) que normalmente não aparecem na dimensão humana. Nesse tipo de viagem, a alma se destaca do corpo físico embora não fique incorpórea, uma vez que a alma tem corpo próprio. O corpo espiritual12 12 Os Matsigenka não fazem distinção conceitual entre esses dois tipos de corpos e falam de ambos em termos de ivatsa, "carne, corpo". é semelhante ao corpo físico e possui as mesmas funções instrumentais quando se manifesta em dimensões não humanas, que é o que capacita a alma a agir. O corpo espiritual é, com efeito, essencial aos seres humanos, uma vez que lhes dá oportunidade de se comunicarem de modo compreensível com seres não humanos e proporciona uma alternativa à metempsicose praticada por espíritos no momento em que visitam a dimensão humana.

O corpo físico não é, obviamente, uma mera vestimenta - tal caracterização deve ser entendida como nada mais que uma metáfora. Nesse contexto, o corpo parece mais a bengala de um cego por meio da qual ele vivencia o mundo. O corpo é, desse modo, claramente senciente.13 13 O relato de Santos-Granero (neste volume) sobre as noções do povo yanesha acerca do corpo senciente e também, até certo ponto, o relato de Lagrou (neste volume) acerca do "corpo pensante" dos Kaxinawa estão de acordo com as correspondentes concepções dos Matsigenka, que por sua vez também se assemelham à distinção que os Piaroa fazem entre uma "vida de pensamentos" e uma "vida dos sentidos" entendidas como partes constitutivas dos seres humanos (Overing, 1988, p. 174). A sensualidade subentendida na corporeidade da alma é percebida como um pré-requisito para sua sociabilidade14 14 O fato de tanto o queixada quanto o japu-preto, nos mitos aqui discutidos, serem de natureza marcadamente gregária é decerto apenas uma coincidência. Noutros mitos, as pessoas são transformadas em espécies mais solitárias - embora a transformação sempre ocorra para possibilitar a sociabilidade. tanto nesta quanto noutras dimensões. Mais importante que isso, o corpo provê o meio com o qual é possível falar de maneira compreensível. Por conseguinte, o corpo físico é percebido como condição necessária para a comunicação. Porém, não é suficiente possuir um corpo para que haja uma troca verbal significativa, já que essa troca também exige que o eu consciente de um interlocutor esteja posicionado na mesma dimensão de realidade que o eu consciente do outro. A localização de um eu consciente numa dimensão específica da realidade se manifesta principalmente na capacidade deste eu se comunicar e socializar com aqueles outros que estão simultaneamente na mesma dimensão. Estar situado na mesma dimensão que outros seres não necessariamente significa que compartilhem o mesmo ponto de vista, uma vez que cada eu permanece basicamente o mesmo independente da dimensão em que se encontra.

Quando o homem-queixada do mito acima conversou com os queixadas que ele encontrou na floresta, ele tinha passado para outra dimensão. Pode-se dizer que a transformação física que ele vai sofrer mais tarde terá início com sua capacidade de se socializar com os porcos, embora ele não se transforme fisicamente no primeiro momento devido à situação de confronto inicial. Isso só ocorre mais tarde, quando homem e porcos tiverem estabelecido uma relação de amizade mútua. Nas narrativas matsigenka, a transformação física parece requerer, como no caso desse mito, o estabelecimento prévio de relações estreitas15 15 Aparentemente, essas noções também são aceitas em outras regiões da Amazônia. Um exemplo é encontrado num dos mitos kaxinawa que Lagrou apresenta neste volume, em que Paketawã, o principal protagonista, transforma-se num Inka, símbolo de alteridade entre os Kaxinawa, graças tão-somente ao compartilhamento e à coexistência pacífica. ou, pelo menos, a intenção explícita de estabelecer tais relações. Mudar de dimensão afeta primeiro a habilidade de socializar e depois, ainda que não necessariamente, a forma corporal, que no entanto só será afetada se houver intenção de convívio. A análise das narrativas matsigenka parece sugerir que a primazia atribuída à faculdade sociável no momento de transformações corporais vem da noção de ele ser um processo voluntário, originado pela iniciativa daquele que sofre as mudanças, um sujeito que, portanto, não é transformado, mas transforma.

A desconexão entre forma corporal e consciência no pensamento matsigenka fica evidente, por exemplo, na relação com os tipos de seres classificados como tsori16 16 O significado e a origem desse termo têm sido interpretados de maneiras diferentes por diferentes autores. Uma das primeiras explicações encontradas na literatura é a de Tessman (1930, p. 84). Segundo ele, esse termo teria derivado da palavra quéchua cholo, com o sentido pejorativo de "mestiço". Weiss (1975, p. 232) também sugere que derive do quéchua, mas da palavra churi, com o sentido de "filho". De acordo com France-Marie Renard-Casevitz (comunicação pessoal), tsori poderia ser traduzido como "falso", "inverídico". - seres que se parecem com humanos mas, no entanto, são diferentes deles. Aos olhos dos Matsigenka, todos os povos não amazônicos são, nesse sentido, tsori, eles só parecem humanos no que concerne a sua aparência física e as suas maneiras. A semelhança é apenas ilusória, uma vez que tsori são seres criados pelo deus Kentibákori, e por isso lhes faltam certas qualidades cruciais que são características dos seres humanos "verdadeiros", que foram criados pelo deus Tasorintsi. Entre os povos matsigenka, assim como em muitas partes da Amazônia, a humanidade é vista, sobretudo, como uma condição moral (cf. Gow, 1991; Londoño Sulkin, 2005, neste volume; Overing, 1989, 1999; Rosengren, 2003a; Santos-Granero, 1991). Os tsori se distinguem dos verdadeiros humanos por sua natureza basicamente irresponsável e indigna de confiança. Em relação a tais características morais, costumes como vestimenta e hábitos alimentares não passam de meros signos diacríticos.

Um tipo semelhante de distinção (como aquela entre seres humanos "verdadeiros" e tsori) é estabelecida entre certas espécies de animais e algumas espécies de demônios que têm aparência semelhante. Para marcar essa diferença, o sufixo niro é acrescentado à denominação dos seres "verdadeiros". O macaco-aranha, por exemplo, é chamado osheto na língua matsigenka, enquanto o demônio fisicamente parecido com ele é chamado oshetoniro; o tamanduá é chamado shiani, enquanto seu demônio sósia é shianiniro etc. Em certas circunstâncias, seres humanos podem ser transformados em uma espécie de demônio niro ao morrer. Dizem que os feiticeiros sempre se transformam nesse tipo de demônio, geralmente o do tapir (kemariniro) ou o da espécie de porco-do-mato conhecida por cateto ou caititu (shintoriniro). Da mesma maneira, grávidas que morrem antes de dar à luz são transformadas em shintoriniro, assim como o feto que elas carregam. No primeiro caso, pode-se supor que a nova aparência do feiticeiro se deve às relações estreitas que ele mantinha com demônios, enquanto no último caso são os demônios que causam a morte da mulher e da criança em gestação. Esses casos, entretanto, não abordam as transformações corporais no sentido das que foram discutidas aqui, uma vez que o espírito da morte do falecido é que é revestido de um novo corpo, enquanto o corpo velho, humano, é enterrado e abandonado à decomposição.

O emprego dos qualificativos lingüísticos tsori e niro demonstra que a semelhança entre os seres em questão é só superficial. Porém, às vezes pode ser difícil para uma pessoa desatenta distinguir entre seres tão semelhantes embora diferentes. Essa incapacidade de distinguir entre seres humanos (ou animais) "verdadeiros" e demônios assemelhados a eles é algo de que estes últimos ocasionalmente tiram vantagem. Essa semelhança pode ser vista como um tipo de mimetismo que, no caso do mundo animal, é normalmente defensivo. Mas no caso em questão é não defensivo, ou seja, ofensivo, já que os demônios se valem dele para se aproveitar das pessoas crédulas e desavisadas. Esse tipo de ataque demoníaco é descrito como gasuretagantsi, um conceito que Shepard (2002, p. 207) traduz como "ter a própria alma roubada", mas que também pode ser traduzido por "ter a alma estuprada ou subtraída em casamento".17 17 A sílaba inicial ga- é o radical do verbo gagantsi, cujo significado cobre um amplo campo semântico. Duas das várias traduções possíveis apontadas por Snell (1998, p. 86ff) são "pegar, agarrar" e "casar". Mas, pelo menos na região do Alto Urubamba, também é usado (provavelmente como extensão) como "fazer sexo" e "estuprar". Se alguém é levado a se casar com um ser cuja verdadeira natureza não é a que parece, a pessoa desavisada pode perder a alma, o que fará com que seu corpo físico definhe lentamente até a morte. Para evitar serem enganados assim, os Matsigenka geralmente desconfiam de estranhos vistos por acaso na floresta por onde vagam os demônios. Por isso, ao adentrar a floresta, os Matsigenka costumam tomar providências tanto para não serem enganados por demônios com aparência de gente quanto para não serem confundidos com algum demônio. Para escapar à aproximação dos demônios, gente matsigenka faz uso de vários tipos de elementos mágicos ou ritualísticos. E, para evitar serem confundidos com um, usam pintura facial - já que demônios supostamente nunca se pintam. Ao aplicar pintura facial, a superfície corporal é modificada para marcar tanto a distinção de identidade quanto a ausência de má intenção. O cheiro do urucum (Bixa orellana), usado para produzir o corante empregado na pintura corporal, é intolerável aos demônios e, por isso, serve também como repelente de demônios. Ao mesmo tempo, seu cheiro é apreciado pelos espíritos saangarite - a quem gente matsigenka geralmente recorre como defensores quando em situação de perigo - , o que intensifica a função protetora da tintura.

A compreensão do mundo é aparentemente um procedimento sensorial e intelectual muito complexo. Numa apreciação crítica do relato de Viveiros de Castro (1998) sobre o perspectivismo amazônico, Santos-Granero (neste volume) diz acreditar que é insuficiente reduzir as maneiras de perceber os diferentes tipos de seres apenas ao sentido da visão. Com base em sua análise das concepções dos povos yanesha, Santos-Granero demonstra a importância da audição. Várias medidas de proteção adotadas pelo povo matsigenka nas relações que eles têm com seres de outra dimensão mostram também a importância do olfato.18 18 Ver também Belaunde (neste volume) acerca do efeito do odor fétido do sangue nas relações transdimensionais e Lagrou (neste volume) acerca dos odores sexuais que exercem efeito negativo sobre as relações com os animais de caça e o peixe. Para gente matsigenka, odores e mau cheiro são tópicos recorrentes em seu discurso sobre relações entre diferentes espécies. O uso de substâncias com fragrâncias diferentes na vida cotidiana (o banho em água-de-cheiro e o uso de urucum já foram mencionados) está quase sempre associado às relações com seres não humanos. Para gente matsigenka, o cheiro nesse contexto não é apenas um elemento circunstancial de certas substâncias, é também empregado como um meio de comunicação em combinação com outros meios de trocar informações.

A semelhança física entre aqueles seres definidos como tsori e niro e outras espécies de seres não deve ser vista como um fato de que vários tipos de seres compartilham perspectivas de mundo semelhantes. Pelo contrário, segundo gente Matsigenka, as diferentes espécies de seres percebem tanto o ambiente físico quanto o social de sua própria e particular maneira. Os pontos de vista dos seres tsori e niro e os pontos de vista dos seres com quem eles se parecem não são determinados pela forma corporal que eles têm em comum. As diferenças marcantes entre essas categorias de seres não têm, evidentemente, nada a ver com fisiologia. Os diversos pontos de vista se tornam evidentes quando são consideradas as variações nos tipos de comportamento. As várias modalidades de conceber o mundo são produzidas pelos processos de formação distintos por que eles passam como indivíduos pertencentes a classes diferentes de seres. Assim, mais uma vez, a influência fundamental na configuração das diferentes identidades das variadas classes de seres é a sociologia, e não a fisiologia.

Ser, alma e eu

A distinção que os Matsigenka fazem entre um ser "verdadeiro" e outro que só tem aparência de verdadeiro revela como o estar no mundo e o conhecer o mundo são concebidos. Está claro que a semelhança física não gera um tipo de disposição particular que automaticamente produz uma visão semelhante do mundo. Ponto de vista e identidade, pelo contrário, são relacionados ao eu, a agência consciente formada no decorrer da vida de uma pessoa. Para gente matsigenka, a consciência idiossincrática constitui um aspecto importante daquilo que corresponde a seu conceito de isure, ou "alma". Entre os etnógrafos que trabalham com os Matsigenka (assim como entre os que trabalham com seus vizinhos asháninka), o conceito de isure é freqüentemente considerado muito peculiar (cf. Baer, 1984, p. 127; Weiss, 1975, p. 428), uma vez que, com o significado de "alma", tal conceito existe apenas na forma possessiva. Na língua matsigenka, os substantivos normalmente têm uma forma possessiva e uma não possessiva. A forma possessiva é geralmente criada pela adição de um prefixo ao radical da palavra indicando um possessivo pessoal como i-sure, "alma dele", ou no-sure, "minha alma", etc. O não possessivo é criado pela adição do sufixo tsi ao radical: neste caso, obtemos sure-tsi. O que faz dessa palavra algo peculiar aos olhos dos etnógrafos é o fato de suretsi não significar "alma", mas "fantasma". A criatura que aqui está sendo definida como "fantasma" difere da noção européia convencional de "fantasma", porque aqui não é a alma de algum morto que assombra os vivos,19 19 Noções acerca desse tipo de espectro também existem entre os Matsigenka, que as denominam kamatsiri. pelo contrário, gente matsigenka considera esse fantasma uma criatura por si só, por seus próprios méritos, ainda que bem estranha. A peculiaridade do suretsi está na sua indeterminação social, inerente ao não possessivo. Essas criaturas são, conseqüentemente, caracterizadas pela irrestrição e pelo anonimato. Não lhes falta apenas um corpo tangível, mas principalmente as conexões sociais pelas quais elas se tornam "eus" individuais (Rosengren, 2002, p. 93). Assim, o isure difere do suretsi por ter passado por um processo de formação que contém a complexidade do conceito correspondente nas línguas latinas (a saber, formación ou formação) e que inclui os processos de configuração, estruturação e educação, pelos quais a alma ganha sua individualidade.20

Quando instados a explicar o significado do conceito isure, os Matsigenka dão respostas vagas, mas que ao mesmo tempo indicam uma fusão complexa de vários aspectos. Obviamente, isure não é um conceito que os Matsigenka consideram de fácil definição, e, se instados a esclarecer, eles em geral dão várias interpretações alternativas, como fez Jordan Koriki ao traduzir o cântico sobre a mandioca narrado acima. Na maioria das vezes, as pessoas mencionam tanto "aquilo que eu realmente sou" quanto "tudo aquilo que eu penso". As tentativas para explicar esse conceito sugerem que gente matsigenka não concebe o indivíduo num sentido primordialmente físico, mas sim como resultado de uma combinação complexa de socialização, experiência e conhecimento e, evidentemente, também em estreita associação com o entendimen to particular do mundo do indivíduo.21 21 Isso parece ter estreita semelhança com as concepções piaroa descritas por Overing (1998, p. 175), que observa, por exemplo, que "Um [...] verbo que designa existência, a'kwarü deriva do substantivo ta'kwarü ("vida de pensamentos") [...] Tanto como ser humano, quanto como deus, é possível dizer tü akwarus£ ("eu vivo, eu existo, eu sou") [...] Ter ta'kwarü [...] acarreta a aquisição e o aprendizado de ambas habilidades culturais [...] e responsabilidade ou consciência". Isso também significa que o eu de um ser humano se forma principalmente em contextos sociais humanos, enquanto o eu de uma criatura tsori se forma num contexto social tsori. Igualmente, a concepção de isure é próxima daquilo que poderíamos definir como consciência e cognição, ou racionalidade e, ao mesmo tempo, o princípio vital sem o qual seria impossível viver.

A vitalidade inerente ao isure é preponderante na narrativa biográfica22 22 Entre gente matsigenka, é possível distinguir pelo menos dois tipos de narrativa. Até o momento este artigo fez uso da mitologia, mas a história a seguir pertence a um gênero que chamei provisoriamente de "biográfico" (Rosengren, 2003b), uma vez que supostamente lida com relatos de personagens históricas. A narrativa biográfica difere do mito porque os eventos nela narrados supostamente ocorreram num passado bem mais recente do que o passado distante e indefinido dos relatos míticos. Eventos descritos em narrativas biográficas geralmente se situam numa época não muito distante do boom da borracha, mas não mais recente do que a infância da pessoa mais idosa das redondezas. Uma característica crucial dessas histórias é o fato de elas serem apresentadas como reminiscências de eventos verdadeiros em que pessoas conhecidas, que hoje estão mortas, estiveram presentes como testemunhas ou tomaram parte delas. O narrador, que mais uma vez é o sr. Dario Mahuantiari, apresenta o principal protagonista como seu avô (MoFa). a seguir, que eu ouvi quando pesquisava sobre xamãs e feiticeiros. Um homem perverso, que o narrador supôs ser um feiticeiro (machikanari), andava matando várias pessoas e era muito temido pelos moradores da vizinhança. Depois de um tempo, ele é capturado por Kashiriari Maeni, um xamã poderosíssimo (seripigari), que vivia às margens do Alto Picha, na região do Baixo Urubamba. Kashiriari Maeni leva o tal homem perverso para casa, onde ele o força a se ajoelhar. Em seguida, o xamã assopra - Sho! - bem no alto da cabeça do homem, isto é, em sua moleira - supostamente o portão principal pelo qual a alma entra e sai do corpo. Kashiriari Maeni então puxa o isure com forçade dentro da cabeça do homem (nesse momento o narrador fecha uma das mãos e a coloca na palma aberta da outra, e então ergue o punho cerrado como se estivesse puxando algo para cima). O homem perverso desfalece imediatamente, mas Kashiriari Maeni o levanta, joga um pouco do isure de volta na cabeça dele, e o homem recobra sua consciência. O homem, porém, não é mais seu antigo eu. Já não consegue falar direito e vaga a esmo, descontrolado (o narrador ilustra a condição do homem perverso andando para cima e para baixo como se estivesse totalmente bêbado, fazendo caretas ridículas e falando disparates para grande diversão da platéia). Ele também está muito fraco e, quando a noite cai, ele morre.

Essa historieta é interessante porque retrata a alma como algo concreto e tangível, o que sugere que se acredita que ela tenha um lugar específico dentro do corpo. A associação entre pensamentos e coração, comum em muitos lugares da Amazônia (cf. Belaunde, neste volume), também é cogitada por gente Matsigenka. A posição central dada a esse músculo pode ser inferida linguisticamente, uma vez que a mesma raiz, niga, é usada para formar a expressão verbal "estar no meio", niga-nki, e para "coração", nigá-kintsi, com significado literal traduzido por "aquilo que está no meio". O coração, porém, não é apenas concebido como localizado no meio do corpo, ele também constitui o cerne do corpo num sentido mais simbólico que diz respeito à sua associação com a alma.23 23 Na língua asháninka, nošire significa tanto "minha alma" como "meu coração" (Weiss, 1975, p. 426f). O fato de o cerne de uma árvore ser chamado de osure (cf. Shepard, 1999, p. 90) pode ser tomado como uma indicação do ponto onde gente matsigenka acredita estar localizada a alma dentro do corpo.

Como observado acima, a alma se manifesta de maneira mais substancial em outras dimensões, como as que são visitadas durante as jornadas cósmicas e durante o sonho, quando aparece na forma física, ou seja, na forma que chamei acima de "corpo espiritual". O caráter concreto da alma significa, entre outras coisas, que ela pode ser dividida do modo como o poderoso Kashiriari Maeni (que como xamã era extremamente experiente em assuntos transdimensionais) lidou com a alma do homem perverso. Mas o mais importante é que enfatiza que a alma não é uma disposição ou uma perspectiva, mas uma coisa que pode ser manuseada e modelada de acordo com intenções explícitas. Essa plasticidade da alma repousa por trás daquilo que, segundo gente matsigenka, é concebido como o eu único de cada indivíduo.

Conclusão

Em certo sentido, o eu, da forma como foi discutido aqui, pode parecer mais ou menos o que Viveiros de Castro (1998) define como a "subjetividade" comum a todos os seres. Um resultado dessa perspectiva, contudo, é que tanto a identidade individual quanto os modos de conhecer e de se relacionar com o mundo tornam-se funções da configuração corporal. Contrastando com a importância dada à corporeidade para moldar a disposição de subjetividades em entender o mundo de maneira específica, a etnografia examinada aqui demonstra que a forma corporal para gente matsigenka não é coincidente com a consciência. Embora façam parte do eu, corpo e alma são vistos como distintos, e a consciência, da maneira como é entendida pelos Matsigenka, não é algo que possa ser reduzido à fisiologia.

A idéia de que o aspecto físico do eu é o invólucro da alma, ou aspecto espiritual, está disseminada na Amazônia. Essa noção do corpóreo como envelope é comumente ligada à concepção do aspecto não físico do eu como local de convergência da consciência e do autoconhecimento. Assim, embora o corpo reúna várias faculdades sensoriais, é por meio da cognição da alma que a consciência individual do mundo é formada e experiências sensoriais se tornam inteligíveis e influentes. O relato de Santos-Granero (neste volume) acerca das concepções de conhecimento dos Yanesha também está de acordo com as noções dos Matsigenka, o que significa que, entre outras coisas, eles distinguem entre a dimensão material e a dimensão não material, ou espiritual, do mundo. Assim como ocorre entre os Yanesha, gente matsigenka concebe a dimensão espiritual do mundo acessível apenas para a parte espiritual do eu, que, desse modo, adquire conhecimento (que pode ser propagado posteriormente para as outras partes). Com base nesse conhecimento, a alma dá sentido aos estímulos sensoriais e, por meio da racionalização da experiência, torna-se essencial na formação da identidade individual.

Um corolário do conhecimento do Eu é o conhecimento do Outro, que também é uma condição para a sociabilidade. O autoconhecimento é, igualmente, um pré-requisito para encontros de significância que implicam, pelo menos, uma troca da experiência do encontro. Além do mais, qualquer tipo de confronto com um Outro irá influenciar a percepção do eu e, por conseguinte, a auto-identificação individual emerge como um resultado da socialização. O efeito de influências desse tipo depende, é claro, da firmeza do autoconhecimento (o que significa que bebês em gestação e recém-nascidos são mais facilmente influenciáveis do que os mais velhos), mas também da vontade do eu. O autoconhecimento contém um elemento de "tornar-se outro" (tomando de empréstimo um conceito de Gilles Deleuze), mas, como já demonstrado por Overing (e.g. 1985c), a socialização também pode acarretar a aspiração de "tornar-se igual". Com efeito, o perspectivismo entre gente matsigenka não é primordialmente uma questão de percepção, mas de sociabilidade.

Dessa maneira, o autoconhecimento não é uma mera disposição, ou perspectiva, cuja particularidade é compartilhada por outros seres fisicamente semelhantes, mas algo único, singular, gerado pelas condições históricas específicas que influenciam o desenvolvimento de cada alma individual. Em contraste com a subjetividade comum, o eu é altamente pessoal e, como tal, a diversidade individual é o padrão. Enquanto a identidade da subjetividade é dada pela forma física, corporal, a identidade da alma é gerada nos interstícios da interação social.

Notas

20 Parece que em algumas línguas germânicas há conceitos semelhantes ao equivalente latino. Em sueco, por exemplo, existe a palavra bildning (que parece relacionada etimologicamente ao conceito inglês building, tanto como substantivo quanto como verbo), que significa não só "formação" e "estrutura" como também "educação, boa criação, cultura e instrução".

Bibliografia

Tradução de Telma Franco Diniz.

Aceito em fevereiro de 2006.

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  • 1
    Este artigo se beneficiou imensamente dos comentários inspirados e construtivos feitos por Lisa Akesson, Kaj Århem, Steven Rubenstein, Fernando Santos-Granero e Diana Walters, aos quais sou muito agradecido. O autor por si só é responsável por quaisquer erros remanescentes.
  • 2
    No contexto deste artigo, coloco em foco o aspecto ciente do eu. O aspecto físico do eu não é desprovido de importância e, como fica claro adiante, para gente matsigenka, os aspectos físicos e não físicos estão ligados: a mente, por exemplo, depende do corpo e recorre a ele para ter uma experiência sensorial do mundo, corpo este que também é um instrumento de comunicação. Porém, o aspecto físi-co do ser é visto, sobretudo, como um invólucro do aspecto ciente, o formato do qual é principalmente o produto da sociabilidade do aspecto ciente. O conceito do "eu" pretendido aqui é, portanto, a consciência idiossincrática que emerge e é formada na interação com outras consciências similares dentro de contextos históricos específicos.
  • 3
    Os Matsigenka reconhecem dois tipos de alma: a "alma do osso" (
    itonki) e uma alma livre, chamada de
    isure, que é o tipo de alma a que me refiro aqui. Segundo Baer (1984, p. 129), alguns Matsigenka podem cogitar um terceiro tipo de alma, que Baer chama de "alma do olho" (
    ishigentiaarite). Até onde sei, Baer é o único etnógrafo a mencionar essa terceira alma, e a crença nela parece não ser muito comum entre os Matsigenka. Entre os povos de língua arawak das selvas montanhosas do Peru, as concepções de alma parecem variar. Crenças em almas múltiplas são encontradas tanto entre os Yine (Piro) (cf. Gow, 2001, p. 64) quanto entre os Yanesha - entre estes últimos também já foram encontradas noções de uma "alma do olho" (cf. Santos-Granero, neste volume). Por outro lado, Weiss (1975, p. 427) afirma que os povos asháninka ribeirinhos acreditam apenas em uma única alma.
  • 4
    Para um estudo detalhado dos efeitos de influências não humanas que não deixam sinais físicos, ver Londoño Sulkin (neste volume).
  • 5
    Banhos semelhantes são administrados como parte do processo de luto. Em sintonia com o argumento deste artigo, Shepard (2002, p. 214) interpreta os banhos tomados alguns dias depois do falecimento de alguém como uma defesa contra os espíritos da morte,
    kamatsirini.
  • 6
    O relato de frei García sobre a estrutura narrativa segue as convenções literárias ocidentais, o que significa que certos aspectos do mito se perderam. Porém, para o propósito deste artigo, sua versão pode ser usada, uma vez que o que interessa é o conteúdo geral. Com respeito ao conteúdo, a versão não difere de maneira significativa de nenhuma outra versão que eu tenha ouvido ou visto (cf. Arias, 2003).
  • 7
    García (1936, p. 87) sugere que a escaldadura é utilizada para tirar os pêlos rijos como é feito com os porcos mortos antes de lhes cortarem as carnes. Contudo, acredito que o tipo de escaldadura dessa narrativa é de natureza inteiramente diferente, principalmente porque o homem-queixada não está morto e o jovem não tem intenção de matá-lo. É bem mais provável que o banho aqui relatado seja do tipo que as mães dão em seus bebês (veja acima) e pelo mesmo propósito, ou seja, purificá-los da influência não humana com o fim de manter a humanidade ou recobrá-la (como no mito).
  • 8
    Isto, claro, é uma paráfrase de Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979) ao defender que a sociologia amazônica poderia ser vista como fisiologia.
  • 9
    Esse mito é muito conhecido na região do Alto Urubamba. Já tive oportunidade de ouvi-lo inúmeras vezes na voz de narradores diferentes, com pequenas variações produzidas principalmente pelo estilo narrativo individual dos vários atores. A versão usada aqui me foi contada na comunidade indígena de Koribeni pelo sr. Dario Mahuantiari.
  • 10
    O conceito de "relações transdimensionais" usado aqui está relacionado à noção de diferentes pontos de vista. O povo matsigenka entende o cosmos como um universo múltiplo ("multiverso"), com mundos ou dimensões interagindo entre si e se sobrepondo. De conformidade com isso, a mudança de dimensão não requer um deslocamento físico, uma vez que a transferência entre as dimensões é basicamente alcançada harmonizando-se de modos diferentes em relação ao cosmos.
  • 11
    Os Asháninka também interpretam os sons dos animais como linguagens distintas (Weiss, 1975, p. 426).
  • 12
    Os Matsigenka não fazem distinção conceitual entre esses dois tipos de corpos e falam de ambos em termos de
    ivatsa, "carne, corpo".
  • 13
    O relato de Santos-Granero (neste volume) sobre as noções do povo yanesha acerca do corpo senciente e também, até certo ponto, o relato de Lagrou (neste volume) acerca do "corpo pensante" dos Kaxinawa estão de acordo com as correspondentes concepções dos Matsigenka, que por sua vez também se assemelham
    à distinção que os Piaroa fazem entre uma "vida de pensamentos" e uma "vida dos sentidos" entendidas como partes constitutivas dos seres humanos (Overing, 1988, p. 174).
  • 14
    O fato de tanto o queixada quanto o japu-preto, nos mitos aqui discutidos, serem de natureza marcadamente gregária é decerto apenas uma coincidência. Noutros mitos, as pessoas são transformadas em espécies mais solitárias - embora a transformação sempre ocorra para possibilitar a sociabilidade.
  • 15
    Aparentemente, essas noções também são aceitas em outras regiões da Amazônia. Um exemplo é encontrado num dos mitos kaxinawa que Lagrou apresenta neste volume, em que Paketawã, o principal protagonista, transforma-se num
    Inka, símbolo de alteridade entre os Kaxinawa, graças tão-somente ao compartilhamento e à coexistência pacífica.
  • 16
    O significado e a origem desse termo têm sido interpretados de maneiras diferentes por diferentes autores. Uma das primeiras explicações encontradas na literatura é a de Tessman (1930, p. 84). Segundo ele, esse termo teria derivado da palavra quéchua
    cholo, com o sentido pejorativo de "mestiço". Weiss (1975, p. 232) também sugere que derive do quéchua, mas da palavra
    churi, com o sentido de "filho". De acordo com France-Marie Renard-Casevitz (comunicação pessoal),
    tsori poderia ser traduzido como "falso", "inverídico".
  • 17
    A sílaba inicial
    ga- é o radical do verbo
    gagantsi, cujo significado cobre um amplo campo semântico. Duas das várias traduções possíveis apontadas por Snell (1998, p. 86ff) são "pegar, agarrar" e "casar". Mas, pelo menos na região do Alto Urubamba, também é usado (provavelmente como extensão) como "fazer sexo" e "estuprar".
  • 18
    Ver também Belaunde (neste volume) acerca do efeito do odor fétido do sangue nas relações transdimensionais e Lagrou (neste volume) acerca dos odores sexuais que exercem efeito negativo sobre as relações com os animais de caça e o peixe.
  • 19
    Noções acerca desse tipo de espectro também existem entre os Matsigenka, que as denominam
    kamatsiri.
  • 21
    Isso parece ter estreita semelhança com as concepções piaroa descritas por Overing (1998, p. 175), que observa, por exemplo, que "Um [...] verbo que designa existência,
    a'kwarü deriva do substantivo
    ta'kwarü ("vida de pensamentos") [...] Tanto como ser humano, quanto como deus, é possível dizer
    tü akwarus£ ("eu vivo, eu existo, eu sou") [...] Ter
    ta'kwarü [...] acarreta a aquisição e o aprendizado de ambas habilidades culturais [...] e responsabilidade ou consciência".
  • 22
    Entre gente matsigenka, é possível distinguir pelo menos dois tipos de narrativa. Até o momento este artigo fez uso da mitologia, mas a história a seguir pertence a um gênero que chamei provisoriamente de "biográfico" (Rosengren, 2003b), uma vez que supostamente lida com relatos de personagens históricas. A narrativa biográfica difere do mito porque os eventos nela narrados supostamente ocorreram num passado bem mais recente do que o passado distante e indefinido dos relatos míticos. Eventos descritos em narrativas biográficas geralmente se situam numa época não muito distante do
    boom da borracha, mas não mais recente do que a infância da pessoa mais idosa das redondezas. Uma característica crucial dessas histórias é o fato de elas serem apresentadas como reminiscências de eventos verdadeiros em que pessoas conhecidas, que hoje estão mortas, estiveram presentes como testemunhas ou tomaram parte delas. O narrador, que mais uma vez é o sr. Dario Mahuantiari, apresenta o principal protagonista como seu avô (MoFa).
  • 23
    Na língua asháninka,
    nošire significa tanto "minha alma" como "meu coração" (Weiss, 1975, p. 426f).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      Fev 2006
    • Recebido
      Fev 2006
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