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"Falas" instrumentais, moralidade e agência masculina entre os Muinane (Amazônia colombiana)

Resumos

Entre a Gente do Centro (Amazônia colombiana), as pessoas retratam discursivamente a si mesmas e a outrem numerosas vezes, tecendo considerações sobre a competência e a moralidade próprias e a carência alheia dessas qualidades. Neste ensaio, atento para um conjunto particular de retratos discursivos: aqueles que, concernindo especialmente aos homens, se referem a formas de conhecimento que cada grupo da Gente do Centro considera dele próprio e de mais ninguém. Os indivíduos enfatizam a grande quantidade de conhecimento que possuem; a retidão dos processos que levam a cabo para adquiri-lo; a legitimidade do uso que dele fazem; sua eficácia; seu caráter autenticamente patrilinear; e o respeito e medo que, por causa dele, inspiram em outros. Também endereçam críticas a outrem por falhas relativas a esses aspectos. Essas avaliações baseiam-se no que se considera admirável ou desejável na subjetividade e na ação humanas - masculinas e femininas, diferencialmente -, nos marcos de um cosmo perspectivista permeado por relações predatórias. Meu argumento é que os indivíduos produzem tais retratos morais motivados pelo desejo de encorporar um certo ideal de agência masculina, sob o estímulo de saberem provável que suas próprias ações e subjetividades sejam retratadas, por outros à sua volta, como imorais, animalescas ou, de todo modo, inadequadas. O ensaio sublinha, no geral, a importância de atentar-se etnograficamente para a subjetividade dos indivíduos.

indígenas amazônicos; moralidade; pessoa; emoções; conhecimento; gênero


Individuals among People of the Center (Colombian Amazon) produced numerous discursive depictions of themselves and of others, regarding their own competence and morality and others' lacks thereof. Here, I attend particularly to a set of portrayals that pertained mostly to men: those concerning forms of knowledge that each People of the Center deemed uniquely their own. Individuals stressed the great amount of knowledge they possessed, the propriety of their processes of acquisition and the legitimacy of their use of it, its effectiveness and authentically patrilineal character, and the respect and fear others had of them because of it. They also criticized others for shortcomings in these regards. They articulated their evaluations in terms of what they found to be admirable or desirable in gendered human subjectivity and action, in the frame of a perspectival cosmos permeated by predatory relations. I argue that individuals produced such portrayals motivated by desire to embody a certain ideal of masculine agency, and spurred by their awareness of the likelihood that their own actions and subjectivities would be portrayed as immoral, animalistic or otherwise inadequate by others around them. As a whole, the essay stresses the importance of attending ethnographically to individuals' subjectivity.

amazonia indigeous; morality; personhood; emotions; knowledge; gender


CONHECIMENTO NA PRÁTICA

"Falas" instrumentais, moralidade e agência masculina entre os Muinane (Amazônia colombiana)1 1 Generosa dotação da Fundação The Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research, Inc., com uma bolsa Richard Carley Hunt Fellowship, permitiu-me dispor do tempo necessário para escrever este artigo. Elaborei-o em computador adquirido por meio de uma convencional subvenção à pesquisa, do órgão Social Sciences e Humanities Research Council (SSHRC-Canadá). Pelas ajudas editoriais que deram, sou grato a Amy McLachlan e a Fernando Santos-Granero.

Carlos David Londoño Sulkin

Departamento de Antropologia – Universidade de Regina

RESUMO

Entre a Gente do Centro (Amazônia colombiana), as pessoas retratam discursivamente a si mesmas e a outrem numerosas vezes, tecendo considerações sobre a competência e a moralidade próprias e a carência alheia dessas qualidades. Neste ensaio, atento para um conjunto particular de retratos discursivos: aqueles que, concernindo especialmente aos homens, se referem a formas de conhecimento que cada grupo da Gente do Centro considera dele próprio e de mais ninguém. Os indivíduos enfatizam a grande quantidade de conhecimento que possuem; a retidão dos processos que levam a cabo para adquiri-lo; a legitimidade do uso que dele fazem; sua eficácia; seu caráter autenticamente patrilinear; e o respeito e medo que, por causa dele, inspiram em outros. Também endereçam críticas a outrem por falhas relativas a esses aspectos. Essas avaliações baseiam-se no que se considera admirável ou desejável na subjetividade e na ação humanas – masculinas e femininas, diferencialmente –, nos marcos de um cosmo perspectivista permeado por relações predatórias. Meu argumento é que os indivíduos produzem tais retratos morais motivados pelo desejo de encorporar um certo ideal de agência masculina, sob o estímulo de saberem provável que suas próprias ações e subjetividades sejam retratadas, por outros à sua volta, como imorais, animalescas ou, de todo modo, inadequadas. O ensaio sublinha, no geral, a importância de atentar-se etnograficamente para a subjetividade dos indivíduos.

Palavras-chave: indígenas amazônicos, moralidade, pessoa, emoções, conhecimento, gênero.

ABSTRACT

Individuals among People of the Center (Colombian Amazon) produced numerous discursive depictions of themselves and of others, regarding their own competence and morality and others' lacks thereof. Here, I attend particularly to a set of portrayals that pertained mostly to men: those concerning forms of knowledge that each People of the Center deemed uniquely their own. Individuals stressed the great amount of knowledge they possessed, the propriety of their processes of acquisition and the legitimacy of their use of it, its effectiveness and authentically patrilineal character, and the respect and fear others had of them because of it. They also criticized others for shortcomings in these regards. They articulated their evaluations in terms of what they found to be admirable or desirable in gendered human subjectivity and action, in the frame of a perspectival cosmos permeated by predatory relations. I argue that individuals produced such portrayals motivated by desire to embody a certain ideal of masculine agency, and spurred by their awareness of the likelihood that their own actions and subjectivities would be portrayed as immoral, animalistic or otherwise inadequate by others around them. As a whole, the essay stresses the importance of attending ethnographically to individuals' subjectivity.

Key-words: amazonia indigeous, morality, personhood, emotions, knowledge, gender.

Introdução

Este é um artigo que pensa obsessivamente questões de moralidade, em particular, pelo modo como a Gente do Centro2 2 Trata-se de clãs patrilineares que vivem na região dos rios Caquetá e Putumayo, na Colômbia, e falam as línguas uitoto, muinane, eoke, ocaina, bora, miraña e nonuya. Ver Espinosa Arango (1995, p. 304), Karadimas (1997), Londoño Sulkin (2001, 2004), Echeverri (1997, p. 2) e Griffiths (1998). (região do médio Caquetá, na Amazônia colombiana) fala sobre a admirabilidade, a dignidade, a desprezibilidade e a maldade de práticas, ações e subjetividades de seres portadores de agência. Num plano mais abstrato, o texto apresenta minha própria síntese interpretativa e esquemática dos entendimentos ou explicações da Gente do Centro a respeito de moralidade e cosmologia, mas também discute – e tal é o seu núcleo – o modo como as pessoas refletem sobre essas explicações e usam-nas de modo inteligente, reiterando-as, contestando-as, transformando-as. A obsessão em tela, aprendida com Joanna Overing no tempo em que fui seu aluno, reforçou-se com o passar dos anos, conforme fui tendo repetidas oportunidades de perceber o quão perspicaz e apropriada é, quando se trata de prestar atenção às vidas sociais de povos amazônicos (e outros), a ênfase em questões de moralidade por ela proposta. Parece-me claro que o interesse de Overing por essas questões é tanto um de seus legados mais salientes como o traço mais consistentemente compartilhado por seus alunos e admiradores. Está a atestá-lo o presente volume, resultado de uma conferência em sua homenagem. Sinto-me privilegiado em poder, por intermédio dele, contribuir para uma maior difusão dessa importante ênfase.

Entre os Muinane e outras Gente do Centro, homens e mulheres expõem numerosos retratos de suas próprias pessoas, de outras e das interações aí implicadas – retratos discursivos que se referem, muitas vezes, à moralidade e à competência próprias, ou à carência alheia dessas mesmas qualidades. Durante minha estadia nas comunidades muinane, tais representações morais de si mesmo e de outrem foram tão freqüentes e explícitas – assumissem elas a forma de breves historietas ou de narrativas mais longas, estivessem destinadas a mim ou a um público mais amplo – que meu choque cultural diante do que pareciam demonstrações de imodéstia e de rabugice logo se dissipou. Passei a tê-las como um desafio intelectual e, em seguida, a tomá-las como exemplos do uso de marcos narrativos e símbolos que são muito comuns na prática. Neste artigo, minha atenção concentra-se num conjunto específico de retratos falados e outros fazeres: aqueles que, sendo principalmente masculinos, dizem respeito a formas de conhecimento consideradas pelos Muinane como deles próprios, diferentes das de outros grupos. Vários aspectos são nesse sentido destacados pelos mambeadores, homens adultos que fazem consumo ritual da substância mambe:3 3 Mambe é o termo em espanhol para uma mistura composta de folhas de coca torradas e reduzidas a pó e de cinzas de folhas de Cecropia. O verbo correspondente é mambear, ação que consiste em comprimir o pó verde contra a face interna da bochecha e deixá-lo ali, para que seja lentamente absorvido. O principal – mas não único – lugar para o consumo de coca é o mambeadero, círculo de assentos situado em algum ponto no interior da maloca. a grande quantidade de conhecimento que possuem; o caráter genuinamente muinane ou patrilinear desse conhecimento; a retidão dos processos levados a cabo por eles para adquiri-lo; a legitimidade do uso que dele fazem; sua eficácia; o respeito e medo que, por causa dele, inspiram em outrem. As mulheres também produzem numerosas auto-representações, mas não expressam tamanha obsessão com sua própria agência nem pretensões à posse de um conhecimento perigoso. Igualmente numerosas, e relativas aos mesmos pontos, são as avaliações negativas de outrem apresentadas pela maioria dos indivíduos que conheci entre a Gente do Centro: de modo sub-reptício ou aberto, homens e mulheres negam a quantidade, a eficácia e a legitimidade do conhecimento alheio, bem como a boa vontade de outrem, sua correção e assim por diante; "provas" da falta de conhecimento e da má conduta alheias são freqüentemente apontadas.

Minha curiosidade foi saber por que tais retratos morais são levados a cabo entre a Gente do Centro, e o que se pode alcançar com eles. Aqui, tentarei mostrar que a motivação dos indivíduos para produzi-los vem da ligação entre um certo ideal de agência, isto é, um sentido daquilo que seria admirável ou desejável em termos de subjetividade e ação humanas, e a consciência de que suas próprias ações e subjetividades podem ser concebidas, por outros à sua volta, como imorais, animalescas ou, de qualquer forma, inadequadas. As interpretações feitas por outrem, muitas vezes expressas em tom de censura, são sempre um risco entre a Gente do Centro.4 4 Conforme Conklin, ao escrever a respeito dos Wari: "O maior de todos os controles sobre o comportamento individual é uma intensa suscetibilidade à opinião pública e à crítica idem" (2001, p. 38). Ver também Basso (1995, p. 29). Para julgamentos quanto à pretensão alheia a ter um temível poder xamânico, ver Storrie neste volume.

Entre a Gente do Centro, indivíduos produzem auto-retratos morais de modo refletido e, às vezes, com uma bem estudada intenção de persuadir – ainda que não questionem, por via de regra, o caráter dado das categorias vocabulares fixadas performativamente, isto é, na própria expressão desses retratos. Há bastante consciência da provável avaliação das condutas e ações de si mesmo por outrem, e, com efeito, muitos dos auto-retratos morais tomam a forma de citações de ostensivos dizeres alheios – de parentes, mas também de mortos e outros tipos de seres – sobre seus autores. Junto com outras práticas de conhecimento, discursivas e não discursivas, que são expressas ou comentadas por meio de um detalhado vocabulário de forte avaliação moral,5 5 Acompanho o uso que Charles Taylor faz do termo para referir "distinções entre coisas que são reconhecidas como de importância ou qualidade categórica, incondicional ou maior, por um lado, e coisas que carecem disso ou que são de menor valor" (Taylor, 1985, p. 3). esses discursos, acredito, criam e recriam a própria natureza e inteligibilidade dos tipos de agentes que a Gente do Centro entende ser ou poder ser. Tais tipos de agentes se fazem ainda mais inteligíveis a essa Gente nos marcos de um certo tipo de cosmo: um que se constrói no diálogo e por meio dos mesmos procedimentos simbólicos reiterativos que operam na construção dos agentes. Minha convicção de que isso é assim se deve, parcialmente, à grande coerência, ou até mesmo identidade, entre três elementos do comportamento da Gente do Centro: os modos como os indivíduos agem no mundo que está "fora deles"; seus modos de agir sobre corpos e subjetividades; e suas conversas de tom reflexivo acerca tanto de tais matérias como de ações próprias ou alheias. Esse desenho de mundo, agência e subjetividade impõe-se claramente às pessoas: elas parecem sentir, e sem dúvida interagem, de maneiras que são coerentes com um tipo de cosmo bastante particular e complexo – a vida que assim se vive certamente influi sobre si.6 6 Devo notar, entretanto, que tais imagens não constituem uma cultura monolítica que tudo abrangesse. Sobre esses mesmos assuntos, as pessoas falam às vezes em outros termos.

Meu argumento é que uma interpretação "densa" da vida social da Gente do Centro, que inclua em sua intrincada complexidade não só os auto-retratos de fundo moral que logo despertaram minha curiosidade, mas também temas antropológicos mais "tradicionais", como as vicissitudes de sua organização social, ou sua cosmologia, pede atenção à dimensão subjetiva, isto é, às motivações dos indivíduos e aos seus entendimentos sobre si mesmos, umas e outros sendo moldados e instituídos, em parte, pela articulação entre suas interpretações acerca de elementos como agência, emoções e moralidade. Não posso apresentar uma explanação causal absolutamente bem amarrada sobre como o desenho de agência em questão chega a influir sobre as pessoas, transformando-se em desejos, vocações ou aspirações a ser um certo tipo de agente, ou a ser individualmente percebido como tal. Minha interpretação quanto a essa matéria – as subjetividades da Gente do Centro – está inevitavelmente fundada na compreensão que tenho de mim mesmo. Muitos dos meus desejos, convicções e motivações são, para mim, manifestas obviedades: provavelmente por conta de formas simbólicas que adquiri ao longo da vida, e que instituem ou moldam minhas interpretações, eu simplesmente vejo que certas formas de ação e de subjetividade, e certos estilos pessoais, são desejáveis e valorosos; vê-los como tais consiste numa motivação para que eu aja de determinado modo. Também me é clara a noção de que muitas das minhas ações dependem de escolhas e decisões que tomo reflexivamente com base em distinções de valor. Uma vez que identifico isso em meu agir, suponho que as pessoas ajam, muitas vezes reflexivamente, à base dos entendimentos (ou mal-entendidos) que têm sobre si mesmas e sobre o mundo.7 7 Dou ouvidos, aqui, tanto aos pedidos de atenção à consciência individual por Cohen (1994, p. 5 e 6) e Overing & Passes (2000), como aos argumentos de Taylor (1985, p. 294) no sentido de as interpretações feitas por seres humanos – animais intérpretes de si mesmos – envolverem distinções valorativas.

Nas próximas páginas, apresento minha interpretação sintética de certos entendimentos da Gente do Centro e, em alguns momentos, dos Muinane em específico. Trato dos entendimentos dessa Gente quanto aos modos como o conhecimento que lhe é próprio – e práticas associadas a ele – relaciona-se com o cosmo onde ela vive, com sua organização social, suas subjetividades e suas idéias a respeito de agência. Depois dis-so, passo a um exame de questões morais relativas ao conhecimento, tais como expressas em retratos discursivos que avaliam ações e agências individuais, próprias e de outrem.

Pessoa, cosmo e agência

Quando conversam, os Muinane freqüentemente descrevem ou mencionam um cosmo densamente habitado por variados agentes supra-humanos, humanos e pseudo ou infra-humanos. As conversas muinane separam esses seres uns dos outros em bases morais: embora muitos deles tenham, de certo modo, alguns traços de humanidade, somente miyám

naha – literalmente, "Gente de Verdade" (os Muinane e os que lhes são parecidos) – são seres propriamente humanos, possuidores da capacidade de viver do modo como esses seres devem fazê-lo. Em certa medida, animais e alguns outros tipos de seres talvez vejam a si mesmos como humanos, mas, em termos morais, não chegam a alcançar uma verdadeira humanidade. Essa classificação moral se expressa com nitidez máxima em determinadas avaliações de imoralidade bastante claras: aquelas referentes a ações de pessoas cujos pensamentos/emoções são considerados animalescos (ver Londoño Sulkin, 2005, p. 7-30).

De acordo com vários mambeadores a quem perguntei, o propósito último da vida humana é reproduzir a "humanidade" – termo que pode abarcar o grupo de parentes, a Gente do Centro ou a espécie humana em geral. Essa reprodução envolve a intencional fabricação de pessoas que estejam dotadas de subjetividades sociáveis e corpos competentes, umas e outros sendo necessários para a condução da vida comunitária tal como deve ser conduzida: numa interação cotidiana de caráter sereno e afetuoso. A constituição de indivíduos que sejam Gente de Verdade é, assim, uma preocupação central e freqüentemente explicitada no funcionamento social. Grande parte das atividades normais da vida muinane – diárias ou eventuais, cerimoniais ou não – guarda relação com tal preocupação. Uma premissa comum a muito do que os Muinane dizem e fazem é que as subjetividades e as agências das pessoas são determinadas por suas constituições físicas, isto é, pelas substâncias que compõem seus corpos. Por meio de rituais e da simples ingestão diária, cultivares-chave, como tabaco, coca, pimentas, mandioca e outros, tornam-se carne humana. Essas substâncias, que têm origem divina e são dotadas de subjetividades e agências próprias, "falam por meio das" pessoas, gerando seus pensamentos/emoções morais e sensações físicas.

A qualidade material de subjetividades e agências torna as pessoas vulneráveis à maldade de animais e outros seres inumanos. Foram muitas as vezes em que meus interlocutores entre a Gente do Centro acusaram esses seres de haver introduzido suas subtâncias malignas e dotadas de subjetividade nas pessoas, ou de ter influído sobre a saúde física delas de alguma outra maneira. Em várias situações que testemunhei, quando alguém se punha fisicamente incapacitado de contribuir para o bemestar material da comunidade, ou então se portava de maneira anti-social, outras pessoas, e às vezes o próprio indivíduo em questão, alegavam tratar-se do efeito da usurpação de seus pensamentos/emoções e de sua fala por algum animal. As ações das pessoas ocasionam freqüentes divergências interpretativas quanto a conformarem condutas apropriadamente humanas ou, antes, produtos da bestial e imoral usurpação de subjetividades. A plausibilidade de tais acusações deriva da cosmologia perspectivista da Gente do Centro, na qual os seres percebem a si mesmos e aos que lhes são corporalmente parecidos como "humanos": se animais e outros seres inumanos percebem os que são de sua mesma espécie como "humanos" e, não obstante, maltratam-nos, pessoas de subjetividades animalescas, ainda que percebam as que têm corpos semelhantes aos seus como "humanas", podem maltratá-las (ver Londoño Sulkin, 2005, p. 7-30 e Viveiros de Castro, 1998). Em comunidades nas quais abundam esse tipo de acusação, as pessoas esforçam-se bastante para conferir consistência e realçar suas próprias humanidade e moralidade, de modo a prevenir-se contra interpretações desfavoráveis.8 8 Sobre perspectivismo, ver Belaunde, Lagrou, Rosengren, Santos-Granero, Storrie e Werlang neste volume.

A materialidade de corpos adequadamente formados, de pensamentos/emoções morais e das respectivas contrapartes degeneradas, por um lado, e a subjetividade de quem porta matéria, por outro, são premissas daquilo que interpreto ser o entendimento da Gente do Centro a respeito de sua própria agência. Na minha interpretação, parte importante desse entendimento é um postular-se capaz de manipular substâncias e seus portadores, seja no plano físico, seja por meio de persuasão. Tal capacidade origina-se de substâncias-chave que são, elas mesmas, agentes dotados de intencionalidade, tais os casos da pasta de tabaco, da coca, de certas pimentas, da água e de determinadas ervas. Muitas das manipulações em tela são pensadas como transformações de caráter predatório, que envolvem o poder de matar. A mais importante fonte dessa agência predatória é o tabaco, ele próprio um poderoso predador. Ao entrar na composição dos corpos das pessoas, o tabaco não apenas lhes abastece de pensamento/emoções, mas também lhes transmite algumas das capacidades predatórias que possui. Ademais, as pessoas – os mambeadores, principalmente, e algumas mulheres, para uns poucos propósitos – usam em relação ao tabaco o que chamo "Falas" instrumentais: "Falas de Vida", "de Cura", "de Notificação", "de Trabalho", "de Derrubada de Árvores", "de Construção de Malocas", "de Dor" (a "Fala do Líder"), entre outras. Essas "Falas", com seus protocolos e condições, são utilizadas com a finalidade de levar a agência do tabaco ingerido a predar agentes malignos e respectivas substâncias e, com isso, transformá-los – transformação que sirva a algum propósito de fabricação-de-gente ou de fabricação-de-comunidade.9 9 Sobre tais propósitos, ver Londoño Sulkin (2000, p. 170-86 e 2001, p. 434) e Overing & Passes (2000).

As "Falas" instrumentais são parte daquilo a que a Gente do Centro refere-se, em espanhol, como el conocimiento propio, "o conhecimento que nos é próprio".10 10 A expressão do espanhol conocimiento propio não tem uma tradução direta em língua muinane. A lingüista C. Vengoechea, contudo, refere-se a ela como Ifásitu, acompanhando afirmação de um informante (Vengoechea, comunicação pessoal). Entendo que tal termo muinane significa meramente "todas as partes" ou "a coisa inteira", não sendo ele um nome atribuído univocamente à categoria de conhecimento. A pesquisa de Vengoechea sobre a língua muinane está em andamento (Landaburu, 1996; Vengoechea, 1995). De acordo com aquilo que me foi dado a observar, os Muinane usam o termo el conocimiento propio sobretudo como contraste diante de "Falas" e outros discursos e técnicas que entendem ser prerrogativas dos brancos. De passagem, devo notar que, na época em que fiz minha pesquisa de campo, embora a maioria dos homens muinane possuísse alguma quantidade de conocimiento propio, já não havia xamãs especializados do tipo kakúmnaha (sugadores), capazes, segundo se dizia, de extrair doenças das pessoas por meio de sucção. Alguns muinane chegavam a identificar certos indivíduos dos grupos Matapí, Yukuna, Uitoto, Okaina e Makuna como curandeiros ou feiticeiros especializados.11 11 Tanto homens como mulheres enfatizam que elas não dispõem da "capacidade" necessária para ter-se conocimiento propio; considera-se que essa capacidade não combina com a compleição física feminina, e vice-versa.

As diferentes "Falas" instrumentais dizem respeito a numerosos campos de iniciativa humana e a distintas etapas da vida. Consistem em enunciados de caráter formular – fórmulas mais ou menos "prontas" conforme o caso – que os mambeadores entendem agir sobre o mundo, alterando, de diferentes maneiras, alguns de seus aspectos. Meus interlocutores afirmaram coisas variadas sobre essas "Falas": que eram a própria fala do deus criador (ou deusa criadora, dependendo do clã de quem discorria sobre o assunto) anunciada por meio dos falantes; ou que eram "registros" das palavras do(a) criador(a), semelhantes àquelas contidas numa fita cassete; ou então, que dirigiam a atenção do(a) deus(a) criador(a) para alguma transformação que as pessoas queriam que ele(ela) promovesse. Quanto aos enunciados falados, são entendidos, alternativamente, como eficientes por si sós ou como capazes de subjugar, de algum modo, a agência de certas substâncias.12 12 Um caso similar a este, quanto à alternância no uso de entendimentos, foi descrito por Tambiah (1968, p. 183).

Para que chegue a transformar agentes misantrópicos – e as substâncias, os pensamentos/emoções e as agências desses seres – em suas contrapartes propriamente humanas, a Gente de Verdade parece recorrer a duas formas principais de manipulação. Uma é a manipulação "física" de substâncias e agentes – ou de agências, pensamentos/emoções e sofrimentos que se apresentam como substâncias. A outra forma é a manipulação social de seres dotados de subjetividade, a qual implica muitas vezes a efetiva manipulação física dos mesmos.

Freqüentemente, a manipulação de agentes e substâncias é uma questão daquilo a que tenho chamado, sob influência de Butler (1993, p. 12-3), "performatividade divina". No caso das práticas muinane, vou circunscrever a noção ao poder de efetuar transformações no mundo por intermédio das ações de dar nome a algo ou de descrever as próprias transformações. Os efeitos expressos verbalmente ganham existência devido à (e por meio da) vontade do sujeito que os expressa. Um exemplo trivial dessa performatividade divina transcorre na maioria dos rituais noturnos levados a cabo nos mambeaderos muinane. Usualmente, esses rituais envolvem a recapitulação dos infortúnios que tenham afetado a comunidade naquele determinado dia ou que podem vir a afetála no dia seguinte. Cada um desses infortúnios é incluído como tema nos diálogos ritmados dos mambeadores, que passam, em algum momento, por um arrolamento de declarações. Algumas delas afirmam que os infortúnios estão sendo extirpados, banidos, eliminados; outras têm caráter metalingüístico, tratando da eficácia das primeiras.13 13 Um excelente exemplo de discurso performativo entre os Uitoto (ainda que sem usar o termo "performativo") está em Echeverri (1997, p. 250); para outros ritos similares entre os Uitoto, ver também Griffiths (1998, p. 72, 206). As frases e palavras que lista Tambiah (1968, p. 190-3), ao tratar da magia associada ao cultivo de roças na Melanésia, são muito semelhantes às da Gente do Centro.

Outra forma de performatividade divina é o uso da "designação". Óvkhi (mirar), mómonhi (denominar) e ímijsuhi (chamar de bom/ bonito) são diferentes manifestações de uma ação designante que os Muinane entendem gerar os efeitos expressos pela designação. Um exemplo de tal performatividade é a ação de chamar a carne de um perigoso tipo de peixe de mandioca. As pessoas entendem que essa ação transforma a substância original, livrando-a, logo, de suas características mais perigosas: como a mandioca não é patogênica, as características patogênicas do peixe são aplacadas. Vários dos meus interlocutores mambeaderos foram explícitos quanto ao perigo potencial da ação designante – num grau ainda muito maior, quando efetuada por homens mais velhos de boa instrução, como eles próprios, que estiverem fortalecidos pelo uso de tabaco e de coca. Emmanuel puxou esse assunto depois de repreender-me por chamar um avião, certa vez, de "águia de fogo" ( mogáje), termo de fato utilizado por alguns outros clãs para se referir a aeronaves. Disse ele: "Não o denomine assim... é por isso que eles caem e pegam fogo! Chame-o de kámoga ('canoa das alturas')".14 14 "Denominar" o nocivo, o trágico, o indesejável, o repulsivo, e assim por diante, do mesmo modo que suas contrapartes "boas" é algo importante. A isso se refere o aforismo muinane que vai no título de um artigo meu: "Embora surja como mau, eu o recebo como bom..." (Londoño Sulkin, 2000, p. 170-86).

O uso da agência transformativa e predatória manifesta-se de diferentes formas em muitas iniciativas importantes dos Muinane e de outras Gente do Centro (Echeverri, 1997; Londoño Sulkin, 2000 e 2001; Overing & Passes, 2000). A preparação de alimentos e de substâncias rituais é comentada, muitas vezes, como processos de filtragem e purificação: algum agente – água, fogo ou qualquer outra substância ou objeto dotado de subjetividade – é o responsável por matar, destruir ou, de todo modo, afastar os elementos patogênicos da matéria original, deixando que reste, purificado, apenas o seu cerne proveitoso. Na "Fala de Derrubada", a atividade de derrubar e queimar a mata para fazer roça é tratada como uma guerra dos homens contra as árvores; ou então, como uma refeição: "comendo" por completo as árvores más, os deuses do tabaco, dos machados e do fogo transformam-nas em cinzas férteis, a partir das quais as substâncias desejáveis podem crescer. Já nas "Falas de Cura" que lidam com doenças, usam-se comumente pasta de tabaco e coca. Essas substâncias são entendidas, primeiro, como a fonte e a sede de comando do conhecimento e, ademais, como predadores: capazes de transformar as substâncias malignas que estejam afetando o doente e de realocá-las nos animais de onde provêm. Esses animais tornam-se, então, presas fáceis para as pessoas. Por fim, a construção de malocas (tradicionais casas multifamiliares de uso cerimonial e residencial), que envolve a transformação de numerosas moléstias e afecções em elementos de composição das casas, e a "domesticação" de certos agentes malignos – a exemplo das árvores de grande porte que são convertidas em pilares da casa ou em trocanos. Conforme metacomentários incluídos pelos mambeadores na "Fala de Construção de Malocas", esses elementos, uma vez transformados pela "Fala" em componentes da maloca, tornam-se guardiões protetores dela, responsáveis por garantir a saúde e a fertilidade de seus ocupantes.

Essas maneiras de ver o cosmo, e a agência que lhes é intrínseca, aparecem com freqüência nas conversas de tom emotivo e nos retratos morais da Gente do Centro. Tal presença sempre me pareceu conformar um modo indiretamente persuasivo de relatar pensamentos/emoções próprios. Alhures, discuto em detalhes casos nos quais as pessoas atribuem condutas, próprias e alheias, à usurpação de pensamentos/ emoções rematadamente humanos por animais. Aqui, cabe dizer que é tal usurpação, como possibilidade, que gera o contexto propício para asserções relativas a conhecimento, moralidade e agência, já que ela é tanto o principal objeto do uso intencional de conhecimento como o cerne de críticas referentes a supostos procedimentos imorais. As asserções em tela também me parecem transmitir o profundo compromisso estético da Gente do Centro, especialmente dos homens, com um certo contorno de agência: manifestar, por um lado, grande tranqüilidade, caráter adequadamente sociável e diligente cuidado pelos outros, e, por outro, capacidade de efetuar, esotericamente, violentas ações predatórias.

As condições morais do conhecimento

Entre os Muinane e outras Gente do Centro, as autodescrições, as críticas, as próprias "Falas" e outras práticas discursivas mantêm unidas duas qualidades das "Falas": a moralidade e a eficácia. Um axioma que eu creio expresso pelas "Falas" é que, se transmitidas, adquiridas ou colocadas em operação de modo imoral, não funcionam bem; já, se empregadas com correção formal e em circunstâncias morais, necessariamente produzem resultados proveitosos. De modo análogo, uma condição moral geral do conhecimento é que seja usado para propósitos adequados; reciprocamente, tais propósitos só podem ser alcançados se os conhecimentos necessários para tanto forem colocados em operação com moralidade. Entretanto, ser ou não moral um caso particular de transmissão, uso ou aquisição de conhecimento é, obviamente, uma questão de interpretação e, às vezes, negociação. Seja como for, as pessoas estão sempre a reivindicar moralidade para os usos de conhecimento que fazem e a contestar reivindicações alheias no mesmo sentido.

Ao fim, o conhecimento – notadamente, as "Falas" – só pode ser aferido como "Verdadeiro(as)" (míya-) a posteriori, quando ele "clareia" ou "torna algo visível", ou seja, quando seus efeitos vêm a ser fisicamente perceptíveis e benéficos. Vários mambeadores afirmam que o único conhecimento "Verdadeiro" é o que diz respeito ao Caminho Tranqüilo ou Caminho da Vida. Esse "caminho" não é nenhum outro senão o que leva da maloca à roça. Conforme explicação de Pedro, essa assertiva significa que o único conhecimento que vale a pena é aquele envolvido na produção de gêneros alimentícios e substâncias rituais e, por meio destes, na multiplicação da Gente de Verdade. "Falas Verdadeiras" conduzem a abundância material, fartura alimentar, boa saúde, vida comunitária calma e aumento demográfico.15 15 Sobre o uso moral do conhecimento entre os Uitoto e os Yanesha, ver, respectivamente, Echeverri (1997, p. 195) e Santos-Granero (1991, p. 12).

Um juízo abstrato bastante repetido é que um mambeador abundantemente provido de mambe e de pasta de tabaco mostra, com a posse mesma das substâncias, que suas "Falas" "clarearam" e que ele é, de fato, uma pessoa moral e instruída. De modo análogo, Gente do Centro de ambos os gêneros disseram-me, em diferentes ocasiões, que uma mulher que possui uma roça bonita e bem capinada, e que sempre tem gêneros alimentícios em abundância, mostra, nessa medida, realmente conhecer as recomendações da "Fala de Aconselhamento", sendo uma Verdadeira Mulher. No plano dos juízos abstratos, o fato de alguém ter filhos e netos bem-comportados e saudáveis também é evidência do clarear de seu conhecimento. A concretização dessas abstrações, na forma de avaliações dos indivíduos, é freqüente.

Paulo e outros mambeadores explicaram que uma pessoa pode conhecer todos os conselhos da "Fala de Aconselhamento" ou um número enorme de "Falas de Notificação", no sentido de ter tudo isso registrado na memória, mas se o seu conhecimento não clareia por meio de filhos bem-comportados, da cura de doenças ou da produção de víveres e substâncais rituais, outros poderiam sustentar que ela não conhece verdadeiramente, que suas "Falas" são mentiras. Assim, receitas e "Falas" meramente memorizadas não são, por si sós, Verdadeiro Conhecimento – este qualificativo só se aplica ao conhecimento que o indivíduo, ademais de guardar na memória, soube tornar claro.

Falhas quanto a tornar o conhecimento claro são um assunto sob bastante atenção, capaz de gerar muitas denúncias. O caso de Jonás era um desses. As pessoas afirmavam que ele era muito instruído em termos de "Falas de Notificação", além de ser uma companhia agradável e um competente interlocutor no mambeadero. Contudo, também afirmavam que seu conhecimento era falso, já que tinha um estilo de vida e uma pobreza material que seriam mostras de que suas belas "Falas" não haviam clareado.16 16 A beleza pode ser ou uma manifestação de moralidade, ou, se não contar com nenhuma substância atrás de si a afiançar suas conseqüências morais, mera aparência. Ver Overing (1985a, p. 284). Numa outra situação, Jafet comparou David a jaguares e anacondas, que, numa certa "Fala de Notificação", aparecem como líderes cujas "Falas", embora soassem belas, eram uma mera falsa aparência: em lugar de haver clareado, elas tinham levado sua gente à morte, à fome e a outros sofrimentos.

Se o conhecimento moral é aquele concernente ao Caminho Tranqüilo e, geralmente, à produção da Gente de Verdade, sua contrapartida espúria é a feitiçaria: conhecimento perigoso, imoral, que conduz à destruição de gente e comunidades. Porém, por conta de sua grande eficácia destrutiva, a feitiçaria agrada aos que carecem de discernimento. O claro contraste entre conhecimento apropriado e feitiçaria aparece em destaque numa passagem de certa "Fala de Notificação". Saulo me contou o trecho depois de um auto-retrato moral em que alegara ser contra a feitiçaria. A "Notificação" seguia mais ou menos a seguinte linha.

Nos Primeiros Tempos, alguns animais disseram que a "Fala Verdadeira" do criador não era verdadeira. Preferiram explorar conhecimentos de feitiçaria e coletaram substâncias para praticá-la. Logo, porém, viram-se famintos e incapazes de produzir alimentos. Foram em busca do criador, para suplicar-lhe mandioca e outros cultivares. O criador disse-lhes: "Comam os seus seixos de feitiçaria!". Eles responderam: "Aquele seixos não matam a fome!". "Então, por que vocês os usam, afinal de contas?!", ponderou o criador, zangado. Então, ele os condenou a uma vida miserável, de fuçar restos e comer coisas sujas, e a servir, como animais de caça, à alimentação da Gente de Verdade.

A passagem mítica realça, novamente, que o uso adequado de conhecimento é aquele que se destina a produzir saciedade, estado de tranqüila satisfação. O trecho também deprecia o uso do conhecimento para propósitos de feitiçaria – um mau uso, um abuso. Embora a feitiçaria dê resultados concretos, estes são, no fim das contas, prejudiciais ao usuário.

Diante de um determinado uso de conhecimento, contudo, nem sempre está claro se se trata de algo moral ou de feitiçaria. De fato, assim como ocorre com outros aspectos morais do conhecimento, essa é uma matéria sujeita a controvérsias. Em certos ritos predatórios de cura, por exemplo, Emmanuel usava um colar feito de dentes e unhas de animais; achava que a prática era uma irrepreensível forma de sujeição de agentes malignos que ele próprio havia domesticado, ao passo que Pedro e Paulo a viam como uma negociação escusa com agentes malignos e, portanto, como feitiçaria. Queriam bastante bem a Emmanuel, mas diziam que os seres daquele colar um dia ainda o matariam.

Há, quanto à rejeição da feitiçaria pelos homens muinane, uma historieta autobiográfica que se repete quase como um padrão. Ouvi versões independentes de Emmanuel e de Saulo, e depois de vários jovens uitoto e muinane. Todos me falaram sobre o quão ignorantes e tolos haviam sido na juventude, quando se interessaram pela aquisição de conhecimentos de feitiçaria com os quais pudessem fazer mal a inimigos. Cada um afirmava ter tido interesse em, pelo menos, escutar algo a respeito, tendo perguntado sobre o assunto ao próprio pai ou a algum outro velho. A figura de um velho mais sábio do que cada um daqueles jovens, excessivamente ansiosos, advertira-os de que tais interesses mortais não levariam a nada de produtivo, instruindo-os a "olhar onde foram parar os que recorriam à feitiçaria": invariavelmente, em mitos e histórias que tratam do assunto, feiticeiros tiveram mortes pavorosas, e suas linhagens extinguiram-se de modo trágico. Não estou seguro de que o evento pedagógico assim descrito tenha realmente acontecido na vida de cada um desses homens. Creio, antes, que histórias como essa, a envolver interações entre personagens estereotipados – e.g. jovens demasiadamente ansiosos e ignorantes e velhos sábios –, reiteram constrastes e associações que têm posição-chave no interior de um vocabulário de avaliações morais de capital importância para as pessoas descreverem a si mesmas. A freqüente repetição e a plausibilidade moral desses relatos fazem que sejam um constituinte íntimo das vidas dessas pessoas; quanto a eles, o que há de importante, no fim das contas, é o fato de serem verdades morais.17 17 Sobre "verdade", coerência e correção morais, ver Overing (1985b, p. 167-9).

Nos auto-retratos e nas críticas concernentes a conhecimento, a Gente do Centro focaliza, muito freqüentemente, uma ou mais considerações morais e estéticas de tons variados. Em vários casos, essas considerações têm como premissa a dimensão agentiva das "Falas": entende-se que, se maltratadas, as "Falas" podem ficar iradas, aborrecidas, enciumadas e zangadas. Aqui, então, a "moralidade" é uma questão de, tendo-se propósitos instrumentais, tratar um determinado ser portador de agência com respeito. Em outros casos, porém, a agência intrínseca às "Falas" é colocada entre parênteses, por assim dizer, e o que os retratos discursivos realçam é a calma, a benevolência, a disciplina e a correção de seus autores.

A correção formal dos modos de operacionalização do conhecimento é uma consideração que se destaca. Há muita atividade retórica em torno do requisito de se usarem as "Falas" apenas quando necessário – e no lugar correto, na hora certa, de posse dos aparatos apropriados. As afirmações quanto a isso podem postular que se trata de exigências que as próprias "Falas", na qualidade de agentes, fazem ou, então, simplesmente realçar a virtuosa ortodoxia da pessoa que as cumpre. Uma exigência referente a muitas "Falas" é que sejam postas em funcionamento na forma de diálogos. Os indivíduos emitem freqüentes opiniões a respeito de situações específicas de emprego das "Falas" ou sobre o talento deles próprios e de outrem quanto a esse emprego. Paulo, por exemplo, disse-me que seu filho não era hábil para "dar-lhe forças" (a Paulo) no dialogar. Testemunhei um diálogo entre eles, e achei que o filho não dispunha, de fato, da expertise necessária para se impor oralmente: replicava ao pai com meros "hmmms" em vez de recorrer ao variado repertório de respostas dos conversadores experientes. Além de consistir num problema estético, esse caso teve implicações em termos da eficácia das "Falas" empregadas e das imagens públicas de Paulo e de seu filho. As pessoas censuravam-nos, dizendo que Paulo, no aspecto em questão, não havia criado corretamente o filho, e que este não tinha dado atenção aos costumes do clã.

Outra reivindicação moral dos indivíduos, também bastante comum, é terem adquirido o seu conhecimento de modo apropriado: dos velhos certos, nas circunstâncias corretas, por meio dos protocolos adequados e assim por diante. As obrigações morais relativas à transmissão são de mão dupla. Como as "Falas" são seres dotados de percepção e ligados a substâncias agentivas, sua transmissão e aquisição requerem cuidado. Um conhecimento que seja transmitido de maneira inapropriada pode agredir tanto o doador como o receptor ou, então, simplesmente se zangar e parar de funcionar. Por exemplo: "Falas" podem ficar ressentidas, se não forem devidamente remuneradas com tabaco, ou ofender a pessoa a quem pertençam, por não estarem sendo tratadas com estima. Conhecimento adquirido em quantidade e rapidez excessivas pode enlouquecer o receptor, de modo que os velhos, ao transmitir "Falas" a outrem, têm a obrigação de verificar se seus próprios procedimentos estão sendo adequadamente cautelosos.18 18 Sobre os perigos do excesso entre os Piaroa e os Kaxinawa, ver, respectivamente, Overing (1993, p. 191-211) e Lagrou (neste volume).

A quem pertence um determinado conhecimento é uma questão igualmente importante para a Gente do Centro. Essa noção de propriedade está ligada à natureza dos grupos e indivíduos, tal como representada em "Falas de Notificação" e em muitas outras retóricas. A idéia é que o Avô da Criação criou diferentes grupos de distintas maneiras, dando a cada um deles o tabaco e as "Falas" que lhe correspondem. "Falas" e rituais são, em muitos casos, comuns a grupos distintos. Alguns rituais e "Falas", contudo, pertencem exclusivamente a linhagens e clãs específicos, na medida em que tratam de aspectos que se relacionam exclusivamente à criação de uma determinada linhagem. Negligenciar esse conhecimento ou preferir o de algum outro grupo é perigoso, podendo acarretar infortúnios ou críticas aos não ortodoxos. Emmanuel, por exemplo, disse-me haver seguido o protocolo próprio aos Muinane quando cuidou do ingresso do seu tambor de madeira na maloca, ao passo que seu próprio pai fora insensato ao realizar, muitos anos antes, o mesmo procedimento segundo o protocolo dos Uitoto.

Sobre o desejo de agência predatória

As descrições da Gente do Centro sobre a natureza da agência estão ligadas à inevitável ambivalência que esse povo nutre para com a violência, a raiva e a ira, muitas vezes mencionadas como as manifestações de pensamentos/emoções de caráter animal mais salientes. Violência, raiva e ira são objeto de muitos preceitos abstratos, que advertem contra sua capacidade de destruir vidas e relações, além de estarem sujeitas à promessa de severas censuras quando venham realmente a se manifestar. Entretanto, os homens, em particular, parecem ter obsessão pela idéia de serem capazes de matar, ferir, repreender ou expulsar com fúria os agentes malignos ou ameaçadores, antropomórficos ou não, que há no mundo. As expressões dessa obsessão que pude acompanhar vão desde numerosos relatos de David e Abel quanto a haver repreendido esta ou aquela pessoa, passam por uma despreocupada bravata do filho mais novo de Lázaro – um jovem de cerca de 17 anos que reagiu a um relâmpego dizendo, num barco repleto de irmãos e irmãs e onde eu também estava, a frase "Tentem isso de novo, que eu pego vocês pelo rabo!" – e chegam a afirmações de Emmanuel, diante das quais já parecia mais fácil suspender a incredulidade. Emmanuel fazia freqüentes "Falas" para aplacar os trovões. Uma vez, quando lhe perguntei por que os morcegos matavam suas galinhas mas não mordiam os que viviam em sua maloca, ele disse: "Você acha que eu os deixaria viver se fizessem isso? Eles têm medo!".

Parte do motivo da ambivalência em questão, creio, está na agência tal como concebida e valorizada pela Gente do Centro: uma agência de natureza predatória. Para ser um humano moral e um homem de conhecimento, o indivíduo do gênero masculino não tem apenas de ser calmo e sociável, deve também predar entes malignos dotados de agência, com os quais algum grau de interlocução é possível. No entanto, os poderes que tornam os homens perigosos para os entes malignos são capazes também de ferir a eles próprios e a outros seres humanos inocentes.19 19 Uma excelente discussão de um problema existencial semelhante, entre os Piaroa, está no inédito The backlash to de-colonizing intellectuality, de Overing.

Alguns indivíduos têm tamanho interesse na agência perigosa – ou interesse em retratar a si próprios como estando dotados da mesma – que admitiriam dispor de conhecimentos de feitiçaria. Onan disse-me, certa feita, que teria pena de quem tentasse enfeitiçar a si ou a sua gente, e explicou que, para ele ou para qualquer conhecedor de boas "Falas", seria fácil "virar" essas "Falas", transformando-as em palavras encantadas que causam doença ou matam vítimas humanas. É bem provável que Pedro e seus irmãos considerassem tal disposição e tais afirmações como manifestação de uma constituição imoral, o que Onan bem sabia. De minha parte, vejo afirmações dessa ordem mais como uma concessão de privilégio ao ideal de ser um agente capaz de lidar eficazmente com ameaças externas; e, no caso específico de Onan, como uma intencional retratação de si mesmo como alguém capaz de grande violência esotérica.

Certa vez, o pai de Onan, Saulo, expressou-me seu interesse em angariar mais capacidade de ferir pessoas por meio de conhecimento esotérico. Ele havia escutado algo sobre uma prática que envolvia o uso de imagens de vítimas a fim de molestá-las – imagino que fosse vodu – e queria que eu a ensinasse a ele. Não me lembro de minha reação imediata, mas Saulo prontamente agregou que não iria usar a prática para enfeitiçar pessoas e, sim, apenas para se defender. Eventos posteriores levaram-me à convicção de que ele tinha em mente um alvo humano bem definido. Creio que Saulo sabia que a prática seria considerada como feitiçaria por alguns dos mambeadores muinane, seus companheiros, mas também considero que ele realmente desejava uma capacidade que fosse eficaz na lida com a morte, ainda que cheirasse tanto a feitiçaria como essa de que se trata.20 20 Sobre a quase-identidade entre xamanismo de enfeitiçamento e xamanismo bene-volente, ver Vidal & Whitehead (2004, p. 67, 76), Wright (2004, p. 83) e Santos-Granero (1991, p. 338).

Um modelo moral

Um dos ideais de agência masculina mais sedutores entre a Gente do Centro e alguns grupos vizinhos está coisificado na imagem do mambeador sábio que se senta em postura impassível, "enraizado" no seu lugar, para se dedicar a assuntos morais e esotéricos no mambeadero com absoluta concentração e ser um eficaz defensor de si mesmo e de sua gente contra o mal.21 21 Ver Griffiths (1998, p. 163), sobre o conceito de "sentar-se com firmeza" entre os Uitoto, e Belaunde (1992, p. 103), quanto à avaliação feita pelos Airo-Pai (Peru) de que a "postura ereta" manifesta disposições morais da pessoa. Alès (2000, p. 133-51) discute o "sentar-se" e o "parar-se em pé" como uma questão de atenção para os Yanomami. Isso é assim porque o mambeadero, de fato, é o lugar par excellence para a manifestação do conhecimento. É desde alguma posição nesse círculo de assentos que um homem tem suas "Falas" melhor amparadas e fortalecidas pelo tabaco e por outras substâncias de sua linhagem, pelas agências dispostas nos próprios componentes de sua maloca e por seus parentes. Certas "Falas", ademais, podem ser executadas no mambeadero da maloca de algum membro da patrilinhagem a qual pertence e à noite.

Ao falar sobre o ato de sentar-se firmemente, vários mambeadores mencionam uma conexão entre o desenrolar da vida de um mambeador e o da planta de tabaco. Mambeador e tabaco começam a vida como seres vulneráveis. Quando acaba de despontar, o pé de tabaco, delicado, frágil e frouxo, pode ver-se arrancado do solo por qualquer brisa mais forte. Analogamente, um garoto ou jovem recém-iniciado pode ser facilmente desviado do justo "caminho" de desenvolvimento e se tornar avoado, indisciplinado, fraco e inconstante. Com o tempo e os devidos cuidados, no entanto, tanto o mambeador como o tabaco amadurecem. O tabaco maduro tem raízes profundas e fortes, nenhum vento é capaz de arrancá-lo. O homem nonuya que melhor explicou-me esse assunto falou com admiração sobre o mambeador maduro, que tem um pé de tabaco enraizado em seu abdômen – é isso que o mantém firmemente enraizado no centro moral do seu mundo, o mambeadero. Um homem desses exibe uma aguda percepção do correto e do incorreto; tem a força, o poder de comando e a presença de espírito para afastar de si todas as tentações no sentido da má conduta e da violação dos preceitos de seus antepassados; identifica qual conhecimento pertence a si mesmo e a sua gente, e qual pertence a outrem; à diferença de um jovem avoado, o "vento" do conhecimento alheio não o derruba nem o seduz a se esquecer do seu próprio. Além disso, há o processo de amadurecimento e transformação em pasta por meio do qual o tabaco torna-se um incontrolável predador, capaz de destruir todos os inimigos – idealmente, isso vale também para os homens.

Parece-me evidente que a figura estética de um homem firmemente sentado no mambeadero é um ideal de agência para ambos os gêneros. Penso assim por conta, também, de regulares usos metonímicos que homens e mulheres fazem do termo "sentar-se" para referir reações sensatas – sobretudo de homens, mas algumas vezes também de mulheres – em face de graves provocações. Muitas vezes, testemunhei a emissão dessa referência metonímica ser acompanhada de uma certa movimentação corporal do falante: numa semiflexão das pernas, como se ocupasse um assento imaginário, ele apoiava os cotovelos firmemente sobre os joelhos ou as coxas, aproximava as mãos da cabeça, sem tocá-la, e contraía os músculos dos braços de modo rápido e acentuado – uma identificável figuração de um mambeador.

A persuasividade dessa imagem – seu compromisso agentivo e moral – dá suporte a, e é suportada por, sua associação com a retórica em torno das práticas (e com as próprias práticas) da residência pós-marital virilocal e do corporatismo patrilinear; no que se refere aos Muinane, se não a outras Gente do Centro, também com a inflexão patrilinear de sua terminologia de parentesco.

Lembro-me de uma situação em que uma mulher yukuna, casual-mente vivendo numa comunidade muinane, disse a David que ele, agora que era um líder tradicional, deveria parar de viajar para reuniões em outras comunidades e nas cidades – e sentar-se. A mulher objetou que ele já não era um jovem para estar passeando por aí; o dever dele agora era sentar-se e zelar, desde o interior do mambeadero, por sua gente. David ficou profundamente ofendido por aquela fala, muito embora ele próprio houvesse pedido que todos os que tivessem críticas a fazer externassem-nas ali mesmo, e não na sua ausência. Sua réplica foi que a comunidade era mal-agradecida e que ele não dispunha de ninguém digno de confiança para mandar aos encontros, ou mesmo de interlocutores respeitáveis.

Aurélio, irmão de Emmanuel, forneceu-me uma boa descrição do estereótipo de um homem de conhecimento – descrição que acaba por reiterar a associação entre a agência, a masculinidade e o mambeadero: "Esse homem pode falar como se estivesse dando bronca, mas é só da boca para fora. Por dentro, ele tem calma, amor. [...] Você o escuta conversando tranqüilamente no mambeadero, às vezes gracejando, com entusiasmo... Porém, esse mesmo homem pode dizer 'Dáigéjííraana!' (Não chova!), e a chuva pára". Essa historieta faz menção a um ideal de agência masculina que conjuga sociabilidade e benevolência com grande capacidade esotérica.

Reividincando conhecimento, citando terceiros

Em muitos dos auto-retratos da Gente do Centro, a descrição do falante dá-se por meio da citação de avaliações feitas por outrem. Isso mostra que as pessoas estão atentas aos modos como outras as vêem ou, pelo menos, que é aceitável recorrer a visões de terceiros para descrever ou tecer considerações a respeito de si próprio (ver Oakdale, 2005). Há uma aguçada atenção às percepções e apreciações alheias, e isso se indica por vários elementos das conversas cotidianas. A chamada de atenção para tal aspecto chega mesmo a se formular na "Fala de Aconselhamento", que lança muitas advertências aos jovens no sentido de que, se não se comportarem de determinadas maneiras, outros podem criticá-los ou fazer coisas similares – como perguntar quem são os seus parentes, afinal, que os educaram de modo tão descuidado. Ademais, as pessoas são claramente conscientes da barreira em torno de si que representam os comentários críticos sempre em curso nas comunidades – próprias e vizinhas.

Um exemplo particularmente bom do tipo de citação aqui comentado foi oferecido por Caleb, um uitoto casado com uma muinane. O auto-retrato em questão teve um detalhe interessante: o personagem que, por meio da voz do próprio Caleb, retratou-o como sábio foi o espírito de um homem morto, com quem ele disse haver falado numa visão de yagé.

Caleb usou o espanhol, na ocasião, para se dirigir a nós que estávamos sentados com ele no mambeadero. Contou sobre sua descoberta de que o responsável por certa matança por enfeitiçamento de muitas pessoas da região, em anos anteriores, havia sido seu tio Nimrod, agora morto. Ao beber o yagé que sua mãe lhe preparara, disse ele que tivera visões feias, desagradáveis, mas pudera chegar ao mambeadero do tio e vê-lo cercado de parafernália para feitiçaria. Teria dito então: "Ah! Você, tio!" – o que se trata de uma saudação padronizada e, simultaneamente, de uma declaração acusatória. Caleb prosseguiu, descrevendo como seu tio o fitara e afirmara: "Eu, que permaneci sem ser descoberto pelos velhos e homens de conhecimento, agora sou descoberto por um mero órfão!". Entendi a intervenção de Nimrod, conforme representada por Caleb, como a expressão de uma mistura de irritação, surpresa e admiração.

O que fez Caleb foi reivindicar para si perspicácia esotérica e conhecimento elevado. Na região, há um entendimento difundido de que o yagé tem a propriedade da plena revelação, já que quem o bebe pode, supostamente, "ver tudo": ver por meio da matéria das pessoas e identificar feitiços patogênicos colocados nos seus corpos; testemunhar eventos do passado e do futuro, inclusive rituais de feitiçaria – nada do que se decida examinar resiste como mistério. No entanto, também se afirma que grandes feiticeiros podem evitar serem vistos por pessoas menos desenvolvidas. Apenas alguém que seja bem versado no saber esotérico e senhor de um grande conhecimento – usualmente, um homem velho – pode "apanhar" um feiticeiro afamado, como Nimrod. Considere-se ainda, entrementes, que Caleb mencionou uma imagem bastante usada, às vezes responsável por solapar a ênfase na idade avançada como uma condição de sabedoria: a imagem de órfão. Em algumas "Falas de Notificação",22 22 Em língua uitoto, o termo para designar as histórias que os Muinane chamam de "Falas de Notificação" é "Cordas dos Anciões" (Echeverri, comunicação pessoal). órfãos, essas figuras privadas de parentes, desprotegidas, sem mentores que se ocupem delas, aparecem, mesmo assim, como sábios dotados de capacidades ímpares: desenvolvem conhecimento e agência por meio da escuta de histórias contadas por outros e da lida com os humildes afazeres a que se dedicam; elevam-se, desde o anonimato e o baixo status, até as grandes conquistas. Tendo pai, Caleb não era literal-mente órfão. Porém, uma vez que os velhos de sua patrilinhagem paterna haviam sido assassinados antes de lhe transmitir ensinamentos, ele era órfão neste sentido: órfão do conhecimento pertencente a sua patrilinhagem. Ao se dizer órfão, penso eu, Caleb modelou a própria imagem como a de alguém que podia surpreender os demais com a aquisição de habilidades e agência para além do que dele se esperava. A ostensiva descrição de Caleb com essas qualidades não foi uma afirmação dele próprio, mas obra de um velho que, bastante instruído, embora mau, fora por ele descoberto – nesse fato, uma evidência ainda mais forte de sua agência. Estou convencido de que Caleb queria ser referido como tal agente.

Sobre os efeitos de auto-retratos morais

Deixem-me considerar alguns dos efeitos que auto-retratos morais concretos têm, ou podem ter, na vida social. Uma historieta de fechamento vai me ajudar a fazê-lo.

Contou-me Lázaro sobre uma ocasião em que se sentara em seu mambeadero com Abel, um rapaz de outro clã:

"Ele disse para mim: '

Yo ya tengo mando

[Eu já tenho poder]. Ele sempre

aplasta

[achata, no sentido de deixar alguém rendido ou sem resposta] o Pedro e o Paulo, e todos eles dizem

Íímino

[Tá bom, em muinane]'... Mas, naquele dia, eu o peguei. Perguntei para ele: 'E quem deu esse poder a você'? Ele disse que o Saulo, o Matusalén, o Emmanuel e o Lot. Aí, eu lhe disse: 'Então vamos ver: cadê? Onde está isso de que você fala'? Como ele não tinha nada para mostrar, eu disse: 'Nunca se deve falar uma coisa dessas se não se tem nada para mostrar... e menos ainda para mim, que justa-mente tinha coca e pasta de tabaco para lhe dar, porque você está sem'. Aí, eu disse a ele: 'Nunca mais fale comigo desse jeito, dizendo bobagens como essa'. Ele disse que eu tinha razão, que ele tinha aprendido uma coisa importante naquele dia. Depois disso, eu falei: 'E se eu fosse pedir para você curar aquele menino ali'? Benjamin [um bebê] estava doente naquele dia, tremendo. 'Você sabe como fazer para parar isso aí?' Ele disse: 'Não'. Então, como você fica se alguém pede isso, você faz o quê?

23 23 Trata-se de um excerto do meu diário de campo, não de uma transcrição de conversa gravada.

Abel havia feito uma alegação de conhecimento e agência; Lázaro a tomara como abusiva naquelas circunstâncias, destacando que o outro não tinha sequer pasta de tabaco ou coca para usar como evidência e como suporte da alegação. Conforme sua própria narrativa, Lázaro também advertira Abel sobre a vergonha que seria não poder curar uma criança, se assim fosse solicitado por alguém que ouvisse sua bravata. Ao me contar a historieta, Lázaro fez várias coisas. Primeiro, reproduziu uma imagem de conhecimento agentivo que tem na produção e na cura seus propósitos centrais, além da premissa de que tal conhecimento necessita de determinado tipo de evidência. Em segundo lugar, expressou aquilo que vejo como o ponto aonde queria chegar: que ele próprio era um mambeador vigoroso e hábil, possuidor da evidência material para sustentar isso; um mambeador que, nessas condições, havia dado uma lição num jovem pretensioso24 24 Aqui não postulo que a linguagem porte significado; quero antes dizer que a usamos com intencionalidade e que outros constroem seus próprios significados independentemente disso. Penso, sim, que há um tanto de convergência recíproca nas interpretações das pessoas, mas a existência de diffèrance é inegável. – direta ou indiretamente citadas, as palavras de Abel "constituíram evidência" de que esse entendimento não era exclusivamente seu, mas também correspondia à percepção que o outro tivera. Em terceiro lugar, contribuiu para a manutenção das bases do nosso relacionamento. Àquela altura, Lázaro era o meu anfitrião e habitualmente me fazia ver que era um homem de conhecimento. Eu escutava suas historietas com interesse, reagindo da maneira que acreditava ser a mais adequada. No caso em questão, mostrei-me satisfeito de escutar sobre Abel sendo colocado em seu devido lugar (eu estava, de fato, apreciando a situação) e o tratei de um modo em que manifestei o reconhecimento de sua qualidade de homem de conhecimento. Entre afirmações e perguntas, as suas e as minhas, Lázaro e eu nos dávamos muito bem.

Ao contrário das exitosas alegações de Lázaro, e por refração gerada pelo entendimento deste, o auto-retrato moral de Abel em termos de seu próprio "poder" parece-me ter sido mal-sucedido. Isso porque Lázaro não apenas se negou a aceitar a afirmação de Abel, como também rejeitou as bases igualitárias que o tom e o conteúdo da fala do outro parecem ter tentado firmar e representar. Esse caso também é um exemplo – embora mais franco do que o usual – do tipo de contestação de conhecimento que a Gente do Centro sabe ser bastante possível de acontecer.

Historietas como a de Lázaro (ou uma que fosse contada por Abel) tratam de entendimentos particulares sobre a ontogênese, a competência e a subjetividade humanas, e dependem destes mesmos entendimentos para que tenham inteligibilidade. Um dos efeitos de historietas como essa é tornar tais entendimentos, e as associações simbólicas que elas comportam, sempre disponíveis para a interpretação, citação, transformação ou rejeição por outros, inclusive por mim. Ademais, elas fornecem a ouvintes e interlocutores um quadro de interpretação das ações daqueles que as enunciam. Nesse sentido, elas podem ser ocorrências "afortunadas", quando ocorre de os ouvintes "comprarem-nas" e colocarem-se dispostos a interpretar outras ações do enunciador à sua luz, ou "desafortunadas", caso em que tanto aqueles dizeres específicos do enunciador como os que se refiram a outras ações que haja executado são tomados como manifestações de alguma característica desagradável dele, e o auto-retrato vê-se contestado pelos respondentes. Por último, vale dizer que esses auto-retratos e críticas, como a maioria dos demais usos lingüísticos, são partes de diálogos – diálogos que instituem, mantêm ou alteram o "tom" de interações e as bases de relacionamentos.

Discussão

Este ensaio é o resultado da curiosidade que tive quanto a certas produções individuais, notavelmente numerosas entre a Gente do Centro: retratos morais e críticas relativos a questões de conhecimento. Minha afirmação inicial foi que os indivíduos, ao produzi-los, estão motivados por um certo ideal de agência, um sentido daquilo que é admirável ou desejável na subjetividade e na ação humanas, e pela consciência da possibilidade de que suas ações e subjetividades sejam tratadas como imorais, animalescas ou, de qualquer forma, inadequadas por outros à sua volta. Esse é um ideal de agência com inflexão de gênero: por um lado, há a complexa imagem do Verdadeiro Homem (imíyagaifi), um homem de conhecimento, vinculado a sua patrilinhagem e à terra desse grupo, capaz de contribuir para que a vida cotidiana por lá transcorra do modo adequado, seja por meio de ações de caráter sociável, seja mediante conhecimento predatório e violência esotérica – estes perigosos elementos. Por outro lado – um lado que não explorei neste artigo –, há a Verdadeira Mulher (imíyagaigo), que é trabalhadora, conscienciosa, generosa, afetuosa e leal. Homens e mulheres tendem a colaborar para a reprodução dos ideais referentes a ambos os gêneros.25 25 Sobre as diferenças entre agências masculina e feminina, ver Belaunde neste volume.

Para tornar plausível minha afirmação inicial, discuti várias questões: os entendimentos muinane em relação a agência – pensamentos/emoções e ação – e cosmo; a coerência que acredito contribuir para o caráter de coação que esses entendimentos exercem sobre as pessoas; a atenção e a consciência delas no que se refere às percepções e avaliações alheias de suas próprias subjetividades e ações; situações de fala que sugerem a intenção do falante em persuadir outras pessoas quanto a seu próprio conhecimento e agência; e os possíveis efeitos gerados por tais situações de fala.

Parte do que torna a afirmação plausível para mim mesmo são as semelhanças que vejo, num sentido restrito, entre alguns auto-retratos morais da Gente do Centro e a ostentosa gestualidade varonil que recordo aplicada na sociedade em que vivo. Em situações da minha adolescência, lembro-me de haver adotado, intencional e refletidamente, um certo estilo de caminhar, falar ou interagir com os outros, suspeitando que, de outro modo, não seria percebido de uma maneira condizente com aquilo a que eu aspirava ser – e outros indivíduos, eu podia identificar, faziam o mesmo. De modo bem estudado, escolhíamos for-mas de expressão ostentosa que "correspondessem" ao ideal de virilidade a que aspirávamos – um ideal que também se conformava a um cosmo relativamente coerente. Entendo, igualmente, que outros até podiam pôr em questão a virilidade desse ou daquele, considerando falsos ou forçados seus gestos "viris", mas a própria "virilidade", como norma ou ideal, era questionada apenas raramente. Via de regra, ela era dada como certa: uma característica dos agentes num certo tipo de mundo. Para mim, o ideal e o valor dessa virilidade são um feito social autocontido, resultado de um processo em que as pessoas reiteram as formas que constituem a virilidade.26 26 Esse meu argumento inspira-se em Butler (1993, p. 288).

As conversas e as práticas muinane relativas ao conhecimento ganham sentido no contexto de um certo tipo de mundo: um mundo coerente, no qual a natureza da pessoa (dotada de um corpo) está ligada às práticas de sustento da vida; estas, à ação moral; todas estas, ao caráter das relações inter e intra-específicas que há no cosmo; e tudo o que precede, à realização de grandes rituais. O mundo dos Muinane é habitado por seres de diferentes tipos que se inter-relacionam de modos particulares; nele, os corpos se constituem de diferentes substâncias que determinam a identidade, a subjetividade, as ações e, em geral, a agência das pessoas. Trata-se de um mundo em que o coletivo das pessoas, a gente, é axiomaticamente moral, mas no qual agentes externos – animais e outros seres moralmente inumanos – podem influir sobre elas: fazer que experimentem e manifestem subjetividades imorais, extraindo-as, na realidade, da categoria de Gente de Verdade. Rituais – cotidianos e pequenos, ou ocasionais e grandes – fabricam, moldam, curam ou reconstituem a Gente de Verdade, garantindo sua saúde e sua sociabilidade.

As conversas dos Muinane traduzem o acima mencionado em entendimentos persuasivos, plausíveis e auto-referenciados de sua experiência fenomenológica – de seus pensamentos/emoções e motivações – e têm uma forte influência sobre eles. Essas conversas moldam a compreensão de agência dos Muinane, definem o sentido de quem eles e os outros à sua volta podem e devem ser – o que inclui o sentido de uma ação masculinamente (ou femininamente) admirável e digna – e, assim, os modos como podem e devem agir. Os Muinane servem-se dessas conversas para analisar as circunstâncias em que se encontram, suas interações e identidades, e para interpretar suas próprias subjetividades. Testemunhei situações em que as pessoas conversaram sobre pensamentos/ emoções que haviam uma vez tido e ações que tinham antes realizado, e elas se mostraram claramente convencidas de que não se tratara de algo delas próprias, mas, sim, de enxertos causados por seres e substâncias extrínsecas. Em alguns casos, essa conduta pareceu levá-las a mudar sua compreensão de si mesmas e de outras que lhes eram importantes, e a agir com base nessa nova percepção.

A imagem da agência desejável tem muitas implicações na vida cotidiana das comunidades muinane, e isso inclui domínios da prática que estão no núcleo duro temático da antropologia, como a organização social. Os homens muinane e uitoto inclinam-se a viver em comunidades que são, em sua maior parte, patrilinhagens corporadas, mas algumas vezes essa inclinação não se faz presente. Uma descrição esmerada de seus "padrões" de organização social pediria atenção às motivações e às escolhas refletidas e bem estudadas dos indivíduos que os criam. O ideal de enraizamento, de ligação com uma patrilinhagem e sua terra, por exemplo, parece ter sido uma consideração decisiva para alguns homens quando decidiram não abandonar o núcleo residencial em que viviam com seus irmãos, onde havia muitos conflitos desagradáveis.

Muito daquilo que vai contido na conversação da Gente do Centro mostra que as pessoas estão atentas às avaliações de conduta feitas por outrem. Algumas vezes, escutei referências explícitas aos comentários de tom crítico que se alastravam pelas comunidades. As pessoas estavam, pois, conscientes da probabilidade de serem atacadas. Também sabiam não dever esperar que todos os demais tomassem suas próprias expressões de conhecimento e alegações por seu valor de face, que as aceitassem como verdades. Era provável que surgissem contestações, fossem elas feitas em caráter reservado ou público. Num tal contexto, os indivíduos procuram ser e/ou parecer representantes de um ideal de agência moral, ao mesmo tempo que se prevenir contra interpretações adversas de suas ações e subjetividades. São então chamados, motivados a se engajar em conversas e a produzir outros tipos de ostentosas manifestações de conhecimento e moralidade, a fim de persuadir seus semelhantes e de conseguir certos efeitos. Estou convencido de que essa é, muitas vezes, a situação que leva as pessoas a produzirem auto-retratos morais.

Notas

Bibliografia

Aceito em fevereiro de 2006.

Tradução de Fernando Fedola L. B. Vianna.

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  • 1
    Generosa dotação da Fundação The Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research, Inc., com uma bolsa Richard Carley Hunt Fellowship, permitiu-me dispor do tempo necessário para escrever este artigo. Elaborei-o em computador adquirido por meio de uma convencional subvenção à pesquisa, do órgão Social Sciences e Humanities Research Council (SSHRC-Canadá). Pelas ajudas editoriais que deram, sou grato a Amy McLachlan e a Fernando Santos-Granero.
  • 2
    Trata-se de clãs patrilineares que vivem na região dos rios Caquetá e Putumayo, na Colômbia, e falam as línguas uitoto, muinane, eoke, ocaina, bora, miraña e nonuya. Ver Espinosa Arango (1995, p. 304), Karadimas (1997), Londoño Sulkin (2001, 2004), Echeverri (1997, p. 2) e Griffiths (1998).
  • 3
    Mambe é o termo em espanhol para uma mistura composta de folhas de coca torradas e reduzidas a pó e de cinzas de folhas de
    Cecropia. O verbo correspondente é
    mambear, ação que consiste em comprimir o pó verde contra a face interna da bochecha e deixá-lo ali, para que seja lentamente absorvido. O principal – mas não único – lugar para o consumo de coca é o
    mambeadero, círculo de assentos situado em algum ponto no interior da maloca.
  • 4
    Conforme Conklin, ao escrever a respeito dos Wari: "O maior de todos os controles sobre o comportamento individual é uma intensa suscetibilidade à opinião pública e à crítica idem" (2001, p. 38). Ver também Basso (1995, p. 29). Para julgamentos quanto à pretensão alheia a ter um temível poder xamânico, ver Storrie neste volume.
  • 5
    Acompanho o uso que Charles Taylor faz do termo para referir "distinções entre coisas que são reconhecidas como de importância ou qualidade categórica, incondicional ou maior, por um lado, e coisas que carecem disso ou que são de menor valor" (Taylor, 1985, p. 3).
  • 6
    Devo notar, entretanto, que tais imagens não constituem uma cultura monolítica que tudo abrangesse. Sobre esses mesmos assuntos, as pessoas falam às vezes em outros termos.
  • 7
    Dou ouvidos, aqui, tanto aos pedidos de atenção à consciência individual por Cohen (1994, p. 5 e 6) e Overing & Passes (2000), como aos argumentos de Taylor (1985, p. 294) no sentido de as interpretações feitas por seres humanos – animais intérpretes de si mesmos – envolverem distinções valorativas.
  • 8
    Sobre perspectivismo, ver Belaunde, Lagrou, Rosengren, Santos-Granero, Storrie e Werlang neste volume.
  • 9
    Sobre tais propósitos, ver Londoño Sulkin (2000, p. 170-86 e 2001, p. 434) e Overing & Passes (2000).
  • 10
    A expressão do espanhol
    conocimiento propio não tem uma tradução direta em língua muinane. A lingüista C. Vengoechea, contudo, refere-se a ela como
    Ifásitu, acompanhando afirmação de um informante (Vengoechea, comunicação pessoal). Entendo que tal termo muinane significa meramente "todas as partes" ou "a coisa inteira", não sendo ele um nome atribuído univocamente à categoria de conhecimento. A pesquisa de Vengoechea sobre a língua muinane está em andamento (Landaburu, 1996; Vengoechea, 1995).
  • 11
    Tanto homens como mulheres enfatizam que elas não dispõem da "capacidade" necessária para ter-se
    conocimiento propio; considera-se que essa capacidade não combina com a compleição física feminina, e vice-versa.
  • 12
    Um caso similar a este, quanto à alternância no uso de entendimentos, foi descrito por Tambiah (1968, p. 183).
  • 13
    Um excelente exemplo de discurso performativo entre os Uitoto (ainda que sem usar o termo "performativo") está em Echeverri (1997, p. 250); para outros ritos similares entre os Uitoto, ver também Griffiths (1998, p. 72, 206). As frases e palavras que lista Tambiah (1968, p. 190-3), ao tratar da magia associada ao cultivo de roças na Melanésia, são muito semelhantes às da Gente do Centro.
  • 14
    "Denominar" o nocivo, o trágico, o indesejável, o repulsivo, e assim por diante, do mesmo modo que suas contrapartes "boas" é algo importante. A isso se refere o aforismo muinane que vai no título de um artigo meu: "Embora surja como mau, eu o recebo como bom..." (Londoño Sulkin, 2000, p. 170-86).
  • 15
    Sobre o uso moral do conhecimento entre os Uitoto e os Yanesha, ver, respectivamente, Echeverri (1997, p. 195) e Santos-Granero (1991, p. 12).
  • 16
    A beleza pode ser ou uma manifestação de moralidade, ou, se não contar com nenhuma substância atrás de si a afiançar suas conseqüências morais, mera aparência. Ver Overing (1985a, p. 284).
  • 17
    Sobre "verdade", coerência e correção morais, ver Overing (1985b, p. 167-9).
  • 18
    Sobre os perigos do excesso entre os Piaroa e os Kaxinawa, ver, respectivamente, Overing (1993, p. 191-211) e Lagrou (neste volume).
  • 19
    Uma excelente discussão de um problema existencial semelhante, entre os Piaroa, está no inédito
    The backlash to de-colonizing intellectuality, de Overing.
  • 20
    Sobre a quase-identidade entre xamanismo de enfeitiçamento e xamanismo bene-volente, ver Vidal & Whitehead (2004, p. 67, 76), Wright (2004, p. 83) e Santos-Granero (1991, p. 338).
  • 21
    Ver Griffiths (1998, p. 163), sobre o conceito de "sentar-se com firmeza" entre os Uitoto, e Belaunde (1992, p. 103), quanto à avaliação feita pelos Airo-Pai (Peru) de que a "postura ereta" manifesta disposições morais da pessoa. Alès (2000, p. 133-51) discute o "sentar-se" e o "parar-se em pé" como uma questão de atenção para os Yanomami.
  • 22
    Em língua uitoto, o termo para designar as histórias que os Muinane chamam de "Falas de Notificação" é "Cordas dos Anciões" (Echeverri, comunicação pessoal).
  • 23
    Trata-se de um excerto do meu diário de campo, não de uma transcrição de conversa gravada.
  • 24
    Aqui não postulo que a linguagem
    porte significado; quero antes dizer que a usamos com intencionalidade e que outros constroem seus próprios significados independentemente disso. Penso, sim, que há um tanto de convergência recíproca nas interpretações das pessoas, mas a existência de
    diffèrance é inegável.
  • 25
    Sobre as diferenças entre agências masculina e feminina, ver Belaunde neste volume.
  • 26
    Esse meu argumento inspira-se em Butler (1993, p. 288).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      Fev 2006
    • Recebido
      Fev 2006
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