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Na dúvida, foi moralmente condenada ao invés de legalmente absolvida: etnografia de um julgamento pelo Tribunal do Júri de São Paulo, Brasil

In Doubt, She was Morally Condemned Instead of Legally Acquitted: Ethnography of a Trial by Jury of São Paulo, Brazil

Resumo

Este texto apresenta uma etnografia realizada durante uma sessão do 1º Tribunal do Júri da cidade de São Paulo, em maio de 2008. Sua análise tem como meta contribuir para reflexões críticas sobre o assustador crescimento de desejos punitivos e de demandas por lei e ordem em nome da segurança de “cidadãos de bem”, o que, frequentemente, se dá em detrimento da própria lei e em função da força seletiva de marcadores sociais como gênero, raça e poder socioeconômico. No julgamento em questão, uma jovem, à época com 26 anos de idade, foi condenada a 26 anos e 2 meses de reclusão por omissão na tortura e homicídio de sua filha. A menina foi morta em julho de 2004, aos 5 anos idade, pelo companheiro da mãe, um policial julgado meses antes e condenado a 40 anos de reclusão pela autoria desses mesmos crimes. Apesar das dúvidas legais sobre a cumplicidade da ré na morte da filha, ela foi condenada por sua “moral sexual”, considerada incompatível com a de uma “boa mãe”.

Palavras-chave:
Tribunal do Júri; Gênero; Sexualidade; Violência; Moralidade

Abstract

This text presents an ethnography carried out during a session of the 1st Jury of the city of São Paulo, on May, 2008. Its analysis aims to contribute to critical reflections on the frightening growth of punitive desires and demands for law and order in the name of the security of “good citizens”, which very often occurs at the expense of the law itself and due to the selective strength of social markers such as gender, race and socioeconomic power. At the trial in question, a young woman, then 26 years old, was sentenced to 26 years and 2 months imprisonment for omission in the torture and murder of her daughter. The girl was killed in July 2004, at the age of 5, by her mother’s companion, a police officer tried months before and sentenced to 40 years in prison for those crimes. Despite legal doubts about the defendant’s complicity in the death of her daughter, she was condemned for her “sexual morality”, considered incompatible with that of a “good mother”.

Keywords:
Trial by Jury; Gender; Sexuality; Violence; Morality

Cada sociedade, a seu modo, define as verdades que tolera, (...) o espaço que concede à liberdade modificadora e à mudança. (...) não cessa jamais de restabelecer demarcações, de reavivar os interditos, de reproduzir os códigos e as convenções.

(Balandier, 1982BALANDIER, Georges. 1982. O poder em cena. Brasília, UnB.:39)

PREÂMBULO ETNOGRÁFICO

Este texto, ao apresentar uma etnografia realizada durante uma sessão do 1º Tribunal do Júri da cidade de São Paulo, em 28 de maio de 2008, e ao desenvolver interpretações analíticas a partir de alguns de seus trechos, alicerça-se em dois eixos principais. O primeiro é o compartilhamento da própria etnografia de um julgamento: essa espécie de “reunião concentrada” em que pessoas são absorvidas por um “fluxo de atividades” em função das quais se relacionam intensamente (Geertz, 1978GEERTZ, Clifford. 1978. “Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa”. In: GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, pp. 278-321.: 290-291). Minhas percepções e registros recortaram tal reunião em função de interesses e investimentos no campo da antropologia do direito e as análises posteriores (segundo eixo), elaboradas em diálogo com vários(as) colegas, permitiram não só a revisão das percepções e dos recortes etnográficos originais como a (re)interpretação do “fluxo” mobilizado por “disputas narrativas” (Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.: 225-226) centradas na sexualidade dos corréus, embora, formalmente, não fosse esse o foco do julgamento.

A expectativa é que, inclusive leitoras e leitores que não trabalham no campo da antropologia do direito, se sintam absorvidos pelo “fluxo” etnografado e se posicionem diante das análises cuja meta maior é contribuir para reflexões críticas sobre o assustador crescimento de desejos punitivos e de demandas por lei e ordem em nome da segurança de “cidadãos de bem”, o que, muito frequentemente, se dá em detrimento da própria lei e em função da força seletiva de marcadores sociais como gênero, raça e poder socioeconômico.

Antes de abrir as páginas do meu diário de campo, situo em que contexto a etnografia em questão se deu.

Naquela quarta-feira de maio de 2008, como costumo fazer quando leciono a disciplina Antropologia e Direito, seja na graduação em Ciências Sociais, seja no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS-USP), fui com um grupo de estudantes ao Fórum Criminal da cidade de São Paulo para assistirmos a um julgamento no Tribunal do Júri.

Trata-se de uma “atividade de campo” que, além de permitir a percepção do plenário do Júri como um espaço lúdico, ritualizado e teatralizado (Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.) e de nele propiciar exercícios etnográficos, possibilita o compartilhamento de cadernos de campo, pois, na semana seguinte à ida ao Júri, circulamos pelo grupo os registros individuais e discutimos como, de diferentes perspectivas, produzimos narrativas variadas e geralmente complementares.

Naquela tarde, por volta das 17h, após assistirmos a um julgamento que durou apenas três horas e meia, quem dispunha de mais tempo entrou e permaneceu no lotado plenário ao lado, onde já se desenrolava outro julgamento, também iniciado às 13h301 1 Ao longo da minha pesquisa de doutorado, realizada entre 1997 e 2001 em cinco Tribunais do Júri da cidade de São Paulo, período em que acompanhei 107 sessões de julgamento, verifiquei que uma sessão costuma durar aproximadamente 5 horas (Schritzmeyer, 2012a: 34). Desconheço uma pesquisa que avalie o tempo médio atual dos julgamentos pelo Júri no Brasil, mas é válido afirmar que são raros os que ultrapassam um dia. . Essa segunda experiência etnográfica é a que descreverei para, em seguida, analisar apenas alguns dos muitos temas que, posteriormente, ela me suscitou2 2 Insigths em que se baseiam minhas análises decorreram de diversas oportunidades em que coloquei esse julgamento em discussão: reuniões do Núcleo de Antropologia do Direito da Universidade de São Paulo (NADIR-USP); dois papers que apresentei em congressos (Schritzmeyer, 2012b e Schritzmeyer, 2012c), interlocuções com dois estudantes que também produziriam papers (Nor & Moreira, 2011 e Fernandes, 2011) e com o Prof. Jaime Ginzburg (2000) do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. Cópias dos autos processuais, posteriormente fornecidas por Ilana Casoy, compuseram parte do material analisado no projeto “Sujeitos, Discursos e Instituições”, desenvolvido no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), entre 2011 e 2016. Laura Moutinho (2004), minha colega de departamento, após a leitura atenta de uma versão preliminar deste artigo, deu-me importantes sugestões bibliográficas. Uma outra versão deste artigo, na qual comento julgamentos pelo Júri na França, foi publicada na Revue Brésil(s). Sciences humaines et sociales, n. 16, novembre 2019. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme com o título “Un monstrueux pervers sexuel ou deux ? Ethnographie d’un procès à la cour d’assises de São Paulo au Brésil” (http://journals.openedition.org/bresils/5777). . Antes de avançarmos, vale lembrar que, no Brasil, de acordo com a Constituição Federal de 1988BRASIL.1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
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(CF, art. 5º, XXXVIII), e diferentemente do que se passa em outros países, somente são julgados pelo Júri quatro crimes, tentados ou consumados, tipificados no Código PenalBRASIL. 1940. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro. Código Penal. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm.
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como dolosos contra a vida (CP/1941, arts. 121 a 128) - homicídio; induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; infanticídio e aborto -, bem como outros considerados conexos a esses, como o crime de tortura seguido de morte. São, todavia, os homicídios dolosos que compõem a quase totalidade dos casos que chegam aos plenários do Júri brasileiro.

No Código de Processo PenalBRASIL. 1941. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro. Código de Processo Penal. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-LEi/Del3689.htm.
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estão previstas as várias etapas judiciais que antecedem o “rito” que se desenvolve nos plenários (CPP/1941, arts. 406 a 497). Se a elas somarmos as etapas da fase policial, costumam decorrer 7,3 anos entre o registro do fato na delegacia de polícia e a sentença proferida no plenário do Júri (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes (coord.). 2017. Fluxo e tempo do sistema de justiça criminal: uma análise dos casos de homicídios dolosos arquivados em Belo Horizonte (2003-2013). Relatório de pesquisa, Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP/UFMG). Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). http://www.crisp.ufmg.br/wp-content/uploads/2017/08/Fluxo-e-Tempo-Final.pdf.
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)3 3 Para um balanço bibliográfico referente ao fluxo do sistema de justiça criminal brasileiro ver Ribeiro & Silva, 2010. E para uma discussão sobre absolvições e condenações no Tribunal do Júri ver Stemler, Soares & Sadek, 2017. . Excluindo detalhes que podem implicar o encerramento do caso antes que ele chegue ao plenário do Júri, um resumo de todas as etapas pode ser assim esquematizado: ocorrência do fato ao qual se atribui caráter criminoso → registro do boletim de ocorrência (BO) em uma delegacia de polícia (registros do fato e das pessoas envolvidas) → início do inquérito policial (IP) → coleta de provas e depoimentos → o delegado de polícia elabora seu relatório com o qual finda o IP → o Ministério Público recebe o IP e oferece a denúncia → o juiz a recebe e cita o acusado → interrogatório do réu → defesa prévia → audiências das testemunhas de acusação e defesa → alegações finais da acusação e da defesa → decisão de pronúncia → libelo acusatório → intimação do réu para a contrariedade do libelo → convocação do Júri → julgamento no plenário, com a presença de cidadãs e cidadãos jurados.

Esclareço, ainda, que alguns dias após a sessão de julgamento em análise, entrou em vigor a Lei 11.689/2008 que alterou alguns procedimentos então vigentes no Júri. Uma das principais alterações foi o momento do interrogatório da ré ou do réu, que antes abria a audiência e depois passou a se dar em seguida à oitiva das testemunhas. Outra mudança foi a distribuição do tempo nos debates entre a acusação e a defesa, que permaneceu tendo um total máximo de 5h, mas antes havia 2h para cada parte, com possibilidade de mais 30 minutos de réplica e 30 de tréplica. Após junho de 2008, passou a haver 1h30 para cada parte com possibilidade de mais 1h de réplica e 1h de tréplica. Antes também não era possível aos jurados, em caso de reconhecerem a materialidade e a autoria do delito, ainda assim absolverem a ré ou o réu, o que se viabilizou a partir da Lei 11.689. O julgamento em análise, portanto, antecedeu mudanças que foram, política e juridicamente, consideradas significativas para a maior garantia do direito à defesa.

Figura 1:
A dinâmica no plenário do Tribunal do Júri antes da lei 11.689/20084 4 Fluxogramas reproduzidos de Schritzmeyer, 2012a: 126.

Figura 2:
A dinâmica no plenário do Tribunal do Júri após a lei 11.689/20085 5 Apesar de o julgamento, como é de praxe, ter ocorrido a portas abertas, mencionarei a ré, a vítima e o corréu apenas pelas iniciais de seus prenomes e sobrenomes: RRO, TRO e VCP, respectivamente. Também não nomearei a juíza, o promotor, seu assistente e o defensor. O processo em questão pode ser localizado pelo número 583.52.2004.002881-4.

ETNOGRAFIA DO “CASO RRO” OU “BRINCANDO DE RODA NO CÉU”

Quando entramos no plenário, por volta das 17h, já havia ocorrido o sorteio que definira os cidadãos e cidadãs do Conselho de Sentença: cinco juradas e dois jurados. Também já tinham sido inquiridas a ré e três testemunhas da acusação, não tendo havido testemunhas da defesa6 6 Não é muito comum, no Júri, a presença de um(a) assistente de acusação. No caso em análise, todavia, o representante do Ministério Público contou com outro promotor de justiça como assistente, com quem compartilhou o tempo destinado à acusação. .

A ré aparentava não ter mais do que 20 anos. Usava grandes brincos prateados que se destacavam nos longos cabelos negros e encaracolados. Em um rosto pálido, o olhar exprimia um misto de medo, súplica, desconforto e tristeza. As pernas em movimento ininterrupto e as mãos presas entre elas faziam o corpo todo tremer.

O promotor, um dos mais conhecidos de São Paulo, alto e forte, iniciava sua arguição com uma pomposa saudação à “jovem juíza”, ao seu assistente, ao defensor, aos jurados e, finalmente, aos presentes na plateia (estudantes, familiares e amigos da ré)7 7 Mais de um ano após o julgamento, esses slides e também os utilizados pelo assistente foram cedidos ao NADIR por uma das pesquisadoras do grupo, de modo que pude revê-los muitas vezes, porém jamais os projetei fora das reuniões do Núcleo ou os reproduzi em qualquer publicação. . Concluiu-a afirmando: “O Júri é eterno, embora os atores-jurados mudem (...). O promotor de justiça é quem zela pelos interesses dos cidadãos de bem!”

Em seguida, esclareceu que faria algo inédito: uma “exposição multimídia” para que os jurados “mergulhassem no processo”. Ressaltou o intenso trabalho do Ministério Público (MP) “para mostrar a verdade” e fez questão de lembrar que o corréu, VCP, companheiro de RRO, um ex-cabo da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMSP), já havia sido julgado e condenado a 40 anos de reclusão pela tortura e morte de TRO, menina de 5 anos, filha de RRO, acusada de se omitir diante desses crimes.

Em suas considerações iniciais, já projetando slides, o promotor apresentou referências sobre “sexualidade humana e desvio sexual”8 8 Esse croqui, sem a “tela”, se encontra na página 62 do livro que resultou do meu doutorado (Schritzmeyer, 2012a). Nele, entre as páginas 61 e 67, e especialmente no capítulo 5, analiso detalhadamente a distribuição dos atores no “palco” e suas participações na dinâmica do Júri. . Houve um verdadeiro tumulto na plateia, pois a tela improvisada em que os slides foram projetados estava de frente apenas para os jurados, o que fez com que eu e a maioria das pessoas que acompanhavam o julgamento nos deslocássemos para perto deles.

Após menções a livros de psicologia forense e a temas como “comportamento sexual”, “excitação sexual”, “causas do desvio aberrante erótico” e “paraphilia”, foram apresentadas fotos do local do crime e do corpo nu da menina, exposto sobre uma bancada do Instituto Médico Legal (IML), com destaque para marcas de violência no pescoço e na genitália. Entre uma foto e outra, havia slides com trechos do laudo do IML e, finalmente, partes da Lei de TorturaBRASIL. 1997. Lei n. 9.455 de 7 de abril. Define os crimes de tortura e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/L9455.htm
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(9.455/97). Para ilustrá-la, o promotor apresentou “o repugnante caso da babá que desferia bofetões contra um indefeso bebê de 18 meses”.

Figura 3:
Croqui de um típico plenário brasileiro do Tribunal do Júri, adaptado ao caso em análise, com a presença excepcional da tela e de dois promotores9 9 Telefones de emergência para chamar a Polícia Militar e a ambulância de resgate do Corpo de Bombeiros, respectivamente.

Minha atenção fugiu um pouco da tela quando percebi que havia um menino, com talvez dez anos de idade, posicionado próximo aos jurados, acompanhando a apresentação dos slides entre bocejos. Faria parte da estratégia da acusação levar uma criança ao plenário? Poderia uma criança ver aquelas fotos? E que criança seria aquela?

A voz forte do promotor chamou-me de volta à tela: “Por que a ré confessou, na polícia que, nove dias antes do crime, seu companheiro havia sido cruel com a menina, mas não ligou para o 190? Para o 19310 10 Essa menina também tinha cinco anos de idade quando morreu após ser jogada do 6º andar de uma das janelas do apartamento do pai, na noite de 29 de março de 2008, em São Paulo. Esse caso, ocorrido, portanto, dois meses antes do Júri de RRO, estava no auge de sua repercussão midiática nacional. O pai e a madrasta da criança foram acusados de homicídio doloso triplamente qualificado. Eles sempre se declararam inocentes, mas, em março de 2010, foram condenados: ele a 31 anos, 1 mês e 10 dias de reclusão, além de 8 meses e 24 dias de detenção por fraude processual qualificada, e ela a 26 anos e 8 meses de reclusão, além do mesmo tempo que ele por fraude processual qualificada. Os dois passaram a cumprir as penas em regime fechado, sem direito a sursis (suspensão condicional da pena). ? Para a Corregedoria da Polícia Militar?”

Foi exibido, então, um slide com os dizeres “As mentiras da ré” e, após uma longa sequência de fotos da reconstituição do crime, em que um policial simulava ser o corréu, a própria ré se representava e um grande esquilo de pelúcia retratava a vítima. Nisso, o promotor bradou:

Hoje, ela negou que o corréu havia agredido a menina antes do dia do crime, mas na delegacia declarou as agressões! Hoje, ela negou que trabalhou em um site pornográfico, mas trabalhou! (...). A ré passou batom e penteou os cabelos antes de, juntamente com o corréu, levar a menina ao hospital! A filha detonada e a ré se arrumou antes de sair para levá-la ao hospital!!! Caso escabroso!!! Esta senhora participou, por omissão, da tortura de sua própria filha!!!

O clima no plenário lotado era muito tenso. Reinava um silêncio quase absoluto e não havia lugar para mais ninguém, sequer em pé. Algumas funcionárias do tribunal esgueiravam-se entre o menino e os jurados e, com expressões de horror, olhavam para os slides e se entreolhavam. A ré, sentada a alguns passos atrás da tela, mesmo sem ver as imagens, balançava de tal forma suas pernas que todo o seu corpo parecia estar em convulsão. Nesse ínterim, apareceu outro menino, mais jovem ainda que o primeiro, e os dois ficaram juntos. O promotor prosseguia:

Um colega do corréu, também policial militar, confessou que maquiou o local do crime. Os dois monstros, corréu e ré, contaram historinhas previamente combinadas! A ré, na Corregedoria, se declarou amedrontada e ameaçada pelo companheiro, mas não estaria conivente com tudo?

Foram projetados, então, slides referentes à “personalidade” da ré e do corréu, ilustrados com fotos retiradas do computador dele, apreendido durante o inquérito policial. Os primeiros exibiam um creme vaginal, uma pequena bolsa, uma máscara de dormir e um pênis de borracha. Em seguida, aparecia a prima da ré, deitada em uma cama de casal, aparentemente dormindo e vestindo apenas uma pequena calcinha e uma camiseta curta. Depois, a própria ré, de óculos escuros, em pé e com uma das mãos na cintura, mostrava seu corpo nu ao mesmo tempo que empunhava o revólver do corréu e vestia uma camisa da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMSP) totalmente desabotoada. Por fim, várias outras fotos retratavam RRO praticando sexo oral no corréu, masturbando-o e se exibindo nua. Os genitais de ambos sempre cobertos por tarjas brancas.

Praticamente aos berros, o promotor, então, com o dedo indicador quase encostado no rosto da ré, proferiu: “Entregou a filha de bandeja a um tarado! Lágrimas de crocodilo! Mulher devassa! Sem moral! Sem a mínima condição de estar ao lado da filha!”

Quando eu imaginei que tínhamos assistido ao auge da arguição do promotor, algumas luzes se apagaram e começou a exibição do depoimento da mãe de outra menina recentemente assassinada, extraído de um programa de TV, no qual ela declarava seu sofrimento e o quanto estava destruída, uma vez que, desde que se divorciara, vivia somente para cuidar da filha, a menina Isabella Nardoni11 11 Apesar de, no Brasil, não ser proibida a presença de menores de 18 anos na plateia de um julgamento pelo Júri, ela é rara. Mas postadas ao lado dos jurados, eu nunca havia visto crianças ou quaisquer pessoas que não os profissionais do Júri. . A ré, nesse momento, além de chorar muito e de tremer por inteiro, dizia “não” com a cabeça, completando seu estado convulsivo.

“Podem comparar!! Comparem!! Não consigo mais falar”: estas foram as últimas palavras do promotor antes de tirar os óculos, enxugar suas lágrimas e de a juíza passar a palavra ao defensor.

Acenderam-se as luzes.

Eram 19h05 quando o advogado de defesa, um senhor de 67 anos, meio franzino, com uma voz calma, começou suas saudações dirigindo-se, primeiro, aos familiares da ré e já a anunciando como vítima do corréu. Depois, teceu elogios à juíza, “por seu interrogatório firme, sereno e ponderado” e, ao se dirigir aos acusadores, travou um rápido bate-boca com o promotor. Chamou a PMSP de “gloriosa” e comentou: “Não é porque um PM, cabo safado, um monstro, desonrou a farda, que a instituição foi maculada. Ele merecia a morte e não os 40 anos e 4 meses de prisão!”

Para o meu susto, o advogado elogiou o fato de a família do assistente estar presente e falou de sua própria família: “Sou casado há 40 anos com a mesma mulher, tenho filhas e 10 netos! Eu sei o que é família!”

Mistério desfeito: os dois meninos, ao lado dos jurados, eram filhos do assistente!12 12 As saídas de juízes e promotores dos plenários do Júri durante as falas de defensores, sejam propositais ou não, sinalizam um desprezo pela narrativa da defesa que não passam desapercebidas aos jurados (Schritzmeyer, 2012a: 209). É como se dissessem, embora não com palavras: “Não vou perder o meu tempo te ouvindo”.

O defensor também fez saudações aos jurados, especialmente às cinco juradas, “por terem deixado seus afazeres pessoais para servir à justiça: ampla, divina, universal”. E concluiu: “Somos passageiros da grande nave espacial planeta Terra. O momento é de reflexão”.

Iniciou sua arguição mencionando o “Caso Isabella Nardoni”, mas seu comentário sequer arranhou o impacto do que acabáramos de assistir na tela: “É um caso diferente. O pai [de Isabella] provavelmente a matou. (...). Neste caso, quem matou foi o padrasto”.

Em seguida, ele começou a construir o perfil da ré, que continuava chorando copiosamente, queixo trêmulo, mãos freneticamente percorrendo rosto e cabelos: “Esta é uma moça pobre que conheceu o corréu mais ou menos em maio de 2004. A menina morava com a avó, (...), mas logo foi morar com o casal”.

Fez questão de lembrar que, nos sete volumes do processo, além de “fotos pornográficas”, também havia várias cartas de amor que a ré escrevera ao cabo: “Perdida em devaneios, escreveu muitas declarações de amor”. Leu alguns trechos, como: “Não tenho para onde ir... Deus me ajude a encontrar um lugar de paz”.

O promotor, logo que o defensor começou a arguição, deixou o plenário, nele permanecendo apenas seu assistente. A juíza também não tardou a sair13 13 Esse valor, à época, equivalia a três salários mínimos (SM). Famílias com mais de dois até quatro SM são classificadas como pertencentes à classe D. Para detalhes atuais consultar: https://cps.fgv.br/qual-faixa-de-renda-familiar-das-classes, acessado em 06 de agosto de 2020. . Já o defensor prosseguia: “A família desta moça mora em uma favela. Ela queria uma infância melhor para a filha”. Mostrou, então, uma foto de RRO com TRO e disse, reportando-se aos slides antes apresentados em Data Show: “Foto em papel, sim, pois não tenho dinheiro para essas parafernálias eletrônicas”.

Entre pausas relativamente longas, comentou: “TRO nasceu quando RRO tinha 16 anos, 4 meses e 6 dias. Morreu 5 anos depois”. Ainda segurando a foto, começou a traçar o perfil do corréu:

Um monstro exibicionista, um pervertido sexual! Prometeu dar uma vida melhor para a ré e sua filha, mas a ré foi uma vítima que ficou à mercê desse monstro. Ele tinha várias mulheres! Seu amigo PM, que maquiou o local do crime, afirmou que ele era um mentiroso. A ré foi sua escrava.

Exibiu mais fotos aos jurados, xerocadas, para provar a “perversidade sexual” do corréu: “Ele próprio fotografava as mulheres o masturbando”.

De modo não muito fluido desenvolveu a tese de que, se a acusação afirmava ser o corréu um monstro, então a ré também deveria ser mais uma de suas vítimas. Acrescentou que as inconsistências nas declarações da ré, na delegacia e em plenário, resultavam do fato de, na polícia, ela estar medicada e sem advogado:

O corréu teve o seu advogado na Corregedoria! Seu salário era de R$ 1.250,00 por mês14 14 A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, (...) e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. . Pergunto-me como ele sustentava R, T, a filha de seu primeiro casamento, pagava o aluguel do apartamento e ainda mantinha seus vícios!? Ganhos extras? (...) Muitos de seus amigos, também PMs, lhe davam respaldo!”

O promotor, que há algum tempo havia saído do plenário, retornava, de vez em quando, ocasiões em que interrompia o defensor com algum murmúrio jocoso. O assistente, por sua vez, também cortava a fala do defensor com frases como: “O que a ré fazia enquanto o cabo judiava da menina, hein?”

O defensor não impedia essas interrupções. Retrucava-as:

A ré temia por sua filha e por seus familiares, especialmente por causa de um de seus irmãos já ter passagem pela polícia. O corréu alegava que todos da família dela eram favelados e bandidos. Era muito ciumento e a ameaçava. Mas ela não foi conivente com as agressões à menina porque não houve tais agressões. Ela as inventou para prejudicá-lo. O amor, quando se transforma em ódio, muda tudo! Mas nós não estamos aqui para fazer injustiça! Lembremos das palavras bíblicas: Assim como julgais sereis julgados.

Nesse momento, o promotor, que havia retornado ao plenário e por ele circulava impacientemente, aproximou-se dos jurados e não deixou o defensor prosseguir. Eu me perguntava o que estaria fazendo a “jovem juíza” ausente do plenário.

Houve, então, um forte bate-boca. Enquanto o promotor folheava os autos, anunciando que procurava fotos da ré mantendo relações sexuais com o corréu e exibindo ar de felicidade, “sendo, portanto, sua cúmplice”, o defensor prosseguia com a tese de que ela era uma vítima, “pois vivia prisioneira no apartamento, (...) sem telefone fixo e de onde ela não podia sair porque não tinha a chave (...). Um de seus irmãos, quando conseguia falar com ela, percebia que não podiam falar direito”. Ao se dar conta de que ainda lhe restavam 30 minutos de arguição, o defensor introduziu a informação de que, antes do crime, o corréu, a ré e a menina teriam assistido ao filme “Sete pecados capitais”. Comentou-o e concluiu: “O cabo PM se identificava com o assassino do filme. Existem somente duas versões do crime nos autos: uma da ré e outra do corréu. Ele, um canalha assassino, e ela mais uma de suas vítimas. Ele é um bárbaro!”

Tentado finalizar, o defensor abordou os dois quesitos centrais que seriam apresentados aos jurados na sala de votação. Em relação ao primeiro (“A ré concorreu para a prática dos crimes de homicídio e de tortura de sua filha?”), contestou: “Não! Ela estava subjugada pelo corréu assassino!”. Quanto ao segundo (“O crime foi cometido com crueldade?”), afirmou: “Sim! Pelo corréu!”. Nesse momento, o promotor, inflamado, disse com ironia: “A maconha que o senhor fumou na juventude não parece ter ficado no passado...” E o defensor, mordendo a isca, respondeu: “Sim! Quando jovem fiz uso de maconha e era até socialista! Mas servi o exército, jamais roubei, jamais furtei!”

Houve muitos murmúrios no plenário. Com dificuldade, o defensor retomou e encerrou a sua arguição:

Nem os vizinhos viam a ré. Como ela poderia telefonar para o 190 ou 193 se não tinha telefone? Por que o promotor não levou um telefone para ela? A ré não participou de torturas anteriores porque não houve torturas anteriores. O legista constatou que os ferimentos da menina eram todos recentes, daquele dia. A ré, como mãe, tinha o dever de impedir que o cabo matasse sua filha? Sim! Mas não teve como fazê-lo! A filha era sagrada para ela, tanto que ela se sujeitou a tudo para que continuassem tendo onde morar e o que comer. Ele andava armado. Era um bárbaro! Ela não se omitiu. Lutou. Está sendo brutalmente castigada após já ter perdido a filha, o que já foi o seu maior castigo!

Eram 21h02 quando se fez um breve intervalo durante o qual entrevistei a mãe da ré, com quem a filha muito se parecia. Mulher pequena, altiva, cabelos longos e encaracolados, pintados de acaju, olhos claros muito sofridos, rosto vincado. Estava acompanhada por dois filhos e uma nora. Contou-me que só vira o corréu no dia em que ele foi julgado e que nunca, antes, tiveram qualquer contato. Soube, por sua filha, que ele a ameaçava, dizendo-lhe que mataria toda a família caso ela o deixasse e levasse a menina. Abrindo a bolsa, mostrou-me um contrato de trabalho do qual constava o nome de sua filha como funcionária de um escritório de contabilidade. Disse-me que ela já havia ficado presa por causa das acusações, mas que, quando posta em liberdade, começara a trabalhar e que o empregador estava muito preocupado. “Ela está lutando muito para prosseguir”.

Não consegui avançar na entrevista, pois todos da família estavam muito nervosos e eu muito constrangida. Na verdade, também eu estava nervosa, tomada por emoções suscitadas por várias daquelas imagens e falas. Quase todos os estudantes que me acompanhavam já tinham ido embora, mas um dos poucos que permaneceu me contou que os dois meninos presentes no plenário eram, de fato, filhos do assistente e que, segundo o próprio, eles estavam lá, acompanhados da mãe, “para desde cedo ter ódio de bandidos e criminosos”.

Voltei meio atônita para o plenário e não era somente por causa da fome.

Às 21h15 iniciou-se a réplica da acusação, agora na voz estridente e nervosa justamente do assistente, pai dos meninos. O Data Show recomeçou com um slide da pequena TRO, alegre, com destaque para a sua idade: “cinco anos”. Seguiram-se trechos da Constituição Federal (art. 5º, inciso XLIII15 15 “São considerados hediondos (a tortura e) os seguintes crimes: I - homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V do CP)”. ), do art. 1º da Lei de Crimes HediondosBRASIL.1990 Lei n. 8.072 de 25 de julho. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8072.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Lei...
16 16 “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. e do art. 5º do Estatuto da Criança e do AdolescenteBRASIL. 1990. Lei n. 8.069 de 13 de julho. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEI...
(ECA)17 17 Os artigos foram assim apresentados: “6º: A criança tem direito ao amor e à compreensão, deve crescer sob a proteção dos pais, com afeto e segurança”. “8º: A criança, em qualquer circunstância, deve ser a primeira a receber proteção e socorro”. “9º. A criança NÃO DEVE SER abandonada, espancada ou explorada”. , todos com o brasão da República e uma foto da menina sorrindo.

Fazendo uma pausa, o assistente, com muito pesar, comentou: “Esta menina não teve nenhuma chance na vida”. E, em mais três slides, apresentou “resumos” dos artigos 6º, 8º e 9º da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, enfatizando ter a “Assembleia Geral das Nações Unidas a aprovado por unanimidade”18 18 Uma das grandes diferenças entre o Júri brasileiro e os existentes em vários outros países reside no que se passa na sala secreta de votação. No Brasil, os jurados, desde que são sorteados e passam a compor o Conselho de Sentença, não podem falar entre si sobre o caso em julgamento em função do princípio da incomunicabilidade. Na sala secreta brasileira, na presença do juiz, do promotor, do defensor e de um funcionário do tribunal (às vezes de “convidados”), eles apenas ouvem novamente os quesitos anunciados no plenário e podem pedir esclarecimentos de dúvidas técnicas ao juiz, em seguida ao que, sem qualquer discussão, respondem secretamente “sim” ou “não” a cada quesito, com cédulas que depositam em uma urna. Se a decisão for condenatória, o cálculo da pena é feito pelo juiz que, sozinho, também elabora a motivação da sentença. Esses procedimentos costumam levar entre 30 e 60 minutos. . Por vários segundos, ficou projetado na tela um slide intitulado “T. Vítima da Omissão”. Nele havia cinco fotos de partes do cadáver nu da menina. Em três delas, alguém do IML, com uma luva amarela, indicava as lesões; nas outras duas estavam em destaque o rosto sem vida da menina, com os olhos entreabertos.

Visivelmente transtornado, o assistente apresentou, no slide seguinte, intitulado “R - A MÃE (???)”, um trecho de uma peça processual à qual acrescentou: “R era mãe de T, mas com apenas uma semana de convivência com o corréu levou a filha para morar com eles. Por quê? Por que prosseguiu vivendo com o corréu apesar de perceber sua perversidade? (...). Não sobrou nada da menina!”

Pisando firme, aproximou-se da ré e, encarando-a duramente, quase tocando-a com seu próprio corpo, explodiu: “O que você fazia, hein?! O que você fazia, amante gostosona?”

Nesse momento, outros slides, todos com fundo azul e ainda com o título “R - A MÃE (???)”, mostravam mais fotos da ré e de trechos de peças processuais. No primeiro deles, nua, em uma sequência de quatro imagens, RRO comia fezes do corréu. Depois, ela aparecia de pé e de costas, inclinada para a frente, porém olhando para a lente da câmera. Esse slide passou a ter fundo vermelho e o título mudou para “R - A (MÃE ???) AMANTE”. Repetiu-se, então, o slide com a foto da ré vestindo a camisa da PMSP e empunhando a arma do corréu, além de mais duas fotos dela exibindo a genitália e os seios, sempre cobertos por tarjas, agora pretas. O assistente, encarando novamente a ré, então gritou ainda mais alto: “Por que não usou a arma, mesmo sem balas, para bater nele, hein? Por quê?”. Sua voz saiu trêmula, seu cenho estava muito franzido, seu punho fechado e erguido.

Nos slides seguintes, ainda com fundo vermelho, mas com o título “R A covardia”, alternaram-se fotos da ré nua e da genitália e do ânus da menina morta, expostos pela “luva amarela”.

Um silêncio pesado, quase explosivo, tomava conta do plenário.

O assistente rompeu-o comentando que, um dia após o crime, a mãe da ré declarou, na delegacia, que a filha havia lhe telefonado, fazia um mês, confidenciando-lhe que o corréu ficara furioso com a menina e batera nas duas. Inconformado, o assistente disparou então muitas perguntas:

Por que ela não fez nada em um mês? Por que não voltou para a casa da mãe? Por que a família sabia o que se passava e nada aconteceu? O porteiro do prédio em que a ré morava com o corréu declarou que R. saía para passear com a menina e uma cadela. Por que ela não fugiu e foi para junto da família?

No plenário, os irmãos da ré controlavam manifestações da mãe que, inquieta, tentava se levantar da cadeira e falar. Policiais cercaram a família.

Foram, então, projetados muitos slides “esclarecendo” cada quesito relativo às acusações de homicídio qualificado e de tortura. O título de todos era “A CONDENAÇÃO”. Em uma espécie de retomada de tudo o que já havia sido dito e exposto, ressurgiram fotos do corréu, do cadáver de TRO, de trechos dos textos legais apresentados e, entremeando-os, sempre um gigantesco SIM que crescia, em letras brancas contra um fundo vermelho: “SIM. O crime foi praticado contra descendente”. “SIM. O crime foi praticado contra criança.”

O assistente, cada vez mais tenso, prosseguia arguindo enquanto andava: “Se a tese da defesa está ok, por que, então, ao menos no momento dos golpes fatais em T, R não fez nada? Sequer tentou matar o corréu em legítima defesa da filha!? Por que não tentou fazer nada? Ela não ficou com nenhum machucado!”

Mais fotos. Em um mesmo slide, foram enfileiradas três mulheres, cada qual com uma criança no colo. À esquerda, uma indígena com seu filho; no meio, em preto-e-branco, mãe e filho na praia; à direita, sorridentes, uma mulher loira com uma criança também loira. Fiquei tão perplexa com essas imagens que perdi parte do comentário do assistente. Apenas consegui ouvi-lo dizer que ali estavam “mães de verdade!” De início, não identifiquei nenhuma das mulheres, mas depois percebi que a da direita era a esposa do próprio assistente com um dos meninos presentes no plenário. Emolduravam as fotos seis corações vermelhos com a palavra “mamãe”.

As últimas frases do assistente foram: “A ré tinha que ter dado sua vida para salvar a da filha. Está chorando porque vai ser presa! Omitiu-se gravemente!”

Quatro fotos compuseram o último slide intitulado “JUSTIÇA”. A maior, à direita, apresentava TRO, viva e feliz. As três menores, à esquerda, apresentavam detalhes de seu corpo nu, machucado e numerado na perna, sobre a mesa do necrotério.

Às 21h55 teve início a tréplica do defensor, com explicações a respeito do que se passara com a ré uns 25 dias antes do crime:

O corréu não atendia mais aos telefonemas da família dela em seu celular, e dizia à ré que seus amigos PMs a vigiavam, sempre que ela saía. Ele guardava, em seu computador, muitas informações sobre paranoia (...). Ela pressupôs que o corréu, por ser PM, era honesto. E ambos gostavam de sexo: e daí? Qual o problema? (...) Como ela poderia reagir, no momento do homicídio, sendo ameaçada pelo corréu?

Aos berros, o assistente interrompeu o defensor: “Se fosse comigo, eu teria levado um tiro na cabeça, mas teria tentado salvar a minha filha. Mas essa vagabunda aí não fez nada! Foi limpar o xixi do cachorro, passar batom e arrumar o cabelo antes de levar a filha para o hospital!” O promotor completou: “O legista, hoje, falou da possibilidade de lesões antigas na menina estarem mascaradas pelas últimas lesões!”

O defensor, que teria tudo para pedir à juíza que não permitisse aqueles apartes, dialogou com os acusadores:

A ré tomou Valium ao chegar ao hospital! Não sabia mais o que dizia! Ela é mãe! Sofreu, sofre e sofrerá pelo resto da vida pelo que aconteceu com sua filha! Tentou, ao levar a menina ao hospital, fazer o que podia para salvá-la (...). Ela jamais suspeitou que o corréu chegaria onde chegou. Para se condenar é preciso ter certeza. Se há dúvida, não se pode condenar.

Elevando o tom da voz, pela primeira vez e de forma muito significativa, o defensor concluiu, apontando para a ré: “Esta menina é inocente! É também uma vítima!!” Mesmo após a “jovem juíza”, impassível, ter considerado encerrados os debates, o promotor ainda disse ao defensor, balançando um documento nas mãos: “Leia, Doutor, quais eram a pressão arterial e a frequência cardíaca da vítima ao entrar no hospital! Leia, Doutor! Sua frequência cardíaca era zero! Quem tem frequência cardíaca zero está vivo, Doutor?” E, assim, contrariando a lei, os debates terminaram com a palavra da acusação e não da defesa.

Finalmente, a juíza leu, em voz alta, os mais de dez quesitos que os jurados votariam na sala secreta. Eram 22h30 quando o plenário se esvaziou. Todos tivemos que nos retirar para o corredor. Como não havia mais ninguém no fórum e quase todas as luzes estavam apagadas, aguardamos em frente às portas fechadas do plenário19 19 Não me saía da cabeça o quanto havíamos presenciado um defensor que optara por acusar o corréu de violência contra a ré, de ameaça-la, fazê-la “prisioneira” e “escravizá-la”, mas que, ao não nomear que se tratava de um caso de violência contra a mulher, de violência doméstica e/ ou familiar, nem bem investiu na judicialização de relações familiares nem bem politizou a justiça em defesa da ré (Debert & Gregori, 2008). . Os quatro membros da família da ré, próximos a mim, estavam fortemente abraçados. Os dois meninos, filhos do assistente, sentaram-se no chão e o mais novo logo se deitou. Ficamos ali (umas 10 pessoas), todas juntas, aguardando a sentença por aproximadamente uma arrastada hora. Não consegui entrevistar novamente a mãe, os irmãos e a cunhada da ré. Achei que seria abusivo e eu estava muito tocada com tudo o que presenciara. A ré foi levada para uma cela, em outro corredor.

Acabei conversando com um casal que parecia descontraído e descobri que eram aposentados: ele engenheiro, ela funcionária pública. Estavam ali porque, “de vez em quando, é um bom programa assistir a um julgamento pelo Júri. A gente sempre aprende”.

Falamos sobre o fato de a categoria “violência doméstica”, em momento algum, ter sido proferida pelo defensor20 20 Em várias passagens do meu livro sobre o Júri no Brasil (Schritzmeyer, 2012a: 117, 119, 168 e 265), analiso os “critérios sociológicos” (sexo, idade, profissão, aparência física) geralmente utilizados por promotores e defensores ao aceitarem ou recusarem jurados no momento do sorteio. Cada qual pode recusar até três, sem justificativa. Eu denominei de “sociologia selvagem” o modo como esse conjunto de critérios é utilizado por promotores e defensores. Teria sido relevante saber do promotor por que ele recusou três homens e preferiu um Conselho majoritariamente feminino. Minha hipótese é que ele partiu do pressuposto de que mulheres julgam outra mulher com muito rigor, especialmente em relação ao idealizado papel de mãe. Análises referentes a essa questão estão presentes em pesquisas nas quais foram observadas mulheres, em posições de poder, avaliando e julgando duramente outras mulheres que se declaravam, por exemplo, vítimas de violência doméstica (Bonelli, 2009; Lins, 2014). . Também falamos dos meninos, filhos do assistente, presentes até aquela hora (fato que os chocara), e comentamos as referências ao “Caso Isabella Nardoni”. O casal, que acompanhava o julgamento desde o início, contou-me que o Conselho de Sentença ficara com cinco juradas e dois jurados porque, durante o sorteio, o promotor recusou três homens21 21 Dedico todo um capítulo de minha tese de doutorado à análise dos julgamentos pelo Júri como rituais e assim o introduzo: Do início ao final dos julgamentos, (...), sentidos são atribuídos a vidas e mortes. Os julgamentos pelo Júri constituem e são constituídos por essa dimensão produtora de sentidos pois, quando fatos-dramas da vida social chegam aos plenários, (...) adquirem outra natureza, cujo sentido só se alcança se focarmos a análise no domínio ritualizado em que se expressam, no qual tempo e espaço, já vividos, passam a ser imaginados. Durante as horas das sessões são narrados acontecimentos que atravessaram dias, noites, meses e anos. Embora não se percorram favelas, becos, casas, praças e ruas, (...) tudo isso está no Júri, transmutado em narrativas contadas segundo determinadas regras e por determinadas pessoas. Até as páginas dos processos, as fotos que os ilustram, (...) (já narrativas em si) tornam a ser narradas nos contextos dos julgamentos, suscitando a produção de novos sentidos. É desse contexto ritual, repetido cada vez que há um julgamento em um plenário de Júri, que trata este capítulo (Schritzmeyer, 2012a: 134). . Foram eles que me contaram terem sido três as testemunhas de acusação: uma policial, um médico legista e a médica que estava de plantão no hospital quando o casal de corréus chegou com a menina.

Passava das 23h30 quando as portas do plenário foram reabertas e vimos o defensor conversando com a ré, tentando acalmá-la.

Às 23h35 a juíza iniciou a leitura da sentença, com a ré em pé, tremendo à sua frente e de costas para o público. Achei que ela desmaiaria. Todos, como de costume, também em pé, estávamos em absoluto silêncio.

A primariedade de RRO foi rapidamente mencionada e logo a juíza iniciou a enumeração dos vários artigos, parágrafos e incisos do Código Penal em que ela fora incursa, com os respectivos cálculos das penas de reclusão. Até o momento em que a juíza proferiu o resultado final - 26 anos e 2 meses em regime fechado, sem direito a recorrer em liberdade - os familiares da ré demonstravam nada entender daquela sucessão interminável de números, adições, subtrações e termos técnico-jurídicos.

Em meio aos gritos da mãe da ré, já amparada por seus filhos e cercada por policiais, a juíza proferiu as últimas palavras: “a ordem pública e a credibilidade da justiça foram restauradas neste plenário”. Uma advogada, que eu também conhecera no intervalo, sussurrava, atrás de mim: “Tanto no homicídio quanto na tortura a votação foi quatro a três”.

Ao meu lado, uma das funcionárias do tribunal, que se horrorizara com as fotos do cadáver de TRO, juntou as mãos em posição de oração e, respirando fundo, proferiu aliviada: “Graças a Deus, Isabella e “T”, a esta hora, devem estar brincando de roda no céu”.

UM RITUAL DE REFORÇO DA “ORDEM” E DE MORALIDADES HEGEMÔNICAS

De alta densidade simbólica, este caso é, consequentemente, de grande potencialidade analítica. Não bastasse a força imagética do cenário de um julgamento pelo Júri - palco, plateia, bastidores, atores em movimento, papéis, scripts, improvisos e construções dramáticas (Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.: cap. 5) - e de, no caso em análise, ter se dado o uso inédito de recursos audiovisuais por parte do promotor e de seu assistente, potencializando a força das narrativas, vários outros elementos típicos do ritual do Júri foram especialmente caracterizados (idem: cap.4).

Típicas, por exemplo, foram as saudações do promotor e do defensor antes de suas arguições, demonstrando e reiterando a hierarquia das forças institucionais em jogo: no topo, o sistema de justiça, “o Júri (...) eterno”; a “(...) justiça ampla, divina, universal”. Em seguida, a Magistratura encarnada na juíza, e o Ministério Público encarnado no promotor de justiça, que “zela pelos interesses dos cidadãos de bem” e trabalha para “mostrar a verdade”. Logo abaixo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), os jurados, os funcionários do tribunal, a “gloriosa PM” e, por fim, o público.

Segundo o defensor, mesmo sendo o corréu um “cabo safado, um monstro [que] desonrou a farda” e que recebia respaldo de “muitos de seus amigos, também PMs”, a gloriosa PM” não havia sido “maculada”. Portanto, como de hábito, problemas não foram atribuídos à instituição (PM), mas a quem nela atua, preservando-se, assim, a crença na eficácia de um sistema em detrimento de alguns de seus membros, considerados ineptos.

Em minha pesquisa de doutorado, retomando Lévi-Strauss, faço um paralelo entre a eficácia simbólica da feitiçaria e a do Sistema de Justiça Criminal (Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.: 92-98) e concluo: “(...) para que o sistema do Júri tenha alguma eficácia, os “feiticeiros da lei” (juízes, promotores, defensores e funcionários) acreditam em suas técnicas; os “enfeitiçados pela lei” (jurados, réu, seus parentes e amigos) acreditam nela e em seus operadores; e a opinião coletiva relaciona, define e situa uns e outros. Portanto, assim como para Lévi-Strauss ‘a situação mágica é um fenômeno de consensus’, parece pertinente afirmar que a situação dos julgamentos pelo Júri também o é” (idem, 93).

Figura 4:
Hierarquia expressa e reiterada nas saudações entre juízes, promotores de justiça e defensores do Júri (Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.: 138).

Nesse sentido, ainda pontuo que os julgamentos pelo Júri podem ser pensados como um ritual de reforço da ordem: “Promotores e defensores, em plenário, ao narrarem desordens e atribuírem a certos fatores a responsabilidade por rupturas familiares, morais e econômicas, geralmente transformam réus e vítimas em figuras dramáticas, por meio do imaginário e do espetáculo, o que é muito típico do bufão. Transformam réus em portadores do “antissocial” e mensageiros de contestações e incongruências, mas com a finalidade precípua de, ao final da sessão, os jurados, através de seus veredictos, porem ordem ao caos, (...)” (idem: 191)22 22 Se este fosse um texto mais criminológico, eu retomaria alguns achados de Bruna Angotti, cuja pesquisa de doutorado eu orientei e que se voltou para o crime de infanticídio (Angotti, 2019). Em estudos internacionais, ela encontrou relatos de casos semelhantes ao de RRO, VCP e TRO: mãe que mata um filho, ainda criança, na condição de cúmplice (ativa ou omissa) de seu companheiro (pai biológico ou não da vítima). Criminólogos sugerem haver padrões de filicídio (morte de filhos pela mãe, pelo pai ou por ambos), determinados por um complexo de variáveis, como situação socioeconômica, raça-etnia e gênero (V. Meyer & Oberman, 2001). .

A juíza, ao final do julgamento, antes de ler a sentença, retribuiu os agradecimentos, seguindo a mesma ordem em que os recebeu e, antes de considerar encerrada a sessão, finalizou-a explicitando a sua razão de ser: restaurar “a ordem pública e a credibilidade da justiça” (Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.: 150-155; 190-201).

Outra instituição fortemente evocada foi “a família”: um certo modelo de família e de mãe explicitado pelo promotor, quando deu voz à mãe Nardoni (que vivia somente para cuidar da filha desde que se divorciara), e reforçado por seu assistente ao projetar o slide com as fotos das três “mamães” com filhos no colo, uma delas indígena, talvez sugerindo a “primitividade” e “naturalidade” do zelo maternal. Além disso, ao levar sua mulher e filhos ao plenário, esse assistente encarnou o modelo de família nuclear e foi inclusive apoiado pelo defensor da ré que anunciou: “Sou casado há 40 anos com a mesma mulher, tenho filhas e 10 netos! Eu sei o que é família!”.

A evocação do “Caso Isabella Nardoni” me fez pensar que nele foi uma madrasta a principal suspeita, enquanto no “Caso RRO” foi um padrasto, tendo recaído sobre o pai biológico de Isabella Nardoni e sobre a mãe biológica de TRO a acusação de omissão e mesmo de colaboração no desfecho fatal das filhas, hipóteses essas que convergem para a mesma profanação: a da ruptura do elo considerado, ao mesmo tempo, “natural” e “divino” entre pais e filhos. “A filha era sagrada para ela”, disse o defensor ao arguir que sua cliente não teria se omitido e muito menos participado do assassinato e da tortura de TRO23 23 E, assim como registrou Lowenkron em relação às imagens de pornografia infantil que ela analisou na Polícia Federal, também eu, ao ver e rever os slides desse julgamento, senti “um mal-estar indescritível”, mas, “aos poucos, a repugnância e o choque foram dando lugar a um olhar mais analiticamente atento. Percebi, então, que examinar as cenas (...) seria parte importante de meu ofício etnográfico” (Lowenkron, 2014b: 147-148). Ofício, no caso, de analisar, em profundidade, o que estava “em cena e em jogo” naquele Tribunal do Júri (Schritzmeyer, 2012a). .

Também houve várias falas referentes à família da ré, à sua mãe e irmãos presentes no plenário, mencionados pelos acusadores como aqueles a quem ela deveria ter pedido guarida para fugir de VCP. O defensor os identificou como “favelados” e apontou que ela tentava protegê-los, razão pela qual se submetia às ameaças de VCP. Uma incondicional solidariedade entre consanguíneos, portanto, foi reiterada tanto pela acusação quanto pela defesa.

Vale ainda lembrar, em relação à ênfase dada a um certo modelo de família, que a mulher e os filhos do assistente estavam presentes ao julgamento para que as crianças aprendessem a, “desde cedo, ter ódio de bandidos e criminosos”; daí elas serem expostas às fotos chocantes de TRO, agredida e morta, porém apresentadas como imagens de valor pedagógico e preventivo, tal como observou Laura Lowenkron ao analisar os motivos alegados para a instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que, justamente dois meses antes do julgamento de RRO, passou a apurar práticas de pedofilia (Lowenkron, 2013LOWENKRON, Laura .2013b. “Da materialidade dos corpos à materialidade do crime. A materialização da pornografia infantil em investigações policiais”. MANA, n. 19(3): 505-528.)24 24 Assim constam suas cores de pele em todas as peças dos autos processuais, tanto na fase policial quanto judicial. .

O fato de os corréus comporem um casal inter-racial é outro tema que mereceria desenvolvimento pois, embora não tenham sido explicitamente mencionadas as cores de suas peles ao longo do julgamento, as fotos demonstraram, à exaustão, que ele era negro e ela branca25 25 A pesquisa de mestrado de Marisa Corrêa (1975) se concentrou em assassinatos, tentados ou consumados, que envolviam casais julgados nas décadas de 1950 e 1960 pelo Tribunal do Júri de Campinas. Em sua dissertação ela demonstrou como homens que matavam mulheres “em nome da honra” e eram apresentados como bons trabalhadores, provedores do lar e bons pais tendiam a ser inocentados, especialmente quando as vítimas se distanciavam dos papéis de boas donas de casa e boas mães. . Mesmo não tendo sido possível averiguar se a questão inter-racial impactou os jurados, uma vez que não os entrevistamos, vale lembrar que uniões inter-raciais, no Brasil, contrariando a imagem do “país miscigenado”, foram e continuam sendo tabus, prevalecendo uma forte endogamia racial e, consequentemente, preconceitos contra casais inter-raciais (Moutinho, 2004MOUTINHO, Laura. 2004. Razão, “cor” e desejo: uma análise comparativa sobre relacionamentos afetivos-sexuais “inter-raciais” no Brasil e na África do Sul. São Paulo, Editora da Unesp.).

Segundo Moutinho (idem), “raça” é um conceito que socialmente produziu e produz sentidos, sendo ele central em representações clássicas da mestiçagem brasileira nas quais aparece articulado a outros marcadores sociais, como situação de classe e gênero. Essa dinâmica, segundo várias pesquisas, também se faz presente no Sistema de Justiça Criminal, pois, por exemplo, o registro da cor de réus e vítimas, articulado a suas situações de classe e gênero, influencia condenações ou absolvições (Adorno, 1994ADORNO, Sérgio.1994. “Crime, justiça penal e desigualdade jurídica: as mortes que se contam no Tribunal do Júri”. Revista USP - Dossiê Judiciário, São Paulo, n. 21, março-abril: 132-151.).

Na narrativa do defensor, tais marcadores foram claramente acionados e combinados, ainda que “raça” não o tenha sido em palavras, mas em imagens. A ré, uma mulher branca, jovem, frágil e sonhadora (“perdida em devaneios”), mãe solteira aos “16 anos, 4 meses e 6 dias”, pobre e desempregada, foi apresentada por seu defensor como “escravizada” por um policial negro, corrupto, sexualmente pervertido e com muito poder sobre ela e a criança, tanto do ponto de vista socioeconômico quanto psicológico e físico, pois ele, provedor, frequentemente as ameaçava, inclusive usando o revólver da PMSP. E, seja nessa versão da defesa ou na da acusação, que apresentou o corréu e a ré como igualmente depravados, o desfecho da união de ambos foi a trágica morte de TRO. Tal como nas obras literárias e teatrais analisadas por Moutinho, em que histórias de casais inter-raciais culminam em desfechos trágicos (assassinatos ou suicídios), sendo comum não terem procriado ou terem ocorrido abortos espontâneos ou provocados de filhos mestiços, a união de VCP com RRO também culminou na trágica morte da menina. E o casal inter-racial de corréus ainda confirma o que Moutinho verificou ao analisar dados demográficos brasileiros das décadas de 1980 e 1990 que retratam ser mais comum homens de pele escura se unirem a mulheres de pele clara do que uniões miscigenadas, típicas do imaginário brasileiro, em que brancos (portugueses) se relacionam com negras, mulatas ou indígenas.

Mas nem este nem outros temas me soaram tão retumbantes quanto os discursos referentes à sexualidade dos corréus.

MÃE??? AMANTE GOSTOSONA! IN DUBIO CONTRA A RÉ

Nas falas e imagens produzidas pelo promotor e por seu assistente, a começar pela “aula inaugural” intitulada “sexualidade humana e desvio sexual”, tivemos demonstrada a tese, já tão bem analisada por Foucault (1985FOUCAULT, Michel. 1985. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.), de que a sexualidade é um conjunto de dispositivos que não só disciplina corpos como é determinante na constituição de sujeitos, daí sexualidades consideradas desviantes serem associadas a sujeitos considerados criminosos, “monstros” e vice-versa. Tais sexualidades, com embasamentos psiquiátricos e psicológicos, retroalimentam-se de sujeitos monstruosos, com embasamentos jurídicos (Fry, 1983FRY, Peter. 1983. “Febrônio Índio do Brasil: onde cruzam a psiquiatria, a profecia, a homossexualidade e a lei”, In: EULÁLIO A. et al. Caminhos Cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. São Paulo: Brasiliense, pp. 65-80. e 1985FRY, Peter. 1985. “Direito positivo versus direito clássico: a psicologização do crime no Brasil no pensamento de Heitor Carrilho”. In: FIGUEIRA, Sérvulo A. (org.). Cultura da psicanálise. São Paulo: Brasiliense, pp. 116-141.). O julgamento de RRO foi capturado por esses dispositivos e por debates relativos ao que Maria Filomena Gregori chamou de “limites da sexualidade”: essa “zona fronteiriça onde habitam norma e transgressão, consentimento e abuso, prazer e dor” (Gregori, 2014GREGORI, Maria Filomena. 2014. “Práticas eróticas e limites da sexualidade: contribuições de estudos recentes”. Cadernos Pagu, n.42: 47-74. http://dx.doi.org/10.1590/0104-8333201400420047.
http://dx.doi.org/10.1590/0104-833320140...
: 47).

O defensor, embora tenha declarado que os corréus “(...) gostavam de sexo. E daí?”, construiu a defesa de sua cliente atribuindo-lhe submissão a VCP, um “monstro exibicionista”, um “pervertido sexual”, “bárbaro”, “canalha assassino”, que “guardava em seu computador muitas informações sobre paranoia”, concluindo ser ele merecedor não dos “40 anos e 4 meses de prisão”, mas da pena de morte, ao passo que RRO, apesar de inocente, já estaria condenada a uma pena de sofrimento perpétuo: “Ela é mãe! Sofreu, sofre e sofrerá pelo resto da vida pelo que aconteceu com sua filha!”

As teses da acusação e da defesa, por mais que pareçam opostas, convergiram ao considerar a morte de TRO um “caso escabroso”, resultante de uma combinação de “anomalias e transgressões de interditos sexuais e legais” (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. 2001. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes.). Todavia, elas divergiram quanto a ser o casal uma dupla de monstros sexualmente pervertidos e haver uma só vítima (a criança), ou quanto a ser somente o corréu o monstro que vitimara a criança e a mãe, também uma “menina inocente”, como disse seu defensor.

Entendo que a tese da acusação se sobrepôs à da defesa, ainda que por uma maioria simples (quatro votos a três), porque se articularam, na persuasiva e performática “exposição multimídia” do promotor e de seu assistente, argumentos de fortíssimo apelo moral a fim de que os “atores-jurados mergulhassem no processo”. Como tão bem analisou Marisa Corrêa, há mais de 40 anos, inaugurando o hoje consolidado campo de estudos antropológicos de gênero no Brasil em interface com análises do sistema de justiça criminal, em julgamentos que envolvem “mortes em família” (Corrêa, 1983CORRÊA, Marisa. 1983. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal.) homens e mulheres são desapropriados de suas realidades e “fabulados” moralmente a partir de estereótipos hegemônicos de masculinidade e feminilidade26 26 Vale lembrar a força do paradigma indiciário, analisado por Carlo Ginzburg, na constituição do modus operandi de certos saberes modernos, como a psicologia forense e a medicina legal, sem contar as investigações detetivescas no campo criminal (Ginzburg, 1990; Lowenkron, 2013b: 507, 513-514). .

Foi imperiosa, da parte da acusação, a constituição de RRO como uma mulher sem qualquer “virtude”, e foi fraca, da parte da defesa, a sustentação de que, ao invés de cúmplice por omissão, ela era omissa porque também vitimada. Como não presenciamos o interrogatório da ré em plenário, não sabemos o quanto suas próprias declarações se aproximaram mais de “confissões” ou de “queixas” (Gregori, 1989GREGORI, Maria Filomena. 1989. “Cenas e queixas. Mulheres e relações violentas”. In: Novos Estudos, n. 23, março: 163-175.), mas, segundo a acusação, ao “se queixar” de VCP como um duplo agressor (dela e da filha), mas permanecer ao seu lado, a ré “confessava” consentir com os atos dele e, portanto, ser uma mãe relapsa. Já a defesa afirmava que RRO era vítima de VCP e desconhecia suas agressões à menina, com o que ela “confessava” ao menos três “virtudes”: a de acreditar na honestidade do corréu “por ele ser PM”, a de desejar uma vida melhor para si própria e a filha e a de se submeter a maus tratos do réu para proteger seus irmãos e mãe.

Mas a ré, presente em carne-e-osso, visivelmente desestruturada, não teve como competir com a “parafernália eletrônica” dos slides da acusação que presentificaram, à exaustão, TRO morta. Foi impactante o poder testemunhal das fotos da menina nua na mesa de autópsia, com apenas 5 anos de idade e sem “nenhuma chance na vida”. O modo como esses slides foram editados e apresentados, em meio aos gritos indignados dos acusadores, reforçou a “natureza automática e indicial” que se costuma atribuir a fotografias, como se, por si sós, elas constituíssem “um sistema de verdade” (Medeiros, 2010MEDEIROS, Margarida. 2010. Fotografia e verdade: uma história de fantasmas. Lisboa, Assírio & Alvim.: 61) e não montagens que, além de dependentes da intenção do fotógrafo, interagem com as subjetividades dos olhares que observam, elegem ênfases e constroem sequências discursivas.

Outro artigo seria necessário para aprofundar o poder testemunhal que as fotografias tiveram nesse Júri, na linha do que Walter Benjamin (1975BENJAMIN, Walter. 1975. “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução” In: Walter Benjamin, Max Horkeimer, Theodor W. Adorno, Jürgen Habermas. Textos Escolhidos. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, pp. 9-34.) e Barthes (1989BARTHES, Roland. 1989. A Câmara Clara, Lisboa, Edições 70.: 114) problematizaram ao questionar fotos como rastros do real ou emanações de referentes, bem como com base nas análises de Susan Sontag sobre os necessários exercícios de “dedução, especulação e fantasia” (1986SONTAG, Susan.1986. Ensaios sobre Fotografia, Lisboa, D. Quixote.: 31) que se dão frente à natureza “muda e nua, chata e baça” da fotografia (Dubois, 1992DUBOIS, Philippe,1992. O Acto Fotográfico, Lisboa, Vega.: 79).

Utilizada por antropólogos evolucionistas do final do século XIX, fotos foram tomadas como provas fidedignas de acontecimentos sociais e de experiências humanas (Samain, 1995SAMAIN, Etienne. 1995. “Entre a arte, a ciência e o delírio: a fotografia médica francesa na segunda metade do século XIX”. Boletim do Centro de Memória da Unicamp, v. 5, n. 10: 11-32.), mas, à medida que a discussão pertinente às subjetividades intrínsecas ao trabalho etnográfico ganhou relevância teórico-metodológica, tornou-se complexa a produção e o uso de imagens em etnografias, a ponto de hoje ser consensual o seu caráter polissêmico e ambíguo, capaz de “(...) fazer a mediação entre a arte e a ciência” (Caiuby Novaes, 2015CAIUBY NOVAES, Sylvia. 2015. “Entre Arte e Ciência: usos da fotografia pela Antropologia”. In: Caiuby Novaes, Sylvia (Org.) Entre Arte e Ciência: a Fotografia na Antropologia. São Paulo: EDUSP, 09-20.: 09-18).

Podemos concluir, portanto, que mesmo imagens aparentemente “técnicas”, como as de um cadáver no IML ou as de um local de crime, carregam subjetividades intrínsecas às “verdades” que essas técnicas e técnicos postulam. “Imagens são sempre construídas, a partir do olhar que as registra” (idem, 2017: 163). No julgamento em questão, tais fotos “técnicas” foram ainda montadas ao lado de ou em meio a outras que retratavam situações íntimas, até tabus, sugerindo intencionalidades que levaram a um homicídio e submeteram a “pureza” ao “perigo”. A narrativa imagética dos slides do promotor e de seu assistente foi, sem dúvida, um exercício de “dedução, especulação e fantasia” de tremenda eficácia persuasiva.

Da posição em que estavam os jurados, durante a apresentação dos slides, eles sequer viam RRO escondida atrás da tela e contorcida de dor em sua cadeira de ré. O que se impôs foi a espetacularização do horror de uma mãe que “limpou o xixi do cachorro, passou batom nos lábios e arrumou os cabelos antes de levar a filha, detonada, ao hospital” onde, ao contrário da menina, ela chegou “sem machucados”, o que foi interpretado pelos acusadores como “prova” de sua omissão. Das imagens eróticas de RRO, que a essencializaram como ex-atriz pornô, colecionadora de “brinquedos sexuais” e “amante gostosona”, os acusadores fizeram brotar os “indícios” de sua “realidade” criminosa (Ginzburg, 1989GINZBURG, Carlo. 1989. “Sinais” In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 143-179.)27 27 Segundo Lowenkron, ao analisarem imagens de supostos crimes de pedofilia na internet, agentes da Polícia Federal não só constroem critérios para decidir o caráter “verdadeiro” dos casos, ou seja, se envolvem crianças e adolescentes menores de 18 anos ou se envolvem maiores de idade simulando corpos impúberes (“gênero pornográfico teen), como os policiais também justificam não estar, eles mesmos, praticando voyeurismo. Eles se declararam, inicialmente, horrorizados e, depois, “com a prática”, indignados e empenhados na luta do bem contra o mal (Lowenkron, 2013a: 312 e 2013b: 509-511). .

Se cabia aos acusadores, por falta de provas materiais e testemunhais, apontar “rastros” da personalidade doentia da ré e associá-los à “monstruosidade” de VCP, eles especialmente obtiveram sucesso com suas sequências. Primeiro, ao intercalarem imagens da genitália e do rosto machucados da menina (com uma corporalidade “verdadeiramente infantil” e cadavérica) com fotos da genitália de RRO, vívida, em poses exibicionistas e eróticas (com uma corporalidade “verdadeiramente adulta” e exuberante28 28 Houve poucas menções diretas à pedofilia do corréu, mas muitas indiretas, inclusive do defensor, o que deve ter contribuído para fazer de RRO também um “monstro”, tal como VCP (Lowenkron, 2013a: 2014a). ). Depois, ao apresentarem imagens de RRO realizando coprofagia com as fezes de VCP, ocorrência considerada “natural” em “animais”, mas classificada, segundo os acusadores, como um “desvio aberrante erótico” e uma “paraphilia” em seres humanos29 29 Muitos estudos sobre vítimas mulheres no Brasil, desde o já clássico trabalho de Ardaillon e Debert (1987), apontam o quanto elas, bem mais do que homens, são moralmente julgadas mesmo quando estão na posição de vítimas, inclusive de estupro, ficando na dependência desses julgamentos morais o reconhecimento ou não de terem sofrido abusos (Pimentel et al, 1998). . Esse foi, a meu ver, o xeque-mate na humanidade de RRO que impediu quatro dos sete jurados de a reconhecerem como possível vítima de VCP, como uma sobrevivente que, anos após a morte da filha, ainda vivenciava uma espécie de estresse pós-traumático digno de atenção e cuidados (Fassin & Rechtman, 2009FASSIN, Didier; RECHTMAN, Richard. 2009. The empire of trauma. An Inquiry into the Condition of Victimhood. New Jersey: Princeton University Press.).

Entre a “compaixão” e a “repressão” (Fassin, 2014FASSIN, Didier. 2014. “Compaixão e Repressão: A Economia Moral das Políticas de Imigração na França”. Ponto Urbe, 15: 01-26. http://journals.openedition.org/pontourbe/2467.
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), a primeira foi unidirecionada pelos acusadores à vítima, e a segunda concentrada na ré, mulher “devassa”, “vagabunda”, “sem moral” e “sem a mínima condição de estar ao lado da filha”, pesando inclusive contra ela o fato de escrever cartas de amor a um “tarado” a quem “entregou a filha de bandeja”30 30 LISBOA, Silvia. 2018. “Julgamento é denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos: mulher foi condenada porque seu marido matou o filho caçula quando ela não estava em casa”. Portal Geledés. Disponível em https://www.geledes.org.br/caso-de-tatiane-da-silvasantos-condenada-24-anosde-prisao-e-denunciado-nacomissao-interamericana-dedireitos-humanos/. Acesso em 01 de setembro de 2018. .

Em momento algum se discutiu o caráter íntimo e privado das fotos eróticas do casal, de uso exclusivo dos próprios fotografados, tornadas públicas graças ao “saber prático” dos agentes estatais, representantes da “ordem pública” (Lowenkron, 2013bLOWENKRON, Laura .2013b. “Da materialidade dos corpos à materialidade do crime. A materialização da pornografia infantil em investigações policiais”. MANA, n. 19(3): 505-528.: 515). Primeiro, policiais confiscaram o computador de VCP e dele extraíram fotos, filmagens, cartas e registros sobre “paranoia”. Depois, representantes do Ministério Público e da Magistratura editaram esse material, ao longo dos sete volumes dos autos processuais, já de acordo com a tese do potencial criminoso portador de “desvios aberrantes eróticos” e, por fim, o material foi reeditado em slides, com tarjas, cores e efeitos especiais, selecionados pela expertise dos acusadores e por seu compromisso de lutar contra “monstros” e “canalhas assassinos” (Lowenkron, 2014aLOWENKRON, Laura. 2014a. “A emergência da pedofilia no final do século XX. Deslocamentos históricos no emaranhado da ‘violência sexual’ e seus atores”. In Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 4, n. 1, jan.-jun.:231-255.). Enquanto o promotor, pontual e performaticamente, concluiu a sua primeira arguição enxugando as próprias lágrimas, as quais, graças à sua posição de poder, não tiveram a sinceridade questionada, as muitas lágrimas de RRO, derramadas ao longo de todo o julgamento, foram consideradas “de crocodilo” e atribuídas apenas ao seu medo de ser condenada à prisão. Indiscutivelmente, são as posições institucionais e morais de narradores que determinam o que prevalece como a versão mais verossímil de um mesmo episódio (Ginzburg, 2000GINZBURG, Jaime. 2000. “Notas sobre elementos de Teoria da Narrativa”. In: COSSON, Rildo (org.). Esse rio sem fim. Ensaios sobre literatura e suas fronteiras. Pelotas: UFPEL, pp. 113-136.).

Voltando à convergência entre as teses da acusação e as da defesa, entendo que ambas, diante da falta de provas materiais da omissão de RRO na tortura e morte de TRO, exploraram indícios de sua “personalidade”. Nas palavras do defensor, “se há dúvida não se pode condenar”, portanto ele tentou recuperar “rastros” indicativos da inocência de RRO e de ela também ser vitimada por VCP, razão pela qual não teria reagido e não se machucado enquanto sua filha era agredida. Os acusadores, por sua vez, ao “provarem” que qualquer mãe ou pai “normais” teriam “levado um tiro na cabeça” para tentar salvar uma filha, “provaram”, a contrario sensu, ser RRO uma mãe “anormal” e, consequentemente, omissa e cúmplice de um criminoso.

Ainda que não seja objeto deste texto aprofundar e analisar comparações entre o “Caso Isabella Nardoni” e o “Caso RRO”, cabe destacar que em ambos houve várias dúvidas sobre a autoria dos crimes: não havia testemunhas oculares, laudos periciais e provas materiais não foram conclusivos e os acusados se declararam inocentes. Mas, como nos dois casos, ficou provado pelos cadáveres das crianças que elas sofreram violências que as vitimaram e não se constatou a possibilidade de que terceiras pessoas estivessem nos locais dos crimes ou que acidentes tivessem ocorrido, a conclusão foi a mesma: ou um ou os dois membros de cada casal eram necessariamente responsáveis pelas mortes.

Como conduzir dúvidas rumo ao imperioso desfecho de uma condenação ou de uma absolvição judicial? Como atribuir sentidos a fragmentados e ambíguos registros discursivos e probatórios de modo a concatená-los em uma composição encadeada, lógica e capaz de sustentar uma sentença legal e legítima?

O tema da decisão judicial ou da discricionariedade dos aplicadores da lei, sejam eles juízes ou jurados, é um dos que, há muitas décadas, mobiliza debates no campo da filosofia do direito (Bobbio, 1995BOBBIO, Norberto. 1995. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo, Ícone.) e que incita pesquisas no campo da antropologia do direito (Mendes, 2011MENDES, Regina Lúcia Teixeira. 2011. O princípio do livre convencimento motivado: legislação, doutrina e interpretação de juízes brasileiros. Rio de Janeiro, Lúmen Júris.). Furtando-me a mapear, detalhar e aprofundar tal tema, devido aos limites deste artigo, restrinjo-me apenas a apontar que são especialmente dois os princípios do sistema interpretativo-discursivo do direito penal brasileiro que costumam ser acionados em casos de dúvidas como as envolvidas nos julgamentos dos casais Nardoni e VCP-RRO. Tais princípios são o in dubio pro societate, não previsto em nenhuma doutrina ou lei brasileira, porém bastante aplicado na prática forense, e o in dubio pro reo, registrado no CPP, art.386, inciso VII.

O princípio in dubio pro societate, de acordo com vários juristas, costuma ser indevidamente invocado no processamento de crimes dolosos contra a vida, seja pelo Ministério Público quando, na dúvida, promotores oferecem a denúncia, seja por magistrados quando, na dúvida, pronunciam os réus, levando-os a julgamento pelo Júri, em nome do direito constitucional de serem julgados por “pares”. Os críticos à aplicação desse princípio afirmam que, havendo dúvidas, o in dubio pro reo já deveria valer tanto na fase da denúncia, arquivando-se o inquérito policial, quanto na da pronúncia, impronunciando-se o réu (Costa, 2015COSTA, Gustavo Roberto. 2015. “In dubio pro societate é realmente um princípio?” In: Justificando. Mentes inquietas pensam Direito. 26.nov. Disponível em Disponível em http://justificando.cartacapital.com.br/2015/11/26/in-dubio-pro-societate-e-realmente-um-principio /. Acesso em 14 de julho de 2018.
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).

O in dubio pro reo relaciona-se ao princípio da presunção da inocência, segundo o qual, em caso de dúvida (como a insuficiência de provas), o réu deve ser favorecido. Um princípio se reporta ao outro, tanto que os três (pro societate, pro reo e da presunção de inocência) são considerados intimamente ligados ao princípio da legalidade (submissão de qualquer decisão ao “império da lei”) que, finalmente, é reconhecido como um dos pilares do direito penal.

A hipótese que os casos Nardoni e RRO nos permite levantar é que, neles, tais princípios entraram em conflito e que o embate foi resolvido fundamentalmente em função de valores morais, levando os dois casais à condenação.

Limitando-me apenas à análise do “Caso RRO”, pergunto-me: quais razões teriam, primeiro, levado o Ministério Público a denunciar RRO; segundo, feito com que o juiz a pronunciasse e, por fim, determinado que o Conselho de Sentença a condenasse. A resposta que me ocorre, com base no que foi possível observar no plenário, é que, apesar das dúvidas, construíram-se muitas “certezas morais” de que RRO era uma mãe anormal por ser exacerbadamente sexualizada, de modo que quatro jurados preferiram “prevenir do que remediar” e a condenaram, decisão da qual resultou uma pena de prisão igual ao tempo que RRO tinha de vida: 26 anos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No momento em que eu finalizava uma das versões deste texto, deparei-me com a seguinte notícia:

A gaúcha Tatiane da Silva Santos estava trabalhando numa padaria em um domingo, 29 de setembro de 2013, quando seu marido, Amilton Martins, torturou e matou o filho caçula. Diogo tinha apenas um ano de idade. Amilton foi condenado a 42 anos de prisão pelo homicídio, e Tatiane ganhou uma sentença de 24 anos por omissão e tortura mesmo sem estar presente no momento do crime. Presa dias após a morte de Diogo, ela também perdeu a guarda dos filhos mais velhos, Gabriel e Gabriele, antes mesmo de ser condenada por um júri composto de sete mulheres em novembro de 2016.

Essa reportagem se encerra com as seguintes declarações de uma promotora: “O sistema judiciário é machista, misógino. Não está preparado para as questões de gênero (...). “O Estado falhou com Tatiane desde a infância. E continuou falhando com ela”31 31 LISBOA, Silvia, GONZÁLEZ, Letícia. 2018. “Justiça machista: brasileiras são condenadas pelo crime e pelo gênero”. Revista Galileu. Disponível em https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2018/03/justica-machista-brasileirassao-condenadas-pelo-crimee-pelo-genero.html. Acesso em 01 de setembro de 2018. .

Em outra reportagem sobre o mesmo caso, constam as seguintes declarações:

Ocorre também uma espécie de sacralização da maternidade: quando se torna mãe, a mulher tem de ser onipresente, pura, não ter outros desejos e anseios”, explica a advogada criminalista Fernanda Osorio (...). O Direito Penal julga fatos, não a moral. Mas não é isso que se vê na prática em crimes que envolvem mulheres”, diz. A condenação de Tatiane é exemplar nesse sentido. No julgamento, a procuradora Sônia Mensch criticou o fato de Tatiane permanecer casada com Amilton mesmo ele tendo sido agressivo com ela, e atribuiu a dificuldade a uma "dependência sexual".

Eu espero ter exemplificado, com a etnografia do julgamento de RRO, a significativa contribuição que a antropologia pode dar ao analisar campos judiciais em que “lutas simbólicas e critérios particulares (...) determinam - na reivindicação de direitos - quem é mais, e quem é menos, humano” (Fonseca & Cardarello, 2009FONSECA, Claudia; CARDARELLO, Andrea. 2009. “Direitos dos mais e menos humanos” In: FONSECA, Claudia & SCHUCH, Patrice. Políticas de Proteção à Infância: um olhar antropológico. Porto Alegre: Editora da UFRGS, pp. 219-251.: 219). Conforme já apontado no resumo e no início deste texto, é possível e necessário, a partir da antropologia do direito, contribuir com reflexões críticas sobre o assustador crescimento de desejos punitivos e de demandas por lei e ordem em nome da segurança de “cidadãos de bem”, o que se dá, quase sempre, em detrimento da própria lei e em função da força seletiva de marcadores sociais como gênero, raça e poder socioeconômico.

Não são poucas as vozes, hoje, no Brasil e no mundo, que expressam a crença de que quanto maior a punição maior a confiança em instituições encarregadas da “segurança”, ainda que, comumente, isso se contraponha a conquistas sedimentadas em diversos textos de direitos humanos (Adorno & Pasinato, 2010ADORNO, Sérgio e PASINATO, Wania. 2010. “Violência e impunidade penal: da criminalidade detectada à criminalidade investigada”. Dilemas, v.7(3): 51-84.). Entendo que nos cabe, na esteira de trabalhos de inspiração foucaultiana, incrementar reflexões críticas relativas à persistência, a todo custo, de demandas por longas penas de prisão, até mesmo por parte de movimentos humanistas e progressistas de direitos humanos (Pires, 1999PIRES, Álvaro. 1999. “Alguns obstáculos para uma mutação ‘humanista’ do direito penal”. Sociologias, ano 1, n.1, jan/jun: 64-95. e 2004PIRES, Álvaro. 2004. “A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos”. Novos Estudos, n. 68, março, pp. 39-60.; Singer, 2000).

Álvaro Pires, retomando Beccaria, lembra que este jurista, em 1764, afirmava não ser a intensidade da pena o que mais produz efeitos sobre o espírito humano, mas a sua duração temporal (Pires, 2012PIRES, Álvaro. 2012. “Introduction. Les peines radicales: Construction et ‘invisibilisation’ d’un paradoxe”. In : MEREU, Italo. La mort comme peine. Essai sur la violence légale. Bruxelles, Larcier, pp. 01-39.: 4). Desde então, só se fortaleceram as associações ideológicas, legislativas e judiciais entre punição e longas penas de privação de liberdade. Quanto mais valorizado um bem (vida, por exemplo, e vida de uma criança, com especial ênfase), mais se tem proposto que as punições durem anos, décadas e mesmo perpetuamente, isso quando não há pena de morte, linchamentos, chacinas e execuções sumárias, excluindo-se possibilidades de reparações de outras naturezas como, por exemplo, prestação de serviços à comunidade ou multas (Fullin, 2012FULLIN, Carmen Silvia. 2012. Quando o negócio é punir: uma análise etnográfica dos Juizados Especiais Criminais e suas sanções. São Paulo, tese de doutorado, 2012, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo.).

A partir de etnografias da dinâmica de julgamentos realizados por Tribunais do Júri, talvez possamos “compreender” quais moralidades são constantemente atualizadas, seja nos tribunais, seja no mundo exterior a eles. E não tomo o verbo “compreender” como sinônimo de “concordância de opiniões, união de sentimentos ou comunhão de compromissos”, mas como “aprender a apreender o que não podemos abraçar” (idem: 84), fazendo “um ir e vir hermenêutico” entre os campos da antropologia e do direito a fim de formular questões morais, políticas e intelectuais importantes para ambos (Geertz, 1998GEERTZ, Clifford. 1998. “O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa”. In: GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Rio de Janeiro: Vozes, pp. 249-356.: 253). Nesse “ir e vir”, afirma Geertz, “temas específicos de análise (...), mesmo apresentando-se em formatos diferentes, e sendo tratados de maneiras distintas, encontram-se no caminho das duas disciplinas”. Entendo que julgamentos pelos Tribunais do Júri estão entre esses temas e que, ainda concordando com o autor, não basta “um esforço para impregnar costumes sociais com significados jurídicos, nem para corrigir raciocínios jurídicos através de descobertas antropológicas”, sendo bem mais produtivo pensar a respeito da “maneira pela qual as instituições legais traduzem a linguagem da imaginação para a linguagem da decisão, criando assim um sentido de justiça determinado” (idem: 253 e 260).

O fato de a votação do Júri de RRO ter sido tão apertada nos deixa a esperança de que três jurados (dentre os quais necessariamente uma mulher, já que o Conselho de Sentença era composto por cinco mulheres e dois homens) convictamente a absolveram ou lhe concederam o benefício da dúvida.

Ainda acalento o projeto de reencontrar RRO, bem como sua mãe e irmãos para, depois de tantos anos, conversar com eles sobre suas memórias do julgamento e, no caso de RRO, para saber, por exemplo, se ela seguiu escrevendo cartas na prisão, “perdida em devaneios”32 32 A última notícia que tive dela foi que cumpria a sua pena na Penitenciária Feminina Santa Maria Eufrásia Pelletier, em Tremembé, SP, estabelecimento conhecido por abrigar mulheres cujos julgamentos tiveram grande repercussão midiática, como a madrasta de Isabella Nardoni. .

Enfim, como bem disse o casal de aposentados com quem eu conversei, pouco antes de a juíza proferir a sentença (a “jovem juíza”, mulher que nada fez diante dos xingamentos e humilhações a que os acusadores submeteram a ré, e que também permaneceu inerte diante da presença de crianças no plenário e das inúmeras interrupções que o defensor sofreu durante suas arguições): “de vez em quando, é um bom programa assistir a um julgamento pelo Júri. A gente sempre aprende”.

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  • BRASIL.1990 Lei n. 8.072 de 25 de julho. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8072.htm
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  • BRASIL. 1997. Lei n. 9.455 de 7 de abril. Define os crimes de tortura e dá outras providências http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/L9455.htm
    » http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/L9455.htm
  • 1
    Ao longo da minha pesquisa de doutorado, realizada entre 1997 e 2001 em cinco Tribunais do Júri da cidade de São Paulo, período em que acompanhei 107 sessões de julgamento, verifiquei que uma sessão costuma durar aproximadamente 5 horas (Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.: 34). Desconheço uma pesquisa que avalie o tempo médio atual dos julgamentos pelo Júri no Brasil, mas é válido afirmar que são raros os que ultrapassam um dia.
  • 2
    Insigths em que se baseiam minhas análises decorreram de diversas oportunidades em que coloquei esse julgamento em discussão: reuniões do Núcleo de Antropologia do Direito da Universidade de São Paulo (NADIR-USP); dois papers que apresentei em congressos (Schritzmeyer, 2012bSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012b. “Construções imagético-discursivas em julgamento: etnografia de um Júri (São Paulo, 2008)”. Paper apresentado na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, GT.67 Sensibilidades jurídicas e sentidos de justiça na contemporaneidade: Antropologia e Direito, 2008 julho, São Paulo, SP, pp. 01-21. e Schritzmeyer, 2012cSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012c. “Formalmente sujeito de direitos, mas socialmente incapaz de efetivá-los. Etnografia de um Júri (São Paulo/SP, 2008)”. Paper apresentado no 36º Encontro Anual da ANPOCS, Mesa Redonda Direitos Humanos: direitos do sujeito e sujeito de direitos, 2012 outubro, Águas de Lindóia, SP. http://www.anpocs.com/index.php/papers-36-encontro/mr-3/mr11/8316-formalmente-sujeito-de-direitos-mas-socialmente-incapaz-de-efetiva-los-etnografia-de-um-juri/file.
    http://www.anpocs.com/index.php/papers-3...
    ), interlocuções com dois estudantes que também produziriam papers (Nor & Moreira, 2011NOR, Gabriela Ruggiero; MOREIRA, Moacyr Godoy. 2011. “Análise do ‘Caso Rosângela’ à luz de elementos de teoria da narrativa”. Paper apresentado no II Encontro Nacional de Antropologia do Direito, FFLCH, USP, GT Antropologia, alteridade, autoridade e constituição de sujeitos. 2011 http://nadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/gt7%20-%20gabriela%20nor.pdf. e Fernandes, 2011FERNANDES, Guilherme. 2011. “O lugar da sexualidade: a vulnerabilidade e a constituição negativa de sujeitos através dos corpos”. Paper apresentado no II Encontro Nacional de Antropologia do Direito, 2011 FFLCH, USP, GT Antropologia, alteridade, autoridade e constituição de sujeitos. http://nadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/gt7%20-%20guilherme%20fernandes.pdf.
    http://nadir.fflch.usp.br/sites/nadir.ff...
    ) e com o Prof. Jaime Ginzburg (2000)GINZBURG, Jaime. 2000. “Notas sobre elementos de Teoria da Narrativa”. In: COSSON, Rildo (org.). Esse rio sem fim. Ensaios sobre literatura e suas fronteiras. Pelotas: UFPEL, pp. 113-136. do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. Cópias dos autos processuais, posteriormente fornecidas por Ilana Casoy, compuseram parte do material analisado no projeto “Sujeitos, Discursos e Instituições”, desenvolvido no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), entre 2011 e 2016. Laura Moutinho (2004)MOUTINHO, Laura. 2004. Razão, “cor” e desejo: uma análise comparativa sobre relacionamentos afetivos-sexuais “inter-raciais” no Brasil e na África do Sul. São Paulo, Editora da Unesp., minha colega de departamento, após a leitura atenta de uma versão preliminar deste artigo, deu-me importantes sugestões bibliográficas. Uma outra versão deste artigo, na qual comento julgamentos pelo Júri na França, foi publicada na Revue Brésil(s). Sciences humaines et sociales, n. 16, novembre 2019. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme com o título “Un monstrueux pervers sexuel ou deux ? Ethnographie d’un procès à la cour d’assises de São Paulo au Brésil” (http://journals.openedition.org/bresils/5777).
  • 3
    Para um balanço bibliográfico referente ao fluxo do sistema de justiça criminal brasileiro ver Ribeiro & Silva, 2010RIBEIRO, Ludmila; SILVA, Klarissa. 2010. “Fluxo do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro: Um balanço da literatura”. Cadernos de Segurança Pública, 2 (1), agosto: 14-27.. E para uma discussão sobre absolvições e condenações no Tribunal do Júri ver Stemler, Soares & Sadek, 2017STEMLER, Igor Tadeu S. V.; SOARES, Gabriela Moreira de A. e SADEK, Maria Tereza. 2017. “Tribunal do Júri: condenações e absolvições”. Revista CNJ, Brasília, v. 2, pp. 12-23. https://www.cnj.jus.br/p-content/uploads/2016/03/29cb341405668f2446c4d1650bc39e5f.pdf
    https://www.cnj.jus.br/p-content/uploads...
    .
  • 4
    Fluxogramas reproduzidos de Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.: 126.
  • 5
    Apesar de o julgamento, como é de praxe, ter ocorrido a portas abertas, mencionarei a ré, a vítima e o corréu apenas pelas iniciais de seus prenomes e sobrenomes: RRO, TRO e VCP, respectivamente. Também não nomearei a juíza, o promotor, seu assistente e o defensor. O processo em questão pode ser localizado pelo número 583.52.2004.002881-4.
  • 6
    Não é muito comum, no Júri, a presença de um(a) assistente de acusação. No caso em análise, todavia, o representante do Ministério Público contou com outro promotor de justiça como assistente, com quem compartilhou o tempo destinado à acusação.
  • 7
    Mais de um ano após o julgamento, esses slides e também os utilizados pelo assistente foram cedidos ao NADIR por uma das pesquisadoras do grupo, de modo que pude revê-los muitas vezes, porém jamais os projetei fora das reuniões do Núcleo ou os reproduzi em qualquer publicação.
  • 8
    Esse croqui, sem a “tela”, se encontra na página 62 do livro que resultou do meu doutorado (Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.). Nele, entre as páginas 61 e 67, e especialmente no capítulo 5, analiso detalhadamente a distribuição dos atores no “palco” e suas participações na dinâmica do Júri.
  • 9
    Telefones de emergência para chamar a Polícia Militar e a ambulância de resgate do Corpo de Bombeiros, respectivamente.
  • 10
    Essa menina também tinha cinco anos de idade quando morreu após ser jogada do 6º andar de uma das janelas do apartamento do pai, na noite de 29 de março de 2008, em São Paulo. Esse caso, ocorrido, portanto, dois meses antes do Júri de RRO, estava no auge de sua repercussão midiática nacional. O pai e a madrasta da criança foram acusados de homicídio doloso triplamente qualificado. Eles sempre se declararam inocentes, mas, em março de 2010, foram condenados: ele a 31 anos, 1 mês e 10 dias de reclusão, além de 8 meses e 24 dias de detenção por fraude processual qualificada, e ela a 26 anos e 8 meses de reclusão, além do mesmo tempo que ele por fraude processual qualificada. Os dois passaram a cumprir as penas em regime fechado, sem direito a sursis (suspensão condicional da pena).
  • 11
    Apesar de, no Brasil, não ser proibida a presença de menores de 18 anos na plateia de um julgamento pelo Júri, ela é rara. Mas postadas ao lado dos jurados, eu nunca havia visto crianças ou quaisquer pessoas que não os profissionais do Júri.
  • 12
    As saídas de juízes e promotores dos plenários do Júri durante as falas de defensores, sejam propositais ou não, sinalizam um desprezo pela narrativa da defesa que não passam desapercebidas aos jurados (Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.: 209). É como se dissessem, embora não com palavras: “Não vou perder o meu tempo te ouvindo”.
  • 13
    Esse valor, à época, equivalia a três salários mínimos (SM). Famílias com mais de dois até quatro SM são classificadas como pertencentes à classe D. Para detalhes atuais consultar: https://cps.fgv.br/qual-faixa-de-renda-familiar-das-classes, acessado em 06 de agosto de 2020.
  • 14
    A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, (...) e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
  • 15
    “São considerados hediondos (a tortura e) os seguintes crimes: I - homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V do CP)”.
  • 16
    “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
  • 17
    Os artigos foram assim apresentados: “6º: A criança tem direito ao amor e à compreensão, deve crescer sob a proteção dos pais, com afeto e segurança”. “8º: A criança, em qualquer circunstância, deve ser a primeira a receber proteção e socorro”. “9º. A criança NÃO DEVE SER abandonada, espancada ou explorada”.
  • 18
    Uma das grandes diferenças entre o Júri brasileiro e os existentes em vários outros países reside no que se passa na sala secreta de votação. No Brasil, os jurados, desde que são sorteados e passam a compor o Conselho de Sentença, não podem falar entre si sobre o caso em julgamento em função do princípio da incomunicabilidade. Na sala secreta brasileira, na presença do juiz, do promotor, do defensor e de um funcionário do tribunal (às vezes de “convidados”), eles apenas ouvem novamente os quesitos anunciados no plenário e podem pedir esclarecimentos de dúvidas técnicas ao juiz, em seguida ao que, sem qualquer discussão, respondem secretamente “sim” ou “não” a cada quesito, com cédulas que depositam em uma urna. Se a decisão for condenatória, o cálculo da pena é feito pelo juiz que, sozinho, também elabora a motivação da sentença. Esses procedimentos costumam levar entre 30 e 60 minutos.
  • 19
    Não me saía da cabeça o quanto havíamos presenciado um defensor que optara por acusar o corréu de violência contra a ré, de ameaça-la, fazê-la “prisioneira” e “escravizá-la”, mas que, ao não nomear que se tratava de um caso de violência contra a mulher, de violência doméstica e/ ou familiar, nem bem investiu na judicialização de relações familiares nem bem politizou a justiça em defesa da ré (Debert & Gregori, 2008DEBERT, Guita Grin; GREGORI, Maria Filomena. 2008. “Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n.66, fev.: 165-185.).
  • 20
    Em várias passagens do meu livro sobre o Júri no Brasil (Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.: 117, 119, 168 e 265), analiso os “critérios sociológicos” (sexo, idade, profissão, aparência física) geralmente utilizados por promotores e defensores ao aceitarem ou recusarem jurados no momento do sorteio. Cada qual pode recusar até três, sem justificativa. Eu denominei de “sociologia selvagem” o modo como esse conjunto de critérios é utilizado por promotores e defensores. Teria sido relevante saber do promotor por que ele recusou três homens e preferiu um Conselho majoritariamente feminino. Minha hipótese é que ele partiu do pressuposto de que mulheres julgam outra mulher com muito rigor, especialmente em relação ao idealizado papel de mãe. Análises referentes a essa questão estão presentes em pesquisas nas quais foram observadas mulheres, em posições de poder, avaliando e julgando duramente outras mulheres que se declaravam, por exemplo, vítimas de violência doméstica (Bonelli, 2009BONELLI, Maria da Glória. 2009. “Perfil social e de carreira dos delegados de polícia” In: Sadek, Maria Tereza (org.). Delegados de polícia [online]. Rio de Janeiro, Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, pp. 22-50. http://books.scielo.org/id/s7v75/pdf/sadek-9788579820144-02.pdf.
    http://books.scielo.org/id/s7v75/pdf/sad...
    ; Lins, 2014LINS, Beatriz Accioly. 2014. A Lei nas entrelinhas: a Lei Maria da Penha e o trabalho policial em duas Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo. São Paulo, 2014, dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo.).
  • 21
    Dedico todo um capítulo de minha tese de doutorado à análise dos julgamentos pelo Júri como rituais e assim o introduzo: Do início ao final dos julgamentos, (...), sentidos são atribuídos a vidas e mortes. Os julgamentos pelo Júri constituem e são constituídos por essa dimensão produtora de sentidos pois, quando fatos-dramas da vida social chegam aos plenários, (...) adquirem outra natureza, cujo sentido só se alcança se focarmos a análise no domínio ritualizado em que se expressam, no qual tempo e espaço, já vividos, passam a ser imaginados. Durante as horas das sessões são narrados acontecimentos que atravessaram dias, noites, meses e anos. Embora não se percorram favelas, becos, casas, praças e ruas, (...) tudo isso está no Júri, transmutado em narrativas contadas segundo determinadas regras e por determinadas pessoas. Até as páginas dos processos, as fotos que os ilustram, (...) (já narrativas em si) tornam a ser narradas nos contextos dos julgamentos, suscitando a produção de novos sentidos. É desse contexto ritual, repetido cada vez que há um julgamento em um plenário de Júri, que trata este capítulo (Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.: 134).
  • 22
    Se este fosse um texto mais criminológico, eu retomaria alguns achados de Bruna Angotti, cuja pesquisa de doutorado eu orientei e que se voltou para o crime de infanticídio (Angotti, 2019ANGOTTI, Bruna. 2019. Da solidão do ato à exposição judicial: uma abordagem antropológico-jurídica do infanticídio no Brasil. São Paulo, tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. 2019.). Em estudos internacionais, ela encontrou relatos de casos semelhantes ao de RRO, VCP e TRO: mãe que mata um filho, ainda criança, na condição de cúmplice (ativa ou omissa) de seu companheiro (pai biológico ou não da vítima). Criminólogos sugerem haver padrões de filicídio (morte de filhos pela mãe, pelo pai ou por ambos), determinados por um complexo de variáveis, como situação socioeconômica, raça-etnia e gênero (V. Meyer & Oberman, 2001MEYER, Cheryl; OBERMAN, Michelle. 2001. Mothers who kill their children - understanding the acts of moms from Susan Smith to the ‘prom mom’. New York: New York University Press.).
  • 23
    E, assim como registrou Lowenkron em relação às imagens de pornografia infantil que ela analisou na Polícia Federal, também eu, ao ver e rever os slides desse julgamento, senti “um mal-estar indescritível”, mas, “aos poucos, a repugnância e o choque foram dando lugar a um olhar mais analiticamente atento. Percebi, então, que examinar as cenas (...) seria parte importante de meu ofício etnográfico” (Lowenkron, 2014bLOWENKRON, Laura. 2014b. “Dos sentimentos subjetivos às provas objetivas: uma etnografia do olhar investigativo (policial e antropológico) frente a cenas de pornografia infantil. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 57 n. 1: 145-177.: 147-148). Ofício, no caso, de analisar, em profundidade, o que estava “em cena e em jogo” naquele Tribunal do Júri (Schritzmeyer, 2012aSCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. 2012a. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome.).
  • 24
    Assim constam suas cores de pele em todas as peças dos autos processuais, tanto na fase policial quanto judicial.
  • 25
    A pesquisa de mestrado de Marisa Corrêa (1975)CORRÊA, Marisa. 1975. Os atos e os autos: representações jurídicas de papéis sexuais. Campinas, dissertação de mestrado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. 1975. http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/279502.
    http://www.repositorio.unicamp.br/handle...
    se concentrou em assassinatos, tentados ou consumados, que envolviam casais julgados nas décadas de 1950 e 1960 pelo Tribunal do Júri de Campinas. Em sua dissertação ela demonstrou como homens que matavam mulheres “em nome da honra” e eram apresentados como bons trabalhadores, provedores do lar e bons pais tendiam a ser inocentados, especialmente quando as vítimas se distanciavam dos papéis de boas donas de casa e boas mães.
  • 26
    Vale lembrar a força do paradigma indiciário, analisado por Carlo Ginzburg, na constituição do modus operandi de certos saberes modernos, como a psicologia forense e a medicina legal, sem contar as investigações detetivescas no campo criminal (Ginzburg, 1990; Lowenkron, 2013bLOWENKRON, Laura .2013b. “Da materialidade dos corpos à materialidade do crime. A materialização da pornografia infantil em investigações policiais”. MANA, n. 19(3): 505-528.: 507, 513-514).
  • 27
    Segundo Lowenkron, ao analisarem imagens de supostos crimes de pedofilia na internet, agentes da Polícia Federal não só constroem critérios para decidir o caráter “verdadeiro” dos casos, ou seja, se envolvem crianças e adolescentes menores de 18 anos ou se envolvem maiores de idade simulando corpos impúberes (“gênero pornográfico teen), como os policiais também justificam não estar, eles mesmos, praticando voyeurismo. Eles se declararam, inicialmente, horrorizados e, depois, “com a prática”, indignados e empenhados na luta do bem contra o mal (Lowenkron, 2013aLOWENKRON, Laura. 2013a. “O monstro contemporâneo: notas sobre a construção da pedofilia como ‘causa política’ e ‘caso de polícia’. Cadernos Pagu n. 41, julho-dezembro: 303-337.: 312 e 2013bLOWENKRON, Laura .2013b. “Da materialidade dos corpos à materialidade do crime. A materialização da pornografia infantil em investigações policiais”. MANA, n. 19(3): 505-528.: 509-511).
  • 28
    Houve poucas menções diretas à pedofilia do corréu, mas muitas indiretas, inclusive do defensor, o que deve ter contribuído para fazer de RRO também um “monstro”, tal como VCP (Lowenkron, 2013aLOWENKRON, Laura. 2013a. “O monstro contemporâneo: notas sobre a construção da pedofilia como ‘causa política’ e ‘caso de polícia’. Cadernos Pagu n. 41, julho-dezembro: 303-337.: 2014a).
  • 29
    Muitos estudos sobre vítimas mulheres no Brasil, desde o já clássico trabalho de Ardaillon e Debert (1987)ARDAILLON, Danielle; DEBER, Guita Grin. 1987. Quando a vítima é a mulher: análise de julgamentos de crimes de estupro, espancamento e homicídio. Brasília, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher., apontam o quanto elas, bem mais do que homens, são moralmente julgadas mesmo quando estão na posição de vítimas, inclusive de estupro, ficando na dependência desses julgamentos morais o reconhecimento ou não de terem sofrido abusos (Pimentel et al, 1998PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore e PANDJIARJIAN, Valéria. 1998. Estupro: crime ou ‘cortesia’? Abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris.).
  • 30
    LISBOA, Silvia. 2018. “Julgamento é denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos: mulher foi condenada porque seu marido matou o filho caçula quando ela não estava em casa”. Portal Geledés. Disponível em https://www.geledes.org.br/caso-de-tatiane-da-silvasantos-condenada-24-anosde-prisao-e-denunciado-nacomissao-interamericana-dedireitos-humanos/. Acesso em 01 de setembro de 2018.
  • 31
    LISBOA, Silvia, GONZÁLEZ, Letícia. 2018. “Justiça machista: brasileiras são condenadas pelo crime e pelo gênero”. Revista Galileu. Disponível em https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2018/03/justica-machista-brasileirassao-condenadas-pelo-crimee-pelo-genero.html. Acesso em 01 de setembro de 2018.
  • 32
    A última notícia que tive dela foi que cumpria a sua pena na Penitenciária Feminina Santa Maria Eufrásia Pelletier, em Tremembé, SP, estabelecimento conhecido por abrigar mulheres cujos julgamentos tiveram grande repercussão midiática, como a madrasta de Isabella Nardoni.
  • Financiamento

    Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 2, Bolsa de Pesquisa no Exterior (BPE) da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e coordenação de um projeto do Programa USP-COFECUB.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2020
  • Aceito
    08 Set 2020
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