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A História de Carolina. Um estudo de caso sobre a difusão de um mito no Sudoeste Amazônico

RESUMO

Um povo pode desaparecer, mas não uma história. Isso foi o que ocorreu com um mito kuniba, narrado a Nimuendaju por Carolina, em uma situação de remoção forçada promovida pelo Estado brasileiro no começo do século XX. O mito em questão falava da origem da lua, ocasionada pelo incesto de um irmão com uma irmã. Até o começo do século XX, povos vizinhos dos Kuniba, como os Cashinahua e os Kanamari, tinham narrativas muito distintas sobre a origem da lua. No entanto, ao longo do século, com a partida dos Kuniba, o tema do incesto entre irmão e irmã passa a estar presente nas narrativas, difundindo-se pela região das bacias dos rios Juruá e Purus. Isso conduz a uma reflexão sobre o problema da “causalidade informacional”, sobre a “política externa” estabelecida entre diferentes povos e sobre a “dialética espacial” promovida pelos mitos.

PALAVRAS-CHAVE
Ensemble; mitologia; incesto; história; lua

ABSTRACT

Peoples can disappear, but not stories. This is what happened with a kuniba myth, narrated to Nimuendaju by Carolina, in a situation of forced removal promoted by the Brazilian state at the beginning of the 20th century. Such myth was about the origin of the moon, caused by the incest of a brother with a sister. Until the beginning of the 20th century, neighboring peoples of the Kuniba, such as the Cashinahua and the Kanamari, had very different narratives about the origin of the moon. However, throughout the 20th century, with the departure of the Kuniba, the theme of incest between brother and sister becomes part of the narratives, spreading throughout the region of the Juruá and Purus river basins. This leads to a reflection on the problem of “informational causality”, on the “foreign policy” that differentiates peoples, and on the “spatial dialectic” promoted by myths.

KEYWORDS
Ensemble; mythology; incest; history; moon

NOTA DOS EDITORES

Em dezembro de 2014, Peter Gow apresentou este artigo, ainda inacabado, para a apreciação da Revista de Antropologia. Dado o entusiasmo da comissão editorial, ele ficou de submeter uma versão finalizada, mas isso acabou não acontecendo. Gow faleceu precocemente em 18 de maio de 2021, deixando uma obra de grande importância para a etnologia dos povos indígenas das terras baixas da América do Sul. Como não poderia deixar de ser, decidimos publicar o artigo agora e, para tanto, contamos com a ajuda de Marcos de Almeida Matos que, além de traduzir o texto, recuperou citações e referências bibliográficas, e redigiu notas buscando suprir lacunas. “A história de Carolina” integra um conjunto de textos de Gow, que se dedica a perseguir e analisar transformações míticas - confessadamente sob inspiração das Mitológicas, de Lévi-Strauss - na região do sudoeste amazônico. (Um deles, “Um cline mítico na América do Sul ocidental: explorando um conjunto lévi-straussiano”, foi traduzido para o português e publicado em 2010 na revista Tellus). Levando adiante a proposta de seu livro An Amazonian Myth and its History, de 2001, Gow reflete sobre a maneira como as transformações míticas ajudam a compreender as transformações históricas dos povos indígenas, e vice-versa. “A história de Carolina” é também o quarto artigo de Gow publicado na Revista de Antropologia (há também uma entrevista, incluída no volume 54/1, de 2011). Com a sua edição, oferecemos uma pequena homenagem a esse antropólogo e colaborador genial.

INTRODUÇÃO

Nas Mitológicas, Claude Lévi-Strauss defendeu a existência de um objeto social até então não reconhecido, chamado por ele de ensemble.1 1 N.T.: Na tradução brasileira das quatro obras centrais das Mitológicas, o termo ensemble foi consistentemente traduzido por “conjunto” (cf. p.ex. LéviStrauss, 1964 [2004], 1968 [2006], 1971 [2011]). Os tradutores das Mitológicas para o inglês, o casal John e Doreen Weightman, traduziram-no como larger entity (“entidade maior”), mas aqui eu mantenho o original em francês. O que Lévi-Strauss procurava mostrar com o conceito de ensemble é que as sociedades tribais, objeto histórico da antropologia, não são de pequena escala nem simples, mas de grande escala e complexas. O problema é que elas são de grande escala e complexas de formas muito pouco familiares aos nossos modos habituais de medição de escala, em tamanho ou complexidade. Aqui eu vou dar um exemplo empírico de um desses ensembles, e exploro algumas de suas implicações sociológicas.

CAROLINA E SUA HISTÓRIA

Em dezembro de 1921, ao antropólogo teuto-brasileiro Curt Nimuendaju foi dada uma lista de 128 palavras na língua kuniba, por uma mulher chamada Carolina, que ele conheceu na cidade de Manaus, na Amazônia. Também lhe foi contado um mito sobre a origem da lua narrado pelo povo Kuniba.2 2 N. T.: Optamos por preservar a grafia dos etnônimos utilizada por Peter Gow. Ainda que não seja inteiramente certo, uma vez que o nome do narrador do mito não foi registrado, é altamente provável que ele tenha sido contado por aquela mesma mulher, Carolina. Aquelas 128 palavras e aquele mito consistem na maior parte do que se pode saber sobre Carolina e sobre seu povo, os Kuniba. As 128 palavras de Carolina mostram, sem qualquer sombra de dúvida, que a língua kuniba era um dialeto de uma língua da família Arawak, conhecida comumente como piro, falada em diversas comunidades espalhadas pelo sudoeste da Amazônia, incluindo as comunidades nas quais venho fazendo pesquisa no rio Urubamba, no Peru, desde 1980. Esse mito será o tema desse texto.

O que se segue é um resumo da história de Carolina, oferecido por Claude Lévi-Strauss, “O que é o jenipapo”.3 3 N.T.: Gow se refere ao mito “M392: Kuniba, A cabeça que rola e a origem da lua”, analisado por Lévi-Strauss em A Origem dos modos à mesa (1968 [2006]: 83).

Uma moça recebia todas as noites a visita de um desconhecido. Numa delas, esfregou o rosto dele com sumo de jenipapo. Descobriu, assim, que seu amante era seu irmão. O culpado foi expulso. Durante sua fuga, inimigos mataram-no e cortaram-lhe a cabeça. Um outro irmão, que tentava alcançá-lo, recolheu-a. Mas ela não parava de pedir comida e bebida. O homem enganou-se e foi embora sem ela. Mas a cabeça foi rolando até a aldeia e tentou entrar em sua casa. Ninguém a deixava entrar. Ele então pensou em várias metamorfoses, água, pedra etc. Acabou resolvendo ser lua e subir ao céu desenrolando um novelo de fio. Para vingar-se da irmã que o tinha denunciado, o homem transformado em lua fez com que ela menstruasse (Lévi-Strauss, 1968 [2006]: 83).

A versão de Lévi-Strauss da história de Carolina veio de um livro de Herbert Baldus, que por sua vez estava baseado em uma carta enviada a ele pelo próprio Nimuendaju. Como explicarei posteriormente, essa versão altera criticamente o que Carolina contou.

ALGUNS MAPAS E DIAGRAMAS

O ensemble que exploro aqui é tematizado por Lévi-Strauss em A Origem dos Modos à Mesa, e é ali representado por ele em duas figuras:

Figura 1
“Tukuna e outras tribos”.

Figura 2
“Estrutura de grupo dos mitos tukuna, cashinaua e mundurucu”.

O mito numerado M392 na Figura 2 é a história de Carolina.

A Figura 2 claramente se refere a uma entidade social legítima. Ela é composta por três sociedades humanas empiricamente existentes, os Cashinahua, os Tucuna, e os Munduruku, e por quatro atores sociais concretos: o marido aventureiro, a virgem arredia, o irmão incestuoso e o visitante confiante. Ninguém, exceto Claude LéviStrauss, jamais sugeriu que a Figura 2 fosse um objeto social real. A minha representação favorita desse objeto é essa: o “esboço de uma zona litigiosa”, mapa preparado pelo famoso escritor brasileiro Euclides da Cunha:4 4 N.T.: O mapa ao qual Gow se refere está na primeira edição de “Peru Versus Bolívia”, de 1907.

Figura 3
“Esboço de uma zona litigiosa” Retirado de Euclides da Cunha (1907)CUNHA, Euclides da. 1907. Peru versus Bolívia. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves.

O problema não é empírico, mas antes metodológico. Esses objetos impressionantes estão aí, como os mitos revelam claramente, mas nós ainda não possuímos instrumentos metodológicos para explorá-los.

A ilusão funcionalista. O erro de se tomar pressupostos metodológicos como propriedades absolutas de um objeto.5 5 N.T.: O texto original é lacônico, mas podemos compreender essa crítica de Gow ao funcionalismo recorrendo a uma citação de Lévi-Strauss presente em outros textos do autor, que fazem conjunto (ensemble, gostaríamos de dizer) com o presente texto: “já está mais do que na hora de a etnologia se livrar da ilusão inteiramente inventada pelos funcionalistas, que tomam os limites práticos em que são confinados pelo tipo de estudo que preconizam por propriedades absolutas dos objetos aos quais os aplicam. Se um etnólogo fica acantonado durante um ou dois anos numa pequena unidade social, bando ou aldeia, e se esforça por apreendê-la como totalidade, isso não é razão para crer que em níveis diferentes daqueles em que a necessidade ou a oportunidade o colocaram, tal unidade não se dissolva em graus diversos em conjuntos de que ele em geral nem desconfia” (1971 [2011]: 587).

A análise que Lévi-Strauss fez desse ensemble foi baseada em mitos coletados no início do século XX. Se fôssemos repetir a sua análise apoiando-nos em mitos coletados nos finais do mesmo século ou no começo do século XXI, ela seria bastante diferente.

O POVO DE CAROLINA, OS KUNIBA

Obviamente é pouco provável que Carolina ainda esteja viva, e o povo Kuniba está oficialmente “extinto”: isto é, eles não são mais reconhecidos pelo Governo Federal do Brasil como um povo indígena existente. É possível, e mesmo provável, que existam pessoas vivas que descendam dos Kuniba, mas não há uma comunidade conhecida como kuniba hoje em dia. De fato, o relato de Nimuendaju sobre Carolina é quase a última menção desse povo na condição de pessoas vivas no registro histórico.

O próprio Nimuendaju escreveu sobre o povo Kuniba:

Essa tribo, hoje extinta, habitou até 1912 a terra firme entre a margem esquerda do médio rio Juruá e as cabeceiras do Jutaí. Em consequência de um assalto que fizeram a um barracão, a maior parte dela foi morta pelos neobrasileiros. Alguns sobreviventes foram transferidos pelo Serviço de Proteção ao Índio para o rio Branco. Sua língua é Aruak, do Grupo Pré-Andino.

A lenda foi anotada em 1921 (1986: 89).

O relato de Nimuendaju é de certa forma inexato. Ao contrário do que ele conta, os Kuniba viveram pelo menos desde o começo do século dezenove no médio rio Juruá, e eram o único povo que vivia permanentemente no curso do rio principal, em contraste com seus vizinhos indígenas que viviam ao longo dos afluentes, os Kanamari e os Kulina. Em 1867, de acordo com o geógrafo inglês Chandless, os Kuniba estavam trocando ferramentas de metal com comerciantes não-indígenas, que então já subiam regularmente o rio Juruá para obter produtos florestais. Eles trocavam essas ferramentas de metal com seus parentes Manchineri no rio Purus, bem mais ao sul. Aparentemente a população Kuniba nunca foi muito numerosa, e parece ter consistido em apenas uma aldeia, com menos de cem pessoas.

Faltam registros históricos sobre os Kuniba entre 1867 e 1912, mas claramente eles foram tragados, de maneiras que desconhecemos, pela rápida expansão da indústria extrativa da borracha na área do Juruá, e isso os levou ao ocaso. Dada a sua longa história de trocas com comerciantes não-indígenas, é provável que eles tenham se convertido à produção e troca da borracha com relativa facilidade: isso pode explicar a falta de relatos subsequentes sobre eles até 1912. 1912 é uma data bastante significativa, porque ela testemunha o começo do colapso nos preços mundiais da borracha amazônica, e isso pode explicar a mudança repentina nas relações entre os Kuniba e os patrões da borracha.

A julgar pelo testemunho ocular local, aparentemente de origem kuniba, e pelos registros do Serviço de Proteção ao Índio, podemos elaborar uma ideia do que aconteceu. Em resumo, antes de 1912, os Kuniba viviam no rio Itucumã, um tributário do Tarauacá, ele mesmo um tributário ao sul do Juruá, em uma rota comercial tradicional que levava ao povo Manchineri do rio Purus. Quando eles viviam no Itucumã, um patrão da borracha capturou o filho de um chefe kuniba, Manoel Antônio, e de sua esposa, Wariman. Os Kuniba fugiram para o norte, atravessando o Juruá, para Icarahy, um povoado no rio Jutaí. Em maio de 1912, eles foram perseguidos por Cornélio Chavez, presumivelmente o chefe que roubou o garoto. Os Kuniba o mataram, bem como a sua esposa e um de seus trabalhadores. Eles sequestraram cinco filhas de Cornélio e de sua esposa. Os Kuniba foram então perseguidos por dois outros patrões, João Rufino e Reinaldo Cavalcanti, que organizaram um massacre.

Os registros do SPI observam que apenas dois kuniba, o chefe e a sua esposa, foram mortos no massacre pelos patrões da borracha e seus empregados. Os sobreviventes do massacre, sete homens, cinco mulheres e ao menos três crianças foram levados a força para o seringal Restauração, no Juruá: nesse grupo estava uma mulher chamada Carolina. A maioria dos sobreviventes concordaram em seguir viagem com o SPI, enquanto três deles escolheram ficar em Restauração: duas das três crianças foram dadas por suas mães aos patrões brancos. No dia três de novembro, os sobreviventes kuniba embarcaram em um barco para Manaus, e de lá para uma colônia no norte da Amazônia Brasileira.

A história do povo Kuniba então se esfria, como nota Carvalho, até 1921, quando Curt Nimuendaju encontrou Carolina em Manaus (Carvalho, 2002CARVALHO, Maria Rosario Gonçalves de. 2002. Os Kanamari da Amazônia Ocidental. História, mitologia, ritual e xamanismo. Salvador: Ed. Casa de Palavras.). Trata-se obviamente da mesma Carolina mencionada pelos relatórios do SPI. Em uma carta para Theodor KochGrunberg, Nimuendaju expressa sua insatisfação com Carolina como informante linguística, sugerindo que ela havia esquecido a sua língua. Há alguma evidência dessa mesma insatisfação na lista de palavras publicada. A carta de Nimuendaju registra que Carolina estava vivendo no Posto do SPI, uma comunidade indígena supervisionada pelo SPI, ainda que nenhum Posto Indígena jamais tenha sido fundado para os Kuniba. Parece provável, nessas circunstâncias, que Carolina não estava mais vivendo em uma comunidade kuniba, e não falava mais ativamente a língua kuniba. Dito isso, sua maestria na língua kuniba, a julgar pelos dados que temos sobre os dialetos piro, claramente era impressionante.

A MITOLOGIA JURUÁ-PURUS NO FINAL DO SÉCULO XX

Mesmo que Carolina e o seu povo estejam “extintos”, a história que ela contou não está. Versões dessa história são contadas pelos povos indígenas ao longo da área dos rios Juruá e Purus, povos que antes eram vizinhos dos Kuniba.

Os Cashinahua, falantes de uma língua pano, viveram ao sul dos Kuniba no começo do século vinte, nas cabeceiras do principal tributário do rio Juruá, o Tarauacá. Como observado, essa área estava compreendida na rota comercial que os Kuniba usavam para viajar para e desde o rio Purus. Em algum momento entre 1910 e 1920, muitos Cashinahua se mudaram em direção ao sul, para o rio Purus, e para onde agora é Peru. Cecilia McCallum gravou a seguinte versão cashinahua “fim-de-século XX” da história de Carolina, no Purus. Ela segue assim:

Yube costumava visitar a sua irmã à noite e fazer amor com ela. Ela não sabia quem era o seu amante, então ela manchou a sua face com jenipapo, e por isso ele fugiu da aldeia. Junto com o seu cunhado ele foi caçar inimigos, os anões Bunkunawa. Infelizmente os Bunkunawa mataram Yube e o decapitaram. Seu lamentoso cunhado o enterrou em uma cova, mas ele se levantou da cova. De uma maneira horrenda ele seguia o seu cunhado apavorado, quicando e implorando o tempo todo por comida e água. Todas as tentativas de satisfazer a sede da cabeça falharam, porque toda água escorria pelo buraco aberto no pescoço. Até que Yube percebeu que ele deveria se transformar. Ele pediu à mulher que jogasse algodão tingido no céu, e se agarrando ao fio com seus dentes ele subiu para o céu e se transformou na lua (“uxe”). “Olhe”, uma menina exclamou, “lá está ‘Uxe’”! Furiosa, a cabeça de Yube, que queria ser conhecida como Cabeça-Yube-Estrangeiro (“Yubenawanbuxka”), provocou o sangramento de todas as mulheres com penas do rabo de arara vermelha. Depois que elas pararam de sangrar, todas elas engravidaram. Depois disso, um arco-íris apareceu pela primeira vez, transformado do sangue de Yube. Como resultado, os homens se tornaram capazes de morrer, pois há um caminho deste mundo para o céu (McCallum, 2001MCCALLUM, Cecilia. 2001. Gender and Sociality in Amazonia. How real people are made. Oxford: Berg.: 153-154).

No começo do século vinte, o povo Kanamari, falante de uma língua da família Katukina, vivia como vizinho imediato dos Kuniba nos tributários ao norte do Juruá. Alguns Kanamari permanecem ali, mas muitos se mudaram para mais ao norte ao longo do século XX, para os vales de outros rios. Em uma coleção de mitos kanamari publicada pela organização não-governamental luterana Comin, de 2007, o professor Paranem Manoel Kanamari, do Xeruã, um tributário ao sul do Juruá, contou esse mito como se segue:

Muito tempo atrás, nasceram numa aldeia duas crianças, um menino e uma menina. Elas se criaram juntas. Quando as crianças cresceram, o irmão foi numa noite à rede da sua irmã e fez amor com ela. Ele não falava nada; assim, a irmã não sabia que era o irmão dela que vinha cada noite para fazer amor. O rapaz visitava a irmã só à noite. A moça queria descobrir quem era o rapaz. Ela teve uma boa ideia. Colocou jenipapo numa jarra e deixou a jarra debaixo da sua rede de dormir, esperando o rapaz à meia-noite. Depois de eles terem feito amor, ela marcou o rosto do rapaz com jenipapo. Ao amanhecer, ela viu o rapaz com o rosto marcado com jenipapo. Por isso, descobriu que era o seu próprio irmão que vinha cada noite. Os dois ficaram com muita vergonha e se separaram. A partir daquele dia, o menino virou lua e a menina, sol, e nunca mais se encontraram. Essa história de duas crianças nos trouxe uma coisa muito importante. Elas se transformaram em luz para sempre iluminar todos nós; a menina ilumina o dia, e o menino ilumina a noite (Sass (org.), 2007SASS, Walter (org.). 2007. Tâkuna. Nawa Bûh Amteiyam Amkira. Mitos Kanamari. São Leopoldo: Ed. Oikos & COMIN.: 53-54).

Esses três mitos são claramente muito similares. Obviamente, a história de Carolina e os mitos cashinahua recentemente registrados contêm um elemento que está ausente nas versões kanamari: a visita aos inimigos e a decapitação do herói.

Pode parecer que Carolina simplesmente contou a Nimuendaju uma história comum às comunidades indígenas da região Juruá-Purus. Mas ela não fez isso. Por acaso, conhecemos uma porção notável das mitologias dos povos Cashinahua e Kanamari do início do século XX, e sabemos que esses povos não estavam contando a história de Carolina. Ao invés disso, eles estavam contando histórias muito diferentes sobre a lua. É apenas muito depois que eles começaram a contar a história de Carolina, a versão kuniba.

AS VERSÕES DO COMEÇO DO SÉCULO XX

Os dados cashinahua vêm do livro Rã-txa hu-ni-kui: a língua dos Caxinauas, publicado em 1914 no Rio de Janeiro pelo polimático historiador João Capistrano de Abreu. Esse livro é um documento impressionante. Seu título bilíngue, em cashinahua e português, significa “A língua do povo verdadeiro”. Ele consiste em uma longa série de textos na língua cashinahua, mitos e outros, junto com uma descrição gramatical e um pequeno dicionário dessa língua. Os dados foram fornecidos por dois jovens rapazes cashinahua da região do rio Juruá, Bôrô e Tuxinĩ, que viajaram ao Rio de Janeiro a pedido de Abreu.

Bôrô e Tuxinĩ contaram a Abreu três versões (duas em cashinahua e uma em português) do mito da origem da lua muito similares àquela de Carolina, mas com uma notável diferença: nenhuma delas menciona o incesto entre irmão e irmã. A cena inicial do rapaz que se tornaria lua e de sua irmã, e a marcação com jenipapo, estão simplesmente ausentes. No lugar disso, as versões de Bôrô e Tuxinĩ dessa variante começam com a guerra contra os inimigos, e o destino daquele que se tornaria a lua é motivado apenas por sua aproximação a, e decapitação por, esses inimigos, conduzindo à sua tentativa de retornar para casa em uma forma monstruosa, sua rejeição pelos seus parentes, e sua decisão de se tornar a lua.

Bôrô também contou a Abreu uma versão notavelmente diferente, mas que novamente não contém qualquer menção ao incesto. Nela quem se tornará lua é uma mulher, uma moça que se recusa a casar. Sua mãe a manda embora, e ela vaga por muito tempo, choramingando. Quando ela volta, sua mãe se recusa a deixá-la entrar em casa, dizendo “você pode dormir lá fora. Isso vai te ensinar a não querer se casar”. Quando a filha insiste em entrar na casa, a mãe furiosa corta a sua cabeça com um machado. A mãe joga o corpo no rio, mas a cabeça fica rolando e gemendo ao redor da casa durante toda a noite. Como nas outras versões, a cabeça resolve então se tornar a lua e pede à mãe um fio de algodão, que ela recebe; com a ajuda de um urubu ela entra no céu e se torna a lua (ver Lévi-Strauss, 2006LÉVI-STRAUSS, Claude. 2006 [1968]. A origem dos modos à mesa. (Mitológicas III). Trad. Beatriz PerroneMoisés. São Paulo: Cosac Naify. [1968]: 86).

Voltando ao caso kanamari, um contemporâneo de Abreu, o padre francês Constantin Tastevin, viveu na região do rio Juruá entre 1905 e 1926, e produziu uma quantidade notável de descrições primárias linguísticas e etnográficas dessa região, ainda largamente não publicadas. Seus dados são especialmente ricos sobre o povo Kanamari. Como vou discutir adiante, os Kanamari eram e são divididos em uma série de grupos idealmente endogâmicos, cada qual nomeado por um animal totêmico acrescido de um classificador - djapa: essa divisão era geograficamente instanciada na localização dos subgrupos ao longo do fluxo leste-oeste do rio Juruá. Enquanto todos os subgrupos partilhavam os mitos de origem do mundo associados aos heróis Tamakori e Kirak, que eram também associados ao fluxo leste-oeste do rio Juruá, cada subgrupo tinha uma visão distinta da lua. Eu vou resumir os dados de Tastevin comentados por Carvalho (2002)CARVALHO, Maria Rosario Gonçalves de. 2002. Os Kanamari da Amazônia Ocidental. História, mitologia, ritual e xamanismo. Salvador: Ed. Casa de Palavras. da seguinte maneira:

  1. Versão Amɛna Djapa: a lua é o ornamento nasal do criador mítico Tamakori, que fica maior, depois menor, e então morre, sendo substituído por um novo.

  2. Versão Wiri Djapa: a lua é um casal, o homem chamado Dyuruyã e a mulher chamada Apohanyã, que estão sentados no céu cantando.

  3. Versão Ben Djapa: a lua é um homem jovem, filho de Tamakori, que fica grande, depois pequeno, e então morre, e é substituído pelo criador por um novo filho.

  4. Versão de um subgrupo desconhecido: a lua é uma jovem moça bonita que incha com o sangue menstrual retido, o que a faz envelhecer.

Sendo assim, no começo do século XX, o tema do incesto irmão/irmã em relação à lua estava ausente das mitologias dos povos Cashinahua e Kanamari, enquanto quase um século depois ele se torna dominante. A história de Carolina estava se espalhando, sendo tomada de empréstimo pelos povos vizinhos.

Tendo isso em vista, poderíamos esperar que, no começo do século XX, quando os Kanamari e os Cashinahua viviam bem próximos, e em contato mediado pelos Kuniba, seus mitos seriam mais semelhantes, e à medida em que eles perderam contato uns com os outros, e especialmente quando eles perderam a mediação dos Kuniba, seus mitos se tornariam mais distintos. Esse seria um modelo padrão baseado nas concepções acerca da diversificação biológica e linguística, e de transmissão de informação no geral. Mas não é o que encontramos nesse caso. Ao contrário, à medida que os Kanamari e os Cashinahua se distanciaram mais e mais uns dos outros, e com a remoção da mediação dos Kuniba, seus mitos de origem da lua foram se tornando mais e mais semelhantes.

O caso fica ainda mais estranho quando percebemos que as antigas variantes cashinahua e kanamari foram coletadas depois da retirada efetiva dos Kuniba da cena local, em 1912. Os povos Cashinahua e Kanamari então “tomaram emprestado” esse mito de uma antiga comunidade vizinha apenas depois que ela desapareceu. Isso parece totalmente contraintuitivo, em desacordo com todos os modelos de transferência de informação, e assim em desacordo com a Segunda Lei da Termodinâmica. E é provavelmente ainda mais estranho, pois há boa evidência de que os Cashinahua tomaram a variante kuniba apenas no final dos anos 1950. Temos então um problema sobre causalidade informacional.

Esse problema acerca da causalidade é de alguma maneira resolvido pela presença continuada, tanto entre os Kanamari quanto entre os Cashinahua, de um punhado de pessoas kuniba depois do massacre e da remoção. As fontes do SPI mostram que três pessoas kuniba escolheram permanecer na região do Juruá. Tastevin mesmo nota que pelo menos dois kuniba permaneceram entre os Kanamari depois do massacre de 1912 e da remoção dos sobreviventes: o xamã da tribo, chamado Amador, e uma mulher chamada Kiama. Esses dois são presumivelmente nomes alternativos para aqueles que constam nos registros do SPI. Para os Cashinahua, temos uma evidência de corresidência kuniba-cashinahua pós-1912: o diário de Tastevin descreve um homem kuniba chamado Moysés, vivendo no seringal Porto Sérgio com sua esposa cashinahua nos anos 1920.

Portanto, ainda que existam potenciais vetores de transmissão dos Kuniba para os Cashinahua e Kanamari depois de 1912, nós ainda estamos diante de um problema significativo. Por que a versão kuniba do mito se tornou tão difundida entre os Cashinahua e Kanamari ao longo do século XX? Como um punhado de kuniba sobreviventes, talvez apenas três deles, impuseram sua versão de um mito para dois povos vizinhos, que falavam línguas não relacionadas ao kuniba e entre si, e que estavam por aquele tempo se retirando do contato uns com os outros?

Tanto quanto sabemos, esse fenômeno se aplica apenas ao mito de origem da lua. Obviamente, esse é o único mito kuniba de que temos conhecimento, mas não há qualquer indício na extensiva literatura de que as mitologias cashinahua e kanamari estivessem se tornando mais parecidas no geral ao longo do século XX: ambas as mitologias mostram claras mudanças, algumas dramáticas, mas a convergência só parece estar acontecendo no que diz respeito ao mito de origem da lua.

OS POVOS DO JURUÁ NO COMEÇO DO SÉCULO XX

No começo do século XX, os Kanamari, os Kuniba e os Cashinahua eram vizinhos na bacia do Juruá, mas eles eram um tipo particular de vizinhos. Como Lévi-Strauss notou há muito tempo para os povos indígenas na Amazônia em geral, os Kanamari, os Kuniba e os Cashinahua eram internamente organizados de formas que implicavam seus vizinhos, de tal modo que as formas sociais internas eram versões diminuídas, domesticadas, de suas políticas externas, isto é, de suas relações com seus vizinhos. Essa característica desses povos foi muito obscurecida pela atual prática de pesquisa de campo etnográfica na área, desde os anos 1950, que tem focado cada povo como totalidade única: “os Kanamari”, ou “os Cashinahua”. Entretanto, essas etnografias recentes são de tamanha qualidade que é fácil explorar em algum detalhe esse isomorfismo entre o interior da sociedade e o seu exterior.

Atualmente, tanto os Kanamari quanto os Cashinahua vivem em comunidades espalhadas ao longo de áreas relativamente extensas, por vezes distantes dos territórios que ocupavam anteriormente à indústria da borracha. Esses movimentos têm, como um todo, feito com que os Kanamari e os Cashinahua se distanciem, um padrão que é ainda mais exacerbado pelas estruturas burocráticas do Estado. As comunidades kanamari modernas estão todas no estado do Amazonas, no Brasil, enquanto as comunidades cashinahua estão ou no estado do Acre, no Brasil, ou no Peru. Sendo assim, existem poucos espaços burocráticos que façam os Kanamari e os Cashinahua se aproximarem, e não há evidências de que esses povos façam isso. Isso posto, a fronteira internacional entre o Peru e o Brasil faz pouco para minimizar os contatos entre as comunidades cashinahua localizadas dos dois lados. Ademais, os Kanamari preservam um grande interesse pelos Cashinahua, que são o paradigma dos Djapa, ou “inimigos”. Em contraste, não há qualquer evidência de que os modernos Cashinahua demonstrem qualquer interesse especial pelos Kanamari.

Como notamos anteriormente, os Kanamari eram e são organizados em uma série de subgrupos endogâmicos, cada um dos quais leva um nome composto por um animal totêmico mais -djapa, “grupo”, ou “grupo inimigo”, como os já mencionados Amɛna Djapa, Wiri Djapa e Ben Djapa. De acordo com um de seus etnógrafos, Luiz Costa, cada subgrupo -djapa kanamari estava associado a um tributário ao norte do rio Juruá (Costa, 2007COSTA, Luiz. 2007 As Faces do Jaguar: Parentesco, História e Mitologia entre os Kanamari da Amazônia Ocidental. Rio de Janeiro, Tese de doutorad, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Membros de um mesmo subgrupo -djapa consideram-se como -wihnim, “parentes”, próximos ou distantes, enquanto membros de outros subgrupos -djapa consideram-se como oatukuna, “outros humanos”, “estranhos”, isto é, como outras pessoas cuja co-humanidade é reconhecida, mas não socialmente atualizada. Mediando entre tais “parentes” e “estrangeiros” estava a categoria de “amigos” (entre homens, -tawari; entre mulheres, -tawaro).

A análise de Costa sobre os Kanamari não faz qualquer menção ao povo Kuniba, talvez porque ele tenha trabalhado com comunidades que viviam no rio Itacoaí, um tributário do rio Javari, a considerável distância dos territórios anteriores, que ficavam ao sul, ao longo do rio Juruá (Costa, 2007COSTA, Luiz. 2007 As Faces do Jaguar: Parentesco, História e Mitologia entre os Kanamari da Amazônia Ocidental. Rio de Janeiro, Tese de doutorad, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Carvalho (2002)CARVALHO, Maria Rosario Gonçalves de. 2002. Os Kanamari da Amazônia Ocidental. História, mitologia, ritual e xamanismo. Salvador: Ed. Casa de Palavras. trabalhou com as comunidades Kanamari ao longo do rio Juruá, muito próximo de seus antigos territórios e dos territórios dos Kuniba (foi nesse rio que ocorreu o massacre). A sua etnografia mostrou a considerável importância do povo Kuniba na autoconcepção de ao menos alguns Kanamari. Ela registrou que seus informantes kanamari falavam vez por outra desse povo, e anotou o seguinte comentário: “Duas famílias perdidas que nós temos, Kuniba e Amɛna. Esta morava no (rio) Pau d’Alho. Quando os brancos chegaram, arrasaram tudo” (Carvalho, 2002CARVALHO, Maria Rosario Gonçalves de. 2002. Os Kanamari da Amazônia Ocidental. História, mitologia, ritual e xamanismo. Salvador: Ed. Casa de Palavras.: 72, n. 31). Os Amɛna-Djapa eram inquestionavelmente um grupo falante de kanamari, enquanto os Kuniba obviamente não o eram. Esse informante, todavia, claramente incluía os Kuniba no universo moral dos subgrupos kanamari -djapa, não como Djapa, “inimigos” como os Cashinahua, mas como oatukuna, “outros humanos, estranhos”, e como atuais ou potenciais -tawari, “amigos”. Com efeito, na língua kušitineri, aparentemente idêntica à língua kuniba, a palavra para “não-kuniba”, ou “outro povo indígena”, foi registrada por Tastevin precisamente como tawari (Tastevin e Rivet, 1923/1924TASTEVIN, Constant; RIVET, Paul. 1923/1924 “Les langues du Purús, du Juruá et des régions limitrophes. Io Le groupe arawak pré-andin (Fin)”. Anthropos, Bd. 18/19, H. 1./3.: 104-113.).

Figura 4
O modelo espacial kanamari

A análises de Costa são do século XXI, e dizem respeito a um sistema fluvial ao noroeste do Juruá. Entretanto, os viajantes descreveram uma situação muito similar no meio do século XIX, como o fez também Tastevin no começo do século XX.

Os Cashinahua, segundo Deshayes e Keiffenheim, experimentam-se como huni kuin, “pessoas verdadeiras”, em oposição a nawa, “inimigos”, de uma maneira diretamente espacial e até mesmo geográfica (Deshayes e Keiffenheim, 2003DESHAYES, Patrick; KEIFENHEIM, Barbara. 2003. Pensar el Otro entre los Huni Kuin de la Amazonía Peruana. Trad. Balbina Vallejo. Lima: CAAAP.). As “pessoas verdadeiras”, os Cashinahua, vivem nas cabeceiras, nos divisores de águas entre os sistemas fluviais. Os “inimigos” vivem ao longo do curso dos maiores rios, ou às margens do mar. Entre esses dois tipos de gente vivem os Xutanawa, os “inimigos que portam nomes”, os povos Yaminahua, falantes de línguas próximas, mas mutuamente ininteligíveis, e que partilham com os Cashinahua um mesmo sistema de transmissão de nomes, bem como conjuntos de nomes. Na concepção cashinahua, os Yaminahua são mediadores decisivos em relação aos “inimigos”, tanto espacialmente quanto socialmente, pois era através dos Yaminahua que os Cashinahua acessavam as mercadorias dos nawa. Yami, em alguns dialetos yaminahua, significa “machado”, e a tradução mais comum de seu nome é então “inimigos-machado”. Os Cashinahua não têm uma taxonomia muito elaborada dos tipos de nawa, “inimigos”, então não é claro se eles reconhecem os Kuniba e os Kanamari como povos separados e distintos.

Figura 5
O modelo espacial cashinahua

Os dados de Deshayes e Keiffenheim vêm dos povos Cashinahua no final do século XX, e de pessoas que viviam bem distantes de seus territórios do começo do mesmo século. Mas, novamente, essa figuração parece de fato corresponder à situação anterior.

RUMO A UM MODELO ESPACIAL KUNIBA

Dadas todas as coisas que nós não sabemos e nunca saberemos sobre o povo Kuniba, não será nenhuma surpresa concluir que não sabemos virtualmente nada sobre como eles se viam nessa paisagem social. Não existem, é claro, etnografias recentes desses povos que poderiam corresponder aos estudos de Costa e de Carvalho, ou de Deshayes e Keiffenheim. Isso posto, a história de Carolina nos oferece algumas pistas, que são apoiadas pelos relatos de Chandless.

A história de Carolina opõe dois tipos de viagens, e as suas relações, com o interior da sociedade kuniba. A versão kuniba começa de uma maneira diferente das variantes posteriores, e essa mise en scene está ausente do resumo de Lévi-Strauss n’A Origem dos Modos a Mesa. Por razões desconhecidas e intrigantes, Nimuendaju truncou a história em sua carta para Baldus. A história de Carolina de fato começa da seguinte forma: “Um homem tinha ido a uma viagem, deixando sua mulher em casa. Esta, durante a ausência do marido, recebia todas as noites, na sua rede, a visita de um desconhecido” (Nimuendaju, 1986NIMUENDAJU, Curt. 1986. “Mitos Indígenas na Obra de Curt Nimuendaju”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. n. 21: 64-111. Tradução: Marcos de Almeida Matos Revisão: Renato Sztutman: 89). Sabemos, por Chandless e por outras evidências para os povos falantes de línguas piro, o que a jornada do marido significava. Os Kuniba eram comerciantes de longas distâncias. Por conseguinte, tinham duas valências para a distância social e para as viagens que lhes estavam associadas: em direção aos aliados de comércio e em direção aos inimigos perigosos.

A documentação arquivística nos permite especificar a direcionalidade desses movimentos. A principal rota comercial dos Kuniba era por terra, até o povo Manchineri no rio Purus, ao sul. Chandless conta que os Kuniba viajavam originariamente para propósitos comerciais ao rio Purus, ao longo do rio Tarauacá, tributário do rio Juruá, e por seu afluente, o Envira, e então viajavam por terra ao outro rio. Entretanto, ao tempo de sua visita, eles tiveram que abandonar essa rota devido aos ataques dos Nawa do alto Juruá, e precisaram seguir uma alternativa mais ao leste. Em meados do século XIX, os Kuniba não viajavam longe subindo o rio Juruá por medo desse mesmo povo Nawa.

A jornada do homem que se tornaria o cunhado da lua, que inicia a história de Carolina, seria, portanto, uma jornada pelo rio, ao sul, rumo ao povo Manchineri no Purus, enquanto a aldeia inimiga na história, para a qual o rapaz que se tornaria a lua foge, provavelmente estaria localizada entre o povo Nawa, rio acima no Juruá. Fica claro pelo mito e pelo contexto conhecido que a primeira jornada é por canoa, e a segunda por terra. Os contemporâneos Piro do Urubamba distinguiriam essas duas jornadas como sendo “ao outro lado/a outra bacia hidrográfica”, de um lado, e “rio acima/para a floresta” de outro. A jornada “para o outro lado”, para os Kuniba, era para os parceiros de troca e parentes manchineri, enquanto a jornada “para a floresta” é uma viagem ao mundo do povo inimigo Nawa. É, portanto, provável que os Kuniba distinguissem entre jornadas para “o outro lado/rumo aos parceiros comerciais”, e movimentos “rio acima/ para a floresta/ rumo aos inimigos Nawa”, como o fazem hoje os Piro do Urubamba.

Não parece ser o caso de que os Kuniba identificassem os Cashinahua com seus “inimigos” Nawa. Os comerciantes kuniba historicamente viajaram perto do território cashinahua enquanto eles iam e voltavam do Purus por meio do rio Tarauacá e de seus tributários, claramente sem sentir realmente medo de um ataque. Os “inimigos” Nawa que eles temiam e evitavam viviam rio acima, no Juruá.

No modelo espacial kuniba existe uma terceira possibilidade de jornada, não mencionada na história de Carolina: a expedição de troca rio abaixo para a terra dos payri, os “brancos”. Em meados do século XIX tais jornadas pareciam ter cessado e, segundo Chandless, os Kuniba trocavam com os visitantes brancos que viajavam às suas terras (Chandless, 1869). Pelo tempo de Carolina, tais jornadas provavelmente não eram mais do que vaga memória, dada a extensão com que os patrões brancos vieram a dominar todo o transporte comercial na área. Mas, como vimos, Carolina contou a sua história precisamente no contexto de sua própria viagem dramática ao mundo dos payri.

Figura 6
O modelo espacial kuniba

A HISTÓRIA DE CAROLINA E A POLÍTICA EXTERNA INDÍGENA NO JURUÁ-PURUS

Caso olhemos novamente para as Figuras 4, 5 e 6, elas se parecem com sociedades segundo a definição clássica de entidades delimitadas. Mas elas claramente não o são, porque em cada caso os aparentes “limites” expressam não fronteiras entre o “Eu” e o “Outro”, mas antes um ponto específico de transição ao longo de um gradiente que vai do “Eu” ao “Outro” e volta. Como Viveiros de Castro argumentou, para os povos indígenas amazônicos, o Eu é precisamente o Outro do Outro. “Pessoas verdadeiras” conhecem-se como “pessoas verdadeiras” porque elas são vistas como “Inimigas” pelos seus “Inimigos”.

Todas as histórias discutidas aqui concernem à lua. Para os povos da área JuruáPurus, a lua é o operador celestial dessas relações socioespaciais de Eu e Outro. Nessa área, todos os maiores rios seguem um fluxo básico de sudoeste-nordeste, que está geralmente próximo de uma orientação oeste-leste, e como tal próximo dos aparentes movimentos do sol e da lua no céu. Os rios Juruá e Purus nascem onde o sol e a lua se põem, e fluem para a direção em que o sol e a lua nascem.

A história de Carolina, e os outros mitos com os quais lidamos aqui, concerne à origem da lua. Como um corpo celestial, a lua está em contraste marcado com o sol.

Se a lua partilha com o sol o trânsito diário de leste para oeste, ela também mostra um movimento distintivo de oeste a leste em seu período de nascimento e ocaso de base mensal: a lua nova é vista primeiro no céu ocidental, enquanto a lua minguante é vista por último no céu oriental. Como tal, na área Juruá-Purus, a lua sintetiza as duas direções do movimento do rio, rio abaixo e rio acima, e, como vimos, são essas direções do movimento do rio que repousam no núcleo dos modelos locais de espaço social. A lua, por conseguinte, no contraste entre o seu trânsito diário e o seu trânsito mensal pelo céu, replica em um nível celestial a modelagem espacial de base fluvial das relações Eu/Outro entre os povos indígenas dessa área.

A lua é assim a contraparte celestial do fluxo fluvial que governa as relações espaciais entre esses povos vizinhos. Como tal, a lua tem uma significância intrínseca para o que Lévi-Strauss chamou de “política externa” dos povos indígenas dessa região (Lévi-Strauss, 1949LÉVI-STRAUSS, Claude. 2019 [1949]. “La politique étrangère d’une societé primitive”. In: DEBAENE, Vicent (ed.). Anthropologie Structurale Zéro. Paris: Éditions du Seuil: 201-219.). Por política externa Lévi-Strauss queria dizer a relação específica de uma sociedade com suas condições exteriores de existência em um campo de outras sociedades, e assim a atitude de qualquer sociedade para com seus vizinhos. Como ele também notou, os povos indígenas amazônicos são caracterizados pelo isomorfismo entre o interior de sua sociedade e o exterior, de tal modo que cada um replica e modela o outro, um tema desenvolvido em maiores detalhes por Viveiros de Castro (2002)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002 A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify..

UMA ESTRUTURA CELULAR

Os mitos coletados por Capistrano de Abreu, Tastevin e Nimuendaju podem ser conectados ao sistema sociogeográfico da área Juruá-Purus que discutimos acima. As antigas versões kanamari são caracterizadas por sua heterogeneidade, que corresponde diretamente à sua associação com subgrupos endogâmicos particulares localizados em tributários específicos da margem norte do rio Juruá. No antigo sistema kanamari, o mito kuniba é simplesmente outra tradição de um subgrupo. Aqui a história de Carolina não se coloca como algo especial: é simplesmente mais uma história sobre a lua, em uma sequência de tais histórias alinhavadas ao longo do rio Juruá. O fluxo desse rio, e o espaçamento dos subgrupos ao logo dele, é, como vimos, central para a sociologia e a cosmologia kanamari.

De fato, há evidências de que as diferenças entre as antigas versões kanamari da lua são estruturadas pelo “sentido de subgrupos” que o fluxo do rio Juruá possui. Do mapa de Carvalho (2002)CARVALHO, Maria Rosario Gonçalves de. 2002. Os Kanamari da Amazônia Ocidental. História, mitologia, ritual e xamanismo. Salvador: Ed. Casa de Palavras., seguindo Rivet e Tastevin, nós temos a seguinte sequência, de rio acima a rio abaixo, no Juruá:

Ben Djapa => Wiri Djapa => Kuniba

Sendo assim, temos a sequência rio acima-rio abaixo das antigas versões kanamari/kuniba:

  1. A versão Ben Djapa, mais rio acima: a lua é um jovem rapaz, o filho de Tamakori, que cresce, depois diminui e então morre, e é substituído pelo herói criado por um novo filho.

  2. A versão Wiri Djapa, no meio: a lua é um casal, o homem se chama Dyuruyã e a mulher se chama Apohanyã, eles estão sentados no céu cantando.

  3. A versão Kuniba, mais rio abaixo: na qual a lua é o amante secreto e incestuoso de sua própria irmã.

É significativo que a versão Wiri Djapa seja a mais similar à versão kuniba dentre as duas versões localizadas kanamari, e geograficamente a mais próxima também. Com efeito, em uma nota de rodapé ao relato de Tastevin sobre a versão Wiri Djapa, Carvalho escreve que

Em nota lateral, Tastevin observou que Apohanya significa “sopro, aquele que sopra”. Suponho ter Tastevin incidido em equívoco, e que ele devesse estar referindo à ypoanya, prima paralela, o que faz pleno sentido no contexto da versão Wiri, ainda hoje largamente compartilhada, da lua que resultou de uma união incestuosa, e que é, em linhas gerais, a mesma versão do mito da lua que Nimuendaju recolheu, em 1921, e identificou como Kuniba (Carvalho, 2002CARVALHO, Maria Rosario Gonçalves de. 2002. Os Kanamari da Amazônia Ocidental. História, mitologia, ritual e xamanismo. Salvador: Ed. Casa de Palavras.: 283 n. 205).

Me parece que no começo do século XX a versão kuniba do mito da lua estava contida em uma estrutura de subgrupos kanamari, de tal forma que cada subgrupo, incluindo aí os Kuniba, tinha a própria versão de suas ideias sobre a lua, ordenadas sequencialmente por suas localizações ao longo do fluxo oeste-leste do rio Juruá, e plenamente coordenadas com os movimentos leste-oeste e oeste-leste daquele corpo celestial.

Isto posto, o mito kuniba claramente aponta para fora das versões kanamari, para um eixo espacial distinto, aquele dos inimigos. Nas concepções kanamari mais recentes, os “inimigos”, Djapa, são os Cashinahua, e esse padrão é bastante antigo. Assim, os inimigos são localizados bem para o sul, longe do fluxo definitivo do rio Juruá, ao longo do qual os atos cosmogônicos dos heróis criadores kanamari Tamakori e Kirak tiveram lugar. Suspeito que os Kanamari foram incapazes de adotar a sequência “visita à aldeia dos inimigos” do mito kuniba, bem como toda a história sobre a decapitação e sobre o retorno para a casa, precisamente porque isso envolveria uma jornada para o sul, e assim ficaria de fora de sua compreensão espacial sobre a relação entre a lua, o rio Juruá e as suas próprias formas sociais.

Voltando agora para os Cashinahua, suas versões do mito da lua, no começo do século XX, diferem do mito kuniba em dois sentidos principais. Ou 1) eles não fazem menção ao incesto irmão/irmã ou à marcação da face da lua com a tinta de jenipapo, e partem diretamente para a jornada fatídica daquele que se tornaria a lua para a aldeia dos inimigos. Ou 2) eles invertem o sexo daquele que se tornaria a lua, e localizam a ação principal em um cenário doméstico e dentro das relações íntimas de parentesco entre uma mãe e sua filha.

Em termos espaciais, os Cashinahua se colocam nas cabeceiras dos rios, de tal modo que qualquer movimento para fora de suas comunidades é um movimento rio abaixo, e assim aos nawa, “inimigos”, sempre rio abaixo. Da perspectiva cashinahua do começo do século XX, o mito kuniba é uma espécie de síntese de suas duas possibilidades míticas. Ele começa em um cenário doméstico e dentro de relações íntimas de parentesco, mas transformando a relação entre mãe e filha para aquela entre um irmão e uma irmã, para então ir para as relações entre o rapaz que se tornaria a lua e os inimigos. Pode-se dizer que, enquanto as versões cashinahua do mito no começo do século XX estavam vacilando entre as duas possibilidades, de uma lua masculina e de uma lua feminina, o mito kuniba alcança uma solução dialética para o problema, integrando ambas as possibilidades, e inovando uma possibilidade não atualizada de uma lua feminina na forma de uma irmã-amante da lua masculina: a irmã da lua masculina é implicitamente uma lua feminina.

Temos assim dois conjuntos de sequências para os dados do começo do século XX. A sequência kanamari enfatiza que cada subgrupo ao longo do Juruá tinha uma variante das ideias sobre a natureza da lua, e essa variação é gradual ou clítica. A sequência cashinahua enfatiza a escolha binária entre os sexos da lua, masculino ou feminino. Em ambos os casos, o mito kuniba agia como uma síntese dialética da sequência. Essa síntese não era temporal, de sentido hegeliano, mas antes espacial: uma dialética hegeliana e temporal tem apenas uma síntese; enquanto uma dialética não-hegeliana e espacial possui várias. Em circunstâncias históricas normais, tais resoluções dialéticas espaciais saturam um campo social dado.

UM HIATO EM UMA PLENITUDE

A questão então se torna: o que acontece quando uma síntese dialética espacial específica desaparece por razões que têm muito pouco a ver com a dinâmica social existente em um campo social? O que acontece quando uma síntese dialética espacial é confrontada com a violência genocida e com a remoção populacional promovida pelo Estado? No caso que analisamos, o que acontece com o sistema mais amplo quando o povo Kuniba é removido? A resposta, ao menos nesse caso, é que os outros dois povos remanescentes no campo social têm que tomar a síntese destruída para si mesmos.

Como uma dobradiça complexa entre os mitos kanamari e cashinahua sobre a lua do começo do século XX, e consequentemente sobre ideias acerca da política externa e da relação entre povos vizinhos, o mito kuniba ocupa um lugar chave no papel de mediador dos sistemas mitológicos locais. Ele era ao mesmo tempo uma versão totêmica das ideias kanamari, dentro de um sistema totêmico mais amplo, e algo como uma síntese dialética de duas possibilidades míticas cashinahua. Enquanto os Kuniba estiveram por ali, contando a sua variante do mito de origem da lua, os povos vizinhos Kanamari e Cashinahua eram capazes de contar a sua própria variante. Quando os Kuniba foram removidos daquela paisagem social, ao que parece, ambos os vizinhos se encontraram obrigados a começar a contar as versões kuniba da história.

A principal mudança nas versões cashinahua e kanamari do mito de origem da lua ao longo do século XX foi a emergência do tema do incesto irmão/irmã. Em ambos os casos, dessa forma, a origem da lua foi radicalmente deslocada para o coração do mundo social, na relação íntima, noturna e sexual entre um irmão e uma irmã. Tanto para os Cashinahua quanto para os Kanamari, no final do século XX, a origem da lua veio a ficar dentro da comunidade mais imediata, no desejo incestuoso de um “humano de verdade” por sua irmã.

No começo do século XX, a variante kuniba estava implicitamente presente nas mitologias tanto dos Cashinahua quanto dos Kanamari. A outra versão de Bôrô, na qual a lua é mulher, diz respeito a uma moça que teme demais seus esposos em potencial, e os trata como inimigos. Ela é dessa forma a inversão do irmão kuniba, que trata sua irmã como se ela fosse sua esposa potencial. Da mesma maneira, a antiga versão kanamari do subgrupo Wiri Djapa alude a um casal formado implicitamente por primos paralelos, isto é, uma forma menos marcada da relação entre irmão e irmã. Essas versões antigas, de ambos os povos, são claramente versões “fracas” em relação à versão “forte” kuniba, mas estão também, por assim dizer, indo semanticamente na mesma direção.

Penso que a razão pela qual os Cashinahua e os Kanamari do começo do século XX não contavam o mito de origem da lua à maneira kuniba é precisamente porque o povo Kuniba já o fazia. Isto é, os antigos Cashinahua e Kanamari eram dispensados da necessidade de contar essa história desse modo porque ele já era conhecido por eles como uma variante kuniba. Essa variante existia para esses dois povos como uma história kuniba, e seu conteúdo semântico estava disponível como uma citação: “o povo Kuniba conta assim, mas nós contamos desse jeito”. Quando a possibilidade de citar o povo Kuniba evaporou com a sua extirpação, essa estratégia não era mais possível. Tanto a mitologia cashinahua quanto a mitologia kanamari foram forçadas a fazer o que a mitologia kuniba se dispunha a fazer: localizar a origem da lua na transgressão do tabu do incesto, uma transgressão à constituição mesma de sua própria interioridade social.

Por não contarem a variante kuniba sobre a origem da lua, os Cashinahua e Kanamari do começo do século XX eram capazes de explorar outras possibilidades míticas. No caso cashinahua, ou ao menos no caso de Bôrô, isso permitia contar dois mitos muito diferentes, focados nas distintas possibilidades de o protagonista principal ser do sexo masculino ou feminino. No caso kanamari, a presença da variante kuniba permitia a cada subgrupo contar sua própria versão sobre o que era a lua, bem como usar essa variabilidade cosmológica como uma forma de diferenciação em um nível cosmológico.

CONCLUSÃO

Quais são os correlatos sociológicos desse fenômeno? O que isto tem a dizer para a antropologia social?

Um dos problemas da maior parte das abordagens antropológicas dos mitos é imaginar essas narrativas primordialmente como comentários sobre outros assuntos: eles seriam a reflexão consciente de uma comunidade sobre a suas próprias formas sociais. Essa era a posição que os franceses chamavam “anglo-estruturalismo”. Tratase, é claro, de uma imagem pejorativa. Permitam-me então citar Pierre Clastres:

Que os mitos se pensam entre si, que sua estrutura seja analisável, não há dúvida, e Lévi-Strauss oferece uma prova brilhante; mas isso, de certo modo, é secundário: pois eles pensam primeiramente a sociedade que se pensa neles, e aí reside sua função. Os mitos constituem o discurso da sociedade primitiva sobre si mesma, eles envolvem uma dimensão sociopolítica que a análise estrutural evita, naturalmente, levar em conta, sob pena de entrar em pane. O estruturalismo só é operatório à condição de separar os mitos da sociedade, de apreendê-los, etéreos, flutuando a uma boa distância de seu espaço de origem (Clastres, 1978 [2004]: 201-202).

Tudo isto é totalmente inadequado para o caso presente, pois sob qual condição histórica possível uma comunidade abandonaria seu próprio comentário acerca de suas próprias formas sociais para assumir os comentários de comunidades vizinhas sobre as suas formas sociais distintas?

Parece-me que essa ideia segundo a qual os mitos são comentários sobre as formas sociais de uma comunidade é um mal-entendido fundamental acerca do que são os mitos para os povos indígenas amazônicos, e provavelmente o que são os mitos em geral. Ao menos para os povos indígenas amazônicos, os mitos são principalmente transações sociais intergeracionais, transações que são especialmente marcadas entre avós e netos. Essas transações sociais não tomam a forma de uma pedagogia, mas antes constituem ativamente o contador de mitos como avô, como constituem reciprocamente e de forma igualmente ativa quem escuta o mito como neto. Mitos são primordialmente fenômenos de parentesco.

Para os povos indígenas do Sudoeste da Amazônia, o que constitui uma sociedade é também e principalmente um fenômeno de parentesco. Nossa concepção euro-americana de Sociedade não é o modo pelo qual esses povos formulam esse assunto. As formulações deles dizem respeito a ideias como “humanos verdadeiros”, pessoas entre as quais é apropriado viver e se engajar no fluxo cotidiano da vida. “Humanos verdadeiros” está necessariamente contrastado com “humanos que não são verdadeiros”, gente com quem não é possível viver bem e se engajar na continuidade da vida cotidiana. Esse contraste entre “Humanos verdadeiros” e “humanos que não são verdadeiros”, não é absoluto, mas antes transitivo: para permanecer como projeto, “humanos verdadeiros” precisam conter uma forma de “não verdade” ou de “Outridade”. “Humanos verdadeiros”, pessoas idênticas entre si, são com efeito irmãos de mesmo sexo, portanto não-casáveis. Para se tornar casável, uma relação entre dois “humanos verdadeiros” deve conter sementes de diferença, e essas são mais comumente a diferença de gênero entre irmão e irmã adultos. Enquanto as relações entre irmão e irmã são, como vimos, o paradigma do incesto, seus respectivos filhos, como primos cruzados, são parceiros ideais para o casamento.

Como Viveiros de Castro mostrou em seu ensaio GUT Feelings about Amazonia: Potential Affinity and the Construction of Sociality (Viveiros de Castro, 2001VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2001 “GUT feelings about Amazonia: potential affinity and the construction of sociality”. In: RIVAL, Laura; WHITEHEAD, Neil (eds), Beyond the visible and the material. The Amerindianization of society in the work of Peter Rivière. Oxford: Oxford University Press: 19-43.), o parentesco na Amazônia não tem fronteiras, não há um ponto no qual o parentesco simplesmente termina e o não-parentesco começa. Ao invés disso, o parentesco amazônico é caracterizado por elaborados gradientes espaciais de “proximidade” e “distância”, mas sem transposição do gradiente espacial para a genealogia em sentido euro-americano. À medida que nos afastamos da comunidade da vida cotidiana, as relações de parentesco tornam-se cada vez mais afinizadas, como é minimamente verdade entre um irmão e uma irmã adultos; em direção aos afins atuais, como os cunhados; e mais adiante a estrangeiros, que são afins virtuais; e a seguir em direção aos inimigos, animais, os mortos, seres poderosos, a lua, e assim por diante, numa série escalonada de afinidade potencial. Nas bordas do cosmos todos os seres são plenamente afinizados. A viagem de volta é o inverso: a afinidade é progressivamente expelida das relações, que vão se tornando progressivamente consanguíneas. A consanguinização não termina na relação entre irmãos de mesmo sexo, mas continua no reino do que talvez queiramos chamar de individual: no caso discutido aqui, na relação entre o corpo morto e a sua cabeça decapitada.

Como tais, coletividades etnograficamente conhecidas como os Kuniba, os Cashinahua ou os Kanamari não concebem a si mesmas como distintas em um sentido genético, como diversificações, de um ponto de vista temporal, desde uma origem comum; mas antes como distintas em um sentido espacial. Isto é, a comunidade de “humanos de verdade”, na qual vivemos, é a precipitação localizada de um universo de outridade.

O que são os mitos nesse esquema? Nas linguagens indígenas da região, os mitos são chamados de “histórias dos antigos”, “histórias dos ancestrais”. Seria fácil interpretar erroneamente essa definição, conferindo a ela uma interpretação genética, e não espacial. Os mitos não são estritamente “histórias dos ancestrais” em um sentido genético, como reprodução paralela dos ancestrais e de suas histórias. Os mitos são os ancestrais. E esses ancestrais não são temporalmente distanciados, mas antes espacialmente distanciados. O mito sobre a lua não é primordialmente um mito kuniba, cashinahua ou kanamari. É primariamente a história da lua sobre si mesma, contada desde uma posição que é completamente inescrutável epistemologicamente.

Na Abertura às Mitológicas, Lévi-Strauss escreveu:

Sobre o estudo dos mitos, já dizia Durkheim: “É um problema difícil, que deve ser tratado em si, por si e segundo um método que lhe seja específico”. Ele sugeria também a razão desse procedimento, quando evocava mais adiante os mitos totêmicos, “que, certamente, não explicam nada e apenas deslocam a dificuldade, mas que, ao deslocá-la, parecem pelo menos atenuar-lhe o escândalo lógico”. Uma definição profunda que poderia, em nossa opinião, ser estendida a todo o campo do pensamento mítico, dando-lhe um sentido mais amplo do que pretenderia o autor (Lévi-Strauss, 2004LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004 [1964] O Cru e o Cozido (Mitológicas I) Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify. [1964]: 23).

Como Nancy Munn notou brilhantemente sobre os mitos walbiri, quem testemunha a ação mítica? A resposta é: ninguém (Munn, 1973MUNN, Nancy. 1973. Walbiri Iconography: Graphic Representation and Cultural Symbolism in a Central Australian Society. Ithaca: Cornell University Press.). Quem é esse ninguém, essa pessoa-não-existente que viu a lua se tornar a lua? A Sociedade? Eu acho que não. Precisamos, portanto, de uma nova sociologia.

  • 1
    N.T.: Na tradução brasileira das quatro obras centrais das Mitológicas, o termo ensemble foi consistentemente traduzido por “conjunto” (cf. p.ex. LéviStrauss, 1964 [2004]LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004 [1964] O Cru e o Cozido (Mitológicas I) Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify., 1968 [2006]LÉVI-STRAUSS, Claude. 2006 [1968]. A origem dos modos à mesa. (Mitológicas III). Trad. Beatriz PerroneMoisés. São Paulo: Cosac Naify., 1971 [2011]LÉVI-STRAUSS, Claude. 2011 [1971]. O homem nu. (Mitológicas III) Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify.).
  • 2
    N. T.: Optamos por preservar a grafia dos etnônimos utilizada por Peter Gow.
  • 3
    N.T.: Gow se refere ao mito “M392: Kuniba, A cabeça que rola e a origem da lua”, analisado por Lévi-Strauss em A Origem dos modos à mesa (1968 [2006]: 83).
  • 4
    N.T.: O mapa ao qual Gow se refere está na primeira edição de “Peru Versus Bolívia”, de 1907.
  • 5
    N.T.: O texto original é lacônico, mas podemos compreender essa crítica de Gow ao funcionalismo recorrendo a uma citação de Lévi-Strauss presente em outros textos do autor, que fazem conjunto (ensemble, gostaríamos de dizer) com o presente texto: “já está mais do que na hora de a etnologia se livrar da ilusão inteiramente inventada pelos funcionalistas, que tomam os limites práticos em que são confinados pelo tipo de estudo que preconizam por propriedades absolutas dos objetos aos quais os aplicam. Se um etnólogo fica acantonado durante um ou dois anos numa pequena unidade social, bando ou aldeia, e se esforça por apreendê-la como totalidade, isso não é razão para crer que em níveis diferentes daqueles em que a necessidade ou a oportunidade o colocaram, tal unidade não se dissolva em graus diversos em conjuntos de que ele em geral nem desconfia” (1971 [2011]LÉVI-STRAUSS, Claude. 2011 [1971]. O homem nu. (Mitológicas III) Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify.: 587).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2021
  • Aceito
    21 Set 2021
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