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Ocupações, práxis espacial negra e brancopia: para uma crítica da branquidade nos estudos urbanos paulistas1 1 Este artigo é uma ampliação de argumentos apresentados em minha tese de doutorado (Paterniani, 2019).

OCCUPATIONS, BLACK SPATIAL PRAXIS AND WHITOPIA: TOWARDS A CRITIQUE OF WHITENESS IN URBAN STUDIES ON SÃO PAULO

RESUMO

Baseado em pesquisa etnográfica, este artigo traça a equivocação controlada de trabalhador a partir da crítica da branquidade da economia política da urbanização e nos estudos urbanos paulistas. Além disso, apresenta algumas contribuições para uma produção acadêmica antibranquidade, a partir do reconhecimento das ocupações de prédio e de terra, da circulação de corpos negros na cidade e da prática da imaginação e produção de vida como práxis negra e recusa ao confinamento da brancopia.

PALAVRAS CHAVE:
Moradia; equivocação controlada; relações raciais; afrofuturismo; trabalhador

ABSTRACT

Based on ethnographic research, this article traces the controlled equivocation of worker from the critique of the whiteness of the political economy of urbanization and urban studies on São Paulo. After that, some contributions to an anti-whiteness academic production are presented, based on the recognition of the occupation of buildings and land, the circulation of black bodies in the city and the practice of imagination and production of life as black praxis and refusal to the confinement of whitopia.

KEYWORDS:
Housing; controlled equivocation; racial relations; afrofuturism; worker

INTRODUÇÃO

Ao longo dos últimos dez anos, em minhas pesquisas com pessoas que vivem na luta por moradia, frequentemente as visito em suas casas e caminho com elas pela cidade de São Paulo. Minha principal companhia nessas andanças tem sido Nelson da Cruz e Souza, ativista da luta por moradia, morador e coordenador da ocupação Mauá e do Movimento de Moradia da Região Centro (MMRC). Neste artigo, apresentarei Nelson e como ele me apresentou uma crítica da branquidade da economia política da urbanização e dos estudos urbanos paulistas, com sua vida que escapa ao confinamento da brancopia.

Nascido em Santo Amaro da Purificação, interior da Bahia, em uma família de trabalhadores cortadores de cana, quando criança Nelson via seu pai deixar todo dia a casa na cidade para subir no pau de arara que o levava à plantação da monocultura. Ainda criança, ajudava indo buscar água na cisterna e morava em casa de taipa conforme ia ajudando a erguê-la, preenchendo latas de querosene com terra para a fundação.

Nelson veio a São Paulo nos anos 1990, já adulto, após ficar amigo de um casal de paulistas que conhecera num feriado em sua cidade natal. De sua chegada, costuma contar que morou de favor, morou em cortiço, e da dificuldade que teve para arranjar trabalho com seu documento de identidade emitido no estado da Bahia. Precisou fazer outro RG, de São Paulo, para se tornar trabalhador com carteira assinada.

Depois de mais de dez anos trabalhando como segurança nas regiões da Avenida Paulista e do Brás, pegou nojo de patrão, tomado pela raiva e indignação pediu demissão e, desempregado, chegou a viver por alguns meses na Praça da Sé. Ele costumava passar as noites na Rodoviária do Tietê, onde não era permitido dormir: era preciso ficar acordado, fingir que se estava à espera de alguém. Certa vez, interpelado pelo segurança do metrô, ele e seus companheiros da Praça foram levados a uma delegacia, no subsolo da Rodoviária. O delegado os fez ficar sentados num banco duro, das seis da tarde às seis da manhã. Às seis da manhã, foram orientados a ir embora.

Foi naquele dia, após deixar a delegacia, que Nelson conheceu o movimento de luta por moradia. Um amigo ambulante que vendia mexerica sugeriu a ele conhecer uma ocupação. Estamos no início dos anos 2000: Nelson caminha até a Rua Líbero Badaró, na região central da cidade, e para defronte a um prédio de três andares. Sobe, entra, é acolhido e lá fica morando por seis meses. O despejo é violento, com policiais armados, spray de pimenta, água e energia cortadas.

De lá, ele vai viver por algum tempo em outra ocupação - dessa vez, de um terreno, no bairro do Ipiranga, onde os barracos enfrentaram muita chuva (Paterniani, 2013PATERNIANI, Stella Zagatto. 2013. Política, fabulação e a ocupação Mauá: etnografia de uma experiência. Campinas, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas.). Depois de sair dessa ocupação, Nelson já acumula histórias de coragem e enfrentamento policial, e reconhecimento entre moradores e movimentos de ocupações de São Paulo, como o registrado em Paterniani (2013)PATERNIANI, Stella Zagatto. 2013. Política, fabulação e a ocupação Mauá: etnografia de uma experiência. Campinas, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas. e Bologna (2018BOLOGNA, Paula. 2018. Narrativas, ‘espaço’ e dádivas. A conformação de um Movimento de luta por moradia. São Carlos, dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos.).

É então que famílias o procuram, pedindo ajuda, e ele conta que, após uma tentativa frustrada de ocupar um local na Radial Leste - a Guarda Civil Metropolitana apareceu de arma em punho quando alguém serrava o cadeado que mantinha o prédio inacessível -, resolveu subir a Rua Mauá, entrou na Rua Plínio Ramos e viu um prédio vazio. Foi como atirar num pássaro que nunca vira e acertar, ele já me disse algumas vezes. No dia 28 de fevereiro de 2003, nascia a ocupação Plínio Ramos (Fórum Centro Vivo, 2006FÓRUM CENTRO VIVO. 2006. Dossiê-denúncia. Violações dos direitos humanos no centro de São Paulo: propostas e reivindicações para políticas públicas. São Paulo.; Paterniani, 2013PATERNIANI, Stella Zagatto. 2013. Política, fabulação e a ocupação Mauá: etnografia de uma experiência. Campinas, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas.; Bologna, 2018BOLOGNA, Paula. 2018. Narrativas, ‘espaço’ e dádivas. A conformação de um Movimento de luta por moradia. São Carlos, dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos.).

A ocupação Plínio Ramos é uma referência importante entre os movimentos de moradia em São Paulo, tanto pela organização da ocupação e pelas práticas de política prefigurativa (Yates, 2015YATES, Luke. 2015. “Rethinking prefiguration: Alternatives, micropolitics and goals in social movements”. Social Movements Studies, vol. 14, n. 1: 1-21. DOI https://www.doi.org/10.1080/14742837.2013.870883
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; Paterniani, 2013PATERNIANI, Stella Zagatto. 2013. Política, fabulação e a ocupação Mauá: etnografia de uma experiência. Campinas, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas.) que nela aconteceram, quanto pela violência do despejo, dois anos e oito meses depois, em agosto de 2005. Com relação à prefiguração, “[o]s moradores organizaram no prédio atividades como educação infantil, alfabetização de jovens e adultos, oficina de costura, grupos de mulheres e jovens, atividades culturais e de formação política. Até mesmo uma horta hidropônica vertical foi criada, utilizando paredes da construção” (Fórum Centro Vivo, 2006FÓRUM CENTRO VIVO. 2006. Dossiê-denúncia. Violações dos direitos humanos no centro de São Paulo: propostas e reivindicações para políticas públicas. São Paulo.: 36).

Sobre o despejo da Plínio Ramos, Nelson conta: “Aí vi coisa. Setenta e cinco famílias na rua, sem ter para onde ir. E tínhamos que lutar (…). Foi um confronto tremendo aquele despejo”. No dossiê organizado pelo Fórum Centro Vivo, lê-se: “(...) [E]ste despejo forçado envolvendo cerca de trezentas pessoas - entre elas 110 crianças - foi o mais violento de que se teve notícia nos últimos anos da cidade de São Paulo” (Fórum Centro Vivo, 2006FÓRUM CENTRO VIVO. 2006. Dossiê-denúncia. Violações dos direitos humanos no centro de São Paulo: propostas e reivindicações para políticas públicas. São Paulo.: 36). Não foi um mero despejo; foi preciso matar, com doses de truculência, essa ocupação tão viva. O dossiê segue: “Com o despejo, os moradores que não tinham para onde ir montaram seus barracos na rua em frente ao prédio, que teve portas e janelas vedadas com tijolos e cimento e permanece vazio” (Fórum Centro Vivo, 2006FÓRUM CENTRO VIVO. 2006. Dossiê-denúncia. Violações dos direitos humanos no centro de São Paulo: propostas e reivindicações para políticas públicas. São Paulo.: 37). Essa vedação é procedimento de praxe em imóveis reintegrados: a construção do muro da vergonha. O acampamento cresceu, com famílias despejadas de outras ocupações, e se estendeu às “calçadas da Rua Mauá com a Plínio Ramos” (Fórum Centro Vivo, 2006FÓRUM CENTRO VIVO. 2006. Dossiê-denúncia. Violações dos direitos humanos no centro de São Paulo: propostas e reivindicações para políticas públicas. São Paulo.: 39), como também conta Nelson: “deu na cabeça fazer acampamento na porta do prédio. Ficamos três meses na rua. Três meses de massacre. Não tem coisa pior do que viver na rua e ser humilhado. Os filhos dos companheiros não podiam ir para a escola porque não tinham lugar para tomar banho”.

Nelson segue contando que na madrugada do dia 24 para o dia 25 de março de 2007 foi feita outra ocupação. Dessa vez, “havia pessoas que estavam vivendo com o [programa] Bolsa Aluguel da Marta, a bolsa já estava vencendo, o beneficiário não tinha dinheiro...”; havia as famílias que tinham sido despejadas da Plínio Ramos, bem como as que haviam sido despejadas da Prestes Maia. Essas pessoas organizaram-se em três Movimentos (...); uniram-se os três movimentos e ocuparam o prédio da Rua Mauá. Nascia a Comunidade Mauá. (Paterniani, 2016aPATERNIANI, Stella Zagatto. 2016a. Morar e viver na luta: movimentos de moradia, fabulação e política em São Paulo. São Paulo, Annablume/Fapesp.: 334-335).

As mais de 240 famílias, organizadas em três movimentos de luta por moradia, ocupam desde 2007 o prédio de seis andares. São famílias que haviam sido despejadas de suas casas em outras ocupações por meio de violentas ações de reintegrações de posse, entre elas as das ocupações Plínio Ramos (Fórum Centro Vivo, 2006FÓRUM CENTRO VIVO. 2006. Dossiê-denúncia. Violações dos direitos humanos no centro de São Paulo: propostas e reivindicações para políticas públicas. São Paulo.) e Prestes Maia (Filadelfo, 2008FILADELFO, Carlos. 2008. A coletivização como processo de construção de um movimento de moradia: uma etnografia do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC). São Paulo, dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo.), atendidas provisoriamente com auxílio aluguel ou cadastradas nas listas da Prefeitura de São Paulo (Filadelfo, 2008FILADELFO, Carlos. 2008. A coletivização como processo de construção de um movimento de moradia: uma etnografia do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC). São Paulo, dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo.; Paterniani, 2013PATERNIANI, Stella Zagatto. 2013. Política, fabulação e a ocupação Mauá: etnografia de uma experiência. Campinas, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas., 2019PATERNIANI, Stella Zagatto. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.). Hoje, 2022, a Mauá é uma das ocupações mais antigas e emblemáticas da cidade de São Paulo.

Nelson mora até hoje na ocupação Mauá, no centro da cidade de São Paulo, na região conhecida como Santa Ifigênia ou Luz. Ele é um dos coordenadores da ocupação, o que envolve confrontar a polícia, levar bomba de gás, ser preso. Envolve também aconselhar as famílias e procurar mediações para briga entre vizinhos, ou carregar um fogão pela Avenida Paulista. Envolve poder visitar outras ocupações, circular pela cidade fazendo a luta com tranquilidade.

Certa vez, eu caminhava rumo à ocupação do prédio da Caixa Econômica Federal (CEF), organizada por movimentos de luta por moradia para reivindicar celeridade nos processos do Minha Casa, Minha Vida. Algumas quadras antes de chegar à ocupação, cruzo com Nelson, caminhando no sentido oposto. Pergunto onde ele vai. “Buscar um fogão.” “Fogão?”, questiono. “É, vai deixar o povo sem comer?” Sigo meu caminho até a ocupação, onde muitas pessoas se reúnem sob lonas, naquela noite fria na capital paulista. O fogão que Nelson traz é recebido sob uma salva de palmas, e logo há chá, café e sopa para quem se aproximar.

Em outra ocasião, presenciei uma inflamada discussão durante uma reunião2 2 Para uma apresentação esmiuçada das diferenças entre reunião, atividade de formação e assembleia, veja Paterniani, 2013. de um dos seis andares da ocupação, depois de alguém reclamar que a escala de limpeza do banheiro coletivo não estava sendo cumprida por alguns moradores, acarretando sobrecarga de trabalho aos que se dispunham a cumpri-la. A discussão, mediada por Nelson, terminou com uma retificação da escala e do engajamento de todos os moradores do andar em cumpri-la.

Nelson gosta cada vez mais de visitar amigos em assentamentos e acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), é frequentemente convidado a visitar ocupações mais recentes - no ano de 2022, enquanto este artigo é finalizado, me convidou a visitar com ele algumas vezes a ocupação dos imigrantes Jean-Jacques Dessalines, do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) - e também está sempre disposto a receber estudantes para conversar na ocupação Mauá.

Tenho argumentado como as ocupações impõem desafios à brancopia (Alves, 2020ALVES, Jaime Amparo. 2020. “Biópolis, necrópolis, negrópolis: notas para um novo léxico político nos estudos socioespaciais sobre o racismo”. Geopauta, vol. 4, n. 1: 5-33. DOI https://www.doi.org/10.22481/rg.v4i1.6161
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), seja operando a equivocação controlada de trabalhador, seja fazendo a permanência da casa negra em regiões da cidade que não se tornam enclaves brancos, seja, ainda, operando e existindo em outra dimensão espaço-temporal que não a da urbanização como produção de espacialidades brancas (Maia, 2019MAIA, Suzana. 2019. “Espaços de branquitude: segregação racial entre classes médias em Salvador, Bahia”. Século XXI, vol. 9, n. 1: 253-282. DOI https://www.doi.org/10.5902/2236672536942
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). Por brancopia entendo, seguindo a proposição de Jaime Alves (2020)ALVES, Jaime Amparo. 2020. “Biópolis, necrópolis, negrópolis: notas para um novo léxico político nos estudos socioespaciais sobre o racismo”. Geopauta, vol. 4, n. 1: 5-33. DOI https://www.doi.org/10.22481/rg.v4i1.6161
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, a produção do mundo antinegro da branquidade. Para os fins deste artigo, a crítica à brancopia é tanto a crítica ontológica ao mundo antinegro como, mais especificamente, a crítica à cidade constituída no apagamento da história espacial negra e da práxis territorial negra (Alves, 2018ALVES, Jaime Amparo. 2018. The Anti-Black City: Police terror and black urban life in Brazil. Minneapolis, University of Minnesota Press.), na segregação espacial e no banimento racial (Vargas, 2005VARGAS, João Costa. 2005. “Apartheid brasileiro: raça e segregação residencial no Rio de Janeiro”. Revista de Antropologia , vol. 48, n. 1: 76-131. DOI https://www.doi.org/10.1590/S0034-77012005000100003
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; Roy, 2017ROY, Ananya. 2017. “Dis/possessive collectivism: Property and personhood at city’s end”. Geoforum, n. 80: A1-A11. DOI https://www.doi.org/10.1016/j.geoforum.2016.12.012
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), na desumanização do subemprego (Wynter, [1994] 2021WYNTER, Sylvia. [1994] 2021. “Nenhum Humano Envolvido: Carta Aberta a colegas”. Tradução de Stella Z. Paterniani com colaboração de Patricia D. Fox. In: BARZAGHI, C.; PATERNIANI, S.; ARIAS, A. Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo, crocodilo/n-1, 71-100.), na violência burocrática da espera por atendimento habitacional (Borges, 2003), nas políticas públicas que produzem a desabitação (Gutterrez, 2016; Paterniani, 2019PATERNIANI, Stella Zagatto. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.), e no epistemicídio (Carneiro, 2005CARNEIRO, Aparecida Sueli. 2005. A construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. São Paulo, tese de doutorado, Universidade de São Paulo.) que informa a produção acadêmica sobre os humilhados e ofendidos da cidade neoliberal. Iniciemos a partir desse último ponto, com o argumento acerca do trabalhador como dissenso e como equivocação controlada.

TRABALHADOR COMO EQUÍVOCO-DISSENSO

Por ocasião de uma liminar de reintegração de posse, moradores de outra ocupação, a São João, também no centro da cidade de São Paulo, escreveram uma carta aberta, em 2012, cujo primeiro parágrafo aqui reproduzo:

Somos mais de 600 famílias trabalhadoras sem teto. Realizamos os principais serviços para o bom funcionamento desta cidade. Entretanto nossas famílias estão espremidas por um conjunto de necessidades. Lutamos e trabalhamos muito para sobreviver, mas a cidade, regida pelas leis do mercado, especialmente imobiliário, impede que nossa renda assegure nossos direitos. Sabemos que a situação de nossas famílias decorre de situação de injustiça histórica. Sabemos também que nas circunstâncias atuais, nosso sofrimento não tem razão de continuar. (Carta Aberta Reintegração São João, 2012).

Lideranças de movimentos de luta por moradia, junto aos quais tenho feito pesquisa nos últimos dez anos, são mestres na arte da equivocação controlada (Viveiros de Castro, 2004VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2004. “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation”. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, vol. 2, n. 1: 3-20.; De la Cadena, 2010DE LA CADENA, Marisol. 2010. “Indigenous Cosmopolitics in the Andes: Conceptual Reflections beyond ‘Politics’”. Cultural Anthropology, vol. 25, n. 2: 334-370. DOI https://www.doi.org/10.1111/j.1548-1360.2010.01061.x
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). Para o escopo deste artigo, destaco que o que os moradores da ocupação São João, Nelson e outras pessoas com quem tenho feito pesquisa entendem por trabalhador é muito diferente daquilo que o Estado, a política habitacional e as produções acadêmicas vinculadas à crítica da cidade neoliberal entendem. A categoria fundamental que agencia as diferenças entre os termos é a raça.

A tônica na produção acadêmica sobre espaço urbano em São Paulo tem sido a obliteração do reconhecimento do racismo e das cidades sob governanças racializadas e a ênfase na segregação socioeconômica como matriz de análise. Vinculada ao arcabouço teórico-epistemológico da economia política da urbanização, essa produção vincula o processo de urbanização à industrialização, à modernização e ao desenvolvimento capitalista. Tal arcabouço conceitual, com sua orientação de branquidade, cria operários e burgueses incolores - trabalhadores humanos -, cujas diferenças entre os corpos fica subsumida à ontologia-trabalhador, desconsiderando as diferenças ontológicas e epistemológicas entre trabalho e trabalhador negro e branco e operando com a categoria trabalhador pobre como confinamento ontológico.

A produção dos estudos urbanos dedica-se a pesquisar os trabalhadores brancos tornados universais: o trabalhador assalariado como fe(i)tiche, isto é, produção de fetiche que não cessa de fazer a si mesmo como fato moderno (Latour, 2002LATOUR, Bruno. 2002. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru, EDUSC.). O trabalhador assalariado é uma criação moderna que não cessa de se fazer a si mesmo como fato. A pressuposição dos corpos incolores é a expressão da universalização do corpo branco como norma, que se espraia na cidade pressuposta incolor; esta, por sua vez, num movimento de retroalimentação, é a extensão do corpo branco. A produção de corpos incolores, a universalização do trabalhador branco e a simbiose entre a produção de conhecimento acadêmico e estatal, tenho argumentado, são alguns dos modos de funcionamento da branquidade como modo de produção de conhecimento (Paterniani, 2016bPATERNIANI, Stella Zagatto. 2016b. “Da branquidade do Estado na ocupação da cidade”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 31: e319109. DOI https://www.doi.org/10.17666/319109/2016
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; 2019PATERNIANI, Stella Zagatto. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.). Esta, por sua vez, tem como um de seus mecanismos fundamentais o epistemicídio (Carneiro, 2005CARNEIRO, Aparecida Sueli. 2005. A construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. São Paulo, tese de doutorado, Universidade de São Paulo.), isto é, tanto a destruição e a extinção de modos de conhecimento, como também subalternizar, marginalizar ou ilegalizar práticas e grupos sociais sob um racismo antinegro.

A forma como trato do método de equivocação controlada aproxima-se da de Marisol De la Cadena (2010)DE LA CADENA, Marisol. 2010. “Indigenous Cosmopolitics in the Andes: Conceptual Reflections beyond ‘Politics’”. Cultural Anthropology, vol. 25, n. 2: 334-370. DOI https://www.doi.org/10.1111/j.1548-1360.2010.01061.x
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em sua pesquisa em Ausangate: conflitos entre entendimentos diferentes para mundos diferentes que envolvem, necessariamente, o Estado nacional. Mariano e Nazario Turpo, ativistas quechua, participam em mais de um e em menos de dois mundos, isto é, lidam com o conhecimento estatal, segundo o qual o que se entende por montanha, vida e entranhas da terra é muito diferente do entendimento quechua.

Após um protesto AwajunWampo, em 2009, motivado por decretos de mudanças legislativas para exploração no petróleo no Peru, sancionados sem consulta nem consentimento dos territórios possivelmente afetados pela exploração, em desrespeito à convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Estado peruano era signatário, De la Cadena (2018)DE LA CADENA, Marisol. 2018. “Natureza incomum: histórias do antropo-cego”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, vol. 69: 95-117. DOI https://www.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p95-117
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publica duas manifestações de Santiago Manuín, uma das lideranças indígenas presas durante o ocorrido. A primeira, quando do seu julgamento:

O governo está tirando nosso território, o território do povo AwajunWampi, para que nos tornemos dependentes de sua forma de desenvolvimento. O governo nunca perguntou: vocês querem se desenvolver? Eles não nos consultaram. Respondemos: “Anulem os decretos legislativos que afetam nossa existência como povo”. Em vez de ouvir nossa queixa, o governo queria nos punir - outros povos se renderam, nós não. O governo ordenou nosso despejo forçado. (Manuín apudDe la Cadena, 2018DE LA CADENA, Marisol. 2018. “Natureza incomum: histórias do antropo-cego”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, vol. 69: 95-117. DOI https://www.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p95-117
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: 97, grifo meu).

E a segunda, duas semanas após o julgamento:

Nós nunca vamos aceitar que o governo faça o que quer com... o território que nossos antepassados nos legaram antes de o Estado peruano se formar. O Peru e o mundo inteiro devem saber que este lugar de 30 mil quilômetros é nosso e pertence a nós; nós sempre defenderemos e daremos nossa vida por isso. [Os AwajunWampi] estavam defendendo nosso direito, nossa identidade, nossa cultura, um modo de desenvolvimento nosso, nossa floresta, nossos rios, nosso cosmos e nosso território. (Manuín apud De la Cadena, 2018DE LA CADENA, Marisol. 2018. “Natureza incomum: histórias do antropo-cego”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, vol. 69: 95-117. DOI https://www.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p95-117
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: 97, grifo meu).

A autora sugere que território pode fazer referência“tanto a um pedaço de terra sob a jurisdição do estado peruano quanto a uma entidade que emerge por meio de práticas de vida AwajunWampi (…)” (De la Cadena, 2018DE LA CADENA, Marisol. 2018. “Natureza incomum: histórias do antropo-cego”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, vol. 69: 95-117. DOI https://www.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p95-117
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: 98, grifos no original). Essas práticas de vida AwajunWampi, continua De la Cadena, permitem que as pessoas se tornem parentes dos rios e que, por meio desse parentesco, o próprio território se torne AwajunWampi. Essa relação, em que o território se torna as pessoas, coexiste com a relação em que o território e as pessoas estão separados. Consideremos essa segunda como um modo moderno de relacionar pessoas e natureza; um dos produtores desse modo é o Estado, e, no caso sobre o qual De la Cadena (2018)DE LA CADENA, Marisol. 2018. “Natureza incomum: histórias do antropo-cego”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, vol. 69: 95-117. DOI https://www.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p95-117
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se debruça, as empresas exploradoras de petróleo. Esse conflito entre o que seja território pode tornar-se um conflito ontológico, isto é, acerca da existência e da não existência de seres, quando irrompe como intolerável para o Estado:

Essa relação - em que as pessoas e o território estão juntos - excede as possibilidades dos humanos modernos e da natureza moderna, bem como as relações modernas entre eles, sem excluí-las. No entanto, isso complica o conflito: em vez de um abuso de poder que pode ser desfeito (com dificuldade, se fosse possível, é claro), o conflito se torna um mal-entendido impossível de ser resolvido sem um envolvimento nos termos que tornam o território outro em relação à capacidade de compreensão do estado e, portanto, a seu reconhecimento. Ao irromper publicamente, o conflito representa um desafio intolerável ao Estado, e a resposta a ele pode ser a erradicação de suas raízes: a negação dos termos de existência AwajunWampi. Assim visto, o conflito é ontológico. (De la Cadena, 2018DE LA CADENA, Marisol. 2018. “Natureza incomum: histórias do antropo-cego”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, vol. 69: 95-117. DOI https://www.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p95-117
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: 98, grifos no original suprimidos)

Esse conflito ontológico sobre o qual De la Cadena trata não contém uma relação de reciprocidade, não se trata de um equívoco em uma relação entre iguais que são mutuamente outros, como propõe Viveiros de Castro (2004)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2004. “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation”. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, vol. 2, n. 1: 3-20.; não; o conflito se aproxima mais de um conflito epistêmico que abarca o genocídio, numa relação entre entes historicamente desiguais - o Estado nacional peruano e os AwajunWampi - que habitam um dissenso histórico sobre o que seja o território e as relações que o compõem. Para abarcar a dimensão da desigualdade, De la Cadena (2018)DE LA CADENA, Marisol. 2018. “Natureza incomum: histórias do antropo-cego”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, vol. 69: 95-117. DOI https://www.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p95-117
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agrega à conceituação de Viveiros de Castro sobre a equivocação a dimensão do dissenso, inspirada em Jacques Rancière (1996RANCIÈRE, Jacques. 1996. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo, Editora 34.): quando entes socialmente desiguais são colocados em disputa para definir e nomear o que deveria ser o mesmo.3 3 “O desentendimento não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto. É o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco mas não entende a mesma coisa, ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa com o nome de brancura” (Rancière, 1996: 11). Ainda nas palavras da autora:

[O] mal-entendido no equívoco emerge quando corpos que pertencem a mundos diferentes usam a mesma palavra e nomeiam entidades que não são as mesmas porque elas também, como os corpos que as nomeiam, pertencem a mundos diferentes; o dissenso resulta de mal-entendidos sobre condições de nomeação das mesmas entidades em um mundo que deve ser compartilhado. (De la Cadena, 2018DE LA CADENA, Marisol. 2018. “Natureza incomum: histórias do antropo-cego”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, vol. 69: 95-117. DOI https://www.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p95-117
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: 99-100, grifos no original)

Assim, aproximo-me mais à contribuição de De la Cadena para diagnosticar o equívoco-dissenso “trabalhador” entre a produção acadêmica do campo dos estudos urbanos sobre São Paulo e o ativismo das lutas por moradia: corpos/entes que pertencem a mundos diferentes nomeando e definindo o que deveria ser o mesmo e, ao mesmo tempo, no caso dos ativistas, interpelando o dissenso ao produzirem equivocações controladas de trabalhador habitando em mais de um e menos de dois mundos.

Na literatura específica, o equívoco-dissenso se vincula a uma tradição que enfatiza a narrativa da industrialização e a economia política da urbanização (Singer, 1985SINGER, Paul. 1985. Economia política da urbanização. São Paulo, Contexto.), que, por sua vez, vincula a urbanização ao desenvolvimento capitalista. É por meio da narrativa da industrialização que se criam operários e burgueses incolores trabalhadores humanos - as diferenças entre os corpos ficam subsumidas à ontologia-trabalhador. O equívoco reside, aqui, em produzir o conhecimento da seguinte maneira: mesmos significados (trabalhador) para referentes múltiplos (corpo branco, corpo negro). Trata-se, assim, de diferentes epistemologias em combates e ontologias combativas (Mafeje, 2008MAFEJE, Archie. 2008. “A commentary on anthropology and Africa”. Codesria Bulletin, n. 3-4: 88-94.) produzindo conhecimento.

Quando a carta aberta da ocupação São João afirma que os moradores da ocupação são trabalhadores da cidade, ela atualiza a formulação da economia política da industrialização, tributária de uma lógica classista - que, não obstante, subsume um sistema de classificação racialista. O uso dessa formulação denota uma habilidade tradutória por parte dos escreventes da carta, mobilizada para a relação com o modo de funcionamento do Estado, que subsume a lógica da racialidade a uma lógica classista. Esse modo de funcionamento permite ao Estado atualizar, conforme apontaram Joaze Bernardino-Costa, Sales Augusto dos Santos e Valter Silvério (2009)BERNARDINO-COSTA, Joaze; SANTOS, Sales Augusto dos; SILVÉRIO, Valter Roberto. 2009. “Relações raciais em perspectiva”. Revista Sociedade e Cultura, vol. 12, n, 2: 215-222. DOI https://www.doi.org/10.5216/sec.v12i2.9110
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, seu caráter proclamadamente antirracialista: ao não reconhecer a raça como um operador de desigualdade social, esse modo de funcionamento estatal perpetua, justamente, o racismo e a branquidade do Estado.

Quando Nelson faz outro RG para conseguir trabalho em São Paulo, ele brinca com o equívoco trabalhador, tornando-se legível para o Estado. Essa legibilidade remonta há quase um século,quando,nos anos 1930,a Consolidação das Leis Trabalhistas veio junto com uma política nacional de habitação: a construção de habitação via Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs): a contrapartida para receber casas pela política habitacional corporativista da Era Vargas era demonstrar “ser trabalhador”. Veremos como se trata do fe(i)tiche do trabalhador branco (Paterniani, 2019PATERNIANI, Stella Zagatto. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.).

Em outra ocupação, conheci Kelli, que, numa conversa, expressou o engodo da ideia entre trabalhador assalariado e corpo negro:

Morei pagando aluguel, muito tempo paguei aluguel, trabalhei em empresas de carteira registrada e chegou uma época que tive de pedir para ser mandada embora, para poder cuidar dos meus filhos. Porque ou você pagava pra olharem seus filhos, ou você vivia. Então assim: você trabalha numa empresa e tira mil reais por mês, vamos supor. Você paga setecentos reais de aluguel. Tira duzentos para pagar para uma pessoa olhar um filho seu. Você vai viver do quê dentro de São Paulo? Vai passar fome se você não for à luta. Então, o que acontece? Ou você entra numa situação de você ir atrás da sua moradia, dos seus objetivos, ou então você não tem o que fazer. No momento eu não tenho condições de pagar aluguel mesmo, tô desempregada, faço bico, um ali, outro acolá, de vez em quando compro alguma coisinha e revendo pela comunidade, pras pessoas que eu conheço, uma blusa, um vestido. Pra poder gerar um dinheirinho pra eu poder sobreviver com minha família. Porque se eu não fizer isso eu não tenho como sobreviver. Não posso trabalhar registrada no momento por causa das minhas crianças que são muito pequenas, não tenho condições de pagar para os outros ficarem [com elas]. (Meu registro da fala de Kelli, 2015)

Kelli não pode se dar ao luxo de se tornar trabalhadora com carteira assinada; para isso, ela teria que deixar de cuidar de seus filhos, o que não é uma opção real. O corpo de Kelli é um corpo que também contém o corpo de seus filhos. Ou seja, Kelli não pode tornar-se uma trabalhadora e, ao mesmo tempo, é isso que é exigido dela constantemente para que continue vivendo onde vive. Helena Silvestre (2018), ativista afroindígena, destaca acontinuidade entre os corpos das mulheres que vivem em ocupações e a feitura de suas casas e territórios, reivindicando uma gramática feminista das práticas de ocupação, cujo coração é a cozinha - onde se alimentam as centenas de pessoas que ali vivem e onde se imagina o futuro. Gabriela Pereira (2015PEREIRA, Gabriela Leandro. 2015. Corpo, discurso e território: a cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus. Salvador, tese de doutorado, Universidade Federal da Bahia.), em sua tese sobre os escritos de Carolina Maria de Jesus, observa como o corpo de Carolina também é um corpo que contém os corpos de seus filhos:

Como extensão, esse corpo possui quase sempre a presença de um saco ‒ ora cheio, ora vazio ‒ acoplado às costas, contendo o material coletado nas ruas, permutado por dinheiro ou outro elemento de valor. Três filhos de relacionamentos diferentes acompanhavam-na com frequência e tornavam-se também parte desse incômodo corpo que circularia pelas ruas da capital paulista. (Pereira, 2015PEREIRA, Gabriela Leandro. 2015. Corpo, discurso e território: a cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus. Salvador, tese de doutorado, Universidade Federal da Bahia.: 54)

A crítica da branquidade na economia política da urbanização leva a sério, provocativamente, a aposta de Lucio Kowarick ([1988] 1994KOWARICK, Lucio; ANT, Clara. [1988]1994 “Cem anos de promiscuidade: o cortiço na cidade de São Paulo”. In: KOWARICK, Lucio (org.). As lutas sociais e a cidade. São Paulo, Paz e Terra/Cedec/UNRISD, 73-91.: 50) de que, para entender seus conflitos e contradições e os vínculos entre a exploração do trabalho e a espoliação urbana, é preciso realizar “estudos que reconstituam a história das cidades, focalizando-as enquanto um espaço social de lutas”. Levar a sério essa aposta implica rever a reconstituição já consolidada sobre a história da cidade no campo dos estudos urbanos. A agenda mais ampla de pesquisa que este artigo integra busca restituir a crítica da branquidade à crítica da cidade neoliberal (Paterniani, 2019PATERNIANI, Stella Zagatto. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.; Alves, 2018ALVES, Jaime Amparo. 2018. The Anti-Black City: Police terror and black urban life in Brazil. Minneapolis, University of Minnesota Press.; Vargas, 2005VARGAS, João Costa. 2005. “Apartheid brasileiro: raça e segregação residencial no Rio de Janeiro”. Revista de Antropologia , vol. 48, n. 1: 76-131. DOI https://www.doi.org/10.1590/S0034-77012005000100003
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; Maia, 2019MAIA, Suzana. 2019. “Espaços de branquitude: segregação racial entre classes médias em Salvador, Bahia”. Século XXI, vol. 9, n. 1: 253-282. DOI https://www.doi.org/10.5902/2236672536942
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; Oliveira, 2015OLIVEIRA, Denilson Araujo. 2015. “Gestão racista e necropolítica do espaço urbano: apontamento teórico e político sobre o genocídio da juventude negra na cidade do Rio de Janeiro”. Anais do Copene Sudeste, Nova Iguaçu, s/n.).

URBANIZAÇÃO COMO BRANCOPIA

Ao fe(i)tiche do trabalhador branco, somam-se como expressões da urbanização como brancopia (Alves, 2020ALVES, Jaime Amparo. 2020. “Biópolis, necrópolis, negrópolis: notas para um novo léxico político nos estudos socioespaciais sobre o racismo”. Geopauta, vol. 4, n. 1: 5-33. DOI https://www.doi.org/10.22481/rg.v4i1.6161
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), o banimento racial (Roy, 2017ROY, Ananya. 2017. “Dis/possessive collectivism: Property and personhood at city’s end”. Geoforum, n. 80: A1-A11. DOI https://www.doi.org/10.1016/j.geoforum.2016.12.012
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) e a persistência da desumanização da pessoa negra sob o continuum da lógica da plantation (Borges, 2020BORGES, Antonádia. 2020. “Very rural background: os desafios da composição-terra da África do Sul e do Zimbábue à chamada educação superior”. Revista de Antropologia, vol. 63, n. 3: e178183. DOI https://www.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2020.178183
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). Ambos adquirem concretude sob a forma de demolições e remoções da casa negra, junto à produção de territórios negros circunscritos, delimitados e controlados em determinadas regiões da cidade. Sigo, aqui, uma agenda de pesquisa que busca reconhecer os processos de acumulação de capital e expropriação como, também, processos de banimento racial (Roy, 2017ROY, Ananya. 2017. “Dis/possessive collectivism: Property and personhood at city’s end”. Geoforum, n. 80: A1-A11. DOI https://www.doi.org/10.1016/j.geoforum.2016.12.012
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; Alves, 2018ALVES, Jaime Amparo. 2018. The Anti-Black City: Police terror and black urban life in Brazil. Minneapolis, University of Minnesota Press.; Oliveira, 2015OLIVEIRA, Denilson Araujo. 2015. “Gestão racista e necropolítica do espaço urbano: apontamento teórico e político sobre o genocídio da juventude negra na cidade do Rio de Janeiro”. Anais do Copene Sudeste, Nova Iguaçu, s/n.; Paterniani, 2019PATERNIANI, Stella Zagatto. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.).

Certa vez, Nelson convidou Helena Silvestre, do Luta Popular, para participar de uma assembleia do MMRC. Numa de suas falas, Helena reivindica as ocupações como práxis negra no mundo antinegro:

Vamos fazer o seguinte exercício. Bruna nasceu com a pele clarinha, clarinha. O pai de Bruna diz pra ela: Bruna, isso é seu! Daqui até Guarulhos, mil trabalhadores. João nasceu da pele preta. O pai de João diz a ele: nem pise nessa terra, daqui até Guarulhos é de Bruna. Vá para o engenho trabalhar. Você não vai receber salário, você nasceu para trabalhar. Você e a enxada é a mesma coisa, a diferença é que você fala e a enxada, não. Pois é assim que começa a nossa história. E dizem pra gente que se você tá desempregado, sem moradia, morrendo de zika na fila do SUS, a culpa é sua, que você não se esforçou. Mas foram os nossos antepassados que trabalharam para enriquecer os outros. Ocupar essa terra é ocupar o que é nosso. Ocupar é fazer a retomada da nossa terra. (Meu registro da fala de Helena Silvestre, 2016)

A fala de Helena nos dá pistas para entender a equivocação controlada-dissenso de trabalhador, inclusive o engodo da ideia de trabalhador assalariado. Helena reivindica a existência de seus antepassados e a história da usurpação de sua terra. O trabalhador que pode comprar terras não é o trabalhador antepassado de Helena que trabalhou para enriquecer os outros. O antepassado de Helena é o negro tornado meio de produção, com seu corpo deformado. Com seu corpo dotado de contiguidade com a enxada e com a terra. Helena nos fala de racismo fundiário (Dias Gomes, 2019DIAS GOMES, Tatiana Emília. 2019. “Racismo fundiário: a elevadíssima concentração de terras no Brasil tem cor”. Comissão Pastoral da Terra, 26 de março de 2019. Disponível em: Disponível em: https://cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/artigos/4669-racismo-fundiario-a-elevadissima-concentracao-de-terras-no-brasil-tem-cor , acesso em 18/10/2021.
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), e lembra que a Lei de Terras, de 1850, é também um processo de banimento racial e de atualização da questão racial no país: na medida em que consolida o latifúndio (Martins, 2013), reivindica o branqueamento da nação.

A grande narrativa sociológica e urbanística acerca da formação da cidade de São Paulo enfatiza a rápida urbanização da cidade no final do século XIX e início do XX, num momento em que o futuro são trabalhadores em fábricas (Leite Lopes, 2011LEITE LOPES, José Sérgio. 2011. “Memória e transformação social: trabalhadores de cidades industriais”. Mana - Estudos de Antropologia Social , vol. 17, n. 3: 583-606. DOI https://www.doi.org/10.1590/S0104-93132011000300004
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), sob um elogio do progresso, da mudança e da transformação social corporificados no operário fabril, endossada pela ideia de futuro laudatória da Revolução Industrial especialmente em solo inglês, transposta para a narrativa da cidade de São Paulo.

Essa narrativa enfatiza a urbanização, as construções de monumentos, viadutos, praças e edifícios inspirados na arquitetura europeia, como a Estação da Luz, em 1901; o Theatro Municipal, em 1911; e o Mercado Central, em 1932 (Sevcenko, 1992; Maquiaveli, 2012MAQUIAVELI, Janaina. 2012. “Passando a limpo: um passeio pelos processos e pelos projetos de revitalização urbana do Meatpacking District, em Nova York, e da Região da Luz, em São Paulo”. EURE, vol. 38, n.115: 137-158. DOI https://www.doi.org/10.4067/S0250-71612012000300007
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). Antes, em 1892, poucos anos após a abolição, é construído o Viaduto do Chá, seguido da Praça da República, em 1905; o Vale do Anhangabaú, em 1910; e o Viaduto Santa Ifigênia, em 1913, todos na região central. Sob a perspectiva da economia política da urbanização, essas edificações aparecem como quase fantasmagóricas, composições do futuro inelutável do progresso industrial: os corpos que as constroem não fazem parte dessa narrativa. A economia política da urbanização, se crítica à lógica irrefreável da mercadoria e da reificação, acaba por mimetizá-la ao não incluir, nas histórias dos edifícios, as histórias de quem os erguia.

A grande narrativa da economia política da urbanização segue mencionando que até os anos 1920, a indústria nacional vai gradativamente substituindo a importação de bens de consumo e a cidade se tornando autossuficiente em termos de produção. É também nessa época que os fazendeiros fixam residência em São Paulo e passam a desempenhar, além de tarefas relativas à produção, atividades referentes à circulação da mercadoria café. Flávio Villaça (1978VILLAÇA, Flávio. 1978. A estrutura territorial da metrópole sul brasileira: áreas residenciais e comerciais. São Paulo, tese de doutorado Universidade de São Paulo.) argumenta como, nesse chamado período de industrialização, São Paulo organizava-se em duas partes distintas, com os rios estabelecendo duas faixas divisórias: a leste do córrego Anhangabaú e do rio Tamanduateí, bem como da estrada de ferro Santos-Jundiaí, estariam localizados os bairros operários, industriais e comerciais (como o Brás); a oeste, os bairros da aristocracia rural e da burguesia industrial (como Campos Elíseos e Higienópolis). Essa divisão da cidade em operária e burguesa endossa a grande narrativa da São Paulo cidade industrial-branca, que ora desconsidera a vida negra, ora a delimita a territórios específicos, ora a considera à margem da urbanização e da cidade oficial. Nessa narrativa há o esforço de criar a ficção do trabalhador (branco), esse tipo ideal de encarnação modernista da ordem, da limpeza, do trabalho e do progresso, que vem combinada com a impossibilidade da humanidade negra.

A narrativa da urbanização como brancopia oblitera a escravidão e o continuum da plantation, do mundo antinegro como singularidade (Sharpe, 2016SHARPE, Cristina. 2016. In the wake: on blackness and being. Durham, NC, Duke University Press.). Sob o regime político da escravidão, o escravizado, desumanizado, é tornado meio de produção, com seu corpo deformado: confundido com a enxada, com a terra, o arado, o balde. Sua espinha dorsal sustenta a sociedade escravocrata e, ao mesmo tempo, é por ela quebrada, como escreveu Abdias Nascimento:

Sem o escravo a estrutura econômica do país jamais teria existido. O africano escravizado construiu as fundações da nova sociedade com a flexão e a quebra da sua espinha dorsal, quando ao mesmo tempo seu trabalho significava a própria espinha dorsal daquela colônia. Ele plantou, alimentou e colheu a riqueza material do país para o desfrute exclusivo da aristocracia branca. Tanto nas plantações de cana-de-açúcar e café e na mineração, quanto nas cidades, o africano incorporava as mãos e os pés das classes dirigentes que não se autodegradavam em ocupações vis como aquelas do trabalho braçal. (Nascimento, 1978NASCIMENTO, Abdias. 1978. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro, Paz e Terra .: 49-50)

Assim, o escravizado como meio de produção produz valor, vinculado a todos esses instrumentos que se tornam extensão do corpo-escravizado, esse corpo, portanto, tornado não humano, desumanizado.

Forma-se assim uma categoria desumanizada; um dos modos de se esquadrinhar e estabilizar consistia em descrever os sinais que traziam em seus corpos (Brandão, 2004BRANDÃO, Helena Nagamine. 2004. “Escravos em anúncios de jornais brasileiros do século XIX: discurso e ideologia”. Estudos Linguísticos, vol. 33: 694-700.). As deformações dos corpos escravizados eram registradas em anúncios de jornais, quando da procura de um escravizado fugido (Abreu, 2014ABREU, Tenner Inauhiny de. 2014. “Marcas da escravidão: condições físicas e saúde dos trabalhadores escravos nos anúncios de fuga nos Periódicos na Província do Amazonas”. Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos, vol. 14, n.1: 6-22. DOI https://www.doi.org/10.29327/233099.14.1-1
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).

Hortense Spillers (1987SPILLERS, Hortense J. 1987. “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: an American Grammar Book”. Diacritics, vol. 17, n. 2: 64-81.) chama de “hieróglifos da carne” esse modo de demarcar o não humano, subsumindo o corpo à carne [flesh], vinculado a um humanismo que exclui alguns corpos da humanidade (Cesaire, 1978CESAIRE, Aimé. [1955] 1978. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora.). Sylvia Wynter (2021WYNTER, Sylvia. [1994] 2021. “Nenhum Humano Envolvido: Carta Aberta a colegas”. Tradução de Stella Z. Paterniani com colaboração de Patricia D. Fox. In: BARZAGHI, C.; PATERNIANI, S.; ARIAS, A. Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo, crocodilo/n-1, 71-100. [1994]) reflete sobre como, nos sistemas de plantation, o escravizado tornado propriedade de seu senhor, enquanto meio de produção e unidade laboral, era parte de um sistema baseado em sua desumanidade. Katherine McKittrick (2016)McKITTRICK, Katherine. 2016. “Rebellion/Invention/Groove”. small axe, vol. 20, n. 1, ed. 49: 79-91. DOI https://www.doi.org/10.1215/07990537-3481558
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escreve sobre o pensamento de Wynter:

Os escravizados tornam-se, perceptível e conceitualmente, unidades de trabalho homogêneas, implantadas no Novo Mundo não para habitar (com pessoas e assentamentos) a terra, mas para produzir monoculturas mecanicamente e abastecer o sistema econômico. O sistema de plantation almejava, sobretudo, lucro. Daí segue-se que as unidades de trabalho escravas, como propriedades de seu dono, estavam incrustadas num sistema que se retroalimentava e se beneficiava de sua desumanidade e sua despessoalização; e é precisamente porque foram implantados no Novo Mundo não como “compradores e vendedores”, mas como mercadorias que eram “compradas e vendidas” que os povos negros escravizados no Novo Mundo foram de uma só vez alienados da economia racial e nela implicados como não humanos/não consumidores/trabalho mecanizado. Dito de outra forma, o contexto da plantation exigia a impossibilidade da humanidade negra. (McKittrick, 2016McKITTRICK, Katherine. 2016. “Rebellion/Invention/Groove”. small axe, vol. 20, n. 1, ed. 49: 79-91. DOI https://www.doi.org/10.1215/07990537-3481558
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: 82, tradução minha, grifos meus)

Assim, a desumanização do corpo negro é condição para a efetivação do sistema de plantation. A desumanização está vinculada à implantação de pessoas transformadas em unidades de trabalho desautorizadas a habitar a terra: produz-se a disjunção entre a habitação e o trabalho. A reflexão de McKittrick (2016)McKITTRICK, Katherine. 2016. “Rebellion/Invention/Groove”. small axe, vol. 20, n. 1, ed. 49: 79-91. DOI https://www.doi.org/10.1215/07990537-3481558
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endossa o argumento de Spillers (1987SPILLERS, Hortense J. 1987. “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: an American Grammar Book”. Diacritics, vol. 17, n. 2: 64-81.), segundo o qual o corpo tornado carne [flesh], despessoalizado e desumanizado, e o aparato jurídico - o vínculo jural - que torna pessoas em propriedades, caminham conjuntamente. Isso se consolida na branquidade do Estado como modo de funcionamento e na branquidade característica da economia política da urbanização (Paterniani, 2019PATERNIANI, Stella Zagatto. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.).

No pós-abolição, sabemos, a pessoa negra não se torna o trabalhador assalariado. Florestan Fernandes caracteriza a abolição da escravidão no Brasil como uma “espoliação extrema e cruel” (2008: 29), ao desenvolver o argumento de que os escravizados teriam sido libertos sem que os senhores ou as instituições (Estado e Igreja) os preparassem para o novo regime “da vida e do trabalho” (idem), conforme destaca Clóvis Moura (1977)MOURA, Clóvis. 1977. O negro: de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro, Conquista.: “Criou-se uma grande massa marginalizada que, ao sair das senzalas, não tinha condições para ingressar no processo de produção” (Moura, 1977MOURA, Clóvis. 1977. O negro: de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro, Conquista.: 30). Muitos sociólogos e historiadores fazem coro a essa análise histórica da abolição da escravidão no Brasil (Nascimento e Larkin Nascimento, 2000NASCIMENTO, Abdias; LARKIN NASCIMENTO, Elisa. 2000. “Reflexões sobre o movimento negro no Brasil, 1938-1997”. In: GUIMARÃES, Antonio Sérgio; HUNTLEY, Lynn H. (orgs.). Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo, Paz e Terra, 203-236.), segundo a qual o liberto vira senhor de si sem dispor de “meios materiais e morais” (Fernandes, 2008FERNANDES, Florestan. [1964] 2008. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Globo.: 29) para se tornar responsável por si e por seus dependentes.

A política de Estado eugenista incentivou a migração europeia para branquear o país (Ianni, 1987IANNI, Octávio. 1987. Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo, Brasiliense.). São os migrantes europeus, sobretudo italianos, e não as pessoas negras escravizadas, libertas ou sua descendência, que se transformariam em trabalhadores assalariados - não fosse a ideia de trabalhador assalariado uma ficção na São Paulo do final do século XIX.

Rolnik (1988)ROLNIK, Raquel. 1994. “São Paulo, início da industrialização: o espaço e a política”. In: KOWARICK, Lucio (org.). [1988]1994 As lutas sociais e a cidade: São Paulo, passado e presente. Rio de Janeiro, Paz e Terra/Cedec/UNRISD, 75-92. inicia uma reflexão acerca da transformação do trabalhador branco em trabalhador assalariado:

Com a abolição, o senhor se libertou do investimento no escravo para poder explorar o trabalhador livre. Mas para isto era preciso constituir o trabalhador livre: fazê-lo existir tanto fisicamente quanto ideologicamente. (…)

Em São Paulo, nem o negro nem o caipira (homem livre não proprietário de escravos) ocuparam imediatamente o lugar desse novo trabalhador (…). [A] opção pelo “braço livre europeu” significava usar mão-de-obra “civilizada”, já que não era possível romper repentinamente com todo o arcabouço ético-político da escravidão, montado mediante a identificação “selvagem-inumano-cativo”. (Rolnik, 1988ROLNIK, Raquel. 1994. “São Paulo, início da industrialização: o espaço e a política”. In: KOWARICK, Lucio (org.). [1988]1994 As lutas sociais e a cidade: São Paulo, passado e presente. Rio de Janeiro, Paz e Terra/Cedec/UNRISD, 75-92.: 96)

Embora a citação acima reconheça que o trabalhador assalariado é tanto física quanto ideologicamente criado, falta ao argumento da autora reconhecer a transformação ideológica e epistemológica do trabalhador assalariado em trabalhador universal porque branco. Criar o trabalhador assalariado é uma operação da branquidade.

Se o trabalhador era (feito) branco, o trabalho na cidade era negro. Seguindo o método da equivocação controlada, vamos nos deter por um momento na ferrovia, por muitos entendida como a expressão máxima do capitalismo e incompatível com a escravidão. Maria Lúcia Lamounier (2008LAMOUNIER, Maria Lúcia. 2008. “Entre a escravidão e o trabalho livre: escravos e imigrantes nas obras de construção das ferrovias no Brasil no século XIX”. EconomiA, Selecta, vol. 9, n. 4: 215-245.) recupera o tom geral da historiografia sobre o trabalho e o trabalhador da ferrovia numa São Paulo sob o afã de temas como a modernização, a industrialização, o trabalhador livre e o trabalho assalariado, em oposição ao atraso, à aristocracia rural, à escravidão:

A historiografia ressalta, com frequência, os efeitos significativos que as ferrovias provocaram na organização e transformação das relações de trabalho na segunda metade do século XIX (...). A idéia geral é que o desenvolvimento de relações capitalistas era incompatível com a existência da escravidão. A empresa ferroviária questionava a permanência da escravidão. Ao empregar apenas trabalho assalariado e ajudar a promover a imigração, a ferrovia estimulava a constituição de um mercado de trabalho livre. (Lamounier, 2008LAMOUNIER, Maria Lúcia. 2008. “Entre a escravidão e o trabalho livre: escravos e imigrantes nas obras de construção das ferrovias no Brasil no século XIX”. EconomiA, Selecta, vol. 9, n. 4: 215-245.: 218)

Anna Lanna (2016LANNA, Ana Lucia Duarte. 2016. “Trabalhadores das ferrovias: A Companhia Paulista de Estrada de Ferro, São Paulo, 1870-1920”. Varia Historia, Belo Horizonte, vol. Vol. 32, n. 59: 505-545. DOI https://www.doi.org/10.1590/0104-87752016000200009
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), em sua pesquisa sobre os trabalhadores da Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CPEF) contratados entre 1872 e 1919, observa como as pessoas negras estavam excluídas da contratação: nos registros dos quadros funcionais da Companhia desse período, a quantidade de trabalhadores “negros” variou de 7,5% a 13%. No entanto, o fato de estarem excluídos dos registros oficiais não significa estarem eles excluídos de realizar trabalho; eis o equívoco: o operário-trabalhador é branco, o negro também trabalha. O operário-trabalhador é tornado branco, mas o trabalho não é exclusivamente branco. Para além do quadro funcional da CPEF, portanto, havia outros dois tipos de trabalhadores: os trabalhadores das oficinas e os escravizados.

Nas Oficinas da CPEF,“verdadeiras fábricas onde se montavam e se mantinham as máquinas que faziam funcionar o sistema ferroviário”, a incidência de pessoas negras trabalhando, afirma a autora, parecia ser bastante superior:

A Companhia Paulista “terceirizava” a construção da linha, como de resto quase todas as ferrovias no Brasil (...). [A] empresa estabelecia contratos com empreiteiros que subcontratavam os trabalhadores. Nestes casos, a incidência de trabalhadores negros parece ser bem superior àquela verificada nos quadros funcionais da CPEF. Nas Oficinas, encontramos como empregados desde operários que exerciam as funções hierarquicamente e salarialmente mais simples até marceneiros, carpinteiros, pintores, soldadores, ferreiros, ajustadores etc. Trabalhavam - algo como 12 horas diárias, sem remuneração de “hora-extra” e com uma folga semanal - para colocar nos trilhos as locomotivas que seriam conduzidas por maquinistas e foguistas, com bilheteiros e bagageiros. (Lanna, 2016LANNA, Ana Lucia Duarte. 2016. “Trabalhadores das ferrovias: A Companhia Paulista de Estrada de Ferro, São Paulo, 1870-1920”. Varia Historia, Belo Horizonte, vol. Vol. 32, n. 59: 505-545. DOI https://www.doi.org/10.1590/0104-87752016000200009
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: 520, grifos meus)

Embora em 1850 o tráfico da escravidão tenha sido suspenso e, em 1852, a legislação sobre as empresas ferroviárias passasse a proibir a mão de obra escravizada, esta não só se fazia presente, como era a força-motriz da construção das ferrovias (Lamounier, 2008LAMOUNIER, Maria Lúcia. 2008. “Entre a escravidão e o trabalho livre: escravos e imigrantes nas obras de construção das ferrovias no Brasil no século XIX”. EconomiA, Selecta, vol. 9, n. 4: 215-245.).

Além dos imigrantes brancos italianos e das pessoas negras fugidas, libertas e sua descendência, há um terceiro grupo que integra o que se chama indiscriminadamente de trabalhadores dessa São Paulo do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX: os migrantes nacionais nordestinos, vistos pela literatura como pessoas pobres que iam para São Paulo em busca de uma vida melhor.

Essa migração não era bem-vista aos olhos paulistas. Os nordestinos eram vistos como incivilizados, atrasados e racializados. O corpo que aparece racializado, na mentalidade das elites sob o medo da “onda negra” (Azevedo, 1987AZEVEDO, Celia. 1987. Onda negra, medo branco. O negro no imaginário das elites, século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra.), é o corpo negro. O corpo branco aparece como desprovido de raça, como o corpo incolor (Paterniani, 2019PATERNIANI, Stella Zagatto. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.). A branquidade estabelece, inclusive na literatura acadêmica, mecanismos para impedir a chegada desses migrantes: barrá-los por não estarem sob a legibilidade do Estado, como a triagem prescrita por Bosco e Jordão Netto (1967BOSCO, Santa Helena; JORDÃO NETTO, Antônio. 1967. Migrações: estudo especial sobre as migrações internas para o Estado de São Paulo e seus efeitos. São Paulo, Departamento de Imigração e Colonização.):

Barrar esse tipo de migrante através de medidas burocráticas, tais como exigência de documentação (carteira de trabalho, carteira de identidade, título de eleitor, ou, na ausência deles, o registro de nascimento ou de casamento); de ficha de sanidade; de exibição de cartas de chamado ou provas de que tem destino determinado, por exemplo. (Bosco e Jordão Netto, 1967BOSCO, Santa Helena; JORDÃO NETTO, Antônio. 1967. Migrações: estudo especial sobre as migrações internas para o Estado de São Paulo e seus efeitos. São Paulo, Departamento de Imigração e Colonização.: 198).

Barbara Weinstein (2015WEINSTEIN, Barbara. 2015. The Color of Modernity: São Paulo and the making of race and nation in Brazil. Duke University Press.) explicita como os esforços de homogeneização presentes na ideia d’O Nordeste criado pelo universo paulista no início do século XX fazem parte do processo de criação de um Outro. A relação estabelecida não é a de uma alteridade na qual ambos os lados estão em simetria no que diz respeito ao poder exercido; trata-se de uma alteridade na dominação, semelhante à crítica que faz Mafeje (2008MAFEJE, Archie. 2008. “A commentary on anthropology and Africa”. Codesria Bulletin, n. 3-4: 88-94.) à ideia de alteridade e ao que o crítico palestino Edward Said (1990)SAID, Edward. 1990. Orientalismo. São Paulo, Companhia das Letras. chama de orientalismo. Para Mafeje (2008)MAFEJE, Archie. 2008. “A commentary on anthropology and Africa”. Codesria Bulletin, n. 3-4: 88-94., toda alteridade é calcada numa relação dominatória, que prevê o escrutínio e a classificação dos Outros criados a partir de referenciais externos a eles mesmos. Para Said (1990)SAID, Edward. 1990. Orientalismo. São Paulo, Companhia das Letras., o orientalismo é precisamente a descrição do Outro pela falta, sua criação para escrutínio e sua formação a partir de discursos de autoridade.

Segundo Weinstein (2015WEINSTEIN, Barbara. 2015. The Color of Modernity: São Paulo and the making of race and nation in Brazil. Duke University Press.: 10), o que se via era uma espécie de orientalismo dentro de um só país. Essa criação do Outro em oposição a São Paulo ocorreu por meio da criação de uma identidade regional que, na verdade, configura-se como uma “categoria racializada, dado seu recurso ao inato ou a características naturais para explicar as trajetórias contrastantes das regiões brasileiras” (Weinstein, 2015WEINSTEIN, Barbara. 2015. The Color of Modernity: São Paulo and the making of race and nation in Brazil. Duke University Press.: 6, tradução minha). O regionalismo paulista teria se criado como base para a construção de um projeto de nação no qual “os paulistas representaram a si mesmos como ‘brancos’ e os nordestinos como ‘não-brancos’, sem qualquer apelo à genética ou à aparência física” (Weinstein, 2015WEINSTEIN, Barbara. 2015. The Color of Modernity: São Paulo and the making of race and nation in Brazil. Duke University Press.: 9, tradução minha). A autora vai ainda mais longe, ao demonstrar as associações entre branquidade e modernidade, ou entre branquidade e civilização, engendradas pelo sucesso econômico de São Paulo, e como a expressão dessas associações via região em vez de via raça tem sido fundamental para a coexistência dos discursos sobre a formação da nação e a democracia racial no Brasil moderno.

Por fim, no que diz respeito ao banimento racial, temos no Código de Posturas de 1886 declarações que confirmam a urbanização como brancopia: as quitandeiras deviam sair das ruas e esquinas; os mercados, transferidos das áreas centrais para as periferias; e os pais de santo, perseguidos por exercerem atividades de “embusteiros que fingem inspiração por algum ente sobrenatural” (Rolnik, 1989ROLNIK, Raquel. 1989. “Territórios negros nas cidades brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo e Rio de Janeiro)”. Revista de Estudos Afro-Asiáticos, n. 17: 1-17.). Com justificativas de “atrapalhar o trânsito”, semelhante à genérica justificativa de “melhorias para a cidade” ou “obras ‘viárias’ que melhoram a cidade”, a vida negra era alvo explícito de destruição.

A igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos foi demolida na gestão Antônio Prado (1899-1911) - em seu lugar, hoje, fica a praça homônima ao prefeito da época. Em 1872, a Câmara Municipal desapropriou as casinhas de pessoas negras que moravam ao lado da igreja e o terreno do cemitério. Em 1903, foi a vez de a igreja ser desapropriada e demolida, e o largo transformou-se em praça. Apenas a reconstrução da igreja foi permitida, num terreno onde ela está até hoje, no Largo do Paissandu. Foi proibido manter o cemitério em sua localização original bem como reconstruí-lo no novo espaço. As famílias foram removidas para longe do Centro e receberam indenizações questionáveis no que diz respeito à avaliação de seus bens materiais e subjetivos (Oliveira e Oliveira, 2015OLIVEIRA, Reinaldo José de; OLIVEIRA, Regina Marques de Souza. 2015. “Origens da segregação racial no Brasil”. Amérique Latine Histoire et Mémoire. Les Cahiers ALHIM (Online), vol. 29: s/n. DOI https://www.doi.org/10.4000/alhim.5191
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). Após a desapropriação das casas e do terreno do cemitério, fez-se o calçamento, e depois do calçamento foi inaugurado o chafariz do Rosário, em 1874. Ele foi demolido em 1893 para forçar os moradores a usar a água da Companhia Cantareira.

Uma das atividades de lazer mais comuns nos anos 1930 era o footing, uma prática de passeio, diversão e flerte por quadras, calçadas e ruas da região central da cidade. Ecoando a segregação entre negros e brancos no período pós-abolição da escravatura, havia o local de footing dos brancos e o dos negros. Em 1938, o chefe da polícia paulista proibiu a tradição do footing na Rua Direita: “Negociantes brancos, donos das lojas dessa importante artéria comercial, reclamaram contra aquela ‘negrada’ que ocultava as vitrines, e o delegado Alfredo Issa baixou uma portaria banindo esse entretenimento semanal dos negros” (Nascimento e Larkin Nascimento, 2000NASCIMENTO, Abdias; LARKIN NASCIMENTO, Elisa. 2000. “Reflexões sobre o movimento negro no Brasil, 1938-1997”. In: GUIMARÃES, Antonio Sérgio; HUNTLEY, Lynn H. (orgs.). Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo, Paz e Terra, 203-236.: 205).

Entendamos o banimento racial como singularidade da antinegritude à qual a vida negra é atada (Sharpe, 2016SHARPE, Cristina. 2016. In the wake: on blackness and being. Durham, NC, Duke University Press.), neste continuum da plantation como lógica (Borges, 2020BORGES, Antonádia. 2020. “Very rural background: os desafios da composição-terra da África do Sul e do Zimbábue à chamada educação superior”. Revista de Antropologia, vol. 63, n. 3: e178183. DOI https://www.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2020.178183
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) que se estende à política habitacional como produção de desabitação (Gutterres, 2016GUTTERRES, Anelise. 2016. “O rumor e o terror na construção de territórios de vulnerabilidade na Zona Portuária do Rio de Janeiro”. Mana - Estudos de Antropologia Social, vol. 22, n. 1: 179-209. DOI https://www.doi.org/10.1590/0104-93132016v22n1p179
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), à cidade como espraiamento de enclaves brancos, à desumanização dos corpos negros desempregados (Wynter, 2021WYNTER, Sylvia. [1994] 2021. “Nenhum Humano Envolvido: Carta Aberta a colegas”. Tradução de Stella Z. Paterniani com colaboração de Patricia D. Fox. In: BARZAGHI, C.; PATERNIANI, S.; ARIAS, A. Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo, crocodilo/n-1, 71-100.). Enquanto singularidade, a antinegritude se mantém estruturando a cidade e a política habitacional (Alves, 2020ALVES, Jaime Amparo. 2020. “Biópolis, necrópolis, negrópolis: notas para um novo léxico político nos estudos socioespaciais sobre o racismo”. Geopauta, vol. 4, n. 1: 5-33. DOI https://www.doi.org/10.22481/rg.v4i1.6161
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; Vargas, 2020VARGAS, João Costa. 2020. “Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade”. Em Pauta, vol. 45. n. 18: 16-26. DOI https://www.doi.org/10.12957/rep.2020.47201
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).

SÃO PAULO CIDADE NEGRA

A vida, a casa e o corpo de Nelson, que se desloca pela cidade fazendo ocupações, visitando amigos, resistindo à truculência policial, tendo de esperar na delegacia, participando de protestos, de reuniões e de audiências públicas, não cabem em perímetros definidos de maneira apriorística. Desde sua infância, sua casa de taipa não é a casa hermética, discreta, mas a casa consubstancial (Borges, Paterniani e Belisário, 2021BORGES, Antonádia; PATERNIANI, Stella Z.; BELISÁRIO, Gustavo. Habitação precária, gente promíscua: a branquidade-heterossexualidade do Estado via política habitacional e o futuro do cortiço-quilombo. 2021. Anais do 45o Encontro Anual da Anpocs. GT18 - Etnografias do Capitalismo: Pessoas no(s) Mundo(s).), cuja construção e cujo material de construção vão sendo produzidos enquanto nela já se mora. Em sua vida não cabe uma noção de espaço cartesiana, com seus perímetros bem delimitados.

Em nossas caminhadas, Nelson me ia apresentando a cidade. Houve um dia em que fui até a ocupação Mauá encontrá-lo. Iríamos acompanhar uma audiência pública na Câmara de Vereadores. Nossa rota foi caminhar da ocupação Mauá até a Câmara. Caminhamos por toda a avenida Cásper Líbero, cruzamos o Viaduto do Chá e a praça do Patriarca.Chegamos ao Terminal Bandeira,e descíamos suas rampas olhando para océu, os altos prédios espelhados, os prédios antigos cobertos de pixo. Nossa rota não foi a mais curta para chegar a nosso destino. Caminhávamos, e ele me apontava os prédios, sugerindo que eu imaginasse como seria se eles fossem ocupados: “Imagina, Stella, a gente botando nosso pessoal todinho nesses prédios?”. Numa espécie de ficção especulativa, éramos comparsas no desenho de outra cidade, imaginando nossa cidade ocupada.

Até que Nelson me apontou um prédio e disse: “imagina os sem-teto naquele prédio, Stella. Quer dizer, nem imagina, não, que eu vou te contar que a gente já ocupou aquele prédio”. E, como numa “visão profética do passado” - esse modo de produzir memória que define o futuro fora de quaisquer prescrições fornecidas pelas histórias nacionais, como formulou Édouard Glissant (1989GLISSANT, Édouard. 1989. Caribbean Discourse: Selected Essays. Charlottesville, University Press of Virginia.: 64) -, me contou como foi. Contou como foi derrubar o muro da vergonha, como foi organizar para as pessoas entrarem, para impedir a entrada da polícia, como foi sair para buscar um fogão e fazer café, chá e um sopão para esquentar, passar a primeira noite em claro, limpar o prédio nos dias e noites seguintes, tirar entulho, tirar rato e pomba, sofrer com pulgas e o cheiro do mofo, estender colchõezinhos para as crianças dormirem e revezar em turnos quem ficava, quem dormia e quem precisava sair para trabalhar.

Nossa caminhada poderia ter se estendido até a praça da Liberdade, e Nelson poderia ter me dito para imaginar, a despeito das histórias fornecidas pelos arquivos coloniais (Hartman, 2020HARTMAN, Saidiya. 2020. “Vênus em dois atos”. Trad. de Fernanda Silva e Sousa e Marcelo R. S. Ribeiro. Eco-Pós, vol. 23, n. 3: 12-33. DOI https://www.doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640
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): “imagina, Stella, quer dizer, nem imagina, não, que vou te contar como já ocupamos a praça”. E me contaria como pessoas teriam ali se reunido para pensar os rumos de suas vidas, séculos atrás, desfazendo as forcas e os castigos exemplares. Nelson me contaria que o nome, Liberdade, viera de um homem escravizado que teria desafiado seu destino ao não morrer na forca, levando pessoas a aclamarem-no com gritos por liberdade e as forcas se desmantelarem, matéria não resistindo ao entrelaçamento do tempo e do espaço. Teríamos passado pela Praça João Mendes, onde por sobre o pelourinho era agora o coltan, e não as chibatadas, que marcavam os corpos negros.

Nossa caminhada poderia também se estender ao Largo do Paissandu, à igreja do Rosário dos Homens Pretos e à estátua da Mãe Preta. Ele não me contaria que a igreja original fora desapropriada e demolida, no final do século XIX, como as casas do seu entorno. Diria que a igreja sempre estivera ali, ainda que demolida e reconstruída em sua localização atual. Lembraria que ao lado da igreja original havia também um cemitério, onde pessoas eram enterradas em cerimônias com músicas, cantos e tambores, com pilões de madeira socando a terra das covas, e diria que se não há mais cemitério ao lado da igreja, isso não quer dizer que seus mortos não continuem se aglomerando, dançando e se escorando ali na estátua da Mãe Preta.

Poderíamos também ter caminhado até a Praça do Patriarca José Bonifácio de Andrada e Silva, onde Nelson me corrigiria sobre a nome da praça: Dandara, em homenagem à liderança do quilombo de Palmares. Jaime Alves (2018ALVES, Jaime Amparo. 2018. The Anti-Black City: Police terror and black urban life in Brazil. Minneapolis, University of Minnesota Press.) já contou a performance de rebatismo da praça pelas Mães de Maio4 4 Mães de Maio é um movimento social formado por mães que tiveram seus filhos assassinados ou desaparecidos pela polícia em São Paulo entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, na chacina que ficou conhecida como Crimes de Maio. , que espalhou pela praça fotografias de jovens assassinados, trazendo para o centro da cidade a denúncia das práticas necropolíticas da branquidade do Estado: uma contra-representação da nação que a denuncia como comunidade imaginada branca num espaço tornado negro (Alves, 2018ALVES, Jaime Amparo. 2018. The Anti-Black City: Police terror and black urban life in Brazil. Minneapolis, University of Minnesota Press.). Em suas palavras:

Um grupo de jovens mulheres atravessava a praça enquanto duas delas subiam uma escada para cobrir a estátua do patriarca com uma bandeira do movimento negro. “De agora em diante”, uma das mulheres gritava à multidão, “essa é a praça da nossa líder, a matriarca Dandara, a praça da luta pela liberdade, a praça de denúncia do genocídio do nosso povo e da nossa história”. Então, uma das mães nos conduziu a uma performance coletiva. Fotografias dos mortos e velas foram distribuídas entre os manifestantes, e ela pediu que acendêssemos as velas conforme ela chamava os nomes das centenas de mortos nos Crimes de Maio, seguidos pelos nomes das favelas onde as mortes aconteceram. Ela concluiu explicando o porquê de estarmos naquela praça naquela noite: “A morte dos nossos filhos não pode ter sido em vão. Estamos aqui pelos mortos de ontem, pelos mortos de hoje, e pelos mortos de amanhã. Crimes de Maio, crimes de junho, crimes de sempre.” Outra jovem mulher negra entoou uma canção enquanto um grupo de mães cravava cruzes por sobre os cartazes com as fotografias de seus filhos (Alves, 2018ALVES, Jaime Amparo. 2018. The Anti-Black City: Police terror and black urban life in Brazil. Minneapolis, University of Minnesota Press.: 332, tradução minha).

Em nossa caminhada poderíamos ter descido pelo bueiro do cruzamento das ruas Una e Almirante Marques de Leão, onde um pedestre atento, se ousar desafiar os carros, pode agachar, ouvir e ver pela fresta minúscula do bueiro, correndo, o Saracura canalizado. Poderíamos ter descido para nadar de braçadas e, com o peso de nossos corpos, fazer a água do rio transbordar por sobre o asfalto da Rua Rocha, inundando o Bexiga. Tornaríamos o cortiço Navio Parado embarcação pirata, surfando pelo rio Nove de Julho. Teríamos de tomar cuidado com nossas cabeças ao cruzar a Rua da Assembleia. Os Arcos do Jânio5 5 Para uma contextualização e análise desde uma perspectiva crítica da branquidade sobre os debates envolvendo os Arcos do Jânio, ver Paterniani (2019). provocariam ondulações na água impiedosa e experimentaríamos manobras e acrobacias por entre os tijolos.

Experimento chamar a noção de espaço que Nelson me apresenta de afrofuturista, tomando emprestado o termo consolidado no mundo das artes para caracterizar criações artísticas que exploram futuros possíveis para pessoas negras por meio da ficção especulativa (Dery, 1994DERY, Mark. 1994. Black to the future: Interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose. Durham e Londres, Duke University Press.; Delany, 1984DELANY, Samuel. 1984. 1984: Selected Letters. [s/l], Voyant Pub.; Freitas e Messias, 2018FREITAS, Kênia; MESSIAS, José. 2018. “O futuro será negro ou não será: Afrofuturismo versus Afropessimismo - as distopias do presente”. Imagofagia - Revista de la Asociación de Estudios de Cine y Audiovisual, 17: 402-424.) e respaldada pela reivindicação de intelectuais, artistas e ativistas de que, via ficção científica, é possível imaginar o mundo para além da miséria do presentismo. Trata-se da recusa da distopia presentista, da recusa do monopólio branco sobre o tempo e trata-se de reconhecer a imaginação das

gentes Pretas escravizadas, a quem foi dito que seria “irrealista” imaginar um dia em que elas não seriam chamadas propriedade. Essas pessoas Pretas recusaram a confinar seus sonhos ao realismo, e em vez disso elas nos sonharam. Assim elas curvaram a realidade, reformularam o mundo, para criar-nos. (Imarisha, 2015IMARISHA, Walidah. 2015. Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. Trad. de jota mombaça. São Paulo, Oficina Imaginação Política/ Fundação Bienal de São Paulo.: 8).

Afrofuturismo é esse movimento de recriar o passado, transformar o presente e projetar um novo futuro negro de modo que os regimes temporais se entrelacem (Freitas e Messias, 2018FREITAS, Kênia; MESSIAS, José. 2018. “O futuro será negro ou não será: Afrofuturismo versus Afropessimismo - as distopias do presente”. Imagofagia - Revista de la Asociación de Estudios de Cine y Audiovisual, 17: 402-424.). Antonio Bispo dos Santos se pergunta: “onde começam e terminam o passado e o presente e onde começa o futuro?” (Santos, 2015SANTOS, Antonio Bispo dos. 2015. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: INCTI/ UnB/ INCT/ CNPq/ MCTI.: 19). Achille Mbembe (2017MBEMBE, Achille. 2017. Critique of Black Reason. Durham, Duke University Press.) afirma um duplo de criação e morte, e a coetaneidade dos tempos, que ele atribui ao dualismo da negritude:

(…) há, também, um dualismo manifesto na negritude. Em uma reversão espetacular, ela se torna o símbolo de um desejo consciente de vida, uma força que brota, vigorosa e plástica, plenamente comprometida com o ato de criação e capaz de viver em meio a diferentes temporalidades e várias histórias coetaneamente. (Mbembe, 2017MBEMBE, Achille. 2017. Critique of Black Reason. Durham, Duke University Press.: 6-7, tradução minha)

Trata-se de produzir passado, presente e futuro, ou seja, fazer história e fazer mundo de modo a reconhecer a matriz antinegra como estruturadora do mundo, mas não reduzir a vida negra à experiência de sofrimento e usurpação. Na caminhada afrofuturista pela cidade, Nelson me convoca a recusar uma concepção de espaço linear, chata, com perímetros oficiais e limites estatais. Convoca-me a partilhar de uma concepção de espaço onde se coadunam tempos e histórias. A perspectiva afrofuturista que Nelson me apresenta engendra o reconhecimento da antinegritude, isto é, da violência colonial e da desumanização da plantation como existente para além do tempo cronológico das administrações coloniais e das plantações, e se engaja na produção de um passado, presente e futuro que reconheça esses elementos históricos, mas que se recuse a reduzir a história a tais elementos. Tal perspectiva afrofuturista opera, assim, na coetaneidade dos tempos da plantation e da ontologia combativa (Mafeje, 2008MAFEJE, Archie. 2008. “A commentary on anthropology and Africa”. Codesria Bulletin, n. 3-4: 88-94.) do corpo afropindorâmico (Santos, 2015SANTOS, Antonio Bispo dos. 2015. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: INCTI/ UnB/ INCT/ CNPq/ MCTI.) ou amefricano (Gonzalez, 1988GONZALEZ, Lélia. 1988. “A categoria político-cultural de amefricanidade”. Tempo Brasileiro, n. 92/93: 69-82.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vida de Nelson exige que escapemos das asfixias conceituais da brancopia. Nelson nasceu no interior da Bahia, numa família de cortadores de cana. Adulto, migra para São Paulo. Vai morar de favor, em cortiço, torna-se trabalhador, desempregado, fica meses em situação de rua e, anos depois dessa chegada, um amigo o indica procurar uma ocupação. Essa ocupação, um prédio no centro da cidade, o recebe. Nelson vive e mora na luta, o que envolve confrontar a polícia, levar bomba de gás, ser preso, mediar conflitos entre vizinhos, carregar fogão pela Avenida Paulista, visualizar a cidade afrofuturista transtópica enquanto caminha até a Câmara dos Vereadores para uma audiência pública, em suma, circular pela cidade visitando amigos e fazendo a luta, em ocupações de prédio e de terra.

A caminhada afrofuturista com Nelson e o exercício que propus aqui a partir dela se contrapõem à brancopia (Alves, 2020ALVES, Jaime Amparo. 2020. “Biópolis, necrópolis, negrópolis: notas para um novo léxico político nos estudos socioespaciais sobre o racismo”. Geopauta, vol. 4, n. 1: 5-33. DOI https://www.doi.org/10.22481/rg.v4i1.6161
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), isto é, à produção do mundo antinegro da branquidade. Essa brancopia se expressa tanto na produção acadêmica sobre as ocupações como no modo de ocupar a cidade. Na produção acadêmica, a brancopia se expressa por meio do não reconhecimento das relações sociais como racializadas e da matriz antinegra como aspecto fundante da formação das cidades brasileiras. Isso conduz à obliteração das diferenças ontológicas e epistemológicas entre branco e negro. No modo de ocupar a cidade, por meio do que denominei branquidade do Estado (Paterniani, 2019PATERNIANI, Stella Zagatto. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.), que tem, entre algumas de suas expressões, a criminalização, a destruição e a aniquilação de modos de vida, casas e corpos que não se enquadram na perpetuação da brancopia (Alves, 2018ALVES, Jaime Amparo. 2018. The Anti-Black City: Police terror and black urban life in Brazil. Minneapolis, University of Minnesota Press.) - o cortiço, a favela, o quilombo (Campos, 2005CAMPOS, Andrelino. 2005. Do quilombo à favela: a produção do “espaço criminalizado”. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.; Valladares, 2000).

Busquei estabelecer a crítica da branquidade na economia política da urbanização a partir do diagnóstico da produção do trabalhador incolor na produção dos estudos urbanos sobre São Paulo. A desconsideração da matriz antinegra, da racialização das relações sociais e da existência do corpo negro conduz a pesquisar brancos tornados universais, trabalhadores fe(i)tiches (Latour, 2002LATOUR, Bruno. 2002. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru, EDUSC.). Essa universalização do corpo branco como humanidade opera com a pressuposição dos corpos incolores, cuja compreensão e produção também se espraiam na cidade pressuposta incolor. Esta, por sua vez, num movimento de retroalimentação, é a extensão do corpo branco.

Nesse movimento, são excluídos da humanidade - e da legibilidade estatal - as mulheres negras e os homens negros, as pessoas que não partilham do corpo-hermético da branquidade, mas cujos corpos contêm outros corpos, como o corpo de Kelli. Silvestre (2018), Pereira (2015PEREIRA, Gabriela Leandro. 2015. Corpo, discurso e território: a cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus. Salvador, tese de doutorado, Universidade Federal da Bahia.) e Kelli nos indicam também o equívoco do gênero na equivocação controlada-dissenso de trabalhador. Na lógica da branquidade, tornar-se trabalhador vincula-se a tornar seu corpo discreto, não partilhado com outros corpos. Vincula-se também à posse de um documento, assim como tornar-se proprietário de terra também se vincula à documentação sobre aquela terra, como Helena nos lembrou.

Trouxe, por fim, alguns elementos de práxis negra, tanto na feitura da cidade vista aos olhos brancos - a construção de monumentos e ferrovias - como na própria permanência do corpo e da casa negra na cidade. Ainda, e sobretudo, na práxis negra de criação da cidade - nas ocupações em si, nas práticas prefigurativas dentro das ocupações, na deambulação pela cidade e nas visitas a amigos e outras ocupações, e nas práticas de imaginação que denominei afrofuturistas - que não é capturada pela brancopia.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Nelson da Cruz e Souza, Antonádia Borges, Jaime Amparo Alves, Sophie Oldfield, Suely Kofes, Joaze Bernardino-Costa e Gustavo Belisário (e todes es gestantes) pelos diálogos, orientações e sugestões. Agradeço aos pareceristas anônimos pela generosidade e pelo rigor na interlocução, fundamentais para este artigo atingir sua forma final.

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    » https://doi.org/https://www.doi.org/10.1080/14742837.2013.870883
  • 1
    Este artigo é uma ampliação de argumentos apresentados em minha tese de doutorado (Paterniani, 2019PATERNIANI, Stella Zagatto. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.).
  • 2
    Para uma apresentação esmiuçada das diferenças entre reunião, atividade de formação e assembleia, veja Paterniani, 2013PATERNIANI, Stella Zagatto. 2013. Política, fabulação e a ocupação Mauá: etnografia de uma experiência. Campinas, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas..
  • 3
    “O desentendimento não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto. É o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco mas não entende a mesma coisa, ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa com o nome de brancura” (Rancière, 1996RANCIÈRE, Jacques. 1996. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo, Editora 34.: 11).
  • 4
    Mães de Maio é um movimento social formado por mães que tiveram seus filhos assassinados ou desaparecidos pela polícia em São Paulo entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, na chacina que ficou conhecida como Crimes de Maio.
  • 5
    Para uma contextualização e análise desde uma perspectiva crítica da branquidade sobre os debates envolvendo os Arcos do Jânio, ver Paterniani (2019)PATERNIANI, Stella Zagatto. 2019. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por moradia. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília..
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica
  • FINANCIAMENTO:

    A pesquisa que originou o artigo recebeu financiamento da Fapesp (Processo 10/13604-3), do CNPq (Processo 141098/2014-7) e da CAPES (Processo PDSE 88881.132589/2016-01).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2021
  • Aceito
    03 Fev 2022
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
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