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“E o fuzil, tu vende pra quem?”: Os diferentes significados da corrupção entre candidatos à carreira de policial militar no Rio de Janeiro

And the rifle, who do you sell to?”: The different meanings of corruption for candidates who want to join the military police force in Rio de Janeiro

“¿Y a quién le vendes el rifle?”: Los diferentes significados de la corrupción entre los candidatos a la carrera de policía militar en Río de Janeiro

RESUMO

A estruturação de diferentes mercados ilegais imprescinde da participação de agentes públicos de segurança na sua operação. No tocante ao Brasil, tal fato é parte daquilo que comumente denomina-se “corrupção policial”. Muitas análises que se debruçaram sobre o tema encaram acorrupção enquanto desvio de certas normas sociais instituídas, que, no caso das polícias, seriam tributárias de problemas ligados à formação recebida pelos policiais e, principalmente, ao saber prático das ruas. O presente artigo, todavia, sugere um olhar diferente sobre o problema, que se constrói a partir de pesquisa etnográfica junto candidatos à carreira de policial militar anteriormente a qualquer contato formal com a corporação. Tomada enquanto resultado de processos de “classificação social”, a corrupção é uma categoria dinâmica nutrida por “moralidades situacionais” que permitem a agência dos sujeitos. Sendo assim, que moralidades informam diferentes significados de corrupção para candidatos àcarreira de policial militar no Rio de Janeiro?

PALAVRAS CHAVE:
Corrupção; polícia; formação policial; moralidades; mercadorias políticas

ABSTRACT

The structure of different illegal markets requires the participation of law enforcement agents in their operation. In Brazil, this is part of what is known as “police corruption”. Many works on this topic consider corruption as a deviation from established norms, which is explained, in relation to the police, due to problems related to the training received by the recruits at the academy and, mainly, to the police subculture learned on the streets. The present article, however, suggests a different approach to the problem. It is based on an ethnographic research with candidates for the military police career prior to any formal contact with the force. Taken as a result of “social classification” processes, corruption is a dynamic category nurtured by “situational moralities” that permit the agency of social actors. What are the different meanings of corruption for candidates who want to join the military police in Rio de Janeiro?

KEYWORDS:
Corruption; police; police education; moralities; political merchandise

RESUMEN

La estructuración de diferentes mercados ilegales requiere la participación de agentes de seguridad pública en su operación. En lo que respecta a Brasil, este hecho forma parte de lo que comúnmente se denomina “corrupción policial”. Muchos análisis que se han centrado en el tema ven la corrupción como una desviación de ciertas normas sociales establecidas, que, en el caso de la policía, sería el resultado de problemas relacionados con la formación recibida por los agentes de policía y, principalmente, con el conocimiento práctico de la policía em las calles. Este artículo, sin embargo, sugiere una mirada diferente al problema, que se construye a partir de una investigación etnográfica con candidatos a la carrera de policía militar antes de cualquier contacto formal con la corporación. Tomada como resultado de procesos de “clasificación social”, la corrupción es una categoría dinámica alimentada por “moralidades situacionales” que permiten la agencia de los sujetos. Por tanto, ¿qué moralidades informan los diferentes significados de la corrupción para los candidatos a la carrera de policía militar en Río de Janeiro?

PALABRAS CLAVE:
Corrupción; policía; formación policial; moralidades; mercancías políticas

INTRODUÇÃO

A estruturação de diferentes mercados ilegais imprescinde da participação de agentes públicos de segurança na sua operação. Como argumenta Misse (2010bMISSE, Michel. 2010b. “Trocas ilícitas e mercadorias políticas: para uma interpretação de trocas ilícitas e moralmente reprováveis cuja persistência e abrangência no Brasil nos causam incômodos também teóricos”. Anuário Antropológico, v. 35, n. 2: 89-107. DOI https://doi.org/10.4000/aa.916.
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: 101), a dinâmica desses mercados é animada através da conversão da ilegalidade em mercadoria negociável, onde bens e serviços monopolizados pela soberania do Estado passam a ser privadamente oferecidos sobretudo através da mediação de policiais. No contexto particular do Brasil, tal fato é parte daquilo que Poncioni (2012PONCIONI, Paula. 2012. “Políticas Públicas para a educação policial no Brasil: propostas e realizações”. Estudos de Sociologia, v. 17, n. 33: 315-331.: 315) identifica como uma suposta“crise nas polícias”. Para a autora, alguns sintomas dessa crise poderiam ser apreendidos, por um lado, pelos resultados insuficientes obtidos para o enfrentamento da violência e da criminalidade em nosso país, como também pelas práticas policiais predominantemente violentas e arbitrárias no cotidiano das ruas1 1 Para um balanço geral e síntese dos principais desafios enfrentados no campo da segurança pública brasileira, ver Adorno (2002) e o segundo capítulo de Lemgruber, Musumeci e Cano (2003). Para um debate semelhante no recorte específico do Rio de Janeiro (contexto no qual o presente artigo se insere), ver Soares e Sento-Sé (2000). Para a retomada de alguns pontos da discussão com uma contextualização mais atual da problemática, ver a primeira parte de Soares (2019). .

Nesse contexto, um problema muito comum identificado enquanto ponto central na explicação do nosso cenário de violência e crime está ligado ao que habitualmente denomina-se “corrupção policial” (Beato, 2012BEATO, Claúdio. 2012. “Corrupção Policial”. In: AVRITZER, Leonardo; BIGNOTTO, Newton; GUIMARÃES, Juarez; STARLING, Heloísa Maria M (orgs.). Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte, Editora UFMG , pp. 335-340.: 335). Tal categoria, de caráter bastante amplo e polissêmico, é evocada geralmente na descrição de diferentes comportamentos desviantes por parte de policiais e outros agentes de segurança, que dizem respeito ao envolvimento com o tráfico de drogas ou milicianos, extorsão, abusos de autoridade, agressão e maus-tratos, homicídios, justiçamento, execuções, entre tantos outros crimes (Lemgruber, Musumeci, Cano, 2003).

Não é nenhuma novidade, portanto, que parte significativa dos brasileiros já tenha experienciado alguma prática de corrupção ou violência no seu contato com policiais. A situação é ainda mais crítica no que toca os quadros oriundos das polícias militares, dado o papel desses profissionais no policiamento ostensivo cotidiano. De acordo com a última “Pesquisa Nacional de Vitimização”, realizada em 2012, 34,3% dos brasileiros viventes em cidades com mais de 15 mil habitantes têm “muito medo” de sofrer alguma violência por parte da Polícia Militar (Crisp, Senasp e Datafolha, 2013CRISP, SENASP, DATAFOLHA. 2013. Pesquisa Nacional de Vitimização. Sumário Executivo SENASP. Brasília: Secretaria Nacional de Segurança Pública. Disponível em: Disponível em: https://www.crisp.ufmg.br/wp-content/ uploads/2013/10/Sumario_SENASP_final.pdf . Acesso em 28/10/2020.
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: 26). No tocante a algumas práticas de corrupção como “extorsão e pagamento de propina”, a mesma pesquisa aponta particularmente a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) como a possuidora da pior imagem pública diante da população. Enquanto, em média, 2,6% dos brasileiros já sofreram extorsão ou tiveram que pagar propina a PMs, aproximadamente 7% dos cariocas e fluminenses sofreram tais crimes no contato com a PMERJ (idem: 32).

Ademais, Zilli (2017ZILLI, Luís Filipe. 2017. “Percepções e avaliações da população sobre instituições e serviços de segurança pública no Brasil”. In: BRANDÃO, A. J. L.; BAPTISTA, Gustavo C.; ENGEL, Cíntina Liara. Estudos sobre vitimização. Brasília, Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública, pp. 233-286.: 251) nos mostra que um dos maiores sintomas da imagem negativa das polícias se traduz igualmente pelos baixíssimos índices de confiança da população nessas mesmas instituições. Dados trabalhados pelo autor mostram que, em média, apenas 18% dos brasileiros confiam plenamente nas polícias militares, enquanto 16,7% creditam fé absoluta nas polícias civis. O cenário é ainda mais desolador quando o Rio de Janeiro passa novamente a ser referência: a confiança plena na PMERJ cai para apenas 10,8% dos entrevistados, enquanto a Polícia Civil fluminense é digna de qualquer insuspeição para 14% da população do estado (idem: 252).

Tal cenário pavimenta caminho para que o debate sobre “corrupção policial” no Brasil seja direcionado para a responsabilização dos infratores, ou seja, para se saber afinal “de quem é a culpa da corrupção” (Nascimento, 2017NASCIMENTO, Andréa Ana. 2017. “Desvio e impunidade nas instituições policiais do Rio de Janeiro”. Dilemas Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 10, n. 1: 64-82.: 71). Estabelece-se assim uma certa sinergia nos discursos proferidos pela opinião pública e pelas instituições policiais. Como alerta Kant de Lima (2003KANT DE LIMA, Roberto. 2003. “Direitos civis, Estado de direito e ‘cultura policial’: a formação policial em questão”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 11, n. 41: 73-92.: 76), a enorme tolerância pública com a violência policial é acompanhada pela exigência de medidas rigorosas no combate à corrupção dos policiais. Segundo o autor, tal raciocínio ambíguo torna-se problemático quando ele não consegue vislumbrar que ambas as práticas têm sido, em todo o mundo, “irmãs siamesas” que retroalimentam suas próprias dinâmicas, vitimizando não somente a população, como também os policiais de modo geral.

Do ponto de vista nativo, os policiais procuram explicar a corrupção a partir de argumentos complementares. No tocante ao controle interno, Silva (2010: 36) aponta que as Corregedorias de Polícia acabam por assumir uma perspectiva moralizante ao definir a corrupção enquanto fenômeno meramente individual de algumas “maçãs podres”, derivada de maus policiais que já entram para a polícia na intenção de “levar vantagem”. Da mesma forma, Kant de Lima (2003KANT DE LIMA, Roberto. 2003. “Direitos civis, Estado de direito e ‘cultura policial’: a formação policial em questão”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 11, n. 41: 73-92.: 76) identifica outra assertiva (geralmente defendida por policiais mais progressistas dentro das corporações) de que a truculência e a corrupção seriam problemas ligados principalmente à “formação policial”, ou seja, às questões que dizem respeito aos currículos e práticas pedagógicas adotadas nas academias. Ademais, o levantamento feito por Nascimento (2017NASCIMENTO, Andréa Ana. 2017. “Desvio e impunidade nas instituições policiais do Rio de Janeiro”. Dilemas Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 10, n. 1: 64-82.: 77-78) consegue sistematizar outras razões dadas pelos agentes para explicar práticas corruptas, a exemplo dos baixos salários recebidos, as precárias condições de trabalho, o contato com uma sociedade que é também corrupta, a convivência com policiais corruptos durante a socialização no trabalho, entre outras.

Todavia, o que parece ser um ponto comum entre as experiências “próxima” e “distante” (Geertz, 1997: 87-88) da corrupção, isto é, o que aproxima o ponto de vista da maioria dos policiais, acadêmicos e da própria opinião pública em geral, é a compreensão da corrupção enquanto “desvio” de alguma regra. Autores como Blundo (2007BLUNDO, Giorgio. 2007. “Hidden Acts, Open Talks. How Anthropology Can ‘Observe’ and Describe Corruption”. In: PARU IN NUIJTEN, Monique e ANDERS, Gehard (orgs.). Corruption and the Secret of the Law: a Legal Anthropological Perspective. Aldershot, Ashgate, pp. 27-52.: 28) e Modesto (2018MODESTO, João Gabriel Nunes. 2018. “Por que corruptos são corruptos?: Propositura e apresentação de evidências do Modelo Analítico da Corrupção ”. Brasília, Tese de doutorado, Universidade de Brasília.: 18) apontam que a maioria das definições conceituais sobre corrupção tendem a considerá-la como algum tipo de transgressão a certas normas (morais e legais) estabelecidas2 2 Na literatura especializada brasileira, bons exemplos dessa abordagem podem ser encontrados nas coletâneas de ensaios organizadas por Leite (1987) e Arvritzer et alii. (2012). . Argumento semelhante é também partilhado por Gupta (1995GUPTA, Akhil. 1995. “Blurred Boundaries: the Discourse of Corruption, the Culture of Politics, and the Imagined State”. American Ethnologist, v. 22, n. 2: 375-402. DOI https://doi.org/10.1525/ae.1995.22.2.02a00090.
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: 388), para quem o discurso comumente contraposto ao discurso da corrupção é o da “prestação de contas” (accountability).

Sendo um fenômeno dotado de múltiplos significados e diferentes formas de abordagem disciplinar3 3 Foge aos propósitos do artigo um debate teóricometodológico mais exaustivo sobre o tema. Como referência, ver, respectivamente, os trabalhos já citados de Nascimento (2017) e Modesto (2018) para uma revisão teórico-conceitual nas ciências sociais e na psicologia social, bem como as contribuições de Blundo (2007) sobre os desafios metodológicos em trabalhar a corrupção notadamente no campo da antropologia. , o presente artigo4 4 O texto é resultado dos debates e sugestões feitos durante o 44º Encontro Anual da ANPOCS no “Grupo de Trabalho 24: Mercados ilícitos e dinâmicas criminais”. Agradeço a todos os colegas que participaram do GT e que, de alguma forma, contribuíram para o amadurecimento de algumas reflexões contidas aqui. Agradeço também aos dois pareceristas anônimos da Revista de Antropologia da USP pelas sugestões pertinentes que foram incorporadas à versão final do artigo. sugere um olhar um pouco diferente sobre a corrupção policial a partir de duas perspectivas complementares. Em primeiro lugar, do ponto de vista teórico, o artigo se afasta dos estudos que enxergam a corrupção enquanto algum tipo de “desvio” ao procurar vislumbrar tais práticas dentro de um universo de “moralidades situacionalmente localizadas” (Eilbaum, 2012EILBAUM, Lucía. 2012. “O bairro fala: conflitos, moralidades e justiça no conurbano bonaerense ”. São Paulo, Hucitec/Anpocs.). Considerando o alerta endereçado por Misse (2010bMISSE, Michel. 2010b. “Trocas ilícitas e mercadorias políticas: para uma interpretação de trocas ilícitas e moralmente reprováveis cuja persistência e abrangência no Brasil nos causam incômodos também teóricos”. Anuário Antropológico, v. 35, n. 2: 89-107. DOI https://doi.org/10.4000/aa.916.
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: 99) sobre a necessidade analítica de se abstrair uma possível dimensão moralizante dos mercados ilegais, sugiro realizar uma leitura sobre esses mercados através de discursos nativos que deslocam os sentidos de certo/errado no que toca a potencial justificação dessas práticas ilegais (Topalli, 2005TOPALLI, Volkan. 2005. “When being good is bad: an expansion of neutralization theory”. Criminology, v. 43, n. 3: 797-836. DOI https://doi.org/10.1111/j.0011-1348.2005.00024.x.
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). Ao ser colocada em perspectiva etnográfica, a corrupção perde seu caráter disfuncional enquanto transgressão para assumir, com efeito, o papel de norma na prática cotidiana de alguns dos meus interlocutores.

Todavia, mais do que apenas analisar quais argumentos são mobilizados neste deslocamento simbólico, o objetivo central do artigo é compreender os distintos significados da corrupção mobilizados neste percurso para possíveis futuros policiais militares no Rio de Janeiro. Como procurarei mostrar, tais sentidos estão relacionados tanto às suas trajetórias individuais e histórias de vida, quanto às representações e expectativas coletivas acerca da carreira policial antes mesmo de qualquer contato formal com a corporação. Busco, com isso, perceber como tais moralidades transparecem não só um caráter situacional prévio à entrada na PMERJ, como também sua função enquanto “gramática moral” (Werneck, 2014WERNECK, Alexandre. 2014. “Sociologia da moral, agência social e criatividade”. In: WERNECK, Alexandre e CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto (orgs.) Pensando bem: estudos e sociologia e antropologia da moral. 1ª ed. Rio de Janeiro, Casa da Palavra , pp. 21-43.: 21) que permite a agência dos candidatos no seu possível futuro na corporação.

Em segundo lugar, do ponto de vista empírico, procuro relativizar o diagnóstico sobre o papel que geralmente é dado à formação e ao saber prático das ruas sobre a problemática da “corrupção policial”. Meu argumento é balizado em dados construídos através do trabalho de campo da minha tese de doutorado - realizado presencialmente por 10 meses junto a candidatos ao próximo concurso de “soldado” da PMERJ (e, exclusivamente a distância, entre março e setembro de 2020, por conta da pandemia da COVID-19)5 5 É importante deixar bem claro que meus interlocutores não são policiais militares e nem tampouco recrutas ainda em fase de treinamento nas academias de polícia. Eles são, em sua grande maioria, homens cis jovens, nãobrancos, com idade entre 18 e 30 anos, moradores de favelas e bairros pobres da capital fluminense e que desejam, por diferentes razões, entrar para o círculo das praças da PMERJ. . Realizei uma observação participante onde atuei como “monitor” das disciplinas de Ciências Humanas cobradas no concurso6 6 Por conta da minha formação enquanto licenciado e mestre em geografia, bem como doutorando em antropologia, meu contato inicial com os candidatos geralmente se deu através do auxílio na preparação para o concurso da PMERJ. . Ao longo de 2019-2020, acompanhei o cotidiano discente em sala de aula no “cursinho” e em outros espaços de convivência presencial e virtual dos candidatos. Numa dessas ocasiões, pude testemunhar um embate entre dois deles - Pablo e Daniel7 7 Para a segurança dos meus interlocutores, todos os nomes de pessoas, locais e batalhões de polícia são fictícios. - sobre o que fazer com o “espólio de guerra”: categoria nativa que faz referência aos objetos de valor (majoritariamente armas, drogas e dinheiro) que são apreendidos através de ações de “violência extralegal” (Telles e Hirata, 2010TELLES, Vera da Silva e HIRATA, Daniel Veloso. 2010. “Ilegalismos e jogos de poder em São Paulo”. Tempo Social, v. 22, n. 2: 39-59. DOI https://doi.org/10.1590/S0103-20702010000200003.
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: 43) durante uma operação policial. Dotados de trajetórias de vida muito distintas (enquanto Pablo é filho de um policial militar reformado, Daniel foi assaltante e é egresso do sistema prisional), o artigo explora o referido diálogo enquanto unidade analítica na compreensão de diferentes significados da corrupção, tendo como base observações e conversas com outros candidatos em diferentes situações ao longo do período do trabalho de campo.

Por fim, é importante sublinhar que o significado da categoria “espólio de guerra” é compreendido particularmente desta maneira no recorte do Rio de Janeiro, mas mais especificamente através das ações da polícia em favelas da sua Região Metropolitana (RMRJ). Essas ações de pilhagem de territórios, que permitem aos agentes auferir distintos ganhos no escopo da “produtividade policial” (Albernaz, 2020ALBERNAZ, Elizabete. 2020. “Economiaspolíticas marginais: produtividade policial, vizinhanças radicais e a (re)produção cotidiana das desigualdades em uma favela de Niterói-RJ”. Antropolítica Revista Contemporânea De Antropologia, n. 50: 116-138. DOI https://doi.org/10.22409/antropolitica2020.i50.a42704.
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), estabelecem diferenças importantes das forças policiais fluminenses para outros estados do país. O fato de o artigo estar deliberadamente centrado no referido recorte revela, por um lado, seus limites - uma vez que os significados da corrupção acerca do “espólio” se inscrevem com mais força no universo policial do Rio de Janeiro, mas, igualmente, suas potencialidades - dado a carência de estudos sobre a participação das polícias na operação de mercados ilegais e redes de proteção segundo a abordagem sugerida.

Assim como a dinâmica do tráfico varejista de drogas no Rio de Janeiro (Barbosa, 1998BARBOSA, Antônio Rafael. 1998. Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Niterói, Editora da UFF.; Machado da Silva, 2008MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. 2008. Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.; Grillo, 2013GRILLO, Carolina Christoph. 2013. Coisas da vida no crime: tráfico e roubo em favelas cariocas. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.; Silva, 2019SILVA, Gabriel Borges da. 2019. “‘Quantos ainda vão morrer, eu não sei’: o regime do arbítrio, curtição, morte e a vida em um lugar chamado favela ”. Niterói, Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense.; entre outros) é diferente de outros lugares do Brasil a exemplo de Alagoas (Rodrigues, 2020RODRIGUES, Fernando de Jesus. 2020. “‘Corro com o PCC’, ‘corro com o CV’, ‘sou do crime’”: Facções, sistema socioeducativo e os governos do ilícito em Alagoas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 102: 1-21. DOI https://doi.org/10.1590/3510216/2020.
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), Belém (Couto, 2013COUTO, Aiala Colares. 2013. “Redes criminosas e organização local do tráfico de drogas na periferia de Belém”. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 5, n. 1: 2-13. DOI: https://doi.org/10.29377/rebesp.v5i1.137.
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), da região da fronteira sul brasileira (Rivero e Chies, 2020RIVERO, Samuel Malafaia e CHIES, Luiz Antônio Bogo. 2020. “Facções e cena criminal na Zona Sul do Rio Grande do Sul”. Anais do 44º Encontro Anual da Anpocs. Evento online, Anpocs.) e de São Paulo (Dias, 2011DIAS, Camila Nunes. 2011. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. São Paulo, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.; Hirata, 2014HIRATA, Daniel Veloso. 2014. “O ponto e a biqueira: notas para a construção de um conceito”. In: BARREIRA, César et al. (orgs.). Violência, ilegalismos e lugares morais. Campinas, Pontes Editores.; Biondi, 2018BIONDI, Karina. 2018. Junto e misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo, Terceiro Nome.; Feltran, 2018FELTRAN, Gabriel. 2018. Irmãos: uma história do PCC. São Paulo, Companhia das Letras.; entre outros), a ação das polícias, neste sentido, é também variável a depender da escala de análise a ser considerada. O artigo trata, portanto, de uma possível contribuição fundamentada no problema da diferença - objeto este que é de fundamental interesse para o campo antropológico.

UMA MANHÃ QUALQUER NO “CURSINHO”

O relógio passava das oito quando o professor iniciou sua aula de “técnicas de redação”. Duas vezes por semana no turno da manhã e da noite, e aos sábados durante todo o dia, repito religiosamente a rotina de assistir todas as aulas preparatórias oferecidas para a próxima prova da PMERJ8 8 Nos últimos dois concursos para “soldado” (2010 e 2014), a PMERJ exigiu dos candidatos conhecimentos nas seguintes disciplinas: Língua Portuguesa Instrumental, Redação, História, Geografia, Sociologia, Legislação de Trânsito, Direitos Humanos e Informática. No “cursinho” onde realizei meu campo, cada turma tinha aulas com duração de três horas de duas a três vezes por semana, durante um período de, no mínimo, três meses consecutivos. Todavia, geralmente os candidatos que viraram meus principais interlocutores permaneceram no curso por um período de tempo mais longo, o que permitiu conhecê-los para além dos limites da sala de aula. . Procuro chegar sempre antes do início dos trabalhos para acompanhar melhor a chegada do professor e dos próprios candidatos - bem como as conversas, em caráter bastante informal, que antecedem a rotina mais focada nos estudos. Aquela manhã havia se iniciado como uma manhã qualquer no “cursinho”.

Volta e meia, era comum os professores se utilizarem de alguns recursos para despertar ou manter a atenção dos candidatos nos conteúdos das disciplinas. Eu, enquanto professor da rede básica de ensino, sabia muito bem que contar uma piada ou uma anedota podem ser recursos valiosos na prática cotidiana docente. Mas para que tais performances funcionem, é de suma importância conhecer o público para o qual a aula é direcionada. No caso de um curso voltado para possíveis futuros PMs, o raciocínio não é diferente. Muitos professores contavam histórias e piadas relacionadas ao universo militar e policial - algumas de cunho autobiográfico, dado que parte dos docentes tinha passagem prévia pelas Forças Armadas (FFAA) ou até mesmo por alguma força policial9 9 Os conteúdos destas intervenções eram diversos. Mas vale a pena destacar que boa parte deles ia ao encontro das representações e expectativas prévias da maioria dos candidatos sobre a carreira policial. Era muito comum não só a contação de histórias fantásticas de tiroteios e perseguições, o poder que a arma e a farda exercem sobre as mulheres, o relato de prisões ou mesmo execuções de criminosos, mas também piadas que satirizavam a temática dos “Direitos Humanos” e da “corrupção policial”. Chamo atenção, entretanto, para o fato de tais práticas não me parecerem casos isolados quando se trata de preparatórios para a carreira policial. Além de já ter testemunhado situações semelhantes ao longo da minha trajetória enquanto professor, desde pelo menos o ano de 2019 vários vídeos de aulas ministradas pelo curso Alfacon - cujo foco maior é a preparação de candidatos para a entrada em diferentes forças policiais pelo Brasil - foram compartilhados na internet. Nos vídeos, é possível acompanhar aulas onde professores defendem explicitamente o extermínio de criminosos e seus filhos, sugerindo tortura e disseminando piadas de cunho machista e homofóbico para sujeitos que sequer são policiais. O conteúdo ofensivo dos vídeos levou inclusive alguns deputados a protocolar, em outubro de 2020, um pedido de investigação do Alfacon na Procuradoria-Geral da República (Alves, 2020). Como referência jornalística sobre as polêmicas envolvendo o referido “cursinho”, ver a cobertura feita por Santos e Mendonça (2020). . O professor em questão era egresso do Exército e detinha um vocabulário dotado de inúmeras categorias da caserna. Ao comentar uma questão de prova qualquer, para falar das alternativas “A”, “B”, “C” ou “D”, utilizava o alfabeto internacional da OTAN (o mesmo que as FFAA e as polícias utilizam em todo o mundo) na hora da correção: “qual a resposta então, soldados? ‘Alfa’, ‘Beta’, ‘Charlie’ ou ‘Delta’?” - ele comumente dizia.

Outras vezes, histórias da sua juventude de soldado eram narradas. Naquela manhã em específico, após contar uma delas e voltar ao conteúdo da aula, um candidato perguntou a ele sobre possíveis temas que poderiam ser cobrados na redação do concurso. Iniciou-se um pequeno brainstorm de temas, até que um outro candidato sugeriu que a banca do concurso poderia cobrar algo sobre a “flexibilização do porte de armas” para civis - um tema bastante em voga na época do campo pela posição pró-armamento do presidente Jair Bolsonaro. A apatia da turma foi rompida pela pronta iniciativa em debater o assunto, mesmo sem qualquer incentivo do professor. Diferentes opiniões foram proferidas, em grande medida não só pela ampla flexibilização da legislação armamentista para civis, como também para a própria ampliação do tipo de armamento permitido para uso particular dos policiais. Chamou minha atenção o conhecimento dos candidatos sobre o universo das armas. Formaram-se pequenas conversas paralelas sobre fabricantes, munições, calibres, o poder de fogo e até alguns defeitos comuns que certas marcas e modelos apresentam. Em meio a quase duas dezenas de candidatos a debater entre si o tema espontaneamente, o professor se mostrou surpreso e em tom jocoso, sem abandonar, entretanto, a formalidade da palavra que lhe era habitual, perguntou a turma:

Senhores, senhores! Estou vendo a animação dos senhores em debater esse assunto que, sim, pode ser tema da nossa prova. Que alegria essa “vibração”! Vejo inclusive que a maioria aqui já tem muita informação sobre o tema. Mas como isso é possível? Alguém por aqui já segurou numa arma? Alguém aqui já atirou?

A maioria dos candidatos que respondeu afirmativamente ao professor (pouco mais da metade dos presentes) o fizera da mesma forma: o punho cerrado em riste, com as costas das mãos para trás e o cotovelo realizando um ângulo reto entre o braço e o antebraço. Era assim que militares geralmente respondiam a “chamada” ou pediam para fazer alguma intervenção em sala de aula ou em outro local de instrução. Tal gesto, de maneira um pouco diferente, era também percebido em várias fotos que os candidatos postavam em suas redes sociais. Sob a atenção das lentes, o punho cerrado era deslocado para a altura do peito, em posição lateral, com as costas das mãos viradas para cima. O cotovelo levemente flexionado desenhava um ângulo agudo entre o braço e o antebraço do candidato, reposicionando o próprio punho de maneira a fornecer ao corpo uma imagética mais agressiva, como se ele estivesse “pronto para a briga”10 10 Agradeço particularmente ao colega Leonardo Ramos pelos comentários pertinentes acerca das minhas notas de campo. Tais comentários foram fundamentais na compreensão dessas e outras ações por parte dos candidatos. . Era assim também que vários PMs e membros das FFAA posavam para algumas das suas fotos - especialmente com outros amigos militares e policiais em momentos de descontração.

Um número considerável de candidatos já tinha socialização prévia em alguma instituição militar por já terem sido soldados, cabos ou até mesmo sargentos da Aeronáutica, Marinha, mas, principalmente, do Exército. Em alguma medida, alguns valores simbólicos conformantes do “Espírito Militar” (Castro, 2004CASTRO, Celso. [1990] 2004. O espírito militar: um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.) não eram novidade para eles. Na verdade, dar continuidade à carreira militar após dar “baixa” nas FFAA era uma das principais motivações de entrada na PMERJ para uma parte importante dos candidatos. Muitos ali já tiveram contato com diferentes armamentos e, tratando-se do contexto do Rio de Janeiro, muitos deles inclusive já haviam realizado ações de policiamento ostensivo no tocante a diferentes operações de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO) (Zaverucha, 2010ZAVERUCHA, Jorge. 2010. “A doutrina da garantia da lei e da ordem e o crescente envolvimento das Forças Armadas em atividades de segurança pública”. In: KANT DE LIMA, Roberto; EILBAUM, Lucía; PIRES, Lenin (Orgs.). Conflitos, Direitos e Moralidades em Perspectiva Comparada. 1ª ed. Rio de Janeiro, Garamond, v. II, pp. 11-49.) no âmbito da “Intervenção Federal” na segurança pública do estado11 11 O Decreto n.º 9288 de 16 de fevereiro de 2018 promulgou a Intervenção Federal na pasta da segurança pública no estado do Rio de Janeiro. Durante o referido ano, todas as ações da pasta foram comandadas por um interventor indicado pelo então presidente Michel Temer. A medida colocou o general do Exército Walter Souza Braga Netto no comando simultâneo da Polícia Militar, da Polícia Civil e do Corpo de Bombeiros, estando ele subordinado apenas ao Presidente da República. Nesse contexto, várias ações de GLO em auxílio às polícias foram realizadas particularmente nos municípios que compõem a RMRJ, mobilizando um contingente de milhares de militares - entre eles alguns dos meus interlocutores no campo. Para um amplo apanhado de informações e análises sobre a Intervenção Federal no Rio de Janeiro, ver os materiais disponibilizados pelo ”Observatório da Intervenção“ Disponível em http://www.observatoriodaintervencao.com.br. Acesso em 14 jul. 2021. . Mas me chamou a atenção o fato de dois deles - Pablo e Daniel - terem respondido afirmativamente ao professor embora ambos não tivessem qualquer contato anterior com as FFAA (com Pablo ritualizando também seu punho da mesma forma que os militares).

Isto estava ligado à trajetória de cada um dos candidatos. Mesmo sem ter qualquer contato formal prévio com as FFAA ou a polícia, Pablo é um jovem cujo pai é policial reformado da PMERJ com breve passagem pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE). Meu interlocutor veio de uma família de PMs. Não só o pai, como também o tio e alguns primos próximos são praças da corporação de diferentes patentes. Seu sonho, desde criança, é entrar para a polícia e seguir os mesmos passos do progenitor: “eu quero passar e ir prum batalhão bom, que tenha muita ‘trocação’ [de tiro]. Tipo no GAT [Grupamento de Ações Táticas] do 77º [batalhão]. Meu pai trabalhou lá muito tempo. Ele conta muita história, mano! Ser PM e não ter história pra contar não dá!”12 12 O GAT é o grupamento responsável por ações táticas que, no caso da RMRJ, geralmente são realizadas em favelas na jurisdição de um dado batalhão. O 77º Batalhão de Polícia Militar (BPM), por sua vez, se localiza numa das áreas de maior conflagração de conflitos entre policiais e varejistas de drogas na capital fluminense, com um dos mais altos índices de letalidade policial também. É importante perceber, em caráter introdutório, como o desejo de Pablo em ser do “GAT do 77º” parece informar algumas de suas representações e expectativas sobre a polícia antes mesmo da possível entrada na corporação. .

O universo policial foi assim algo sempre muito próximo do cotidiano de Pablo. As conversas entre seus parentes policiais em festas e encontros familiares comumente versavam sobre armas e outros temas afins, tendo ele sempre se interessado pelo assunto. Algumas vezes, Pablo chegou a ter autorização para tirar fotos e selfies portando pistolas e revólveres do pai, ou até mesmo atirar sob a supervisão dele. Seu conhecimento prematuro sobre certos mitos e rituais ligados à polícia não era, de forma alguma, algo gratuito.

Por outro lado, Daniel tem uma trajetória muito diferente. Mais velho que Pablo, ele foi durante o final da adolescência e início da maioridade assaltante. Trabalhava sempre de moto roubando pedestres e motoristas, e por vezes atuou também em conjunto com outros colegas em roubos de carga de caminhões. Passou quase dois anos preso preventivamente, foi inocentado e, quando reconquistou a liberdade, decidiu usar parte do dinheiro acumulado com os roubos para investir em outra carreira: a de motorista de van. Trabalhando num “esquema” de vans de transporte complementar, Daniel possui veículo próprio legalizado e mantém contato diário com PMs e outros agentes de segurança que regulam o seu trabalho13 13 A descrição do cotidiano de Daniel no universo das vans - com particular atenção para a “gestão dos ilegalismos” (Foucault, 2010) - pode ser encontrada em Rodrigues (2021b). . Pelo seu trabalho enquanto motorista, além de muitos conhecidos na corporação, ele possui também um amigo e vizinho que também dirigia uma van até conseguir entrar para a PMERJ. Sem dúvida, a trajetória desse amigo foi um referencial importante para a escolha de Daniel em querer entrar para a polícia.

Na verdade, ele me disse que há alguns anos sofre assédio por parte de PMs para tentar a prova. Além da rotina diária na van, Daniel trabalha no transporte de deputados, vereadores e suas comitivas no período de campanha durante o corpo-a-corpo com eleitores. Nessas ocasiões, junto com os candidatos e seus assessores, ele transporta também os seguranças da comitiva que, na maioria das vezes, são PMs fazendo “bico” (entre eles o seu próprio amigo, que inclusive arrumou esse trabalho para Daniel). Em tais encontros, vários policiais conversam sobre a “vida de PM” e as possibilidades que a carreira oferece: “Ô Eduardo, vou falar pra tu: uma arma, uma farda e uma carteira [funcional] abrem muitas portas” - ele diz. Uma das principais motivações para fazer o concurso é então “tentar melhorar de vida”, e que seus amigos e conhecidos na polícia podem ajudá-lo dentro da corporação de alguma forma, em especial, na sua leitura, na inserção em diferentes mercados ilegais presentes por todo o Rio de Janeiro (alguns que inclusive Daniel, enquanto motorista de van, experiencia no seu próprio cotidiano). Dada sua trajetória, o conhecimento prévio sobre armas, munições e outros elementos ligados ao universo policial não é também algo absolutamente novo.

PAPO DE PADARIA: UMA HISTÓRIA SOBRE O “ESPÓLIO DE GUERRA”

A aula prosseguiu sem maiores sobressaltos após o pequeno debate acerca das armas. Geralmente, mais para o meio da manhã, os professores davam um curto intervalo para que os candidatos pudessem tomar um café ou lanchar alguma coisa. Meus interlocutores mais próximos e eu costumávamos ir até uma padaria localizada na esquina da rua do curso para comer. Pedíamos café, acompanhado de pão na chapa e, eventualmente, alguém pedia também algum lanche acompanhado de suco artificial de fruta - o popular “salgado com refresco” na gíria popular carioca. Durante o intervalo, conversávamos sobre diferentes assuntos que englobavam não somente o concurso e as expectativas dos candidatos sobre a polícia, mas também tópicos comuns ligados ao cotidiano de qualquer jovem morador do subúrbio14 14 Sendo categoria polissêmica de difícil definição, o subúrbio carioca é aqui tomado na sua acepção mais consensual: um conjunto de bairros pobres localizado nas regiões periféricas da capital fluminense, atravessados pelas linhas de trem e simbolicamente distantes do que seria o “centro” da cidade. O subúrbio, todavia, no caso da minha pesquisa, apareceu na fala nativa enquanto região de enorme interesse dos candidatos para seu possível futuro trabalho na PMERJ. Sobre isso, ver Rodrigues (2021a). Para uma revisão bibliográfica acerca dos significados adquiridos pela categoria subúrbio carioca ao longo das últimas décadas, ver Guimarães e Davies (2018). .

Naquele dia, com a turma um pouco mais vazia, fomos à padaria apenas Pablo, Daniel e eu. A convivência entre os dois já dava profundos sinais de desgaste. Eles comumente não concordavam sobre várias questões que, volta e meia, atravessavam nossos debates sobre a futura “vida de polícia”. Para ficarmos apenas com um relato, a seguinte controvérsia aconteceu no mês anterior, durante uma aula de “Direitos Humanos”. Ao debater o artigo 5º da Constituição, o professor causou grande polêmica ao defender os direitos dos presos por conta das condições insalubres amplamente conhecidas nas prisões do Rio de Janeiro. Pablo e vários outros candidatos se mostraram indignados com a universalização dos direitos humanos, ao reforçar a tese, amplamente defendida no âmbito da PMERJ, sobre o caráter não-humano de algumas pessoas encaradas enquanto “bandidos” (Veríssimo, 2010VERÍSSIMO, Marcos. 2010. “Os humanos, os não-humanos e os direitos humanos: notas para um estudo sobre as moralidades presentes na Polícia Militar do Rio de Janeiro”. Anais do 34º Encontro Anual da Anpocs. Caxambu/MG, Anpocs.).

Daniel fora o único a discordar da turma. Em meio a uma discussão bastante acalorada, para reforçar seu argumento sobre as mazelas enfrentadas no cotidiano prisional, ele admitira que já havia sido preso e que sabia exatamente do que estava falando. A assertiva causou enorme constrangimento. Nas aulas seguintes, vários candidatos passaram a evitá-lo de alguma maneira, notadamente pela suspeição que a passagem pela prisão levantava para um possível futuro policial15 15 Na semana seguinte ao ocorrido, quando estávamos somente Pablo e eu num bar, conversávamos sobre meu trabalho e o assunto de Daniel voltou à tona. Pablo me perguntou: “porra irmão, tu vai ter que colocar na tese aquela merda que o Daniel falou?” Respondi que ainda não sabia (o que era verdade, afinal, naquela época eu não tinha uma ideia precisa sobre o que seria a tese e como eu trabalharia meus dados de campo), mas que aquilo era interessante pois mostrava “diferentes opiniões” sobre um assunto importante. Claramente incomodado, ele retrucou: “tô ligado nisso aí. Mas pô mano, na boa... não escreve isso aí não. Tu pode escrever muita coisa sobre a PM… mas isso aí vai manchar tua tese!”. A frase final de Pablo me pareceu evocar o argumento central da obra de Douglas (1991) no tocante à relação entre poluição e tabu. Para a autora, a poluição e a preocupação com o contágio são efeitos do contato direto com elementos anômalos que, por não poderem ser categorizados dentro de um esquema classificatório, acabam por revelar um sistema de tabus. Para Pablo, admitir alguém com passagem pela prisão nas fileiras da PMERJ era um tabu, uma vez que a presença de Daniel ameaçaria a pureza da corporação no seu exercício coletivo de construção identitária em contraposição à identidade impura de “bandido”. No entanto, como veremos a seguir, a própria categoria “bandido” possui diferentes significados para ambos os candidatos. . Pablo era um dos que mais antipatizava com Daniel, e a convivência entre eles, já há algumas semanas, só existia pela minha mediação. Ambos eram interlocutores muito importantes no campo, e minha proximidade com os dois acabava forçando uma certa aproximação em alguns momentos16 16 A convivência entre os dois foi parte de um problema metodológico maior ligado ao meu campo, que diz respeito ao jogo do “controle de impressões” não só por parte dos candidatos em relação a mim (e vice-versa), como também entre eles. De acordo com Berreman (1975: 143), a observação participante sempre implica algum nível de dissimulação entre todos os seus partícipes, uma vez que etnógrafos e nativos, a todo momento, procuram esconder e mostrar coisas, ou seja, trocar impressões entre si. Um resultado possível desse jogo são alguns constrangimentos que podem ocorrer no cotidiano do campo, como a situação analisada aqui procurará mostrar. .

No caminho para a padaria, Daniel me perguntou se eu já havia atirado alguma vez. Respondi de pronto: “cara, dar tiro até hoje eu só dei no paintball”. Nós três rimos e ele emendou, de maneira enigmática, para a minha surpresa e a de Pablo: “mais tarde vou te mandar um vídeo então” - dizendo em seguida que iria pagar uma conta na “lotérica” antes de comer. Pablo e eu ficamos na padaria para tomar café.

Nos sentamos numa mesa nos fundos do recinto, distante do balcão onde diversos clientes comiam lanches rápidos e bebiam café, refrigerantes e refrescos. A padaria estava bastante barulhenta por conta de algumas pessoas que conversavam animadamente sobre a última vitória do Flamengo na Copa Libertadores da América de 2019. Sendo flamenguista, Pablo estava muito empolgado com a campanha do time: “chega dessa porra de ‘cheirinho’ - ele bradava a cada excelente atuação rubro--negra nos gramados. Ele me contou que, na noite anterior, havia recebido alguns amigos em sua casa para, junto com o pai, fazer um churrasco enquanto assistiam ao jogo. Da conversa sobre futebol, o papo passou para as histórias de brigas de torcida que o pai tinha se envolvido na juventude e, de lá, para suas histórias sobre o “GAT do 77º”. Pablo me explica que o pai trabalhou no 77º BPM depois que saiu do BOPE. Pela prática de ostensividade junto aos “caveiras”, seu perfil voltado para o “combate” logo ganhou destaque no batalhão e o levou a integrar o GAT local por mais de dez anos 17 17 Diferentes trabalhos como Muniz (1999), Poncioni (2004), Albernaz (2010), Nascimento (2017), Ramos (2017), entre outros mostram como a PMERJ é uma instituição heterogênea sob diferentes aspectos. Do ponto de vista das funções dentro da polícia, existe toda uma gama de possibilidades de trabalho na carreira policial que englobam desde funções burocráticas internas aos batalhões, até divisões mais operativas de policiamento ostensivo como os GATs e PATAMOs (Patrulhamento Tático-Móvel). De modo geral, os PMs nunca exercem apenas uma função durante sua carreira profissional, sendo motivo de orgulho para eles que a profissão exija flexibilidade no desempenho do seu trabalho - sobretudo aquele desempenhado nas ruas (Muniz, 1999: 166). Uma fala bastante comum entre os PMs com os quais tive contato é de que “aqui na PMERJ, você tem que saber fazer de tudo”. Os candidatos também têm clareza quanto a isso, e suas expectativas sobre a polícia são também construídas sobre as possibilidades de inserção em cada uma dessas funções. Muitas vezes, tais expectativas começam a ser construídas pelo contato prévio que tais sujeitos têm com familiares, amigos, (ex)colegas de trabalho, conhecidos e vizinhos que já são policiais. É muito clara a maneira como, por exemplo, Pablo toma o pai enquanto principal referencial na polícia. Não é à toa que ele objetive seguir seus passos enquanto um quadro mais “operativo” da corporação, voltado para o “combate”. Já Daniel, por outro lado, embora não negue a possibilidade de, como ele mesmo diz, “ir pra guerra”, seu horizonte referencial compreende outros elementos mais próximos do seu cotidiano enquanto motorista de van, ou seja, ele objetiva trabalhar exercendo um policiamento mais voltado para a “pista” (Albernaz, 2014: 534), isto é, na administração do cotidiano das ruas. . Pablo me explica que existem “batalhões e batalhões” na polícia. Ele fala que o pai sempre diz que existem batalhões “bons pra dinheiro” e outros “bons pra guerra”, embora admita que, muitas vezes, ambos os campos de interesse se encontrem entrelaçados.

O que promove a ligadura entre dinheiro e guerra no universo policial diz respeito, em grande medida, ao que os próprios policiais chamam de “espólio de guerra”. Tanto Pablo quanto Daniel, por diferentes caminhos, têm clareza sobre os rendimentos envolvidos com o espólio do tráfico varejista - resultado direto das operações policiais realizadas em favelas no Rio de Janeiro. Pablo já ouviu inúmeras histórias do pai e de outros parentes sobre ganhos conseguidos pela apreensão ilegal de dinheiro, armas e drogas. Já Daniel, enquanto ex-assaltante e ex-morador de favela, já viu de perto os prejuízos causados por diversas “operações” ao tráfico local. Como argumentam Albernaz e Rodrigues (2022ALBERNAZ, Elizabete; RODRIGUES, Eduardo de Oliveira. 2022. “Operações policiais: um exercício multi-situado e multiescalar de regionalização dos impactos da violência armada em favelas durante a pandemia no Rio de Janeiro”. Farol: revista de estudos organizacionais e sociedade, n. 25. (no prelo)., no prelo), mais do que apenas uma categoria descritiva sobre ações táticas de repressão ao varejo de drogas, as operações policiais realizadas em favelas compreendem um amplo horizonte semântico de diferentes valores ligados ao universo policial. Embora seja um investimento de alto risco, os possíveis rendimentos obtidos permitem aos policiais não só acumular maiores quantias de capital simbólico dentro da corporação (sendo vistos como PMs corajosos, destemidos, “brabos”, “quebradores” ou mesmo “policiais de verdade”), como também significativas parcelas de capital econômico pela apreensão e revenda ilegal do espólio do tráfico.

Enquanto Pablo me relatava uma dessas histórias do pai, Daniel já havia retornado da “lotérica” e estava sentado conosco para comer. Ele ouvia em silêncio o relato de uma vez que o “GAT do 77º” havia “quebrado” quatro varejistas em uma favela da jurisdição do batalhão, conseguindo apreender dois fuzis, três pistolas, radiotransmissores, um saco com aproximadamente 5 mil reais e pequena quantidade de droga. Na delegacia, foi apresentado enquanto saldo da “operação” apenas duas pistolas, os rádios, os entorpecentes e um dos fuzis por conta do seu péssimo estado de conservação. Foi quando perguntei ao Pablo: “mas então eles pegaram e ‘entocaram’ o fuzil ‘bom’, a pistola e o dinheiro?”. Ele respondeu:

Foi. A pistola um colega do meu pai pegou pra ele, porque o cara disse que aquele “vagabundo” ele tinha “quebrado” sozinho. Ele falou que não ia dividir com ninguém não (risos). O fuzil eles pegaram e repassaram pra “banca” [do jogo do bicho]. Era um “AR” [15] novinho, zerado! Deram 30 mil na mão do meu pai, que ele dividiu com o GAT todo, junto com o dinheiro que eles pegaram da “boca” [de fumo].

Uma única operação rendeu ao grupo 35 mil reais que foram divididos igualmente entre os 5 PMs do grupamento tático. Pablo me explica que o destino das armas do espólio é variável. Por vezes, ele é direcionado a policiais que fazem a segurança de grupos ligados à contravenção do “jogo do bicho”. Outras vezes, existem armas que são consumidas por quadrilhas de milicianos conhecidas dos próprios policiais. Ou ainda, existem PMs que apreendem as armas e revendem para uma facção do tráfico rival - ou mesmo “sequestram” o armamento (embora o mais comum seja o “pedido de resgate” dos entorpecentes ou dos próprios traficantes presos) e exigem certa quantia, em contrapartida, para devolvê-lo. O destino da revenda é assim variável, dependendo de certos parâmetros inscritos em cada grupamento sobre o que seria o “certo” ou o “errado” a fazer com as apreensões.

Mesmo tratando-se de ações de caráter fundamentalmente ilegal, o que parece permitir ou constranger a agência dos sujeitos em tais situações não é um sentido ligado ao cumprimento ou não da lei, mas sim as moralidades envolvidas em cada situação. Como esclarece novamente Kant de Lima (2019KANT DE LIMA, Roberto. [1995] 2019. A polícia na cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. 3ª ed. rev. Rio de Janeiro, Publicação Independente.: 57), as atividades policiais cotidianas organizam-se geralmente de acordo com os princípios de uma “ética policial”, ou seja, de um conjunto extraoficial de regras produzidas e reproduzidas pelo processo tradicional de transmissão de conhecimento18 18 Embora o autor fale de uma “ética policial” baseado em dados construídos a partir da Polícia Civil fluminense, vários outros trabalhos chamam a atenção para a enorme flexibilidade e particularização das práticas dos PMs sobre o policiamento cotidiano. Tal fato sugere, neste sentido, a existência de uma “ética policial” própria, de caráter extraoficial, quando falamos da PMERJ também. Sobre isso, ver principalmente a segunda parte da tese de Muniz (1999) sobre a “cultura policial das ruas”. . Segundo o autor, tais princípios morais não são aplicados uniformemente, uma vez que existem formas particulares de definição sobre o que seria uma “conduta apropriada” a ser obedecida pelos policiais. Ela pode variar de batalhão para batalhão, de companhia para companhia, ou mesmo, em algumas situações específicas, de policial para policial.

No âmbito da “ética policial”, a maneira como a corrupção é potencialmente encarada pelos agentes aponta para um processo de “normalização” da categoria nos moldes sugeridos por Das (2016DAS, Veena. 2016. “The Boundaries of the ‘We:’ Cruelty, Responsibility and Forms of Life”.Critical Horizons, v. 17, n. 2: 168-185. DOI https://doi.org/10.1080/14409917.2016.1153888.
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). A corrupção é vista enquanto conjunto de práticas e discursos contingentes ao cotidiano dos agentes, sendo, muitas vezes, justificada como algo necessário para o bom cumprimento das atividades de patrulhamento. As justificativas para práticas de corrupção mobilizadas em cada uma dessas situações serão informadas pelos preceitos morais de cada um desses sujeitos - muito embora boa parte desses preceitos sejam compartilhados coletivamente através de uma “ética” que orienta o trabalho da polícia.

Mas é importante deixar claro, como argumenta Topalli (2005TOPALLI, Volkan. 2005. “When being good is bad: an expansion of neutralization theory”. Criminology, v. 43, n. 3: 797-836. DOI https://doi.org/10.1111/j.0011-1348.2005.00024.x.
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: 823), que não existem parâmetros morais universais a informar uma única noção do que seria o “certo” ou o “errado” a fazer. Do ponto de vista de vários candidatos com os quais convivi, essas justificativas não se explicam através de possíveis “técnicas de neutralização” (Skyes e Matza, 1957) para mitigar algum sentimento de culpa. Pelo contrário: as justificativas morais mobilizadas pelos candidatos eram voltadas para reafirmar o possível descumprimento deliberado de certas leis consideradas equivocadas, injustas ou até mesmo deliberadamente “anti-polícia”. Quero dizer, em outras palavras, que alguns dos meus interlocutores pensam que agir ilegalmente, a depender da situação considerada, é a melhor forma não só de exercer um patrulhamento mais eficiente das ruas do Rio de Janeiro, como, igualmente, construir uma futura reputação respeitável diante dos seus pares quando dentro da corporação19 19 Este raciocínio faz referência ao esforço de Topalli (2005) em ampliar a “teoria da neutralização” a partir do seu trabalho junto a hardcore offenders. Nesta pesquisa, o autor trabalhou com interlocutores dotados de códigos morais diferentes dos jovens infratores de classe média originalmente trabalhados por Skyes e Matza (1957). Em meu campo, encontrei situações semelhantes no tocante a práticas de corrupção e quando alguns candidatos apontavam a necessidade ou mesmo o prazer em possivelmente produzir medo em bandidos e até em outros futuros colegas de farda para manter o “respeito” quanto à sua imagem pública. Para isso, obviamente, algumas ações não poderiam seguir uma orientação legal plena, ou mesmo uma “ética policial” pautada pela garantia de direitos básicos à população. Sobre esse debate, ver o trabalho de Ramos (2017) sobre as categorias “medo” e “respeito” entre PMs. Para um debate sociológico sobre os prazeres ligados ao crime, ver Katz (1988). .

Com efeito, penso que a apropriação dos candidatos sobre a categoria corrupção evoca o problema das “moralidades situacionais” inscrito em Eilbaum (2012EILBAUM, Lucía. 2012. “O bairro fala: conflitos, moralidades e justiça no conurbano bonaerense ”. São Paulo, Hucitec/Anpocs.: 379), isto é, os “valores e interesses que são informados por relações sociais, histórias de vida, perspectivas profissionais, posições institucionais, etc, (...) que orientam a tomada de decisões em casos específicos”. É o contexto que, muitas vezes, produzirá os sentidos e apropriações particulares da “ética policial” por parte não só dos PMs, mas também dos possíveis futuros policiais que já conseguem ter uma leitura prévia sobre a referida ética antes mesmo da entrada na corporação. A primeira parte do embate entre os dois candidatos talvez ilustre bem meu argumento.

“E O FUZIL, TU VENDE PRA QUEM?”

Quando terminou de ouvir o relato, Daniel se mostrou bastante surpreso. Calmamente, ele deu um longo gole no café que esfriava sobre a mesa e fitou Pablo nos olhos. Minha impressão era de que, por alguns instantes, todos os sons da padaria haviam emudecido. Ali, diante de mim, estavam apenas dois possíveis futuros PMs a cavar entre si uma trincheira moral cada vez mais profunda. Com seu jeito enérgico de falar, Daniel foi direto ao ponto, sem meandros, perguntando a Pablo algo que havia me passado pela cabeça também: “Quer dizer então que tu acha mesmo que vai pegar 5 mil da boca e um ‘bico’ [fuzil] e não vai virar bandido também? Que porra é essa? Tu vai ser tão bandido como o cara, só que tu vai estar de farda!”.

O semblante de Pablo imediatamente se fechou. A testa franzida, a respiração acelerada e os lábios entreabertos a mostrar parte dos dentes denunciavam seu descontento. Sua resposta veio no mesmo tom da pergunta de Daniel:

Bandido? Bandido é o caralho! Te botam pra subir favela, pra defender uma sociedade hipócrita que cheira, fuma e financia esses “merdas” e o PM que é bandido? Tu tá na “trocação” [de tiro] firme com o “vagabundo”, ele “doidinho” pra te matar. Daí tu pega ele e vai fazer o que? Prender pra chegar no juiz e ele soltar? Se der, eu vou matar! Mais um vagabundo de “CPF cancelado”. E se tiver dinheiro na “boca” eu vou pegar, é óbvio! Isso aí é dinheiro sujo, que esses “merdas” ganham dos viciados.

Pablo procurou justificar os crimes cometidos de diferentes maneiras. “Bandido” ou “vagabundo” para ele é o traficante - o “inimigo” a ser combatido pelas polícias que é fruto de um processo histórico de “sujeição criminal” (Misse, 2010aMISSE, Michel. 2010a. “Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria ‘bandido’”. Lua Nova, n. 79: 15-38. DOI https://doi.org/10.1590/S0102-64452010000100003.
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), ou seja, de construção social de uma subjetividade sobre esses sujeitos que se reconhece e é reconhecida enquanto criminosa. A partir dela, a “sociedade” é também vista enquanto cúmplice, ao financiar o tráfico varejista e obrigar o policial a defendê-la - embora tal esforço e risco não sejam devidamente reconhecidos. Na leitura nativa, o dinheiro do espólio, visto enquanto “dinheiro sujo”, funcionaria como uma espécie de “compensação” pelos trabalhos não reconhecidos do policial que, ao ser embolsado e gasto para fins moralmente mais nobres (como o consumo de bens pelo PM ou mesmo por sua família), sofreria um processo de “decantação simbólica” que levaria à sua purificação20 20 Embora o dinheiro embolsado pelo espólio, na visão dos candidatos, nem sempre seja gasto em atividades “moralmente mais nobres” como o conforto da família do policial, é curioso o consenso entre eles sobre o caráter impuro deste tipo de dinheiro. Um outro candidato que tive contato, evangélico, ao se deparar com os dilemas éticos entre sua fé e a corrupção policial, me confessou que ofertará para sua igreja todo o dinheiro ganho que não seja fruto do seu salário. Para ele, o dinheiro poderia ser convertido assim como as pessoas, dentro de uma lógica moral informada pelo binarismo “bem/mal” percebido também por Albernaz (2010) entre PMs evangélicos. Trata-se, neste sentido, de uma “moeda especial” (Zelizer, 2013) dotada de significados sociais particulares para os meus interlocutores. . Ademais, a própria execução de criminosos, fartamente defendida por Pablo e tantos outros candidatos, é justificada enquanto solução para a ineficiência ou mesmo corrupção do Sistema de Justiça em punir os supostos criminosos. Não executar um bandido, a partir desta margem moral, é visto muito mais como “erro” do que “acerto” quanto a uma possível leitura situacional da “ética policial”.

Por outro lado, Daniel tinha uma visão muito diferente da questão. Por vezes, ele me relatara casos de abuso policial cometidos contra moradores da sua favela cujo único crime era ser “envolvido” (Cecchetto, Muniz e Monteiro, 2018CECCHETTO, Fátima Regina; MUNIZ, Jacqueline de Oliveira; MONTEIRO, Rodrigo de Araujo. 2018. “Basta tá do lado - a construção social do envolvido com o crime”. Caderno CRH , v. 31, n. 82: 99-116. DOI https://doi.org/10.1590/S0103-49792018000100007.
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). Ou ainda, ele narrara vários casos de corrupção e violência - muitas vezes tratando-se de execuções sumárias perpetradas contra bandidos desarmados - originadas pela quebra de acordos ou traições por parte dos policiais:

olha, o que eu conheço de caso de PM filha da puta... os caras sequestram o bandido, ligam pedindo resgate. A família paga e o PM vai lá e mata o cara. Ou prende o cara, depois “desenrola” 21 21 Sobre a categoria “desenrolo”, ver (Grillo et alii, 2011). pra soltar. Daí pega o dinheiro dele e depois leva preso. Tem PM que é pior que bandido!.

Para Daniel, era muito importante ser “sujeito homem” com ou sem farda, isto é, cumprir com sua palavra, agir “pelo certo” (Grillo, 2014GRILLO, Carolina Christoph. 2014. “Pelo certo: o direito informal do tráfico em favelas cariocas”. In: WERNECK, Alexandre; CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto (orgs.) Pensando bem: estudos e sociologia e antropologia da moral. 1ª ed. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, pp. 337-366.; Feltran, 2018FELTRAN, Gabriel. 2018. Irmãos: uma história do PCC. São Paulo, Companhia das Letras.) e não fazer nenhum ato de covardia com ninguém - inclusive contra traficantes. Ele me explica: “se me derem tiro e eu pegar, vou matar também. Agora, se vier ‘na moral’, tem ‘desenrolo’. Se eu ‘desenrolo’ contigo, tipo: ‘quero 100 mil pra te soltar’. Se tu paga, tá tranquilo, filho! Não quero nem tua arma nem tua droga. Segue em paz”.

Me pareceu muito claro que as diferentes formas de agir durante uma possível operação policial eram tributárias de moralidades situacionalmente localizadas pelos dois candidatos. Elas eram fruto da trajetória de vida de cada um deles e das suas próprias representações prévias sobre o que seria o trabalho da polícia ou da própria “ética policial”. Como dito anteriormente, enquanto um deles é oriundo de uma família de PMs, o outro é um ex-assaltante que continua a ser um sujeito liminar ao “mundo do crime” (Feltran, 2008FELTRAN, Gabriel. 2008. “O legítimo em disputa: As fronteiras do ‘mundo do crime’ nas periferias de São Paulo”. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social [Online], v. 1, n. 1: 93-126.: 93). O embate entre os dois permitiu perceber não só o caráter situacional dessas moralidades, mas também como elas agem no sentido de possibilitar o empreendimento das próprias ações de tais sujeitos. Ao tomar a situação em questão enquanto unidade analítica, defendo que tais moralidades sejam encaradas enquanto forma de compreender o que torna uma situação social numa situação efetiva, ou seja, na maneira como ela acontece e como ela é uma ação potencialmente geradora de efeitos e consequências (Werneck, 2014WERNECK, Alexandre. 2014. “Sociologia da moral, agência social e criatividade”. In: WERNECK, Alexandre e CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto (orgs.) Pensando bem: estudos e sociologia e antropologia da moral. 1ª ed. Rio de Janeiro, Casa da Palavra , pp. 21-43.: 30).

Passando para segunda parte do embate, uma aproximação entre moral e agência me parece adequada na compreensão do que os dois fariam, afinal, com o “espólio de guerra”. Em determinado momento, quando a discussão se desdobrou sobre esse tópico, Pablo perguntou ao colega: “O dinheiro da ‘boca’ tu disse que pega. Mas e o fuzil, tu vende pra quem?”. Ambos os candidatos não negaram a possibilidade de tomada do espólio para si. A grande diferença entre os dois é que enquanto Daniel não via maiores problemas em revender as armas para os próprios varejistas, para Pablo isso era absolutamente inadmissível. Em outras palavras, tal ação era vista por ele enquanto um “tabu” (Douglas, 1991DOUGLAS, Mary. [1976] 1991. Pureza e Perigo. Lisboa, Edições 70.: 67).

Em várias ocasiões, ele reproduziu o argumento dos seus familiares de que na PMERJ hoje em dia “tinha muito policial merda”, uma vez que os conluios entre PMs e traficantes nas formas de negociação de diferentes “mercadorias políticas” (Misse, 2010bMISSE, Michel. 2010b. “Trocas ilícitas e mercadorias políticas: para uma interpretação de trocas ilícitas e moralmente reprováveis cuja persistência e abrangência no Brasil nos causam incômodos também teóricos”. Anuário Antropológico, v. 35, n. 2: 89-107. DOI https://doi.org/10.4000/aa.916.
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) eram crescentemente comuns. Para ele, esse tipo de PM era o “PMganso” - categoria também oriunda do universo policial que reforça a criminalização de certos sujeitos pela aparência, local de moradia, pela forma de falar, andar, mas, sobretudo, pelo seu suposto envolvimento com a venda e/ou o consumo de drogas ilícitas (Cruz e Costa, 2019CRUZ, Fernanda Novaes e COSTA, Perla Alves. 2019. “Ganso por todo lado: Análises sobre as representações dos usuários de drogas pelos policiais militares do Estado do Rio de Janeiro”. Paper apresentado no 43° Encontro Anual da Anpocs. Anais do 43º Encontro Anual da Anpocs. Caxambu/MG: Anpocs.). Na leitura de Pablo, seria muito melhor vender as armas para milicianos ou mesmo para a “banca do jogo do bicho”, uma vez que “tu sabe que [eles] não vão te dar tiro depois”.

Pablo criava assim uma taxonomia moral que tendia a aproximar de si milicianos e bicheiros por um lado, e afastar varejistas de drogas e outros bandidos por outro. Obviamente, o parâmetro que orientava tal categorização era a própria leitura dele sobre o que seria a polícia, em especial pelo exercício identitário fundante da corporação em se contrapor ao tráfico varejista. Tais moralidades permitiam a ele não ter qualquer constrangimento tanto em apreender ilegalmente armas do tráfico, como também revendê-las a milicianos e, principalmente, policiais ligados ao “jogo do bicho”22 22 A ligação entre as polícias e a contravenção carioca não é algo novo. O próprio pai de Pablo, durante o tempo em que esteve na “ativa” dentro da PMERJ, trabalhou de maneira próxima na segurança de bicheiros. No entanto, é interessante perceber, nos últimos anos, como diferentes grupos de milícia parecem ter ganho espaço nessa relação ao estabelecer alianças com bicheiros no controle sobre diferentes mercados ilegais no Rio de Janeiro. Sobre isso, ver o artigo de Labronici (2020). .

Da mesma forma, a lógica para Daniel, apesar de conteúdo distinto, seguia caminho semelhante. Seus parâmetros morais construídos no encontro com assaltantes, traficantes, agentes de segurança corruptos e outros criminosos permitia a ele não somente desfrutar do espólio, como também negociar as possíveis armas com os próprios traficantes (desde que ele cumprisse, todavia, com sua palavra - tomada enquanto sinônimo de honra na sua relação com o “mundo do crime”). Para ele, não havia grande diferença entre as práticas corruptas cometidas por policiais ou traficantes.

Seja como for, as discordâncias sobre o que fazer com o espólio acabaram rompendo definitivamente a relação entre os dois. Pablo levantou em silêncio e deixou Daniel e eu para trás. Voltamos também em silêncio, caminhando lado a lado em ritmo mais lento para não alcançá-lo até a entrada do “cursinho”. Antes de entrarmos, fiz questão de relembrar Daniel da sua promessa: “mano, não esquece de me mandar aquele vídeo depois, beleza?”. Ele apenas sorriu. Já passava do horário de reinício da aula. Os conteúdos sobre “técnicas de redação” já haviam recomeçado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A situação social analisada neste artigo procurou mostrar diferentes significados que a corrupção assume para candidatos à carreira de policial militar no Rio de Janeiro. Em concordância com Bezerra (2017BEZERRA, Marcos Otávio. 2017. “Corrupção e produção do Estado”. Revista Pós Ciências Sociais, v. 14, n. 27: 99-130. DOI http://dx.doi.org/10.18764/2236-9473.v14n27p99-130.
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: 126), me parece um equívoco conceber a corrupção enquanto um atributo inerente a pessoas ou instituições, como se ela fosse parte de uma essência ou mesmo de uma “ontologia” explicativa de diferentes “desvios” que atravessam a sociedade. A partir da análise do embate entre Pablo e Daniel, procurei demonstrar como a corrupção é resultante de processos de classificação social informados por moralidades situacionalmente localizadas, que permitem aos sujeitos agir de maneira distinta numa mesma situação - a exemplo do que fazer com o “espólio de guerra”. Assim como Pablo e Daniel, muitos outros candidatos com os quais convivi não se enxergam enquanto “corruptos” (ou ao menos não tão “corruptos” assim), embora admitam que o trabalho na polícia possivelmente envolverá ações que extrapolam os limites da legalidade.

De modo geral, me parece existir certos níveis de corrupção aceitáveis entre meus interlocutores, informados por parâmetros muito mais de ordem moral do que legal. Tais parâmetros, é importante dizer, são informados não somente pelas suas trajetórias individuais até a escolha em tentar o concurso de soldado da PMERJ, mas também pelas representações sociais sobre o que seria o trabalho de polícia e a própria “ética policial” antes mesmo da entrada na corporação. Não se trata, portanto, de meros “desvios” de ordem individual ou mesmo de algumas futuras “maçãs podres” no seio da polícia.

Isto faz com que certos candidatos achem inaceitável desfrutar do “espólio de guerra”, embora não enxerguem maiores problemas, por outro lado, em aceitar propinas no trânsito, parar a viatura na porta da padaria para oferecer proteção em troca de lanches, ou ainda pagar algum oficial superior para uma escala melhor de trabalho. Outros falam da expectativa em exercer funções estritamente operativas na polícia, com a participação em tiroteios, perseguições e até mesmo na eliminação e tortura física de bandidos. A entrada na polícia, segundo eles, seria uma ótima oportunidade para “matar gansos”. Existem ainda aqueles candidatos que acham absolutamente intolerável qualquer prática de corrupção, uma vez que eles se enxergam enquanto futuros policiais e “representantes da lei” em cada esquina.

O universo de valores simbólicos inerente às polícias militares é bastante heterogêneo. E as expectativas e representações dos candidatos acerca dele me parecem, com efeito, revelar essa referida complexidade no tocante à PMERJ. Embora trata-se de uma análise cujos limites se inscrevem no universo policial do Rio de Janeiro, a abordagem sugerida pelo trabalho aponta para um deslocamento do olhar sobre alguns problemas já amplamente diagnosticados por outros trabalhos sobre as polícias - a exemplo da corrupção. Em um momento no cenário nacional onde tais instituições assumem um papel cada vez maior de protagonismo político, estudos que procurem construir novas problemáticas e enquadramentos sobre as forças policiais talvez revelem, assim, dimensões até então não tão claras sobre os braços (e tentáculos) armados do Estado brasileiro.

Neste sentido, pelo que foi demonstrado até aqui, penso que, de maneira parcial, certas dimensões que conformariam o cenário de uma suposta “crise nas polícias” em nosso país - a exemplo da “corrupção policial” - não encontram seu terreno mais fértil apenas na formação e no saber prático adquirido nas ruas pelos agentes. A formação da identidade policial (que, no caso específico do meu trabalho, diz respeito à identidade de policial militar) me parece um processo dotado de continuidades mais profundas que não podem ser compreendidas a partir de uma leitura que enxergue os futuros recrutas enquanto “tábulas rasas”, ou seja, corações e mentes a serem conformados apenas pelos “processos rituais” (Turner, 2013TURNER, Victor. [1966] 2013. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis, Vozes .) ligados à formação e prática das polícias militares (Muniz, 1999MUNIZ, Jaqueline de O. 1999. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser. Cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.; Albuquerque & Machado, 2001ALBUQUERQUE, Carlos Linhares de; MACHADO, Eduardo Paes. 2001. “Sob o signo de Marte: modernização, ensino e ritos da instituição policial militar.” Sociologias, Porto Alegre, n. 5: 214-237. DOI https://doi.org/10.1590/S1517-45222001000100010.
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; Sá, 2002SÁ, Leonardo Damasceno de. 2002. Os Filhos do Estado. Rio de Janeiro, Relume Dumará.; Storani, 2006STORANI, Paulo. 2006. Vitória sobre a morte: a glória prometida: O “rito de passagem” na construção da identidade das operações especiais do BOPE/PMERJ. Niterói, Dissertação de Mestrado (Antropologia), Universidade Federal Fluminense.; Silva, 2011SILVA, Robson Rodrigues da. 2011. Entre a caserna e a rua: o dilema do “Pato”. Uma análise antropológica da instituição policial militar a partir da Academia de Polícia Militar D. João VI. Niterói/RJ, Editora da UFF.; entre tantos outros).

Pela descrição do embate entre Pablo e Daniel, procurei demonstrar (por meio do relato de um entre tantos outros casos com os quais tive contato em meu campo) a maneira dessas continuidades serem percebidas igualmente através dos diferentes significados nativos da corrupção. O conjunto de justificações dos candidatos para essas possíveis práticas demonstra de que modo tal “forma de vida” (form of life) (Das, 1998DAS, Veena. 1998. “Wittgenstein and Anthropology”. Annual Review of Anthropology, v. 27: 171-195. DOI https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.27.1.171.
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; 2016DAS, Veena. 2016. “The Boundaries of the ‘We:’ Cruelty, Responsibility and Forms of Life”.Critical Horizons, v. 17, n. 2: 168-185. DOI https://doi.org/10.1080/14409917.2016.1153888.
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) encontra-se fortemente institucionalizada no universo policial, sobretudo quando o relato revela como os candidatos interagirem com ela previamente à entrada na corporação pelo contato com PMs que são familiares, amigos, colegas, vizinhos, etc. em seu cotidiano.

Ao menos no caso do Rio de Janeiro, tornar-se policial militar não é uma escolha fruto do mero acaso para a maioria dos milhares de jovens que, a cada novo concurso, disputam uma vaga nas fileiras de soldados da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro23 23 O último concurso público para o cargo de soldado da PMERJ, realizado em 2014, teve 105.458 inscritos, dos quais 83.882 eram homens e 21.556 eram mulheres. .

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  • 1
    Para um balanço geral e síntese dos principais desafios enfrentados no campo da segurança pública brasileira, ver Adorno (2002ADORNO, Sérgio. 2002. “Crime e violência na sociedade brasileira contemporânea”. Jornal de Psicologia-PSI, n. 132: 7-8.) e o segundo capítulo de Lemgruber, Musumeci e Cano (2003LEMBRUGER, Julita; MUSUMECI, Leonarda; CANO, Ignacio. 2003. Quem vigia os vigias? Um estudo sobre controle externo da polícia no Brasil. Rio de Janeiro, Record.). Para um debate semelhante no recorte específico do Rio de Janeiro (contexto no qual o presente artigo se insere), ver Soares e Sento-Sé (2000SOARES, Luiz Eduardo; SENTO-SÉ, João Trajano. 2002. “Dilemas de um aprendizado difícil: Estado e segurança pública no Rio de Janeiro”. Projeto Mare-Capes - Reforma do Estado e Proteção Social - Subprojeto Segurança Pública, pp. 1-30. Disponível em: Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/uploads/2011/06/01-Estado-e-seguran%C3%A7a-p%C3%Bablica-no-Riode-Janeiro.pdf . Acesso em 15 de set. de 2020.
    https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/...
    ). Para a retomada de alguns pontos da discussão com uma contextualização mais atual da problemática, ver a primeira parte de Soares (2019SOARES, Luiz Eduardo. 2019. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo, Boitempo.).
  • 2
    Na literatura especializada brasileira, bons exemplos dessa abordagem podem ser encontrados nas coletâneas de ensaios organizadas por Leite (1987LEITE, Celso Barroso (org.). 1987. Sociologia da corrupção. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.) e Arvritzer et alii. (2012AVRITZER, Leonardo; BIGNOTTO, Newton; GUIMARÃES, Juarez; STARLING, Heloísa Maria M. (orgs.). 2012. Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte, Editora UFMG.).
  • 3
    Foge aos propósitos do artigo um debate teóricometodológico mais exaustivo sobre o tema. Como referência, ver, respectivamente, os trabalhos já citados de Nascimento (2017NASCIMENTO, Andréa Ana. 2017. “Desvio e impunidade nas instituições policiais do Rio de Janeiro”. Dilemas Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 10, n. 1: 64-82.) e Modesto (2018MODESTO, João Gabriel Nunes. 2018. “Por que corruptos são corruptos?: Propositura e apresentação de evidências do Modelo Analítico da Corrupção ”. Brasília, Tese de doutorado, Universidade de Brasília.) para uma revisão teórico-conceitual nas ciências sociais e na psicologia social, bem como as contribuições de Blundo (2007BLUNDO, Giorgio. 2007. “Hidden Acts, Open Talks. How Anthropology Can ‘Observe’ and Describe Corruption”. In: PARU IN NUIJTEN, Monique e ANDERS, Gehard (orgs.). Corruption and the Secret of the Law: a Legal Anthropological Perspective. Aldershot, Ashgate, pp. 27-52.) sobre os desafios metodológicos em trabalhar a corrupção notadamente no campo da antropologia.
  • 4
    O texto é resultado dos debates e sugestões feitos durante o 44º Encontro Anual da ANPOCS no “Grupo de Trabalho 24: Mercados ilícitos e dinâmicas criminais”. Agradeço a todos os colegas que participaram do GT e que, de alguma forma, contribuíram para o amadurecimento de algumas reflexões contidas aqui. Agradeço também aos dois pareceristas anônimos da Revista de Antropologia da USP pelas sugestões pertinentes que foram incorporadas à versão final do artigo.
  • 5
    É importante deixar bem claro que meus interlocutores não são policiais militares e nem tampouco recrutas ainda em fase de treinamento nas academias de polícia. Eles são, em sua grande maioria, homens cis jovens, nãobrancos, com idade entre 18 e 30 anos, moradores de favelas e bairros pobres da capital fluminense e que desejam, por diferentes razões, entrar para o círculo das praças da PMERJ.
  • 6
    Por conta da minha formação enquanto licenciado e mestre em geografia, bem como doutorando em antropologia, meu contato inicial com os candidatos geralmente se deu através do auxílio na preparação para o concurso da PMERJ.
  • 7
    Para a segurança dos meus interlocutores, todos os nomes de pessoas, locais e batalhões de polícia são fictícios.
  • 8
    Nos últimos dois concursos para “soldado” (2010 e 2014), a PMERJ exigiu dos candidatos conhecimentos nas seguintes disciplinas: Língua Portuguesa Instrumental, Redação, História, Geografia, Sociologia, Legislação de Trânsito, Direitos Humanos e Informática. No “cursinho” onde realizei meu campo, cada turma tinha aulas com duração de três horas de duas a três vezes por semana, durante um período de, no mínimo, três meses consecutivos. Todavia, geralmente os candidatos que viraram meus principais interlocutores permaneceram no curso por um período de tempo mais longo, o que permitiu conhecê-los para além dos limites da sala de aula.
  • 9
    Os conteúdos destas intervenções eram diversos. Mas vale a pena destacar que boa parte deles ia ao encontro das representações e expectativas prévias da maioria dos candidatos sobre a carreira policial. Era muito comum não só a contação de histórias fantásticas de tiroteios e perseguições, o poder que a arma e a farda exercem sobre as mulheres, o relato de prisões ou mesmo execuções de criminosos, mas também piadas que satirizavam a temática dos “Direitos Humanos” e da “corrupção policial”. Chamo atenção, entretanto, para o fato de tais práticas não me parecerem casos isolados quando se trata de preparatórios para a carreira policial. Além de já ter testemunhado situações semelhantes ao longo da minha trajetória enquanto professor, desde pelo menos o ano de 2019 vários vídeos de aulas ministradas pelo curso Alfacon - cujo foco maior é a preparação de candidatos para a entrada em diferentes forças policiais pelo Brasil - foram compartilhados na internet. Nos vídeos, é possível acompanhar aulas onde professores defendem explicitamente o extermínio de criminosos e seus filhos, sugerindo tortura e disseminando piadas de cunho machista e homofóbico para sujeitos que sequer são policiais. O conteúdo ofensivo dos vídeos levou inclusive alguns deputados a protocolar, em outubro de 2020, um pedido de investigação do Alfacon na Procuradoria-Geral da República (Alves, 2020ALVES, Chico. 2020. “PSOL denuncia a Procuradoria curso para policiais que exalta chacina”. UOL, São Paulo, 29 out.. Disponível em: Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2020/10/29/psol-denuncia-a-procuradoria-curso-para-policiais-queexalta-chacina.htm . Acesso em 31 out. 2020.
    https://noticias.uol.com.br/colunas/chic...
    ). Como referência jornalística sobre as polêmicas envolvendo o referido “cursinho”, ver a cobertura feita por Santos e Mendonça (2020SANTOS, Jessica e MENDONÇA, Jeniffer. 2020. “AlfaCon: conheça a escola que ensina métodos de tortura e assassinato a futuros policiais”. Ponte, São Paulo, 26 out. Disponível em: Disponível em: https://ponte.org/alfacon-conheca-a-escola-que-ensinametodos-de-tortura-e-assassinato-a-futuros-policiais/ . Acesso em 31 out. 2020.
    https://ponte.org/alfacon-conheca-a-esco...
    ).
  • 10
    Agradeço particularmente ao colega Leonardo Ramos pelos comentários pertinentes acerca das minhas notas de campo. Tais comentários foram fundamentais na compreensão dessas e outras ações por parte dos candidatos.
  • 11
    O Decreto n.º 9288 de 16 de fevereiro de 2018 promulgou a Intervenção Federal na pasta da segurança pública no estado do Rio de Janeiro. Durante o referido ano, todas as ações da pasta foram comandadas por um interventor indicado pelo então presidente Michel Temer. A medida colocou o general do Exército Walter Souza Braga Netto no comando simultâneo da Polícia Militar, da Polícia Civil e do Corpo de Bombeiros, estando ele subordinado apenas ao Presidente da República. Nesse contexto, várias ações de GLO em auxílio às polícias foram realizadas particularmente nos municípios que compõem a RMRJ, mobilizando um contingente de milhares de militares - entre eles alguns dos meus interlocutores no campo. Para um amplo apanhado de informações e análises sobre a Intervenção Federal no Rio de Janeiro, ver os materiais disponibilizados pelo ”Observatório da Intervenção“ Disponível em http://www.observatoriodaintervencao.com.br. Acesso em 14 jul. 2021.
  • 12
    O GAT é o grupamento responsável por ações táticas que, no caso da RMRJ, geralmente são realizadas em favelas na jurisdição de um dado batalhão. O 77º Batalhão de Polícia Militar (BPM), por sua vez, se localiza numa das áreas de maior conflagração de conflitos entre policiais e varejistas de drogas na capital fluminense, com um dos mais altos índices de letalidade policial também. É importante perceber, em caráter introdutório, como o desejo de Pablo em ser do “GAT do 77º” parece informar algumas de suas representações e expectativas sobre a polícia antes mesmo da possível entrada na corporação.
  • 13
    A descrição do cotidiano de Daniel no universo das vans - com particular atenção para a “gestão dos ilegalismos” (Foucault, 2010FOUCAULT, Michel. [1975] 2010. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 38ª ed. Petrópolis, Vozes.) - pode ser encontrada em Rodrigues (2021bRODRIGUES, Eduardo de Oliveira. 2021a. “O problema da escala: diálogos entre antropologia e geografia no Subúrbio Carioca”. Anais do VIII Seminário do InEAC: Políticas públicas, direitos e conflitos em tempos de pandemia. Evento online. DOI https://doi.org/10.22409/antropolitica2021.i53.a43301.
    https://doi.org/10.22409/antropolitica20...
    ).
  • 14
    Sendo categoria polissêmica de difícil definição, o subúrbio carioca é aqui tomado na sua acepção mais consensual: um conjunto de bairros pobres localizado nas regiões periféricas da capital fluminense, atravessados pelas linhas de trem e simbolicamente distantes do que seria o “centro” da cidade. O subúrbio, todavia, no caso da minha pesquisa, apareceu na fala nativa enquanto região de enorme interesse dos candidatos para seu possível futuro trabalho na PMERJ. Sobre isso, ver Rodrigues (2021aRODRIGUES, Eduardo de Oliveira. 2021a. “O problema da escala: diálogos entre antropologia e geografia no Subúrbio Carioca”. Anais do VIII Seminário do InEAC: Políticas públicas, direitos e conflitos em tempos de pandemia. Evento online. DOI https://doi.org/10.22409/antropolitica2021.i53.a43301.
    https://doi.org/10.22409/antropolitica20...
    ). Para uma revisão bibliográfica acerca dos significados adquiridos pela categoria subúrbio carioca ao longo das últimas décadas, ver Guimarães e Davies (2018GUIMARÃES, Roberta Sampaio e DAVIES, Frank Andrew. 2018. “Alegorias e deslocamentos do ‘subúrbio carioca’ nos estudos das Ciências Sociais (1970-2010)”. Sociol. Antropol, v. 8, n. 2: 457-482. DOI https://doi.org/10.1590/2238-38752017v825.
    https://doi.org/10.1590/2238-38752017v82...
    ).
  • 15
    Na semana seguinte ao ocorrido, quando estávamos somente Pablo e eu num bar, conversávamos sobre meu trabalho e o assunto de Daniel voltou à tona. Pablo me perguntou: “porra irmão, tu vai ter que colocar na tese aquela merda que o Daniel falou?” Respondi que ainda não sabia (o que era verdade, afinal, naquela época eu não tinha uma ideia precisa sobre o que seria a tese e como eu trabalharia meus dados de campo), mas que aquilo era interessante pois mostrava “diferentes opiniões” sobre um assunto importante. Claramente incomodado, ele retrucou: “tô ligado nisso aí. Mas pô mano, na boa... não escreve isso aí não. Tu pode escrever muita coisa sobre a PM… mas isso aí vai manchar tua tese!”. A frase final de Pablo me pareceu evocar o argumento central da obra de Douglas (1991DOUGLAS, Mary. [1976] 1991. Pureza e Perigo. Lisboa, Edições 70.) no tocante à relação entre poluição e tabu. Para a autora, a poluição e a preocupação com o contágio são efeitos do contato direto com elementos anômalos que, por não poderem ser categorizados dentro de um esquema classificatório, acabam por revelar um sistema de tabus. Para Pablo, admitir alguém com passagem pela prisão nas fileiras da PMERJ era um tabu, uma vez que a presença de Daniel ameaçaria a pureza da corporação no seu exercício coletivo de construção identitária em contraposição à identidade impura de “bandido”. No entanto, como veremos a seguir, a própria categoria “bandido” possui diferentes significados para ambos os candidatos.
  • 16
    A convivência entre os dois foi parte de um problema metodológico maior ligado ao meu campo, que diz respeito ao jogo do “controle de impressões” não só por parte dos candidatos em relação a mim (e vice-versa), como também entre eles. De acordo com Berreman (1975BERREMAN, Gerald. 1975. “Etnografia e controle de impressões em uma aldeia do himalaia”. In: ZALUAR, Alba (org.). Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora S.A., pp. 123-176.: 143), a observação participante sempre implica algum nível de dissimulação entre todos os seus partícipes, uma vez que etnógrafos e nativos, a todo momento, procuram esconder e mostrar coisas, ou seja, trocar impressões entre si. Um resultado possível desse jogo são alguns constrangimentos que podem ocorrer no cotidiano do campo, como a situação analisada aqui procurará mostrar.
  • 17
    Diferentes trabalhos como Muniz (1999MUNIZ, Jaqueline de O. 1999. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser. Cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.), Poncioni (2004PONCIONI, Paula. 2004. Tornar-se Policial: a construção da identidade profissional policial no estado do Rio de Janeiro. São Paulo, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.), Albernaz (2010ALBERNAZ, Elizabete. 2010. “Na fronteira entre o bem e o mal: ética profissional e moral religiosa entre policiais militares evangélicos cariocas”. Caderno CRH, v. 23, n. 60: 525-539. DOI https://doi.org/10.1590/S0103-49792010000300006.
    https://doi.org/10.1590/S0103-4979201000...
    ), Nascimento (2017NASCIMENTO, Andréa Ana. 2017. “Desvio e impunidade nas instituições policiais do Rio de Janeiro”. Dilemas Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 10, n. 1: 64-82.), Ramos (2017RAMOS, Leonardo dos Santos. 2017. Entre a “judaria interna”, a “pista salgada” e o “medo de se entregar”: uma etnografia das representações de medo entre policiais militares do Estado do Rio de Janeiro. Niterói, Monografia (Bacharelado em Segurança Pública e Social), Universidade Federal Fluminense.), entre outros mostram como a PMERJ é uma instituição heterogênea sob diferentes aspectos. Do ponto de vista das funções dentro da polícia, existe toda uma gama de possibilidades de trabalho na carreira policial que englobam desde funções burocráticas internas aos batalhões, até divisões mais operativas de policiamento ostensivo como os GATs e PATAMOs (Patrulhamento Tático-Móvel). De modo geral, os PMs nunca exercem apenas uma função durante sua carreira profissional, sendo motivo de orgulho para eles que a profissão exija flexibilidade no desempenho do seu trabalho - sobretudo aquele desempenhado nas ruas (Muniz, 1999MUNIZ, Jaqueline de O. 1999. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser. Cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.: 166). Uma fala bastante comum entre os PMs com os quais tive contato é de que “aqui na PMERJ, você tem que saber fazer de tudo”. Os candidatos também têm clareza quanto a isso, e suas expectativas sobre a polícia são também construídas sobre as possibilidades de inserção em cada uma dessas funções. Muitas vezes, tais expectativas começam a ser construídas pelo contato prévio que tais sujeitos têm com familiares, amigos, (ex)colegas de trabalho, conhecidos e vizinhos que já são policiais. É muito clara a maneira como, por exemplo, Pablo toma o pai enquanto principal referencial na polícia. Não é à toa que ele objetive seguir seus passos enquanto um quadro mais “operativo” da corporação, voltado para o “combate”. Já Daniel, por outro lado, embora não negue a possibilidade de, como ele mesmo diz, “ir pra guerra”, seu horizonte referencial compreende outros elementos mais próximos do seu cotidiano enquanto motorista de van, ou seja, ele objetiva trabalhar exercendo um policiamento mais voltado para a “pista” (Albernaz, 2014: 534), isto é, na administração do cotidiano das ruas.
  • 18
    Embora o autor fale de uma “ética policial” baseado em dados construídos a partir da Polícia Civil fluminense, vários outros trabalhos chamam a atenção para a enorme flexibilidade e particularização das práticas dos PMs sobre o policiamento cotidiano. Tal fato sugere, neste sentido, a existência de uma “ética policial” própria, de caráter extraoficial, quando falamos da PMERJ também. Sobre isso, ver principalmente a segunda parte da tese de Muniz (1999MUNIZ, Jaqueline de O. 1999. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser. Cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.) sobre a “cultura policial das ruas”.
  • 19
    Este raciocínio faz referência ao esforço de Topalli (2005TOPALLI, Volkan. 2005. “When being good is bad: an expansion of neutralization theory”. Criminology, v. 43, n. 3: 797-836. DOI https://doi.org/10.1111/j.0011-1348.2005.00024.x.
    https://doi.org/10.1111/j.0011-1348.2005...
    ) em ampliar a “teoria da neutralização” a partir do seu trabalho junto a hardcore offenders. Nesta pesquisa, o autor trabalhou com interlocutores dotados de códigos morais diferentes dos jovens infratores de classe média originalmente trabalhados por Skyes e Matza (1957SYKES, Gresham; MATZA, David. 1957. “Techniques of Neutralization: A Theory of Delinquency”. American Sociological Review, v. 22, n. 6: 664-670. DOI https://doi.org/10.2307/2089195.
    https://doi.org/10.2307/2089195...
    ). Em meu campo, encontrei situações semelhantes no tocante a práticas de corrupção e quando alguns candidatos apontavam a necessidade ou mesmo o prazer em possivelmente produzir medo em bandidos e até em outros futuros colegas de farda para manter o “respeito” quanto à sua imagem pública. Para isso, obviamente, algumas ações não poderiam seguir uma orientação legal plena, ou mesmo uma “ética policial” pautada pela garantia de direitos básicos à população. Sobre esse debate, ver o trabalho de Ramos (2017RAMOS, Leonardo dos Santos. 2017. Entre a “judaria interna”, a “pista salgada” e o “medo de se entregar”: uma etnografia das representações de medo entre policiais militares do Estado do Rio de Janeiro. Niterói, Monografia (Bacharelado em Segurança Pública e Social), Universidade Federal Fluminense.) sobre as categorias “medo” e “respeito” entre PMs. Para um debate sociológico sobre os prazeres ligados ao crime, ver Katz (1988KATZ, Jack. 1988. Seductions of Crime: Moral and Sensual Attractions in Doing Evil. New York, Basic Books.).
  • 20
    Embora o dinheiro embolsado pelo espólio, na visão dos candidatos, nem sempre seja gasto em atividades “moralmente mais nobres” como o conforto da família do policial, é curioso o consenso entre eles sobre o caráter impuro deste tipo de dinheiro. Um outro candidato que tive contato, evangélico, ao se deparar com os dilemas éticos entre sua fé e a corrupção policial, me confessou que ofertará para sua igreja todo o dinheiro ganho que não seja fruto do seu salário. Para ele, o dinheiro poderia ser convertido assim como as pessoas, dentro de uma lógica moral informada pelo binarismo “bem/mal” percebido também por Albernaz (2010ALBERNAZ, Elizabete. 2010. “Na fronteira entre o bem e o mal: ética profissional e moral religiosa entre policiais militares evangélicos cariocas”. Caderno CRH, v. 23, n. 60: 525-539. DOI https://doi.org/10.1590/S0103-49792010000300006.
    https://doi.org/10.1590/S0103-4979201000...
    ) entre PMs evangélicos. Trata-se, neste sentido, de uma “moeda especial” (Zelizer, 2013ZELIZER, Viviana. 2013. “The Social Meaning of Money: ‘Special Monies’”. In: ZELIZER, Viviana. Economic lives: how culture shapes the economy. Princeton, Princeton University Press, pp. 93-127.) dotada de significados sociais particulares para os meus interlocutores.
  • 21
    Sobre a categoria “desenrolo”, ver (Grillo et alii, 2011GRILLO, Carolina Christoph Grillo; POLICARPO, Frederico; VERÍSSIMO, Marcos. 2011. “A dura e o desenrolo: efeitos práticos da nova lei de drogas no Rio de Janeiro”. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40: 135-148. DOI https://doi.org/10.1590/S0104-44782011000300010.
    https://doi.org/10.1590/S0104-4478201100...
    ).
  • 22
    A ligação entre as polícias e a contravenção carioca não é algo novo. O próprio pai de Pablo, durante o tempo em que esteve na “ativa” dentro da PMERJ, trabalhou de maneira próxima na segurança de bicheiros. No entanto, é interessante perceber, nos últimos anos, como diferentes grupos de milícia parecem ter ganho espaço nessa relação ao estabelecer alianças com bicheiros no controle sobre diferentes mercados ilegais no Rio de Janeiro. Sobre isso, ver o artigo de Labronici (2020LABRONICI, Rômulo. 2020. “Ação entre amigos: relações entre banqueiros do bicho e milícias nas disputas político-econômicas da contravenção”. Antropolítica Revista Contemporânea De Antropologia , v. 50: 162-187. DOI https://doi.org/10.22409/antropolitica2020.i50.a42705.
    https://doi.org/10.22409/antropolitica20...
    ).
  • 23
    O último concurso público para o cargo de soldado da PMERJ, realizado em 2014, teve 105.458 inscritos, dos quais 83.882 eram homens e 21.556 eram mulheres.
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    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Dez 2020
  • Aceito
    08 Jul 2021
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