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“Nós que sabemos sonhar”: Entrevista com Sandra Benites, Sérgio Yanomami e Alberto Álvares

Essa entrevista foi realizada de forma remota no final de março de 2021, momento de dramático recrudescimento da covid-19 no Brasil. A incerteza e o medo eram sentimentos permanentes durante o isolamento social imposto pela pandemia, mantida em descontrole pelo atual governo negacionista. A calamidade política e sanitária aprofundava-se com a postura ecocida do presidente que desde o início do seu mandato segue autorizando e incentivando o desmatamento, os incêndios criminosos, o garimpo, a invasão de terras indígenas, conforme demonstram dados de monitoramento. Contudo, em meio ao luto, a potência da vida onírica descortinava outros horizontes de luta e resistência. O encontro com os modos indígenas de sonhar produziu reflexões profícuas sobre o tempo que vivemos e, tendo isso em mente, os organizadores deste dossiê acreditaram que seria imprescindível que as vozes indígenas também o compusessem. Assim, Karen Shiratori, Gemma Orobitg, Roberto Romero, Majoi Gongora e Marcelo Hotimsky reuniram-se para conduzir a entrevista com Sandra Benites1 1 2015, 2018, 2019, 2020a, 2020b, 2020c. , do povo Guarani Ñandeva curadora, pesquisadora e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional do Rio de Janeiro; Alberto Álvarez2 2 2018. , cineasta Guarani Mbya e mestre em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense ; e a liderança Sérgio Yanomami3 3 2022. , que estava acompanhado por Daniel Jabra, a quem agradecemos a revisão de alguns trechos da entrevista.

Comissão: Como vocês têm sonhado ultimamente? Quais são os tipos de sonho? Vocês têm o hábito de contar os sonhos a seus parentes? Qual é a importância desses relatos no cotidiano?

Sandra Benites:Nhandeka’aruju, boa tarde, sou Sandra Benites, Guarani Ñandeva do Mato Grosso do Sul, da aldeia Porto Lindo. Estou aqui para conversar e trazer os pensamentos que construo para dialogar - acho isso muito importante. Sou mulher guarani, mulher indígena, e mãe de quatro filhos e tenho três netas já. Sou pesquisadora acadêmica indígena e venho traçando questões de pesquisa na área da antropologia, na qual atuo como acadêmica. Sou doutoranda em Antropologia Social no Museu Nacional, e agora também sou curadora do MASP.

Vou começar a falar a partir da minha própria experiência, porque cada um fala a partir da sua própria experiência. Desde 2015 tenho me relacionado diretamente com a cidade e ido à aldeia poucas vezes. Vivi no Espírito Santo por um bom tempo e depois fiquei mais no Rio de Janeiro. A partir do momento em que saí da aldeia, comecei a fazer essa ponte entre aldeia e cidade e passei a entender que estou entre aldeia e cidade. Quer dizer, não estou nem na aldeia, nem na cidade. Foi aí que comecei a entender que não estar nem na aldeia, nem na cidade, me trazia um meio mais conflituoso. Estar entre esses lugares abriu uma outra possibilidade de sonho.

Às vezes sonho com coisas ligadas à realidade mesmo: às vezes me vejo na aldeia, outras vezes estou no meio das pessoas jurua (não-indígenas), no meio da cidade. É engraçado que comecei a sonhar com duas línguas, não só com a minha língua guarani. Isso me dá um pouco de conflito; parece que tem duas coisas ali que têm o seu espaço, mas não tem tanto espaço assim. Eu sonhava em guarani, com guarani, no [espaço] guarani. Hoje não sonho mais isoladamente. É uma mistura e isso é muito conflituoso.

Muitas vezes, tenho dificuldades de falar sobre os sonhos como fazia na aldeia. Hoje, bem recentemente, comecei a sonhar com várias coisas da atualidade: as angústias e a minha casa no meio dos jurua. É difícil levar o sonho a outra pessoa: acordar, tomar chimarrão e conversar. Até porque moro sozinha em um apartamento no Rio de Janeiro, em um bloco onde vivem parentes de diferentes etnias - eles não são Guarani. Isso, às vezes, me entristece. Deixa uma angústia muito grande, porque não consigo contar os meus sonhos. A gente tem que saber para quem está contando, precisa ter confiança nessa pessoa, que deve fazer a conversa evoluir de uma maneira sábia e também sagrada. O sonho pra gente não é só sonhar; é sentir aquele sonho, é viver naquele sonho. Muitas vezes, é uma experiência muito do nhe’ẽ, do seu espírito. Já sei que não vou poder contar da maneira que gostaria por não estar perto da minha família e das pessoas que gostaria de contar o sonho.

Por mais que sonhe nas duas línguas, sempre procuro contar na minha língua guarani que faz mais sentido e tem mais emoções - tem o que a gente chama de py’a guapy. Seria como se você respirasse aquilo que contou e tirasse o peso do sonho, aquela aflição que carrega a partir do sonho. Se eu contar na minha língua guarani para alguém que confio e se perceber que está recebendo de uma maneira harmoniosa, vou ficar bem. Já não sonho como sonhava antigamente.

Sérgio Yanomami: Boa tarde, meus amigos e meus parentes. Eu não sou indígena, sou Yanomami de verdade. Faz tempo que eu e os meus parentes estamos neste mundo. Alguns já viraram como branco, com cara de branco, pele e tudo. Eu moro no Amazonas, sou da aldeia Pukima Beira, no município de Santa Isabel do Rio Negro. Meu rio é o Marauiá, é bem no afluente onde moro, bem próximo da fronteira com a Venezuela. E sou agente de saúde.

Os Yanomami têm um monte de tipos de sonhos. Tem o sonho ruim e o sonho bom. Na última vez que sonhei no xapono (casa comunitária), sonhei sonhos bem tranquilos. Quando vou para longe da aldeia - na cidade, no mato ou em outro lugar - tenho sonhos ruins. Na aldeia, quando sonho, sempre pergunto ao papai, porque ele é sabedor de sonho, é pajé. Sempre pergunto para ele me encaminhar ao caminho bom. De manhã, vou lá na casa dele e conto o que sonhei: “Papai, sonhei assim”. E papai já sabe, por isso fala: “Meu filho, esse sonho...”. Se for ruim, ele diz: “É muito ruim. Tem que se cuidar e ficar aqui dentro da casa, não pode sair do xapono. Você deve ficar em casa o dia inteiro para que o sonho ruim que se aproximou de onde você estava, fique longe de novo”. Quando sonho com alguma coisa boa, também conto para ele e ele fala: “Meu filho, esse sonho é muito bom! Pode ir caçar e procurar alimentação por aí”. Depois, ele vai cheirar yakoana4 4 Trata-se de um pó alucinógeno e alimento dos espíritos auxiliares dos xamãs. para expulsar algum inimigo que chegou aqui próximo da nossa aldeia e então eu saio.

Tem o sonho bom e o sonho ruim. Tem sonho de espírito e tem sonho de seres humanos que mandaram coisa ruim para gente, por isso que tem perigo no sonho. Quando cheguei em Florianópolis, na casa do meu cunhado, sonhei ruim, sonhei com onça. Se a onça ataca no sonho, a gente não pode sair, por isso que a gente ficou dentro da casa dele. Agora que eu estou andando um pouco nas cidades, longe da minha aldeia, em São Paulo e Florianópolis, e tenho sentido diferença nos sonhos.

Desde que cheguei na cidade, sonho com muitas coisas distantes, como as coisas que os brancos fazem, usam e constroem. Andei olhando a cidade e vi que tem muita casa comprida, quer dizer, prédios, e no lugar da terra só tem cimento. Também tem cheiro ruim dos igarapés todos poluídos. No meu sonho, a cidade, de tão alto que são os prédios, estava quase se fechando em cima. Com certeza daqui a pouco eles vão fechar todo o céu com os prédios altos. Não tem terra firme, é puro cimento tapando a terra.

Esse sonho é estranho mesmo, por isso fiquei preocupado com a terra de São Paulo. Lá não tem lugar para respirar e o ar e o vento não passam para baixo, por isso que sai muita quentura do chão. O sol bate na terra e a quentura bate e volta para cima, por isso está muito calor. Fiquei muito preocupado porque acho que vão acabar de novo com essa terra do Brasil. É assim o meu sonho aqui: sonho que estou buscando um caminho bom. Os brancos constroem esses prédios, construções com quatro, dez, vinte casas no mesmo lugar... O que eles querem com isso? Vender, não é? Acho que o caminho certo era os brancos construírem só uma casa, a sua própria casa. Se tiverem filhos, podem fazer uma casa um pouco maior. Agora, uma pessoa que constrói muitas casas para vender não é certo. Onde é que os outros parentes, os outros brancos vão morar? Por que não querem trabalhar na roça, plantar alimentação, maniva de mandioca e outras plantas? Alguns querem a terra para abrir roça, mas aí vem um branco e compra uma terra grande. Não! Tem que comprar uma terra pequena para construir só a sua casa. Não se pode pensar na construção de mais casas no outro lado da cidade, não é assim!

Os brancos têm que pensar melhor. Acho que eles não têm pensamento. Precisam muito da construção da casa-reserva para vender a outros brancos e ganhar dinheiro. Só vivem por dinheiro, não pensam em roça ou em plantação. No caminho certo, não é para construir essas casas-reserva. Esse é o meu sentimento quando tenho sonhos na cidade grande. Quando estou no xapono não sinto nada disso e não vejo coisas estranhas, não. Mas, nessa primeira vez aqui em São Paulo, senti grande diferença no sonho. Vejo só prédios e não vejo escuridão natural. Só tem a clareação da luz e das lâmpadas.

Alberto Álvares: Fico feliz de ver os parentes e acho que ainda há esperança de a gente ver o dia amanhecer. Fico feliz de ouvir o parente Sérgio Yanomami. Sou Alberto em português, mas tenho o meu nome de batismo em guarani, Tupã Ra’y. Os mais velhos falam que Tupã é uma pessoa que não fica em um lugar só, ela precisa caminhar. Então, estou sempre fazendo isso, caminhando. Faço filmes, trabalho e vou seguindo assim, trabalhando e ao mesmo tempo vivendo esse tempo de agora - o momento da gente refletir sobre a nossa vida. Você precisa conhecer o seu arredor, o mundo onde está. Às vezes você está vinte quatro horas sem parar, na correria, e não para pra pensar. E quando o mundo para, você também para e reflete: “É isso, é a vida”. Muitas coisas ruins vêm para a gente pensar como vamos acordar, dormir e sorrir.

Para começar, quero dizer que nós, Guarani, existimos através do sonho. Antes mesmo da nossa mãe ficar grávida, ela sonha: o caminho do sonho mostra a ela qual criança vai ter. Por isso falo que nós, Guarani, nascemos desse sonhar. Se nasceu um menino, as pessoas vão te presentear com um bichinho feito de madeira, como tatu, como xivi (onça). Quando é menina, as mulheres sonham com filhotinho de papagaio, de arara, de maino’i (colibri). Tudo tem relação. Esse sonho, talvez, tenha relação com o espírito dos animais, das aves. Tudo isso faz a gente pensar na importância do sonhar.

Acredito muito no sonho, porque através dele a gente consegue caminhar, principalmente, nós Guarani. Existe o sonho coletivo e o sonho individual. Hoje, tenho medo dos sonhos que posso ter e eu não quero sonhar. Toda noite quando vou deitar, fumo um petyngua (cachimbo) e através da sua fumaça peço a Ñanderu que me mostre o sonho bom e o ruim. Tenho muito medo de sonhar, porque, às vezes, o sonho mostra um caminho que você pode percorrer. Hoje mesmo tive um sonho e saí na rua com medo. Fiquei com o sonho na minha cabeça. Por que tive esse sonho?

Se sonhar o sonho ruim, na mesma hora compartilho com as pessoas. Às vezes, a gente precisa sonhar aquele sonho para entender que não é só sonho bom que temos, mas eu evito. Então, tudo isso mostra que não é por acaso que sonhamos. É como se o sonho fosse uma coisa que vai te guiar. Às vezes você sonha, mas não consegue interpretar, então precisa falar disso com as pessoas, principalmente, com os mais velhos. Às vezes, não consigo entender porque tive aquele sonho.

Depois do filme O Sonho de Fogo, comecei a ter muito medo de sonhar, talvez porque me mostraram, no sonho, uma coisa ruim que ainda pode acontecer. Toda vez que sonho com fogo, fico com medo que talvez meu filho ou algum parente possa adoecer. Tive esse sonho de fogo antes da pandemia. Foi muito diferente, o meu medo era muito. Não era uma árvore ou uma folha pegando fogo. Era como se o mundo, a Terra, se queimasse toda. Não quero mais sonhar com sonho ruim. Então, toda noite fumo o petyngua e peço que me mostre apenas o caminho por onde posso seguir e guiar os meus filhos. Então, hoje em dia, tenho conseguido evitar o sonho ruim. Tudo isso me fez pensar e refletir mesmo sobre o que é ser Guarani.

Nós, Guarani, sabemos muito bem qual é a busca do sonho. Não é só buscar sonhar acordado, mas buscar através do canto sagrado na casa de reza, na Opy. Esse sonho vai reforçar o que você quer alcançar na sua vida, porque faz parte da sabedoria do moexakã, do iluminar do mundo, onde você vai poder viver. O sonho é um guia do processo de cada pessoa, de cada ser. Nessa relação entre a Terra e a natureza, o tempo e a chuva, o tempo de acordar e dormir - tudo que está ligado ao sonho.

Desde o passado até agora, a gente vem caminhando através do sonho, porque é assim que os lugares sagrados se revelam. As plantas medicinais também se revelam através dos sonhos, por exemplo, qual parte da planta você vai usar na cura. Através do sonho se revela um canto sagrado para você cantar. Como falei, antes de nascer você é revelado através dos sonhos. O nome sagrado também. Há duas formas de receber o nome: os mais velhos sábios podem recebê-lo através do sonhar ou da reza, do canto.

O sonho é essencial na nossa vida. Precisa sonhar para caminhar nesse mundo. Se você não sonhar aquilo que você quer alcançar, fica complicado entender o mundo onde está vivendo. Depois da filmagem do longa-metragem (Último Sonho, 2019), aprendi muito. Fiz uma homenagem ao xeramoĩ Wera Mirim, sábio e sonhador, que guiou a caminhada do seu povo pelo território para construir uma aldeia em Angra dos Reis (RJ). Sapukai foi construída através do sonho dele. A partir deste filme, comecei a estudar esse mundo da narrativa, da oralidade e a relação do sonhar como território. Por que você precisa sonhar? O sonho é fundamental para manter o que é o ser guarani, o nhe’ẽ, a bela palavra, a alma que você está carregando. O xeramoĩ (sábio, ancião) falou assim sobre o sonho: o não sonhar é o fim da vida. Então, nós Guarani precisamos sonhar e manter aquele sonho para podermos transitar neste mundo. A gente fala que é transitar neste yvy ivaikue, na Terra que não é mais boa. Você precisa do sonho para transitar.

Quando estava fazendo o filme, esse xeramoĩ me ajudou a montar. Eu o via no meu sonho. Às vezes parecia que estava travando tudo, não conseguia andar com a montagem. Às vezes batia um sono enquanto estava montando. E de repente ele vinha no meu sonho e dizia assim: “Não, meu neto, não é aqui que você tem que colocar, você tem que colocar em outro lugar”. E aí eu acordava e mudava. Assim, o filme Último Sonho começou a acontecer, foi através do sonho. Acho que foi muito lindo ver esse imaginário indo para o real, do sonho para montagem do filme. Por isso que o sonho é fundamental para caminhar, né?

Reflito muito sobre isso quando estou fazendo um filme. Hoje peço para sonhar enquanto estou filmando. O que eu posso fazer? Penso a cada noite e a cada amanhecer: Por que sonhei assim? Acredito muito na palavra do xeramoĩ. Se você não sonhar mais é o fim da sua alma, é o fim da sua vida. Se você é Guarani, precisa sonhar de qualquer jeito para manter a sua própria vida e a vida do seu povo de acordo com o sonho.

Comissão: Como sonhar bem? Háformas para se lembrar do sonho no dia seguinte?

Alberto Álvares: Quando sonha coisas ruins, você precisa compartilhar para que todas as pessoas saibam do sonho. Por exemplo, se você está na aldeia e sonha com anzol, não deve ir à mata - nem o seu parente. Sonhar com anzol é uma cobra que pode estar no meio dos caminhos e fazer mal. O sonho é compartilhado nas aldeias guarani para você poder caminhar. Os mais velhos sempre falam que para lembrar do sonho ao acordar, não se deve passar a mão na cabeça. Muitas pessoas ao acordarem, arrumam o cabelo e então jogam pelos ares, tirando o sonho que está dentro de você. Por isso, às vezes, a gente passa horas e horas tentando lembrar do sonho, mas foi você mesmo que tirou de dentro.

No mundo do Guarani, existe o sonhador. A gente sonha, eu e você sonhamos, mas além disso existe uma pessoa sonhadora: sonha e vê a revelação, a iluminação da imagem, vê o lugar, o espaço, aquilo que tem que ser feito e como deve ser feito. O sonhador, o grande líder (karai) é quem vê o mundo através do sonho. É através dos sonhos dele que aaldeiaé construída, que os nomes são revelados... Não sou um sonhador, não sou uma pessoa sábia que vai ver e falar: «Você tem uma doença em tal lugar». O xeramoĩ Alcindo, morador da aldeia Mymba Roka (Biguaçu, SC), disse: “Ñanderu me mostra um raio X para ver onde a pessoa está doente, mas não vejo o corpo inteiro da pessoa, igual ao do branco, meu raio X é pequenininho e me leva ao lugar onde quero ver”.

O sonhador é aquele que alcança a espiritualidade, vê o mundo real e lê o mundo de outra maneira. Não sou assim, mas sei qual é a parte do sonho que posso interpretar o mundo onde estou vivendo. A última vez que fiz um trabalho lá no Rio Grande do Sul, uma rezadora muito forte (kunhã karai) disse que sonha aquilo que pode falar na reunião. Quando as comunidades fazem reunião, as pessoas sábias precisam sonhar e pedir conselho a Ñanderu para saber com quais palavras podem aconselhar o seu povo. Para sonhar bem, você precisa pedir esse sonho e acreditar nele. Você tem que acreditar na alma, pois o sonho também é uma alma, o sonho também é uma palavra. Existem os grandes sonhadores e as pessoas que apenas sonham. É o sonho que mostra o caminho, que te guia, é a revelação do mundo da espiritualidade.

E existe tambémo sonho reko re’i, que é sonhar apenasporque dormiu muito:“Sonhou aquilo, uma besteira”. É sonhar à toa. O momento específico para contar o sonho é na hora de levantar, acordar e tomar um chimarrão. Ao entardecer, você está ali sentado fumando um petyngua com os mais velhos e assim vai conversando sobre essas questões como se fosse o mundo virtual que a gente vê. Os mais velhos têm os momentos certos para falar algo sobre um sonho. Não sei muito bem não, mas espero chegar a ser um dia um grande sonhador.

Sandra Benites: Queria retomar um pouco o que o Alberto falou. Para nós, mulheres guarani, antes da gente ficar grávida, o processo de educação já começa quando sonhamos com o filho ou a filha. Então, a gente começa a se organizar para esse processo a partir do sonho, e por isso, para nós tem muito a ver com a questão do nhe’ẽ. O nhe’ẽ do ser que, na verdade, não é nem criança, é um ser que está vindo. Por exemplo, quando a gente perde um ente querido, a gente sonha com o espírito dessa pessoa, não é? Tive duas experiências fortes. A minha primeira filha nasceu em casa com a minha avó, ela me ajudou. Um tempo depois ela faleceu. Acho que depois de um ano desse falecimento, engravidei e sonhei com a minha avó. A minha mãe disse que ela veio morar comigo. Ela sonhou também com a minha avó. É por isso que carrego o espírito dela, é a minha força de estar, de circular. Carrego essa força da xejaryi, da minha avó. Esses espíritos de pessoas que se foram fortalecem a gente, é como se estivessem flutuando em cima de quem os carrega - estão juntos, sempre juntos com a gente. Fui criada com a minha avó, ela me educou nesse processo guarani e carrego muito comigo essa força. Nesse caso, eu sonhei com ela, então, a minha filha, a gente entende que é a minha avó; é o espírito da minha avó que mora comigo.

Minha irmã teve um filho e perdeu 12 dias depois de nascer. Fiquei muito mal com aquilo que vi, porque nunca tinha visto essas coisas. Ficou marcado em mim, eu sonhava com isso. Pedia para poder tirar essa tristeza de mim, essa tristeza do meu corpo. Fui eu que sonhei mesmo, sonhei com a minha irmã. Naquele tempo, a gente já estava pensando em ir ao Espírito Santo. Sonhei que a minha irmã tinha me levado as roupinhas do bebê que guardou e tinha me dado para eu guardar, e eu guardei. Fui para o Espírito Santo e, quando cheguei lá, descobri que estava grávida. Quando eu engravidei, sabia que era menino. O filho da minha irmã era menino e eu falei: “Vai ser menino”. Eu não fazia ultrassom, essas coisas. Meu pai também sonhou, viu que já era grande o menino falecido da minha irmã, que já era um rapaz. No sonho ele falou que foi morar comigo, mas era filho da minha irmã. Quando eu sonhei com isso, fiquei um pouco mais em paz. Eu e o meu filho, às vezes, a gente brinca com isso; ele fala que eu o adotei. Falo para ele que adotei da minha irmã. Ele queria entender porque eu falo assim com ele! É engraçado… ele é muito diferente dos irmãos, ele tem um espírito de velho. É uma criança muito especial.

Na época, a minha mãe falou que o filho da minha irmã era um espírito de velho, de um xamoĩ. Só que eles não sabiam lidar com isso. Então, quando a gente está grávida, a gente tem que estar bem espiritualmente, ninguém pode abalar nosso sentimento. Às vezes, por abalar nosso sentimento enquanto mãe, a gente pode falar besteira, se sentir mal, triste e, por isso, às vezes, o espírito da criança pode voltar, ir embora. Minha mãe disse que minha irmã não soube recebê-lo, por isso ele voltou. Agora, ele está aqui comigo.

Quando a gente sonha, tem espírito ruim também. A minha irmã mesmo, quando engravidou desse filho, disse que sonhou com papagaio. Um papagaio enorme veio e ela pegou para criar. Quando foi alimentar o papagaio, ele morreu na mão dela. Disse que chegou muito exausto, pedindo socorro na mão dela. E era o filho dela, esse bebê que faleceu. Então, quando a gente sonha com essas coisas, a gente tem medo, como diz Alberto, a gente já espera por coisas ruins. É como se fosse um alerta mesmo. Por isso temos que fazer o máximo para cuidar de alguém que a gente recebe para criar.

Sonhar com essas coisas é muito significativo para gente saber o que vai acontecer na verdade, para gente ter cuidado. Por exemplo, na comunidade, o xeramoĩ ou a xejaryi falam sobre sonhos para todo mundo. Geralmente, a gente se junta na casa de uma pessoa mais velha para poder escutar o que ela sonhou. Primeiro, ela conta o que sonhou e depois explica. Aí a gente vai contando os nossos sonhos para depois escutar o que ela tem a dizer. Vamos saber se a gente pode ir para casa, para rua, se pode pegar algum alimento, plantar, ir para a mata, fazer artesanato.

Dona Aurora, no Espírito Santo, fazia muito esse papel. Quando a comunidade se organizava para fazer determinadas coisas, ela ia lá e falava: “Sonhei isso, então vocês não vão, não”. Era uma pessoa que se preparava para sonhar. É muito importante preparar o corpo para sonhar, preparar o seu espírito. Acho que o desafio maior hoje para gente que está neste lugar de trânsito - nessa loucura, como diz Sérgio, a gente que vive no meio dos prédios e de tanto carro - é que o nosso espírito não fica tranquilo para sonhar com o que a gente costuma sonhar. Então, é um desafio para gente sonhar bem ou mesmo sonhar. Geralmente, vêm mais os sonhos ruins. Estive sonhando muito ruim também. A gente entende que tem coisas que são muito pessoais, mas tem algo que é maior. Por isso, é muito importante compartilhar com outros Guarani. E não dá para compartilhar com outras pessoas que não sejam Guarani, porque não vão entender. É uma outra lógica de pensar o sonho.

Quando era jovem e morava na aldeia, sempre tinha sonhos de estar nesse lugar de trânsito. Achava que isso era uma coisa minha. Nunca tinha sonhado acordada com esses espaços que hoje estou ocupando, no meio dos jurua, como curadora, acadêmica. Nunca tinha sonhado acordada para mim. Não tinha planejado nada disso, mas sonhei com esse meu espírito, com esse nhe’ẽ que carrego, e vi que iria ser assim. Sonhei também com um canto que faço só para mim. Muitas vezes sonhei que era para eu cantar nos momentos em que estou me sentindo mal na cidade, sozinha, querendo estar com a minha família. Mas a minha luta de falar sobre nós, Guarani, como mulher mesmo, como mãe, como Guarani, me levou a estar na cidade. Às vezes, para não chorar, canto. Às vezes é um canto-choro. Mas não é um canto de tristeza. O canto-choro é uma força de superação, de enfrentamento de uma outra forma, não com raiva, mas sim com coragem.

O que eu sonho hoje é essa confusão que eu já tinha sonhado antes. Eu acho que isso me leva a não confundir as coisas. Eu sei que é uma confusão, mas eu não confundo as coisas e isso me fortalece como mulher, uma mulher guarani. Como os parentes falaram, tanto Alberto quanto Sérgio, é o fim do mundo. Os nossos antepassados já tinham sonhado com isso, que esse mundo iria acabar. Os nossos mais velhos e as nossas mais velhas sempre falaram isso. E agora me veio uma coisa que falaram:“Enquanto as mulheres sonharem com seus filhos, com os seres que virão, enquanto todas as crianças que vierem aqui ficarem e enquanto houver criança na Terra, sem que não voltem rapidamente, nós resistiremos”. Dizem que o espírito das crianças é que vai fortalecer a nossa alegria, a nossa superação. Aí falam assim: “Se a criança vir à Terra e voltar rapidamente é sinal de que está acabando o mundo”.

São essas coisas o fim do mundo… Está chegando, aos poucos, por conta da sociedade que nos mata, que mata muito, digamos, como Alberto falou, as pessoas “sonhadoras”. As sonhadoras são as mães, são elas que sonham. São as mães que fortalecem e levam esse sonho adiante. Quando as mulheres são desmatadas, esse sonho fica um pouco bloqueado para a gente entender o que é. Esse sonho bloqueado e confuso pode fazer a gente chegar ao fim do mundo sem perceber. Às vezes, as mulheres não têm tempo para sonhar e, quando sonham, são desmatadas, são cortadas e derrubadas como mata mesmo, como floresta. E aí vem essa pandemia que nos mata todos os dias, mas não é só a pandemia de coronavírus que está matando nós, mulheres. Esse desmatamento feminino do kunhãgue reko (modo de ser feminino) é a própria fúria do tata (fogo) e tata é doença.

Sabemos que as fúrias dos homens também é tata, porque tem a ver com sangue quente. Os xeramoĩ e as xejaryi sempre falam que o sangue quente dos homens pode se tornar perigoso se não for controlado. É por isso que os homens fazem ritual de passagem e buscam uma relação de respeito com a mata, a floresta e os espíritos dos rios. Mas, por causa de tudo o que está acontecendo, os espíritos estão furiosos. A mata e o rio estão secando por causa das fúrias do tata. Para nós, Guarani, o nosso sangue tem a ver com a vida e a morte, por isso que as mulheres quando estão em período menstrual precisam ser respeitadas. Se a gente não controlar, podemos nos tornar furiosos.

Comissão: Sérgio, você poderia nos falar sobre as diferenças entre sonhar na aldeia e na cidade?

Sérgio Yanomami: Quando as lideranças do xapono sonham com uma coisa mais geral, do xapono, com certeza vão nos avisar pela manhã, vão ficar no meio do xapono e avisar. Quando sonham com alguma coisa muito ruim, as lideranças avisam o xapono inteiro. A comunidade escuta e vai respeitar as palavras deles: ninguém vai sair, vão ficar todos juntos dentro da aldeia. Por quê? Para esperar passar aquilo que a liderança sonhou. No dia seguinte o povo pode sair tranquilo, sem correr risco, sem problema. As lideranças vão falar também com os pajés e vão pedir para eles cheirarem paricá para fazer amizade com os espíritos da floresta. Quando os espíritos dos pajés fazem amizade com os espíritos da floresta e expulsam os inimigos que querem fazer mal, então o mundo vai melhorar de novo. Em seguida, todos vão sair para o mato, procurar alimentação, buscar caça e outras coisas e também vão trabalhar na roça.

Quando sonho com meus avós que morreram quando eu era bem pequeno, eles tentam me buscar e me levar para onde estão agora em no porep [espectro dos mortos]. Quando acordo de manhã, chego na casa do meu pai e conto o que sonhei. Aí ele pensa o próprio pensamento dele. Os pajés vão tentar fazer hekura para retirar esse sonho. Quando os Yanomami estão sonhando muito, todo dia, toda noite, com coisas diferentes e coisas ruins, com os avós [falecidos] deles, nós pedimos para os pajés tentarem tirar essas coisas de sonho do nosso corpo. E quando os pajés conseguem tirar essa coisa de sonho, a gente não sonha mais. Depois de um mês, dois meses, começamos a sonhar de novo, por isso precisamos de pajés para tentar parar de sonhar. É assim que funciona. Agora que estou por aqui [na cidade], estou sonhando muito. Quando voltar para comunidade, vou pedir para eles tentarem tirar esse sonho do meu corpo de novo e então vai melhorar o meu sono.

Se sonho hoje, amanhã vou falar para o meu cunhado: “Ah, cunhado! Sonhei com uma coisa ruim e agora ninguém pode sair, nós temos que ficar o dia inteiro dentro da nossa casa”. Então nós vamos ficar o dia inteiro em casa até passar essa coisa ruim que sonhei. É assim que os Yanomami fazem. Quando os pajés sonham com alguma coisa de espírito, eles têm os seus meios para expulsar este espírito: cheiram paricá, cheiram muito para expulsar o espírito que está esperando escondido e querendo fazer mal. Quando terminam, os pajés falam: “Sonhei alguma coisa ruim, por isso que estava tentando me proteger, agora posso sair, já fiz proteção, estou salvo e por isso posso procurar alimentação no mato”.

Cada um de nós tem sonho ruim. Cada um de nós tem um sonho próprio, com a nossa própria alma. Quando sonhamos com coisa boa, coisa ruim e coisa estranha, a nossa alma some, sai andando e rondando dentro da floresta - é por isso que nós sonhamos muito. O nosso próprio espírito está mostrando no sonho o que existe dentro da floresta, é por isso que estamos sonhando.

Agora vou falar sobre os brancos, tanto sobre o que vejo no meu pensamento quanto no meu sonho. Primeiro, no meu pensamento, acho que os brancos fazem muita destruição, poluição e também constroem muitas casas, bem grandes e altas. Por quê? No meu pensamento, acho que os brancos não sonham. Eles não andam em seus sonhos. As almas deles não andam dentro da floresta. Já os Yanomami, em seus sonhos, andam pelo mundo inteiro e por isso não querem fazer destruição, causar poluição, destruir a Terra. Eles querem economizar, proteger a Terra. Os brancos dormem sem andar com as almas deles, com os pensamentos e sonhos deles. É por isso que estão querendo muita destruição - só pensam em terminar de destruir o mundo. Se sonhassem, com certeza iriam achar um sonho bom para caminhar no caminho bom.Esse éo meu pensamento sobre eles. Mas não é só o pensamento do Sérgio, é de todos os Yanomami, dos meus parentes e dos espíritos que ficam dentro da floresta. Eles estão putos! Por isso que a minha parente Sandra falou que essa destruição acaba com as nossas vidas, com a alma que o mundo tem. Acho que alguns brancos acreditam nisso, mas só alguns, não são muitos. Outros não acreditam nas histórias de espíritos que contam os Yanomami e os meus parentes também. Neste mundo, tem vários espíritos e os espíritos da floresta estão ficando furiosos. Por quê? Por causa da destruição! É por isso que os napë (brancos) estão perdendo suas vidas. O mundo inteiro tem muitos espíritos e eles estão tentando fazer vingança. Também tem o próprio espírito dos Yanomami e dos meus parentes. Cada um de nós Yanomami e cada um dos meus parentes que não são Yanomami, tem seu espírito. Alguns estão fazendo proteção para gente, outros não. Tem vários espíritos que estão querendo fazer mal para gente, para acabar com a nossa vida.

Vejo em São Paulo casas altas, prédios e a terra toda tampada. Essa terra é a casa dos espíritos. A montanha? A serra? São casas dos espíritos. Essa é a minha preocupação. Vejo que os espíritos têm as casas deles. Aqui tem montanha, muita montanha, tem a serra e esse rio maior [mar] que têm seus próprios espíritos, porque tem vida no mar também. No outro país, o que eu vejo? Eu já assisti no vídeo, eu falei para os meus dois cunhados: “Poxa, meu cunhado, os napë (brancos) estão fazendo muita destruição, fábricas e poluição. Esse rio [mar] é uma grande mãe, de lá sai o Rio Negro, Rio Branco, Rio Solimões, Rio Amazonas e um monte de rios. Esse rio maior têm os filhos dele e ele está começando a ficar puto por conta da poluição. Com certeza daqui a pouco vão aparecer problemas: os rios vão atacar as cidades que ficam na beira e vão acabar com todas as vidas dos brancos. Eles pensam que os prédios são leves, mas são de cimento, e que podem cavar buracos dentro da terra para andar outros tipos de automóveis embaixo. Por conta disso, vai acontecer alguma coisa com a terra também. Por isso tenho grande preocupação. Não sou o único, meus parentes também se preocupam. Agora estou sonhando muito ruim. Quando estava na aldeia, estava sonhando bem tranquilo. Aqui [na cidade], estou sonhando muito ruim, é cansativo.

Comissão: Seguindo o caminho aberto por Sérgio, gostaríamos de ouvir suas reflexões sobre os brancos, suas ações destrutivas e a relação com o sonhar. Davi Kopenawa disse que os brancos sonham apenas com eles mesmos, Sérgio afirmou há pouco que os napë não sonham. Em que medida a brutalidade das ações dos não indígenas está ligada à dificuldade ou à incapacidade de sonhar?

Sandra Benites: Fico imaginando o que leva os jurua a não sonhar e a não escutar a si próprios. Acho que não escutam a si mesmos, não sonham consigo mesmos, porque quando você sonha, precisa acreditar para fazer esse efeito, como Alberto falou. Acreditar no sonho é ter uma outra noção de sonho e acho que os jurua, de um modo geral, não têm essa sensibilidade de escuta. Nunca vão entender o que é sonhar. O sonho é, na verdade, um processo, é uma sabedoria e é preciso viver nela como se fosse uma língua. Por exemplo, a gente vive na língua guarani, que é a nossa fala de todos os dias. A gente vive nela, dentro da própria palavra, do próprio nhe’ẽ. A palavra é o nosso próprio espírito - e isso é mais profundo do que uma fala simplesmente falada. Talvez a língua dos jurua não seja uma língua para sonhar.

A língua é uma coisa que nos organiza como seres humanos. Acredito que o sonho tem muito a ver com o surgimento do nosso ser e com uma forma de narrativa que os jurua chamam de mito de origem do mundo. Para nós, a origem dos Guarani é para ser sonhada. Para acreditar no sonho, uma memória passada tem que ser vivida. Acho que essa memória vivida faz com que a gente continue sonhando e compreendendo o sonho. Os jurua podem sonhar, mas não aprendem a escutar e a entender o sonho, não foram ensinados a entender isso. Então, já que não estão entendendo os sonhos, não sonham. E se sonham, não é importante.

Quando a gente sonha com os pássaros, com os animais, com a mata, significa algo. Para nós Guarani, o eclipse da lua e do sol é um sinal, uma mensagem que estão querendo dar para gente -- muitas vezes não é muito boa. Os jurua acham lindo, se reúnem quando dá para ver um eclipse. Mas para nós não é bom, não é um sinal bom. O eclipse do sol é mais grave do que o da lua. Cada eclipse está querendo dizer alguma coisa e os jurua não entendem, apenas acham bonito. O eclipse da lua é como se fosse um cachorro do mato lambendo o sangue da lua para não cair na terra, porque se cair, ela pode queimar. Então, cada eclipse é uma preocupação para nós. Se a gente contar essa narrativa a partir do pensamento dos Yanomami, dos Guarani ou de outras comunidades indígenas do Brasil ou de outro lugar, ninguém vai acreditar, vai achar que é uma lenda da nossa imaginação. Mas acho que essa nossa imaginação é a mesma coisa que um sonho. Uma vez eu contei um sonho a um amigo e ele começou a falar da psique da coisa, foi levando para esse lado. Ele está certo, porque é assim que ele pensa, mas não vai entender o que eu penso, porque é uma outra lógica. Acho que são lógicas muito diferentes. A gente prepara o nosso espírito para sonhar e a gente pode sonhar com coisas ruins e coisas boas. Mas, quando a gente sonha com coisas ruins, é porque está previsto, é como se fosse um aviso, como o eclipse da lua.

Acho importante atravessar esses novos encontros de conversa no mundo jurua, entender e reconhecer que eles não entendem, que não sabem sonhar. E por que não sabem sonhar? É importante questionar os próprios jurua. Por que sonham? Vão falar que é “a psique do negócio que você vive”, “uma coisa inconsciente”. Esse negócio de inconsciente, como falei, não está errado, mas é importante saber porque pensam dessa maneira. Acho que é importante levar adiante esse sonho que a gente acredita para que a gente, como humano, possa aprender a lidar melhor com o não humano, pois eles estão por aí. Eles são os rios, a natureza, as árvores, todas as coisas estão resistindo à nossa ignorância. Estou falando “nossa” enquanto humano e não enquanto indígena. Mas, infelizmente, a maior parte da população do mundo não tem esse entendimento. Muitos não querem saber, não querem nem escutar. Então, esse diálogo é muito difícil de levar para a população. Acredito que nós que sabemos sonhar podemos construir um processo de sonhar, de escuta do sonho. É uma coisa muito desafiadora para nós mesmos, pois tem coisas que a gente não vai poder contar para os outros. Na verdade, é para contar entre nós mesmos. Agora a gente está contando, porque queremos trazer esse pensamento e questionar aqueles que não sabem sonhar ou que não sonham. Talvez a gente possa levar isso como questionamento: Como é que a gente pode viver nesse mundo junto sonhando?

Sérgio Yanomami: No meu pensamento, os brancos precisam conhecer melhor a realidade dos indígenas, dos Yanomami. Assim que vão aprender. Muitos napë não conhecem a nossa realidade. Eu tenho sangue de Yanomami e acho difícil ensinar aos brancos essa realidade, para tentar começar a sonhar com coisas boas. Os brancos que querem acreditar na história dos meus sonhos, têm que começar a sonhar também, têm que tentar andar nos sonhos. Quando sonham, só encontram sonho ruim. Eles andam, mas não acham coisas boas. Precisam começar a sonhar e tentar melhorar o caminho dos sonhos deles - é assim que estou pensando.

Se os brancos escutassem o que estamos falando agora, a minha fala sobre o meu sonho, seria bom. Agora, por exemplo, tem seis brancos escutando os meus parentes contar os seus sonhos. Mesmo que tenham escutado o que eu contei hoje, vão esquecer a minha fala daqui a pouco. Logo vão pensar em coisas do trabalho. É por isso que eu sempre falo que os brancos estão sonhando errado; alguns têm sonhos e outros não têm. Fazem muitas coisas de trabalho e esquecem o que os parentes, os Yanomami, estão explicando para eles. Isso me preocupa muito. Eles esquecem! No pensamento deles, tem muita coisa que querem fazer. Alguns napë entendem sim, mas outros não entendem, porque estão acostumados a destruir, a usar o dinheiro. Eles sempre esquecem a fala da gente. Tentam colocar na memória, mas depois jogam essas palavras fora. Estou querendo mostrar como estou pensando. Se estão espertos para entender as falas dos Yanomami e dos meus parentes, então vai começar a melhorar!

Sandra Benites: Na minha caminhada de curadora, o meu sonho vai se concretizando através das obras dos parentes, através do que os jurua kuery chamam de arte. Cada um tem a sua forma de falar sobre a arte. Nós entendemos que uma obra tenta trazer uma leitura de mundo. Como Jaider Esbellsempre falava, essa leitura de mundo é através da cosmovisão indígena. A exposição que estou sonhando pretende trazer o olhar dos artistas indígenas, esse conhecimento todo que carregamos desde a invasão colonial. Embora a minha avó falasse que o nosso saber não era para ser repassado aos outros, acho isso é importante. Agora a gente está vivendo em um mundo com diversos mundos e acho que esses mundos precisam se encontrar harmoniosamente, com respeito, e não como foi no processo de colonização, com várias violências e massacres. Acho que a sabedoria dos parentes indígenas que está nas obras de arte vai afrontar essa narrativa violenta da colonização. A perspectiva dos parentes é oposta a isso, lida com seres da Terra, com o humano e o não-humano com respeito.

Para nós Guarani, a Terra, yvyrupa, é única, mas tem lugares específicos onde cada um tem o seu espaço, onde cada um vive do seu jeito, a partir dos seus teko. Acho que é essa fronteira que a gente tem que respeitar: essa diversidade de jeitos de viver. A gente vive no mesmo espaço que é a Terra, por isso a gente precisa dos seres da Terra para vivermos e sonharmos bem. A partir da invasão colonial e dos massacres, a gente começa a sonhar coisas horríveis. Acho que quando a gente vivia em harmonia em nossos tekoha - em nossos lugares-, cada um vivia de acordo com o sistema próprio do seu grupo. Mas hoje tudo está limitado. O jurua mesmo vive em um pedaço como se estivesse vivendo em uma ilha, no meio de várias pessoas desconhecidas, não é? Todos são desconhecidos, não sabem quem é quem, o que faz. Está todo mundo se desrespeitando. Por que não sabem respeitar o teko (modo de vida) dos outros? Os jurua e seus governos nos colocam para disputar entre nós mesmos e aí vem essa guerra que não tem fim, um desrespeitando o outro. Acho que quando a gente vive em constantes guerras e conflitos, a gente não consegue sonhar. Só sonhamos com coisas que dão medo e esse medo faz a gente não querer sonhar mais.

Quando jurua sonha, não sabe o que é aquilo e acha que não é importante. Espero que a gente possa levar essas mensagens para sociedades que também tenham interesse de escutar e compreender. A minha língua é o meu pensamento, é a minha sabedoria. Minha língua é o que eu vivo, é o que carrego, é o meu espírito, o meu ser. Não estou dizendo que a outra língua não é importante para mim. Uso o português para me comunicar com os meus parentes que falam outras línguas - é importante como um instrumento de luta. Mas aí tem outras línguas, como inglês, que são mais confusas para mim. Talvez eu tenha medo de não sonhar mais em guarani depois de aprender essas línguas ou de sonhar em confusão. Quero continuar sonhando em guarani, na aldeia guarani, quero continuar sonhando com essa forma. Quem sabe um dia eu aprenda outras línguas, mas só depois que estiver segura naquilo que sonho.

BIBLIOGRAFIA

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    Trata-se de um pó alucinógeno e alimento dos espíritos auxiliares dos xamãs.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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