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DEUS E O DIABO NA BIBLIOTECA DE UM CÔNEGO DA BAHIA: O INVENTÁRIO DOS LIVROS DO PADRE MANOEL DENDÊ BUS EM 1836

GOD AND THE DEVIL IN THE LIBRARY OF A CANON OF THE BAHIA: THE INVENTORY OF BOOKS OF THE PRIEST MANOEL DENDÊ BUS IN 1836

Resumos

O presente artigo investiga e cataloga a biblioteca particular do cônego da Sé da Bahia, Manoel José de Freitas Baptista Mascarenhas (Manoel Dendê Bus). O inventário do referido padre traz a lista de 176 obras arroladas pelo livreiro e impressor José Paulo Franco Lima em 1836. A partir desta lista foi possível identificar e reconstruir um catálogo de uma biblioteca privada formada na Bahia entre o fim do período colonial e a Regência.

Catálogo de biblioteca oitocentista brasileira; circulação de impressos; livros raros na Bahia colonial


This article investigates and catalogs the private library of the cônego of the Sé of Bahia, Manuel José Baptista de Freitas Mascarenhas (Manoel Dendê Bus). His inventory shows the list of enrolled 176 works by the bookseller and printmaker José Paulo Franco Lima in 1836. This list allows to identify and reconstruct the catalog of a private library formed in Bahia between the end of the colonial period and the Regency.

Nineteenth-century Brazil library catalog; circulation of imprinted; rare books in colonial Bahia


Dendê Bus

A história das bibliotecas privadas no Brasil colonial foi iniciada em 1945, há 70 anos, por meio da publicação de O diabo na bibioteca do cônego, estudo clássico de Eduardo Frieiro que analisou o traslado do auto de sequestro feito nos bens que se acharam em casa do cônego Luís Vieira da Silva. Implicado na Inconfidência Mineira e admirador das ideias da Ilustração, Vieira da Silva possuía, então, 270 títulos distribuídos em 800 volumes.1 1 FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do cônego. Edições Cultura Brasileira, 1945. Frieiro percebeu, na coleção de livros do cônego Silva, a presença de abomináveis princípios franceses que inspiraram seu grupo político na contestação às estruturas coloniais impostas pelas autoridades portuguesas.

Depois da obra de Frieiro, outros estudos acerca das bibliotecas particulares tiveram lugar. Luiz Carlos Villata investigou os livros apreendidos aos demais inconfidentes.2 2 VILLALTA, Luiz Carlos. O diabo na livraria dos inconfidentes. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 267-295. Do mesmo autor, ver também: VILLALTA, L. C. Governadores, bibliotecas e práticas de leitura. Atalaia, Lisboa, v. 6/7, 2000, p. 277-286. VILLALTA, L. C. & MORAIS, Christianni Cardoso. Posse de livros e bibliotecas privadas em Minas Gerais (1714-1874). In: BRAGANÇA, Aníbal & ABREU, Márcia (org.). Impresso no Brasil - Dois séculos de livros brasileiros. São Paulo: Editora Unesp, 2010, p. 401-418. Ainda para a capitania de Minas Gerais, Junia Ferreira Furtado analisou a biblioteca do naturalista José Vieira Couto, que contava 238 títulos em 601 volumes.3 3 FURTADO, Junia Ferreira. Sedição, heresia e rebelião nos trópicos: a biblioteca do naturalista José Vieira Couto. In: DUTRA, Eliana & MOLLIER, Jean-Yves (org.). Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da vida política: Brasil, Europa e Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, p. 72. Borba Moraes publicou a lista de livros da biblioteca de Manoel Inácio da Silva Alvarenga.4 4 MORAES, Rubens Borba de. Livros e bibliotecas no Brasil colonial. São Paulo: SCTT, 1979, p. 185-195. Márcia Abreu identificou bibliotecas privadas no Rio de Janeiro5 5 ABREU, Márcia. Uma biblioteca particular, dois proprietários e nenhum perfil de leitor. Um estudo dos livros de Daniel Pedro e João Guilherme Christiano Müller. In: ANASTÁCIO, Vanda. (org.). Tratar, estudar, disponibilizar: um futuro para as bibliotecas particulares, v. 1. Lisboa: B. E. S., 2013, p. 59-70. e Gilda Verri estudou a entrada de livros na capitania de Pernambuco e na Paraíba na transição do século XVIII para o XIX, usando a documentação da Real Mesa Censória.6 6 VERRI, Gilda M. W. Tinta sobre papel: Livros e leituras em Pernambuco no século XVIII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2006, 2 v.

Sobre a capitania da Bahia pouco se avançou nos últimos quarenta anos. Coube a Katia Queirós Mattoso discutir o conteúdo das bibliotecas privadas apreendidas a Cipriano Barata e ao tenente Hermógenes de Aguiar Pantoja, personagens implicados na Conjuração Baiana de 1798.7 7 MATTOSO, Katia Queirós. Presença francesa no Movimento Democrático Baiano de 1798. Salvador: Itapuã, 1969, p. 18-33. Apesar destes competentes estudos, Villata observou, acertadamente, que "a historia do livro no Brasil colonial está, em grande parte, ainda por se escrever. De fato, são inúmeros os silêncios e as lacunas da historiografia no que tange aos livros, às bibliotecas e às práticas de leituras no Brasil colonial".8 8 VILLALTA, L. C. Bibliothéques privées et pratique de lecture au Brésil colonial. In: COLLOQUE AUX TEMPS MODERNES: NAISSANCE DU BRÉSIL (1500-1808). Actes. Paris: PUF, 1998.

Em síntese, na falta de catálogos de bibliotecas privadas brasílicas, sendo o primeiro catálogo de livros particulares publicado apenas em 1907, os historiadores encontraram três fontes para conhecer as bibliotecas e os hábitos de leitura na colônia: os fundos da Real Mesa Censória, os autos das devassas e os livros inventariados em testamentos. Os inventários são o mais promissor pelo seu ineditismo, já que os documentos produzidos nas devassas contra inconfidências e conjurações são bem conhecidos há décadas. Por essa razão, é imprescindível recuperar e divulgar os inventários dos nossos antigos ajuntadores de livros. Além disso, é possível relacionar essas infomações com a biografia dos seus proprietários.

Em relação à Província da Bahia, uma das mais interessantes coleções privadas que pude localizar no Arquivo Público do Estado da Bahia pertenceu ao cônego Manoel Dendê Bus. Aliás, o padre Dendê Bus foi um dos indivíduos mais ativos da Guerra de Independência da Bahia (1822-1823). Para entender sua biblioteca é necessário, primeiro, compreender esse homem contraditório. Alguns aspectos da sua biografia foram investigados por Manoel de Aquino Barbosa e Cândido da Costa e Silva.9 9 BARBOSA, Manoel de Aquino. Padre Manoel Dendê Bus: figura do movimento liberador de 1822 e vigário da Conceição da Praia. Salvador. Anais do Arquivo do Estado da Bahia, vol. 40, 1971, p. 171-209. Manoel José de Freitas Baptista Mascarenhas, nome de batismo, nasceu na freguesia da Sé no Porto, em Portugal, a 6 de dezembro de 1784, filho de Manoel Gonçalves da Costa e Catarina Maria de Jesus, ambos portugueses. Ainda muito jovem, Manoel de Freitas Mascarenhas veio para a Bahia, onde frequentou estudos particulares. Foi ordenado presbítero aos 27 anos, em 25 de julho de 1812, pelo arcebispo d. fr. José de Santa Escolástica. No ano seguinte, 1813, foi nomeado vigário colado da freguesia de Nossa Senhora d’Ajuda da Vila de Jaguaripe, no Recôncavo baiano. Em seguida, foi nomeado, a 22 de junho de 1815, professor de Gramática Latina na Vila Nova da Rainha, sendo transferido a 14 de setembro do mesmo ano para a Vila da Cachoeira.10 10 SILVA, Cândido da Costa e. Os segadores e a messe: o clero oitocentista na Bahia. Salvador: EduFBA, 2000, p. 461-462.

Em 1819, Manoel de Freitas, no cargo de professor régio de latim na Vila de Cachoeira, encaminhou um requerimento solicitando licença para ir ao Rio de Janeiro, "para tratar assuntos de seu interesse". Não é possível verificar quais foram esses assuntos, mas o professor comprometeu-se a deixar um substituto na sua cadeira, "pago a sua custa".11 11 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ). Seção de Manuscritos; Coleção: Documentos Biográficos. C-0098,044, nº 001. Requerimento encaminhado ao Ministério do Império, solicitando licença para vir ao Rio de Janeiro, por um ano, e compromete-se a deixar substituto na cadeira de latim, que leciona em Cachoeira, Bahia. Manuscrito. Sem local, 16 de janeiro de 1819. BNRJ. Seção de Manuscritos; Coleção: Documentos Biográficos. C-0098,044, nº 002. Requerimento encaminhado ao Ministério do Império, solicitando licença para vir ao Rio de Janeiro, para tratar assuntos de seu interesse, e comprometer-se a deixar um substituto na sua cadeira, pago a sua custa. “Diz Manoel José de Freitas, Presbitero Secular e Professor Regio de Latim nesta Villa da Caxoeira, que para tratar de certos arranjos, que lhe são indispensaveis, necessita de hir á Corte do Rio de Janeiro, e ter nella alguma demora, em quanto trata dos mesmos. Mas como o não pode fazer sem licença de V. Ex.a, recorre e a V. Ex.a, se digne conceder ao suppl.e a licença requerida por hum anno, obrigando-se o mesmo a deixar no exercício da sua Cadeira hum Substituto pago por elle”.

Após transitar pelo Rio de Janeiro, não tardou para que o professor retornasse para a Bahia. Foi a Guerra de Independência que mudou a história de Manoel Baptista Mascarenhas. Mudou, inclusive, seu nome, sendo "rebatizado" como Manoel Dendê Bus, que adotou em 14 de março de 1823, no calor da luta contra os portugueses. Mudança, aliás, autorizada por despacho do governo e acompanhada do aviso público pela imprensa.

Teve papel destacado na Independência na Bahia.12 12 MILTON, Aristides Augusto. Efemérides cachoeiranas. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (RIGHBA), vol. VI. Salvador: Imprensa Oficial, n. 10º, 1899, p. 234. Foi eleito, pela Vila de Pedra Branca, membro do Conselho Interino da Província, eleito em Cachoeira, a 6 de setembro de 1822, para o governo provisório da Bahia e expulsão das forças lusitanas, então comandadas pelo brigadeiro Inácio Madeira de Mello. O padre Freitas era pessoa de confiança de José Antônio da Silva Castro, avô do poeta Castro Alves, que o fez se eleger representante de Pedra Branca.13 13 CALMON, Pedro. A vida de Castro Alves. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947, p. 5. Com o início da Guerra de Independência e a ocupação de Salvador pelas tropas portuguesas chefiadas por Madeira de Mello, a Vila de Cachoeira, tornou-se, com certo exagero dos contemporâneos, a "Filadélfia brasileira".14 14 SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira. Memorias históricas e politicas de provincia da Bahia, vol. 2. Bahia: Typ. do Correio Mercantil, 1836, p. 104 e 150. Essa junta agiu imediatamente em três instâncias. As comissões de caixas militares, criadas nas diversas vilas do Recôncavo baiano, foram o primeiro objeto de seus cuidados, reformando-as e tirando-lhes as atribuições governativas que elas se tinham arrogado, de sorte que ficaram reduzidas a meros comissariados de guerra. Em segundo, estabeleceu um correio terrestre desde a Vila de São Francisco do Conde até a de São Jorge de Ilhéus, para facilitar as comunicações com os grandes proprietários rurais do sul da Bahia. Por fim, a 28 de setembro, assumiu o comando da força militar com o objetivo de obstar a insubordinação dos soldados. Em 21 de outubro, foi redigido um ofício para d. Pedro I, informando o governo do Rio de Janeiro destas ações e da situação do governo instalado em Cachoeira.15 15 SILVA. Memorias, op. cit., p. 150-151.

Junto com o ofício, foram encaminhadas as Instruções a que se refere o officio acima, no qual Manoel Dendê Bus foi um dos onze signatários. Primeiro, solicitaram ao governo o envio de armas, munições e oficiais habilitados para comandar as tropas no Recôncavo. Segundo, propuseram a criação de um canal de comunicação entre a Corte e a Bahia. Em seguida, apresentaram a proposta de manutenção da junta que estava no governo da Bahia até a situação ser organizada pela via constitucional. Em quarto, vetar ao bispo de São Paulo, como diocesano mais antigo, apresentar vigário capitular para Salvador "por não haver, durante a ocupação da cidade, recurso algum eclesiástico na província". Quinto, definir o método de eleição e número de procuradores da província, bem como o número de deputados eleitos após o desmembramento da comarca de Sergipe. Sexto, resolver a questão dos prisioneiros políticos. Sétimo, providenciar recursos judiciais, pois a ocupação da capital a isolou dos tribunais superiores. Por fim, em oitavo, definir as tropas que deveriam guarnecer a Bahia após a retirada das tropas portuguesas.16 16 SILVA. Memorias, op. cit., p. 153-154.

Manuel de Freitas foi um ardoroso defensor da causa da independência. Tão ardoroso que teria proposto uma ação política extrema: a execução de todos os europeus residentes na colônia. O jornalista Ignacio José de Macedo, redator da Idade d’Ouro do Brazil e de O Velho Liberal do Douro, defensor da manutenção do Brasil na condição de reino unido, revelou que "Até hum pobre Clerigo filho do Porto, que se fez Brazileiro para ser Vigário, e que era tido por muito Liberal, votou no governo da Cachoeira, que fossem assassinados todos os Europeos, excepto elle".17 17 MACEDO, José Ignacio de. O Velho Liberal do Douro, n. 34. Lisboa: Imprensa da Rua dos Fanqueiros, 1833, p. 5. Apesar de não declarar nominalmente o autor deste voto, os indícios apontam seguramente para Dendê Bus. Não havia outro vigário portuense na Junta de Cachoeira. Por ocupar-se da guerra, foi oficialmente afastado da docência de gramática e latim pelo Conselho Interino que nomeou para substituí-lo o padre Manuel Gomes de S. Leão, que foi depois vigário da Conceição da Feira.18 18 MILTON. Efemérides. RIGHBA, vol. VI, nº 10, 1899, p. 234.

Após o 2 de julho e a saída das forças de Madeira de Mello, Dendê Bus seguiu novamente para o Rio de Janeiro, zarpando a 19 de julho no brigue de guerra Guarani. Chegou à Corte no dia 30, após 11 dias de viagem, acompanhado do 1.º tenente Vicente Jorge Croston, comandante do Guarani, do deputado Miguel Calmon Du Pin e Almeida, seu suplente Antonio Calmon Du Pin e Almeida, além de outros veteranos da guerra.19 19 Diario do Governo, nº 27, sexta-feira, 1 de agosto de 1823. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 4.

O objetivo de Manoel Dendê Bus no Rio de Janeiro era pleitear alguns benefícios em reconhecimento dos serviços prestados na guerra, encontrando, contudo, alguns obstáculos.20 20 Diario do Governo, nº 64, terça-feira, 16 de setembro de 1823. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 4. Recebeu, por fim, a comenda de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro21 21 BNRJ, Seção de Manuscritos, Coleção Documentos biográficos, C-0027,023, nº 002. Recibo passado pelo Ministério do Império a Manuel Dendê Bus, no valor de 20$000, pelo pagamento da joia da Ordem do Cruzeiro. [S. l.], 1823. “A F. 41 do Livro Primeiro, que nesta Chancellaria da Ordem Imperial do Cruzeiro serve de Receita, e Despesa com Marianno Antonio de Amorim Carrão, Thesoureiro da dita Ordem, lhe fica carregado a quantia de vinte mil reis ˶20$000˶ que deu de joia Manoel Dendê Bus pela Mercê de Cavalleiro da sobredita Ordem. Rio de Janeiro 16 de outubro de 1823. Marianno Antonio Amorim Carrão”. Diario do Governo, nº 91, sexta-feira, 17 de outubro de 1823. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 1. João Baptista de Carvalho 17 de outubro de 1823. e da Ordem de Cristo.22 22 Diario Fluminense, nº 132, sexta-feira, 3 de dezembro de 1824. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, p. 1. Ainda na Corte, o vigário da Conceição da Praia requereu o direito de "usar do Sendal Roxo em consequencia da mercê, que teve das honras de cônego da Sé Metropolitana da Bahia".23 23 Diario do Governo, nº 101, quinta-feira, 6 de maio de 1824. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 2. Após quase cinco meses na Corte, a 22 de novembro de 1823 partiu do Rio de Janeiro com destino a Salvador, no brigue Jupiter. 24 24 Diario do Governo, nº 123, terça-feira, 25 de novembro de 1823. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, p. 4.

A luta e a vitória sobre os portugueses impulsionou a carreira do padre Dendê Bus. A 27 de agosto de 1823, foi apresentado como vigário colado, por carta imperial, para a freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Praia, cargo de que tomou posse em 16 de janeiro de 1824. Também por carta imperial foi nomeado cônego honorário da Sé Metropolitana a 22 de setembro de 1823. Ocupando cargos eclesiásticos em Salvador, o padre teve que transferir a docência em latim para a capital da província, o que conseguiu a 28 de fevereiro de 1828. Segundo Sacramento Blake, Manoel de Freitas "foi condecorado com a medalha da campanha da independência do Brazil, para a qual cooperou efficazmente".25 25 BLAKE, Augusto Alves Vitorino Sacramento. Diccionario bibliographico brazileiro, vol. 6. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, p. 58-59. Sacramento Blake, que pouco acrescenta, duvida da existência da gramática em 1810, apontando a edição de 1820. Foi Blake, aliás, que fez uma grande confusão na biografia de Dendê Bus. O bibliógrafo baiano confundiu, no seu famoso dicionário oitocentista, Manoel José de Freitas Baptista Mascarenhas com Manoel José de Freitas, o gramático baiano que se intitulou Manoel de Freitas Brazileiro. Foi-nos possível, não obstante, desfazer a confusão de Blake em recente estudo sobre a gramática de Freitas Brazileiro.26 26 MAGALHÃES, Pablo Antonio Iglesias. A palavra e o Império: Manoel de Freitas Brazileiro e a Nova grammatica ingleza e portugueza. Clio, v. 31.1, 2013. (Série História do Nordeste - UFPE) Apesar da homonimia e de ambos lecionarem gramática, são indivíduos distintos.

A Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro conserva uma coleção de dezenove documentos, manuscritos e impressos sobre Dendê Bus não indicados na monografia escrita por Manoel de Aquino Barbosa.27 27 Manuscrito. 1824-1828. BNRJ, Seção de Manuscritos, Coleção Documentos biográficos, C-0027,023, nº 001. Requerimento encaminhado ao Ministério do Império, solicitando Habito de Cristo; solicita serventia vitalícia do diploma da cadeira de gramática e língua latina; solicita ordem para tratamento da “senhoria”. [S. l.], 1824-1828. 19 documentos. Notas: Orig. Ms. O Independente Constitucional. Bahia, exemplares nº 58 - março/1826 - vol. 3º; nº 64 - abril/1826 - vol. 4º; nº 68 - setembro/1826 - vol. 3º; nº 80 - outubro/1826 - vol. 4º. Essa coleção foi resultado de diversas petições enviadas ao governo no Rio de Janeiro. Na primeira, de 1828, o cônego da Sé da Bahia pede a sua confirmação na cadeira de gramática latina na Cidade Baixa, cargo que já exercia na condição de substituto:

Senhor

Com a mais profunda submissão Representa a Vossa Magestade Imperial Manoel Dendê Bus, Conego Honorario da Sé Metropolitana da Cidade da Bahia, que, achando-se Provido na Cadeira Publica de Grammatica e Lingua Latina do districto da mesma Cidade denominado a Praia ou Cidade Baixa, vaga por fallecimento de seu ultimo Proprietario o Padre Ignacio Jose Simões de Carvalho e Velho, pelo Governo daquella mesma Provincia em perfeita observancia do Decreto de V. M. I. em data de 15 de Novembro ultimo, e dos artigos 7º e 8º da Carta de Lei de 15 de Outubro, também ultimo, que aquelle Decreto faz extensivos para o provimento de taes Cadeiras; o que se mostra da própria Provisão junta, pela qual se acha o Suppl.˶ no effectivo exercicio da mesma Cadeira desde o dia 3 de Março ultimo; e mais ainda deve constar da parte que o Presidente daquella Provincia há de ter dado a V. M. I. nos termos do mencionado artigo 7º: precisa agora para complemento da predita lei, que V. M. I. lhe faça a mercê de lhe Mandar passar o respectivo Diploma de serventia vitalícia da dita Cadeira. He por isso, que o Suppl.e recorre e Pede a Vossa Magestade Imperial, Haja por bem de lhe Mandar passar Carta de serventia vitalícia da dita Cadeira; no que E. R. M.

Bahia 2 de Abril de 1828

Manoel Dendê Bus

O segundo documento confirma que a petição de Dendê Bus foi apadrinhada pelo próprio presidente da província da Bahia, José Egídio Gordilho Barbuda, e antigo comandante do exército pacificador na guerra de 1822-23:

José Egidio Gordilho de Barbuda Vereador e Fidalgo Cavalleiro da Casa Imperial (...), que tendo respeito achar-se vaga por fallecimento do Padre Ignacio José Simões de Carvalho e Velho a Cadeira de Grammatica Latina da Cidade baixa, e sendo necessário, em conformidade da Resolução da Assembleia Geral Legislativa, sancionada por Decreto de 15 de Novembro do anno passado, que faz extensiva aos Professores da Lingua Latina a disposição dos Artigos segundo, setimo, oitavo, nono, decimo quarto, e decimo sexto da Carta de Lei de 15 de Outubro do dito anno a respeito dos de Primeiras Letras, provê-la em pessoa capaz, e que tenha os precisos requisitos: por concorrerem estes na do Conego Manoel Dendê Bûs, que tendo-se mostrado competentemente habilitado, e sendo examinado publicamente perante o Presidente da Provincia em Conselho, foi plenamente approvado pelos respectivos Examinadores. Por todos estes motivos, e ter jurado a Constituição Politica do Imperio, o nomeis Proffessor Publico da referida Cadeira de Grammatica Latina da Cidade baixa, da qual tomará posse, e perceberá o Ordenado á ella correspondente, depois de prestar o devido juramento na Secretaria deste Governo, e deverá requerer a Imperial Confirmação na Corte do Rio de Janeiro. Francisco José Corte Imperial a fez aos vinte seis dias do mez de Fevereiro de mil oitocentos e vinte oito. Desta dezeseis mil reis.

Jose Egidio Gordilho de Barbuda

No terceiro documento, mais curioso, o cônego requereu ao governo a confirmação do direito de ser tratado por "Sua Senhoria" por parte do vigário capitular da Sé. A resposta a suplica do cônego veio de cima, conforme publicado no periódico baiano O Independente Constitucional:

Eu o Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do Imperio do Brazil: Faço saber, que Attendendo ao que Me representou Manoel Dendê Bus, Apresentado na Igreja Parochial de Nossa Senhora da Conceição da Praia da Cidade da Bahia: Hei por bem, que possa usar dos Habitos de Conego da Sé Metropolitana daquella Cidade, e gozar de todas as honras, que lhe forem inherentes. Este se cumprirá sendo passado pela Chancelaria das Ordens, e valerá como Carta, posto que seo effeito haja de durar mais de um anno, sem embargo da Ordenação em contrario. Rio de Janeiro vinte dois de Setembro de mil oitocentos e vinte trez, segundo da Independencia e do Imperio.

Imperador. 28 28 O Independente Constitucional, nº 64. Bahia, terça-feira, 19 de setembro de 1826; O Independente Constitucional, nº 86. Bahia, terça-feira, 17 de outubro de 1826.

O fato é que Dendê Bus circulou bem entre os homens das esferas política, militar e intelectual. O documento que mais revela aspectos da sua vida privada é, sem dúvida, o seu testamento, acompanhado do respectivo inventário dos seus bens. O testamento foi lavrado na cidade do Salvador, a 28 de março de 1836, observando que "São estes dous meninos herdeiros, que aqui instituo".29 29 Manuscrito. 1836. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária: Série Inventários: Manoel Dendê Bus (1836-7/795), maço 2432, doc. 2, fl. 4. Os dois meninos eram seus dois filhos, concebidos após o pai receber ordens sacras, batizados como Grato Galindo Acayaba Dendê Paraguassú (Cachoeira, 8/02/1823) e Justo Glicerio Guanadiano Dendê Caramurú (Salvador, 13/05/1825), filhos de Maria Joaquina de Oliveira. A vida sentimental do padre foi, contudo, bastante conturbada, pois a referida mulher, branca e solteira, que viveu na casa do padre até 1828, saiu de lá grávida de uma menina, batizada de Augusta, criança que o padre afirmava não ser dele. Foram as questões de foro privado, decorrentes da disputa judicial, questionando a paternidade da menina e protegendo o direito a herança dos dois meninos, que produziu o mais completo documento sobre a vida do padre Dênde Bus: o testamento, seguido de um volumoso inventário, em que está descrita sua preciosa coleção de livros. Possivelmente, uma das melhores bibliotecas privadas da Bahia na primeira metade do século XIX.

A biblioteca do cônego

Felizmente, por meio do seu inventário, podemos visualizar e reconstituir a biblioteca do padre Dendê Bus. Os livros foram arrolados entre as folhas 37 e 47 do documento, que se constitui na lista de uma das mais significativas bibliotecas particulares existentes em Salvador no período que compreende o fim do período colonial e o período regencial (1831-40). Certamente, ter-lhe-ia feito sombra a biblioteca de Francisco Agostinho Gomes que, segundo um almirante britânico, teria muitos milhares de livros, parte dos quais cedidos à Biblioteca Pública da Bahia que foi inaugurada em 1811. No caso da biblioteca particular de Dendê Bus, foram arroladas no inventário 176 obras, que alcançaram 291 volumes, número que poderia ser ampliado se tivéssemos mais dados sobre um códice factício de sermões, que geralmente traz enfaixado diversos folhetos.

Para examinar o valor monetário da biblioteca o juiz convocou o livreiro e tipógrafo José Paulo Franco Lima. Era, sem dúvida, um dos principais comerciantes de livros em Salvador e autor de um raríssimo catálogo, impresso em Paris em 1822, com livros que disponibilizava na sua loja ao Taboão.30 30 NAMUR, Jean Pie. Bibliographie paleographico-diplomatico-bibliologique générale ou répertore systématique. Liége: P. J. Collardin, Imprimeur de l'Université et Libraire, 1838, trosiéme partie, p. 188. Item 1721. Catalogo dos livros portuguezes, latinos e francezes que se achão à venda em caza de M. J. Pereira Coimbra, e na loge de Jose Paulo Franco Lima ao Taboão na Bachia (sic). Paris, 1822, in-4. Em 1835, transferiu a Typografia de Franco Lima do largo do Terreiro para a rua Direita do Palácio, atual rua Chile, casa nº 18.31 31 TAVARES, Luis Guilherme Pontes (ed.). Estabelecimentos de oficinas de impressão (1833-1927). Salvador: Nehib, 2009, p. 12.

O primeiro livro indicado no inventário é De Manu Regia Tractatu, impresso em dois volumes por Pedro Craesbeeck em 1622, tendo a segunda edição por Bourgeat em 1673 e a terceira por João Batista Lerzo, já em meados do século XVIII. É bem possível que esta última edição tenha sido a que existia na coleção de Dendê Bus.32 32 SILVA, Innocencio Francisco. Dccionario bibliographico portuguez, tomo III. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860, p. 107. Não é tarefa fácil reconstituir a biblioteca do cônego ou qualquer outra por meio de um inventário preparado de forma muito desleixada e preguiçosa, como fez Franco Lima. O segundo item, por exemplo, foi descrito como "Atalas de Vanquedi" (sic); levou-me a pensar, de início, que este nome fosse uma corruptela do Atlas de Jean van Keulen (1680), impresso em Amsterdam. O atlas de Keulen já era, àquela época, decerto, uma obra estimada e de grande valor entre colecionadores e bibliófilos; possivelmente valor grande demais para as côngruas pagas a um sacerdote da Sé da Bahia. Então, concluí que "Vanquedi" seria a corruptela de Robert de Vaugondy, que publicou um atlas em Paris, muitas vezes reimpresso no século XVIII.

A historiadora Kátia Queiroz Mattoso já consultara o inventário de Dendê Bus, mas sem aprofundar a leitura do seu conteúdo. Mattoso, por exemplo, ao examinar o inventário, observou que

(...) o que impressiona, sobretudo, é a quase que completa ausência de obras teológicas. Com efeito, a literatura religiosa na biblioteca do Padre Dendê Bus, posto à parte a Bíblia, limitava-se ao Prontuário de Theologia Moral, que, apesar de não ter indicação de autoria no inventário, certamente trata-se da obra espanhola basilar na formação espiritual dos eclesiásticos brasílicos, que teve por autor o dominicano Francisco Larraga, com diversas edições saídas dos prelos lisboetas no século XVIII.33 33 MATTOSO, Katia M. de Queiros. Grandeurs et misères du clergé bahianais à la fin de la période coloniale (1800-1822). Histoire, économie et société, vol. 13, nº 13-2, 1994, p. 291-319; MATTOSO, Katia. Les inégalités socio-culturelles au Brésil: XVIe-XXe siècles. L’Harmattan, 2006, p. 213-214.        

Mattoso ainda afirmou, por fim, que, entre os livros do cônego, "não faltavam os clássicos ingleses de Jeremy Bentham, difusor do utilitarismo, e Adam Smith, o criador do liberalismo". Equivocou-se a referida historiadora em dois pontos. Primeiro, não há a indicação de nenhum exemplar do livro de Adam Smith, apesar de já haver sido publicado em 1812 pela Impressão Régia do Rio de Janeiro, com tradução de Bento da Silva Lisboa. Segundo, há, proporcionalmente, um razoável número de obras teológicas, litúrgicas e religiosas arroladas. É possível encontrar a teologia jesuítica, presente nas obras de Paolo Segneri e Hermanni Busembaum.

Estavam presentes também os livros do padre oratoriano Antonio Pereira de Figueiredo (1725-1797), o autor com maior número de obras na biblioteca de Dendê Bus. Figueiredo foi um sacerdote português que desempenhou as atividades de latinista, historiador, canonista e teólogo. Seu trabalho mais importante foi a tradução da Bíblia da Vulgata Latina para a língua portuguesa, que durou 18 anos para ser completada. Inicialmente, foi publicado o Novo Testamento, entre 1778 e 1781, em seis volumes. O Antigo Testamento foi publicado, entre 1782 e 1790, em 17 volumes, tendo a Bíblia, ao todo, 23 volumes. Uma versão mais reduzida (em sete volumes) é considerada padrão e foi publicada em 1819. A versão da Bíblia em volume único só foi publicada em 1821. O Novo Testamento em volume único surge em 1823 e é justamente o que consta no inventário (item 159). Além desse livro valioso, existem mais quatro obras da autoria de Figueiredo (itens 52, 91, 132 e 146), de natureza linguística ou teológica.

Os livros de teologia não eram, contudo, a melhor parte da biblioteca do cônego. Eram, decerto, úteis para o ofício de um sacerdote, mas eram livros que tiveram milhares de exemplares impressos em diversas edições. Destaca-se ainda, nesse conjunto, a Colecção de bençãos eclesiásticas, curioso livro com exorcismos do ritual católico e pautas musicais de cantochão, onde estão descritas as fórmulas das bênçãos da água, do anel, dos bichos da seda, dos pertences aos bispos, das candeias, das casas, do cemitério, da comida, da cruz, das espadas, dos estandartes, dos enfermos, do fogo em que se hão de queimar os sinais dos feitiços, dos frutos, do gado, das ervas, do leite, do mel, das lombrigas, dos ovos, do pão e das rosas. Encontramos também as fórmulas dos exorcismos do sal, da água, contra as aves, gafanhotos e contra a peçonha de animais venenosos.

Á área do conhecimento que se destaca na biblioteca é a de linguística. Isso não surpreende, em razão do proprietário ser professor de gramática latina. Dendê Bus apreciava os clássicos latinos, possuíndo as obras de Ovídio, Virgílio, Terêncio, Horácio, Cícero e Salústio. Também possuía bons dicionários. O cream de la cream, ao meu ver, é o dicionário de Antonio Morais Silva, que foi constantemente publicado ao longo do século XIX. Estimado desde a primeira edição (1789), alcançou 8$000 réis, o maior valor atribuído pelo avaliador para um item do conjunto de livros do padre. Havia dicionários franceses, espanhóis, latinos, gregos, italianos, hebraicos, holandês e até em russo.

O diabo, contudo, também estava presente na biblioteca do cônego da Sé da Bahia. Livros contendo os "abomináveis princípios franceses" eram abundantes na coleção. Os franceses da Ilustração estavam presentes por meio das obras de Fénelon, Montesquieu, Jean-Jacques Rousseau e Voltaire.34 34 Manuscrito. 1836. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária: Série Inventários: Manoel Dendê Bus (1836-7/795), maço 2432, doc. 2. A obra de Rousseau foi tardiamente vertida em português, mas, apesar disso, traduções de seus livros estavam presentes no inventário. Em contrapartida, Portugal conheceu um imenso número de traduções dos escritos de Voltaire, especialmente no período entre 1785 e 1820, mas, ironicamente, não encontrei nenhuma no inventário dos livros. Talvez porque fossem obras difíceis de serem achadas em virtude de confiscos feitos pela Real Mesa Censória, como ocorreu com a Henriada, de Voltaire, traduzida pelo mineiro Thomaz de Aquino Belo e Freitas em 1789.

Tanto a parenética quanto a literatura portuguesa são bastante reduzidas. De bom e estimado, havia os sermões do baiano fr. Bento da Trindade, com seis volumes, impressos em Lisboa pelo tipógrafo e livreiro Rolland. Dos poucos clássicos portugueses, estavam presentes as obras de Luís de Camões e Manuel Maria Barbosa du Bocage. A verve crítica do árcade Cruz e Silva também estava presente por meio de O Hyssope, cuja primeira edição foi tirada em Paris em 1802 e logo proibida em Portugal, por ridicularizar a Igreja Católica e os resquícios feudais na mentalidade dominante. A segunda edição foi impressa em Lisboa pelo livreiro Rolland durante a ocupação francesa e os seus exemplares à venda imediatamente apreendidos após o fim da mesma, em setembro de 1808. Aliás, em 18 de abril de 1803, fora publicado um edital do intendente de polícia, Pina Manique, que condenava a 10 anos de degredo em África quem fosse descoberto na posse de O Hyssope.

Na coleção havia poucos livros impressos na Bahia, mas contava com a Alfonsiada (1818) de Lima Leitão, impresso na Tipografia de Manoel Antonio da Silva Serva. O Cornelio Nepotes também teria sido publicado por Serva em 1819, mas não foi possível encontrar algum exemplar para exame. Da Imprensa Nacional, criada em Cachoeira em 1823 e em seguida transferida para Salvador, havia a gramática inglesa (1827) do dr. Jonathas Abbott, da qual só resta um exemplar preservado, sob os cuidados do seu herdeiro Fernando Abbott Galvão. O único periódico arrolado no inventário foi o Annaes das Sciencias, das Artes e das Letras, publicado em Paris a partir de 1818 e que contava com alguns assinantes da Bahia.

Dendê Bus pode ter aproveitado sua estadia na Corte para adquirir livros fluminenses, especialmente os da Impressão Régia e de Plancher.35 35 Diario Fluminense, nº 44, sexta-feira, 25 de fevereiro de 1825, p. 178. Da tipografia maçônica de Plancher consta o Império do Brasil, considerado nas suas relações politicas, e commerciaes, por La Beaumelle, novamente correcto, e addicionado. Dentre os livros fluminenses do cônego, havia um exemplar do Compendio da Historia dos Estados Unidos da America, traduzido do hespanhol, por hum brasileiro, publicado na Typographia do Diario em 1827. Essa é a tradução brasileira do livro de Vicente Pazos Kanki, tão rara que só encontrei um exemplar no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.36 36 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DA BAHIA. Catálogo de obras raras da biblioteca Rui Barbosa. Salvador: IGHB, 2013, p. 112.     

Usei alguns critérios para identificar os livros arrolados no inventário do cônego. Obviamente, todas as obras e edições eram anteriores a 1836. O principal desafio para algumas obras foi identificar a edição, pois Franco Lima não teve o cuidado de registrar, em nenhum caso, o impressor ou o ano em que a obra foi ao prelo. Em poucos itens, Lima indica o corte do exemplar, normalmente in-folio, in-4 ou in-8. O número de volumes também ajudou a identificar a edição do livro, bem como a língua em que foi publicado. Ainda assim, em parte dos livros, foi impossível identificar com precisão a edição inventariada. Nestes casos, indiquei mais de uma edição, sempre anteriores à data do inventário. No fim, temos um mosaico de possibilidades.

Seguindo as pistas dadas por Franco Lima, apuramos que a biblioteca do padre era formada por 92 livros em português, 37 em latim, 32 em francês, cinco bilíngues, três italianos, dois em inglês, um espanhol e quatro que não puderam ser identificados, somando o total de 176 obras; 52% dos livros eram em língua portuguesa, 21% em latim, 18% em francês, sendo que a presença de livros em inglês, italiano e espanhol soma menos de 4% do montante. Os livros em castelhano, apesar da aproximação linguística com o português, ou por isso mesmo, nunca tiveram entrada significativa no Brasil e a coleção de Dendê Bus confirma isso. Pouquíssimos eram os impressos espanhóis na Biblioteca Pública da Bahia àquela mesma época. Não pude identificar cerca de 2% dos livros. Na transcrição do documento foi sinalizado o idioma de cada obra, indicado com as letras P (português), L (latim), F (francês), I (inglês), It (italiano), E (espanhol), D (desconhecido). Há ainda um dicionário bilíngue francês-russo e outro francês-holandês.

Para a transcrição do inventário foi mantido o texto conforme o manuscrito, com todos os equívocos e barbarismos registrados por Franco de Lima, indicando numeração das folhas entre colchetes. Dispusemos o texto original do inventário em fonte arial. Em alguns itens, fiz algumas poucas observações explicativas abaixo dos dados bibliográficos identificados.

Recuperar o catálogo da biblioteca do cônego é importante, na medida em que os historiadores do livro no Brasil não podem contar com catálogos de bibliotecas privadas. O primeiro catálogo de uma biblioteca particular no Brasil só foi publicado em 1907. A biblioteca de Dendê Bus começou a ser "juntada" ainda no período colonial e isso amplia seu significado histórico.

Manoel Dendê Bus faleceu em Salvador a 11 de maio de 1836 e foi sepultado na igreja da Conceição da Praia. A biblioteca do cônego não durou muito tempo após sua morte. Depois de uma década de tramites jurídicos, consta no volumoso processo que os bens inventariados que "fizesse arrematal-os em hasta publica, [junctam.e com esses livros, que diz na sua declaratoria, se achão, ou existem destruidos]".37 37 Manuscrito. 1836. Apeb. Seção Judiciária: Série Inventários: Manoel Dendê Bus (1836-7/795), maço 2432, doc. 2, fl. 129. Os herdeiros, já adultos, acusaram o seu tutor e inventariante de seu pai, Nunes Tupiniquim, de não ter conservado os livros, o que levou à destruição dos exemplares. A biblioteca do cônego Dendê Bus não existe mais fisicamente, mas o espírito daquela coleção pode ser resgatado, permitindo aos bibliógrafos e historiadores aprofundarem as investigações sobre os hábitos de leitura e a circulação do conhecimento num período conturbado da História do Brasil e da Bahia.

O inventário dos livros - documento

[fl. 37] Continuação do inventário

No primeiro dia do mez de Oitubro (sic) de mil oitocentos e trinta e seis annos nesta Cidade da Bahia e casa da residencia do Doutor Juiz dos Orfãos Amancio João Pereira de Andrade compareceo José Paulo Franco Lima, livreiro, ao qual o mesmo Juiz deferio o juramento dos Sanctos Evangelhos, recomendando lhe que com boa consciência visse, e examinasse os livros do finado, Vigario Manoel Dendê Bus, e como Avaliadores do auditório, lhe desse os justos valores, que entendessem sem dolo ou malicia sob pena da Ley: e recebendo elle o juramento, assim o prometteo cumprir. De que fiz este termo, em que assignarão.

Eu José Olympio Gomes de Souza Escrivão o escrevi.

Dr. Per.a de And.e José Paulo Franco Lima

[fl.37v]

Por estarem os referidos livros estragados e outros truncados lhes derão os mencionados valores; e para constar fiz este termo, em que assignarão o Juiz, o Inventariante, e Avaliadores e o Livreiro. E eu José Olympio Gomes de Souza Escrivão o escrevi.

Dr. Per.a de And.e

José Paulo Franco Lima

Francisco Nunes Tupiniquim

Joaquim J.e Tiburcio

Joaq.m J.e de Moraes

  • 1
    FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do cônego. Edições Cultura Brasileira, 1945.
  • 2
    VILLALTA, Luiz Carlos. O diabo na livraria dos inconfidentes. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 267-295. Do mesmo autor, ver também: VILLALTA, L. C. Governadores, bibliotecas e práticas de leitura. Atalaia, Lisboa, v. 6/7, 2000, p. 277-286. VILLALTA, L. C. & MORAIS, Christianni Cardoso. Posse de livros e bibliotecas privadas em Minas Gerais (1714-1874). In: BRAGANÇA, Aníbal & ABREU, Márcia (org.). Impresso no Brasil - Dois séculos de livros brasileiros. São Paulo: Editora Unesp, 2010, p. 401-418.
  • 3
    FURTADO, Junia Ferreira. Sedição, heresia e rebelião nos trópicos: a biblioteca do naturalista José Vieira Couto. In: DUTRA, Eliana & MOLLIER, Jean-Yves (org.). Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da vida política: Brasil, Europa e Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, p. 72.
  • 4
    MORAES, Rubens Borba de. Livros e bibliotecas no Brasil colonial. São Paulo: SCTT, 1979, p. 185-195.
  • 5
    ABREU, Márcia. Uma biblioteca particular, dois proprietários e nenhum perfil de leitor. Um estudo dos livros de Daniel Pedro e João Guilherme Christiano Müller. In: ANASTÁCIO, Vanda. (org.). Tratar, estudar, disponibilizar: um futuro para as bibliotecas particulares, v. 1. Lisboa: B. E. S., 2013, p. 59-70.
  • 6
    VERRI, Gilda M. W. Tinta sobre papel: Livros e leituras em Pernambuco no século XVIII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2006, 2 v.
  • 7
    MATTOSO, Katia Queirós. Presença francesa no Movimento Democrático Baiano de 1798. Salvador: Itapuã, 1969, p. 18-33.
  • 8
    VILLALTA, L. C. Bibliothéques privées et pratique de lecture au Brésil colonial. In: COLLOQUE AUX TEMPS MODERNES: NAISSANCE DU BRÉSIL (1500-1808). Actes. Paris: PUF, 1998.
  • 9
    BARBOSA, Manoel de Aquino. Padre Manoel Dendê Bus: figura do movimento liberador de 1822 e vigário da Conceição da Praia. Salvador. Anais do Arquivo do Estado da Bahia, vol. 40, 1971, p. 171-209.
  • 10
    SILVA, Cândido da Costa e. Os segadores e a messe: o clero oitocentista na Bahia. Salvador: EduFBA, 2000, p. 461-462.
  • 11
    Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ). Seção de Manuscritos; Coleção: Documentos Biográficos. C-0098,044, nº 001. Requerimento encaminhado ao Ministério do Império, solicitando licença para vir ao Rio de Janeiro, por um ano, e compromete-se a deixar substituto na cadeira de latim, que leciona em Cachoeira, Bahia. Manuscrito. Sem local, 16 de janeiro de 1819. BNRJ. Seção de Manuscritos; Coleção: Documentos Biográficos. C-0098,044, nº 002. Requerimento encaminhado ao Ministério do Império, solicitando licença para vir ao Rio de Janeiro, para tratar assuntos de seu interesse, e comprometer-se a deixar um substituto na sua cadeira, pago a sua custa. “Diz Manoel José de Freitas, Presbitero Secular e Professor Regio de Latim nesta Villa da Caxoeira, que para tratar de certos arranjos, que lhe são indispensaveis, necessita de hir á Corte do Rio de Janeiro, e ter nella alguma demora, em quanto trata dos mesmos. Mas como o não pode fazer sem licença de V. Ex.a, recorre e a V. Ex.a, se digne conceder ao suppl.e a licença requerida por hum anno, obrigando-se o mesmo a deixar no exercício da sua Cadeira hum Substituto pago por elle”.
  • 12
    MILTON, Aristides Augusto. Efemérides cachoeiranas. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (RIGHBA), vol. VI. Salvador: Imprensa Oficial, n. 10º, 1899, p. 234.
  • 13
    CALMON, Pedro. A vida de Castro Alves. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947, p. 5.
  • 14
    SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira. Memorias históricas e politicas de provincia da Bahia, vol. 2. Bahia: Typ. do Correio Mercantil, 1836, p. 104 e 150.
  • 15
    SILVA. Memorias, op. cit., p. 150-151.
  • 16
    SILVA. Memorias, op. cit., p. 153-154.
  • 17
    MACEDO, José Ignacio de. O Velho Liberal do Douro, n. 34. Lisboa: Imprensa da Rua dos Fanqueiros, 1833, p. 5.
  • 18
    MILTON. Efemérides. RIGHBA, vol. VI, nº 10, 1899, p. 234.
  • 19
    Diario do Governo, nº 27, sexta-feira, 1 de agosto de 1823. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 4.
  • 20
    Diario do Governo, nº 64, terça-feira, 16 de setembro de 1823. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 4.
  • 21
    BNRJ, Seção de Manuscritos, Coleção Documentos biográficos, C-0027,023, nº 002. Recibo passado pelo Ministério do Império a Manuel Dendê Bus, no valor de 20$000, pelo pagamento da joia da Ordem do Cruzeiro. [S. l.], 1823. “A F. 41 do Livro Primeiro, que nesta Chancellaria da Ordem Imperial do Cruzeiro serve de Receita, e Despesa com Marianno Antonio de Amorim Carrão, Thesoureiro da dita Ordem, lhe fica carregado a quantia de vinte mil reis ˶20$000˶ que deu de joia Manoel Dendê Bus pela Mercê de Cavalleiro da sobredita Ordem. Rio de Janeiro 16 de outubro de 1823. Marianno Antonio Amorim Carrão”. Diario do Governo, nº 91, sexta-feira, 17 de outubro de 1823. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 1. João Baptista de Carvalho 17 de outubro de 1823.
  • 22
    Diario Fluminense, nº 132, sexta-feira, 3 de dezembro de 1824. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, p. 1.
  • 23
    Diario do Governo, nº 101, quinta-feira, 6 de maio de 1824. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 2.
  • 24
    Diario do Governo, nº 123, terça-feira, 25 de novembro de 1823. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, p. 4.
  • 25
    BLAKE, Augusto Alves Vitorino Sacramento. Diccionario bibliographico brazileiro, vol. 6. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, p. 58-59. Sacramento Blake, que pouco acrescenta, duvida da existência da gramática em 1810, apontando a edição de 1820.
  • 26
    MAGALHÃES, Pablo Antonio Iglesias. A palavra e o Império: Manoel de Freitas Brazileiro e a Nova grammatica ingleza e portugueza. Clio, v. 31.1, 2013. (Série História do Nordeste - UFPE)
  • 27
    Manuscrito. 1824-1828. BNRJ, Seção de Manuscritos, Coleção Documentos biográficos, C-0027,023, nº 001. Requerimento encaminhado ao Ministério do Império, solicitando Habito de Cristo; solicita serventia vitalícia do diploma da cadeira de gramática e língua latina; solicita ordem para tratamento da “senhoria”. [S. l.], 1824-1828. 19 documentos. Notas: Orig. Ms. O Independente Constitucional. Bahia, exemplares nº 58 - março/1826 - vol. 3º; nº 64 - abril/1826 - vol. 4º; nº 68 - setembro/1826 - vol. 3º; nº 80 - outubro/1826 - vol. 4º.
  • 28
    O Independente Constitucional, nº 64. Bahia, terça-feira, 19 de setembro de 1826; O Independente Constitucional, nº 86. Bahia, terça-feira, 17 de outubro de 1826.
  • 29
    Manuscrito. 1836. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária: Série Inventários: Manoel Dendê Bus (1836-7/795), maço 2432, doc. 2, fl. 4.
  • 30
    NAMUR, Jean Pie. Bibliographie paleographico-diplomatico-bibliologique générale ou répertore systématique. Liége: P. J. Collardin, Imprimeur de l'Université et Libraire, 1838, trosiéme partie, p. 188. Item 1721. Catalogo dos livros portuguezes, latinos e francezes que se achão à venda em caza de M. J. Pereira Coimbra, e na loge de Jose Paulo Franco Lima ao Taboão na Bachia (sic). Paris, 1822, in-4.
  • 31
    TAVARES, Luis Guilherme Pontes (ed.). Estabelecimentos de oficinas de impressão (1833-1927). Salvador: Nehib, 2009, p. 12.
  • 32
    SILVA, Innocencio Francisco. Dccionario bibliographico portuguez, tomo III. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860, p. 107.
  • 33
    MATTOSO, Katia M. de Queiros. Grandeurs et misères du clergé bahianais à la fin de la période coloniale (1800-1822). Histoire, économie et société, vol. 13, nº 13-2, 1994, p. 291-319; MATTOSO, Katia. Les inégalités socio-culturelles au Brésil: XVIe-XXe siècles. L’Harmattan, 2006, p. 213-214.        
  • 34
    Manuscrito. 1836. Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária: Série Inventários: Manoel Dendê Bus (1836-7/795), maço 2432, doc. 2.
  • 35
    Diario Fluminense, nº 44, sexta-feira, 25 de fevereiro de 1825, p. 178.
  • 36
    INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DA BAHIA. Catálogo de obras raras da biblioteca Rui Barbosa. Salvador: IGHB, 2013, p. 112.     
  • 37
    Manuscrito. 1836. Apeb. Seção Judiciária: Série Inventários: Manoel Dendê Bus (1836-7/795), maço 2432, doc. 2, fl. 129.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2014
  • Aceito
    03 Nov 2014
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