Resumo
Este artigo tem como objetivo principal analisar a atuação de intelectuais latino-americanas na produção e difusão de conhecimento sobre arte na América Latina, especialmente em relação ao modernismo brasileiro. Para isso, investiga-se a perspectiva de Aracy Amaral sobre arte e arquitetura modernistas do Brasil, presente no livro intitulado Arte y arquitectura del modernismo brasileño (1917-1930), traduzido para o espanhol por Marta Traba, durante a formação da Coleção da Biblioteca Ayacucho, em 1978. A lém disso, este trabalho estabelece algumas conexões entre as trajetórias e pensamentos da intelectual brasileira e da intelectual argentina, duas grandes referências sobre arte e cultura na região. Com aportes da História Social da Arte e da História Intelectual, busca-se compreender o papel das intelectuais na consolidação do movimento enquanto marco artístico-cultural da América Latina, em um contexto de aproximação entre os países latino-americanos.
Palavras-chave
Modernismo brasileiro; Aracy Amaral; Marta Traba; Semana de Arte Moderna; Crítica de arte latino-americana
Abstract
This article’s main objective is to analyze Latin American intellectuals’ performance in producing and disseminating knowledge about art in Latin America, especially related to Brazilian Modernism. For this purpose, Aracy Amaral’s perspective on modernist art and architecture in Brazil, present in the book Arte y arquitectura del modernismo brasileño (1917-1930), translated into Spanish by Marta Traba, to Ayacucho Library Collection in 1978, is evaluated. Furthermore, this work establishes some connections between the Brazilian and the Argentine intellectuals’ trajectories and thoughts, two significant references on art and culture in the region. Finally, with contributions from the Social History of Art and Intellectual History, we seek to understand the role of intellectuals in consolidating the movement as an artistic-cultural landmark in Latin America in a context of approximation among Latin American countries.
Keywords
Brazilian Modernism; Aracy Amaral; Marta Traba; Semana de Arte Moderna; Latin American Art Criticism
Trajetórias e encontro
Depois das transformações que se iniciaram já nos anos 1960, a década de 1970 seguiu efervescente no campo das artes, com a presença de críticos e de artistas que contestaram padrões, linguagens, cânones, bem como questionaram narrativas tradicionais e conservadoras que não incluíam regiões e grupos tidos como periféricos e subalternizados. Em 1971, por exemplo, a historiadora da arte norte-americana Linda Nochlin, impulsionada por movimentos feministas em seu país, questionava Why Have There Been No Great Women Artists? 3 3 Tradução própria: “Por que não existiram grandes artistas mulheres?”. (NOCHLIN, 1971NOCHLIN, Linda. Why have there been no great women in the arts? In: ARTnews, 1971.), em seu polêmico ensaio que até hoje ecoa nas pesquisas sobre a relação entre arte e gênero.
Na América Latina, fortes acontecimentos marcaram o período, como a Revolução Cubana e o Governo Allende, os regimes autoritários, os exílios e a forte difusão da cultura norte-americana em um contexto de Guerra Fria. Diante disso, muitos intelectuais latino-americanos reagiram e passaram a pensar as artes e a cultura da região de maneira comparada. Para isso, buscaram aproximações e diferenças entre os países e refetiram sobre uma ampla produção artística moderna, colocada, entretanto, em segundo plano em relação à produção do eixo EUA-Europa. Sendo assim, este artigo pretende analisar a atuação das intelectuais latino-americanas Marta Traba e Aracy Amaral na produção/difusão de conhecimento em relação ao tema da arte e cultura na América Latina, especialmente o caso do modernismo brasileiro.
Como se sabe, além dos próprios artistas, intelectuais também possuem um papel importante na produção de conhecimento sobre as artes e suas histórias. Segundo Jean-François Sirinelli, os/as intelectuais estão com “a pena sempre alerta” e, de acordo a necessidade, dispostos a produzir conhecimento, elaborar interpretações e debater. Nesse sentido, os intelectuais se constituem com a elaboração de textos e discursos que circulam em sociedade por meio de artigos, romances, ensaios, cartas abertas e manifestos (SIRINELLI, 1996SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996.). A esta definição, cabe acrescentar a conexão destes sujeitos com a sociedade, com os problemas, anseios e maneiras de expressão do seu tempo. Contudo, a produção do conhecimento continua sendo um elemento marcante para ser analisado, notando as trajetórias e lugares sociais desses intelectuais na história.
Uma dessas intelectuais de destaque é a brasileira Aracy Abreu Amaral, que nasceu na cidade de São Paulo e graduou-se em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1959).4 4 Depois, em 1969, deu continuidade à sua formação na Universidade de São Paulo, onde fez mestrado em Filosofa na Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), doutorado em Artes na Escola de Comunicação e Artes (1975) e Livre-Docência na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1983), onde se titulou e foi professora até se aposentar. As informações foram coletadas do próprio currículo Lates da autora. Ver: https://uspdigital.usp.br/tycho/CurriculoLatesMostrar?codpub=B7A0ABABFBFB (visualizado em 17 de outubro de 2016). Na Faculdade de Filosofa (FFLCH-USP) defendeu o seu mestrado sobre o tema “As artes plásticas na semana de 22”, sob orientação do Professor Dr. Flávio Mota, em 1970, às vésperas de completar cinquenta anos da Semana de Arte Moderna de São Paulo. Publicado em livro pela editora Perspectiva, no mesmo ano da defesa, o trabalho já está na 7ª edição (Editora 34, 2021), o que demonstra a sua qualidade e relevância no estudo do tema. Entre os anos 1971-1975, já no doutorado, a pesquisadora aprofundou ainda mais os seus estudos com a tese “Tarsila - sua obra e seu tempo”, também publicada em livro. A sua familiaridade com os estudos das artes plásticas e arquitetura brasileiras justificava o convite para sua participação no evento que reuniu os principais especialistas em arte latino-americana, realizado na Universidade do Texas, em Austin, em 1975.
O Simpósio sobre Arte e Literatura Latino-Americana, mais conhecido apenas como o Simpósio de Austin, reuniu escritores, críticos, historiadores e artistas dos mais variados países do continente, dentre eles: Juan Acha (Peru), Rita Eder (México), Rufino Tamayo (México), Donald Goodall (EUA), Octavio Paz (México), Frederico de Morais (Brasil), Damián Bayón (Argentina), Marta Traba (Argentina/Colômbia) e Aracy Amaral (Brasil). Para a arte latino-americana, o evento teve uma grande importância, pois neste espaço se discutiu a importância e a necessidade de valorização das artes plásticas da região. Essas discussões se deram nos Estados Unidos durante o contexto da Guerra Fria.
Na verdade, o interesse nos EUA pela arte da América Latina é bem anterior aos anos 1970. Observa-se desde o final dos anos 1930 e início dos anos 1940, quando um dos seus principais museus e suporte de políticas culturais na época para assuntos interamericanos, o Museu de Arte Moderna de Nova York, decidiu formar a sua ampla coleção de arte latino-americana, em pleno contexto da chamada Política de Boa Vizinhança. Naquele momento, havia um enorme interesse dos EUA em se aproximar dos países latino-americanos, ao mesmo tempo em que o MoMA de Nova York consolidava-se como um novo polo artístico-cultural, entendendo a América Latina e suas artes como uma periferia desejada deste novo centro5 5 No ano de 2016, foi defendida no programa de História Social da USP, a dissertação de Eustáquio Ornelas sobre o processo de formação da coleção latino-americana do MoMA, sob orientação da Professora Emérita Maria Ligia Coelho Prado. O trabalho foi publicado em livro pela Paco Editorial em 2019. Ver: COTA JR, 2019. . Este interesse voltou a se acentuar na década de 1960, por esta e outras instituições norte-americanas, já num contexto da chamada Aliança para o Progresso.
Voltando ao Simpósio de Austin, foi neste evento que Aracy Amaral teve a oportunidade de conhecer Marta Traba, outra grande intelectual latino-americana, admirada pela brasileira. Sobre esse encontro, Amaral revelou no ensaio intitulado Marta Traba e o pensamento latino-americano (AMARAL, 2006, p. 23AMARAL, Aracy A. Textos do Trópico de Capricórnio - Artigos e ensaios (1980-2005). São Paulo: Ed. 34, vol. 2, 2006.), escrito em 1983, que na época do Simpósio já conhecia o trabalho da colega e, sabendo que a encontraria pela primeira vez, resolveu presenteá-la com alguns livros sobre arte moderna brasileira. Traba retribuiu o presente com um dos seus livros. Além disso, Aracy Amaral disse ter ficado bastante impressionada com a apresentação “vibrátil” da intelectual argentina, o que a deixou ainda mais admirada.
Marta Traba Tain chegava ao evento com certo prestígio, devido à sua notável produção voltada para a arte e cultura na América Latina. Graduou-se em Filosofa e Letras na Universidade Nacional de Buenos Aires. Trabalhou nos primeiros anos de sua carreira com o crítico Jorge Romero Brest na Revista Ver y Estimar e depois partiu para Europa para trabalhar como correspondente da revista e continuar os seus estudos em História da Arte na Sorbonne. Em 1954, mudou-se para a Colômbia, onde atuou ativamente para a transformação do ambiente artístico de Bogotá. Trabalhou na Universidad Nacional de Colombia e fundou, em 1962, o Museu de Arte Moderna de Bogotá, instituição que dirigiu até 1967. Por questões políticas e pessoais, saiu em exílio no final da década de 1960 e passou a residir em diversas cidades do continente americano e europeu, dentre as quais: Montevidéu, Caracas, San Juan de Puerto Rico, Washington, Princeton, Barcelona e Paris. Nesse período, ela se casou com o escritor e crítico uruguaio Ángel Rama e juntos residiram em várias dessas cidades.
Desde a década de 1950, a intelectual argentina já escrevia sobre a América Latina. O seu interesse pelo tema da arte latino-americana e a passagem por diversos países da região tornou-a uma das maiores especialistas no assunto da sua geração. Apesar disso, é possível notar em seus trabalhos do período, sobretudo, nos anos 1960, que houve pouco espaço para a produção artística brasileira, ainda que isso tenha ampliado um pouco nos anos 1970.
Aracy Amaral indicou que duas obras publicadas antes do Simpósio de Austin foram fundamentais para a realização do evento. O livro Dos décadas vulnerables en las artes plásticas latinoamericanas, 1950/1970 (1973), de Marta Traba, obra que foi traduzida para o português e publicada no Brasil em 1977, pela Editora Paz e Terra. A outra obra foi o livro organizado por Damián Bayón, intitulado America Latina en sus artes (1974). Para a brasileira, o evento no Texas serviu como um desafo e também como uma oportunidade de estreitar laços com os colegas intelectuais e especialistas no assunto. Nota-se que a partir do evento de 1975, Aracy Amaral passou a trabalhar, de fato, com o tema da arte latino-americana em sua produção6 6 Em 1976, por exemplo, a professora ministrou uma disciplina na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), intitulada “Introdução à Arte na América Latina”. Aracy Amaral tornou a ministrar outras vezes uma disciplina desse tipo, na mesma universidade. .
As duas intelectuais, chegavam a esse primeiro encontro, em 1975, em posições diferentes em relação à experiência adquirida na crítica sobre arte latino-americana. Marta Traba, já consolidada no meio, tinha uma produção sólida sobre o assunto, intensificada entre o final dos anos 1950 e início dos anos 1980. Aracy Amaral, que se dedicava à arte moderna brasileira até então, ampliou o seu território de análise a partir dos anos 1970, abordando o espaço latino-americano ao longo das décadas seguintes em um estudo longevo e que passou a ser também muito reconhecido no meio. Desde que se conheceram em Austin, em 1975, até 1983, ano da morte de Traba, estabeleceram diálogos e trocas para a valorização do campo artístico-cultural da América Latina.
Redes e projetos político-culturais na América Latina
A relação entre intelectuais é muitas vezes permeada por projetos em comum ou por encontros que resultam na formação de redes, e possibilitam a circulação de ideias e construção de projetos em momentos históricos específicos. Para Jean-François Sirinelli, “os grupos intelectuais se organizam em torno de uma sensibilidade ideológica ou cultural comum e de afinidades mais difusas, porém igualmente determinantes que fundam uma rede de sociabilidade” (SIRINELLI, 1996, p. 248SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996.)7 7 Ver também apud COSTA, 2018, p. 158. .
Marta Traba e Ángel Rama, por exemplo, já na década de 1970, mantinham vínculos com o Brasil, por meio da relação de amizade com o também casal de intelectuais Antônio Candido e Gilda de Mello e Souza. Além da relação já bastante conhecida entre Candido e Rama, foi possível notar por meio de cartas e bilhetes publicados que também havia uma relação de trocas entre Marta Traba e Gilda de Mello e Souza. Em 1974, por exemplo, Gilda escreveu para Marta, dizendo que havia lido os seus livros e que comentaria em breve as obras.8 8 [Bilhete de Gilda de Mello e Souza para Marta Traba] “São Paulo, 8 de outubro de 1974”. In: CANDIDO, 2018, p. 92. No mesmo ano, Marta comunicou à Gilda que havia escrito um livro sobre arte em Caracas e gostaria que ela pudesse ler.9 9 [Mensagem de Marta Traba para Gilda de Mello e Souza]-“Caracas, 27 de outubro de 1974”. In: CANDIDO, 2018, p. 95
As trocas também ocorriam entre os outros membros do quarteto. No ano de 1976, Ángel Rama escreveu para Gilda, para discutir as indicações de obras brasileiras, no contexto de formação do acervo da Biblioteca Ayacucho, em Caracas, na Venezuela. Sobre o tema do modernismo brasileiro, Rama disse que estavam trabalhando com quatro possíveis textos: “o seu [Gilda de Mello e Souza], o planejado Oswald de Andrade, o da antologia de poetas de Mário da Silva Brito e o das artes plásticas do modernismo que Aracy Amaral preparará”10 10 [Carta de Ángel Rama para Gilda de Mello e Souza]-“Caracas, 10 de setembro de 1976”. In: CANDIDO, 2018, p. 202-203. . O documento é interessante para notar que o contato entre Aracy Amaral e Marta Traba em 1975, em Austin, nos EUA, já tinha dado frutos. Mesmo que a escolha do nome de Aracy Amaral não tenha sido efetuada especificamente por Marta Traba, o que é bem provável, o fato de Aracy Amaral e seu trabalho sobre o modernismo brasileiro ser conhecido por Marta Traba e Gilda de Mello e Souza11 11 Gilda de Mello e Souza foi professora na Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde Aracy Amaral defendeu o seu mestrado. , por certo foi determinante na seleção do seu nome para a composição do livro Arte y arquitetura del modernismo brasileño (1917-1930) (AMARAL, 1978AMARAL, Aracy A. Prólogo. In: Arte y arquitetura del modernismo brasileño (1917-1930). Caracas: Biblioteca Ayacucho, v. 47, 1978.). Marta Traba acompanhava Rama de perto nestes anos de formação da Coleção da Biblioteca Ayacucho.
Criada em 1974, em Caracas na Venezuela, a Biblioteca Ayacucho colocou em contato autores e leitores de diferentes lugares da América Latina. No momento de sua criação, a Venezuela vivia certa ascensão econômica, por causa da alta do preço do petróleo, sob o governo de Carlos Andréz Pérez, que foi eleito de forma democrática, em um contexto político marcado por ditaduras civis-militares na América Latina. Segundo o historiador Pedro Demenech, um dos principais idealizadores e diretores do projeto, Ángel Rama tinha como missão a construção de uma “consciência latino-americana”. Nesse sentido, “a Biblioteca Ayacucho aparece como mecanismo que impulsiona essa narrativa sobre a história da América Latina, expressando uma formação dos povos e, deste modo, procurando integrá-los ao celebrar a independência e o progresso cultural de que comungam” (DEMENECH, 2016, p. 95DEMENECH, Pedro. Coleção e identidade na crítica de Ángel Rama nos anos setenta. In: História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography. Ouro Preto: n. 20, abril 2016, p. 87-101.). Como aponta o historiador, era como se este projeto, por meio da prática intelectual, possibilitasse reavivar o velho desejo do Bolívar de unir a América, mas agora em um contexto bem diferente.
As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por esses intercâmbios culturais, exílios e projetos de resistência e fortalecimento do pensamento latino-americano em um contexto de regimes autoritários na América Latina. Ao pensar a relação entre essas redes de intelectualidade e projetos transnacionais12 12 Sobre o viés transnacional, ver também: WEINSTEIN, 2013. , Adriane Vidal da Costa escreveu que:
para além das fronteiras de seus países, muitos intelectuais nas décadas de 1960 e 1970, em escala transnacional, estabeleceram relações profssionais, realizaram conferências, criaram revistas, participaram de projetos culturais e políticos, exerceram a docência, ministraram conferências, publicaram artigos e livros e prestaram serviços de assessoria. (COSTA; MAÍZ; 2018, p. 153COSTA, Adriane Vidal; MAÍZ, Claudio (Org.) Nas tramas da “cidade letrada”: sociabilidade dos intelectuais latinoamericanos e as redes transnacionais. Belo Horizonte: Fino Traço, 2018.)
Nesse contexto, a Venezuela transformava-se em um ambiente favorável, promovendo encontros entre intelectuais de outros países. Além de Ángel Rama e Marta Traba, cabe lembrar que Darcy Riberio esteve no país, onde participou do proces0 so de reforma da Universidade Central da Venezuela13 13 Marta Traba citou Darcy Ribeiro em alguns de seus textos da época, admirando as refexões do intelectual brasileiro. . A proximidade entre Rama e Darcy Ribeiro, possibilitou um espaço especial dedicado ao Brasil na Biblioteca Ayacucho. Há textos em que Traba faz muitos elogios ao colega brasileiro. Foi também em Caracas, em 1978, que ocorreu o Encontro Ibero-Americano de Críticos e Artistas, ocasião em que Traba novamente encontrou Aracy Amaral.
No Brasil, no âmbito das artes, em 1978, ocorreu a I Bienal Latino-Americana de São Paulo, com a temática “Mito e Magia”, com a curadoria do crítico peruano Juan Acha, reunindo intelectuais e artistas da América Latina em pleno regime militar brasileiro. Além da exposição, houve um Simpósio que reuniu importantes nomes do pensamento artístico-cultural do continente, como a própria Marta Traba, que era tida como personalidade ilustre e que chegou a proferir uma palestra para o público presente.
Aracy Amaral escreveu sobre a apresentação de Marta Traba no ensaio A propósito da comunicação de Marta Traba, em 1978. Neste ensaio a intelectual brasileira saúda o pioneirismo da colega.
Em primeiro lugar, desejamos saudar Marta Traba, presente em São Paulo, a pioneira, desde inícios dos anos 60, da abordagem da arte da América Latina contemporânea vista em análise comparativa, ou considerada como um todo. Concorde-se ou não com seus pontos de vista, sua crítica subjetiva, eloquente e passional, ou seja, a única crítica possível, deles se nutriu durante muitos anos a formação de novas gerações que começaram a pensar em termos da arte que se faz na América Latina. (AMARAL, 1983, p. 302AMARAL, Aracy A. Arte e meio artístico (1961-1981): entre a feijoada e o x-burguer. São Paulo: Nobel, 1983.)
Aracy Amaral, que tinha sido umas das principais apoiadoras da iniciativa, teve o seu nome cotado para assumir a curadoria da segunda edição da Bienal Latino-Americana que nunca ocorreria14 14 Além de participar ativamente do evento, Aracy Amaral escreveu na época um conjunto de ensaios que documentam esse momento único no Brasil. Ver: AMARAL, 1983. . Naquele momento, a brasileira passou a criticar a maneira como foi organizado o evento, a utilização da burocracia estatal para contatar os artistas, além dos problemas na direção da instituição. Toda esta insatisfação pode ser notada no conjunto de cartas que Amaral e Traba trocaram naqueles anos de 1978 e 1979, que estão disponíveis no Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USPARQUIVO DO INSTITUTO ESTUDOS BRASILEIROS (IEB – USP). Acervo Aracy Abreu Amaral, código de referência: AAA-C-MT-001 – 013). Além disso, nota-se um tom cada vez mais próximo entre as intelectuais que trocaram informações pessoais, atividades de trabalho, impressões de viagens, eventos e projetos.15 15 Há correspondência datada até 1982, mas com uma menor frequência que nos anos de 1978 e 1979. Ver: Arquivo do Instituto Estudos Brasileiros IEB – USP, Acervo Aracy Abreu Amaral, código de referência: AAA-C-MT-001 – 013 Nestes anos, Marta Traba costumava finalizar as cartas com os seguintes dizeres: “um abrazo de su amiga Marta Traba”. Portanto, as cartas indicam que o encontro ocorrido anos antes gerou não apenas trocas acadêmicas e parcerias, mas apoio mútuo e o estreitamento da relação entre as duas intelectuais em torno da arte latino-americana.
Sobre o contexto que permeava a construção da I Bienal Latino-Americana, em seu livro sobre as Bienais, o historiador Francisco Alambert relatou a dificuldade de estabelecer um consenso entre os críticos e especialistas presentes, bem como a posição de Aracy Amaral sobre a existência de uma segunda edição do evento. Para Alambert, em 1978, mesmo ano em que se encenava na cidade a antológica adaptação da peça teatral Macunaíma - de Mário de Andrade, por Antunes Filho, nascia e morria o ambicioso projeto de uma Bienal Latino-Americana. Segundo Alambert:
Críticos de todo o continente se reuniram para discutir o futuro da Bienal Latino-Americana. Houve um misto de entusiasmo e aversão à primeira edição. A própria Aracy Amaral, uma das idealizadoras da Bienal Latino-Americana, defendia a realização de uma mostra exclusiva da América Latina, e afirmava ainda que naquele momento, aquela exposição tinha, para o nosso país, mais importância do que a própria Bienal Internacional. (ALAMBERT; CANHÊTE, 2004, p. 153-154ALAMBERT, Francisco; CANHÊTE, Polyana Lopes. As bienais de São Paulo: da era do museu à era dos curadores (1951-2001). São Paulo: Boitempo, 2004.)
Portanto, vivia-se neste momento, especialmente em São Paulo, a reafirmação dos ideais modernistas da Semana de 22, associada à iniciativa de construir um projeto de integração latino-americana nas artes, a partir da Bienal. Não por acaso, naquele mesmo ano de 1978 seria publicado o livro “Arte y arquitectura del modernismo brasileño (1917-1930)”, pela Biblioteca Ayacucho. O que talvez não estivesse no roteiro é que a iniciativa de formar uma Bienal Latino-Americana fosse tão criticada, inclusive por alguns especialistas latino-americanos ali presentes16 16 Apesar de apoiar o projeto, a própria Marta Traba criticou a exposição do evento por privilegiar Brasil, Argentina e México, em detrimento de outros países com menor poder econômico. Assim como Traba, o mineiro Frederico Morais, outro grande especialista em arte latino-americana, também fez grandes ressalvas em relação à falta de representação de alguns países, e considerou o Simpósio muito melhor que a exposição. Ver: MORAIS, 1979, p. 63. Apud. ALAMBERT, 2004, p. 152. , ao ponto de encerrá-la na sua primeira edição.
O livro e o prólogo
O livro Arte y arquitectura del modernismo brasileño (1917-1930) é o volume 47 da Coleção da Biblioteca Ayacucho. Com 236 páginas, estruturalmente a obra possui, capa, prólogo, os textos de autores sobre o modernismo brasileiro, a cronologia, a bibliografia sobre o tema e o índice de textos e ilustrações. De modo geral, a estrutura da obra crítica é semelhante aos demais volumes deste tipo na coleção, algo pensado por Ángel Rama, como indicou Pedro Demenech (DEMENECH, 2016, p. 96DEMENECH, Pedro. Coleção e identidade na crítica de Ángel Rama nos anos setenta. In: História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography. Ouro Preto: n. 20, abril 2016, p. 87-101.). No entanto, para cada volume havia as suas particularidades, como as pessoas convidadas a compô-lo. No caso do volume 47, o prólogo e a compilação dos textos autorais foram realizados por Aracy Amaral, a cronologia foi de responsabilidade de José Carlos Serroni e quem assinou a tradução da obra para o espanhol foi Marta Traba. Esse foi o único trabalho publicado em que, de certa forma, as duas intelectuais trabalharam juntas.
Destaca-se a tradução como um importante ato de parceria intelectual. Em cartas trocadas entre as duas intelectuais neste ano de 1978, percebe-se que Marta Traba aceitou o desafo proposto pela comissão da Biblioteca Ayacucho de traduzir o livro organizado pela brasileira Aracy Amaral, por considerar o tema de grande relevância para o conhecimento da história da arte e da cultura na América Latina. Marta Traba era o nome mais indicado para a tarefa, pois além de possuir ligações com a temática, tinha contato com Amaral. Nas cartas enviadas por Marta Traba, que compõem a maior parte dos treze documentos presentes no acervo do IEB-USP, nota-se que apesar do desgaste com a rotina de trabalho e com o ambiente artístico-cultural de Caracas, Traba tomou com satisfação a tarefa de liderar a tradução da obra organizada pela brasileira.17 17 Arquivo do Instituto Estudos Brasileiros IEB – USP, Acervo Aracy Abreu Amaral, código de referência: AAA-C-MT-003.
Portanto, nota-se que a obra foi trabalhada para ser o principal volume sobre o modernismo brasileiro na Biblioteca, partindo do pressuposto de que esse assunto era ainda pouco conhecido entre os hispano-americanos. Na medida em que o trabalho foi sendo realizado, ficava cada vez mais evidente a sua relevância, pois não apenas aproximava duas intelectuais em torno de um projeto comum, mas trazia para a Coleção da Biblioteca um conteúdo ainda pouco difundido na região. Por isso, cada elemento da obra, como a capa, o prólogo, os textos selecionados, a cronologia e a tradução, precisavam ser muito “representativos” do que teria sido o movimento modernista brasileiro.
Na capa, por exemplo, há uma imagem da obra “O lago” de Tarsila do Amaral, uma serigrafia de 1928, e na quarta capa, um trecho do texto de Mario de Andrade sobre o movimento modernista brasileiro. Por esses dois destaques iniciais, é possível supor o tom que se anuncia para o prólogo da obra: o modernismo ali representado era representativo do movimento que se engendrou a partir Semana de 22 em São Paulo. Vejamos:
Nesse artigo, o prólogo tem um lugar especial na análise, pois nele se objetiva narrar os principais elementos que compõem o movimento modernista brasileiro, introduzindo o leitor ao tema. Para isso, Aracy Amaral dividiu as vinte e duas páginas do seu texto em cinco itens, que são: Introducción; Las artes plásticas en el modernismo brasileño (1917-1930); 1922: La semana de Arte Moderno; La visita de Cendrars; La Pintura de Tarsila; El medio artístico-social de los años 20; La personalidad singular de Ismael Nery; El surgimiento de la arquitectura moderna; La vida de los años 30; La formación de los modernistas brasileños.
Aracy Amaral inicia o seu texto elegendo o que seria o marco inicial do modernismo brasileiro, no caso a exposição da pintora Anita Malfati, em 1917, e a repercussão em torno do artigo “Paranoia ou mistificação” de Monteiro Lobato, que condenava aquelas tais práticas artísticas da pintora. Apesar de lembrar da exposição de algumas telas expressionistas do pintor Lasar Segall, em 1913, a historiadora considerou que o evento não teve a mesma repercussão na época que o ocorrido depois com a mostra de Anita Malfati, em 1917.
Aracy também indicou a reunião de Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e Mario de Andrade em defesa da pintora, o que na sua visão seria o estopim que desembocaria na Semana de 22. Esse apontamento também encontra respaldo na narrativa contada por Mario de Andrade, em 1942. Na época, o escritor e um dos principais líderes do movimento, chamou o período entre o acontecimento de 1917 e a Semana de 1922 de “período de arregimentação modernista”. Dos textos que fazem parte da compilação, a intelectual considerou o El movimiento modernista, de Mario de Andrade, um documento muito importante sobre modernismo brasileiro. Como se sabe, o texto se trata de uma conferência ministrada pelo escritor modernista em 1942. Nota-se que entre os cerca de 43 textos escolhidos para comporem o livro, a grande maioria é de autoria dos modernistas de São Paulo, o que reforça a preponderância do movimento desenvolvido a partir da cidade e da Semana de Arte Moderna de 1922.
Contudo, a intelectual não deixou de assinalar a disputa entre Rio de Janeiro e São Paulo como polo cultural modernista nos anos 1920 e 1930. Apesar de a capital do país na época aparecer como um lugar importante do modernismo brasileiro, sobretudo no início dos anos 1930, para Aracy Amaral, São Paulo assumiu a dianteira do movimento, como é possível perceber no comentário a seguir:
Rio de Janeiro, como capital de la República, retomará a partir de 1930 una efervescencia cultural perdida para São Paulo, hasta que a mediados de esa década, la capital paulista, gracias a los Salones de Mayo, retoma su puesto de centro nervioso cultural de país. La excepción la marcará el desarrollo de la arquitectura moderna en el Brasil, que felizmente fue adelantado por iniciativas particulares en São Paulo — con proyectos de Warchavchik y Flávio de Carvalho—, mientras que Rio de Janeiro contará con el decidido apoyo gubernamental, a partir del edificio del Ministerio de Educación y Cultura, proyecto de Le Corbusier, asesorado por jóvenes como Lucio Costa, Oscar Niemeyer y otros, después de su segunda visita a Rio en 1934. (AMARAL, 1978, p. 10AMARAL, Aracy A. Prólogo. In: Arte y arquitetura del modernismo brasileño (1917-1930). Caracas: Biblioteca Ayacucho, v. 47, 1978.)
Seguindo o pensamento de Mario de Andrade, Aracy Amaral trouxe a caracterização de duas principais frentes modernistas no Brasil entre os anos 1920 e 1930: a paulista, caracterizada por ela como “internacionalista caipira”, ligada à urbanização, à imigração, aos participantes da Semana de 22, à elite cafeeira e ao futurismo, apesar das notórias discordâncias em relação ao futurismo italiano de Marineti18 18 A discordância do futurismo proposto por Marineti se refere sobretudo ao aspecto do abandono completo do passado. No texto, Aracy Amaral exemplificou a situação trazendo um trecho da carta de Rubens Borba de Moraes a Joaquim Inojosa, em que o primeiro critica esse aspecto do futurismo italiano. . Já a frente carioca, segundo a historiadora esteve ligada ao “exotismo” nacional, ao ambiente rural e ao conservadorismo, apoiada por correntes nacionalistas e poderio estatal. Em comum, continham um forte sentimento de renovação nas artes, contra certo “passadismo acadêmico”. Entende-se que era importante para a intelectual brasileira ressaltar no livro a preponderância de São Paulo no cenário artístico e cultural brasileiro naquele momento. Nesse sentido, Amaral ainda ressaltou a fala de Mario de Andrade de que a estética do modernismo brasileiro não era algo definível, era na verdade “un estado revuelto y revolucionario”, fruto de um ambiente altamente transformador e moderno. (AMARAL, 1978, p. 11AMARAL, Aracy A. Prólogo. In: Arte y arquitetura del modernismo brasileño (1917-1930). Caracas: Biblioteca Ayacucho, v. 47, 1978.).
Como se sabe, as academias e instituições formais de ensino de artes no Rio de Janeiro e em São Paulo, foram tomadas como alvo principal dos modernistas. Muitas delas, como a Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro e o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, eram responsáveis pela formação dos artistas, distribuição de bolsas de estudos, concursos e premiações, direcionando, assim, grande parte da produção artística no país desde o século XIX. Esses ambientes, com seus professores e seus artistas, passaram a ser duramente criticados pelos grupos modernistas nas primeiras décadas do século XX. Na tentativa de se afirmar um novo ambiente de produção, negava-se tudo daquilo ligado ao “passado” acadêmico ainda tão presente naquele início de século19 19 Cabe salientar leituras que procuram perceber pontos de ligação e não somente rupturas entre um momento e outro, seja nos ambientes, seja nas produções artísticas. Em estudo intitulado “Los primeiros modernos”, a historiadora argentina Laura Malosseti Costa, por exemplo, questiona narrativas que enfatizam rupturas abruptas, sem perceber as continuidades que se deram no processo de transição entre a arte dita “acadêmica” do séc. XIX e a arte moderna do séc. XX. (MALOSETTI COSTA, 2001). .
Ao discorrer sobre a formação dos principais nomes do modernismo brasileiro dos anos 1920, Aracy Amaral apontou em comum a formação fora das academias e a grande circulação por São Paulo da maioria dos artistas, apesar de algumas exceções. Reafirma-se, portanto, a relevância da capital paulista entre os modernistas. (AMARAL, 1978, p. 28AMARAL, Aracy A. Prólogo. In: Arte y arquitetura del modernismo brasileño (1917-1930). Caracas: Biblioteca Ayacucho, v. 47, 1978.). Também demonstra-se que nos anos 1920 ocorreram transformações culturais, políticas e sociais significativas, sendo a cidade de São Paulo o epicentro de muitas delas. Nesse sentido, a Semana de 22 foi tomada como decisiva para a construção ou afirmação, mesmo que à posteriori, da ideia de uma cidade onde se vislumbra o novo e o moderno. Capitalizou-se também a ideia de renovação artística pregada pela movimentação modernista, apoiada por mulheres e homens da elite paulistana, como Olivia Guedes Penteado e Paulo Prado, nomes estes que são indicados no texto de Aracy Amaral. Além disso, reforça-se a capacidade deste novo polo moderno em construção, abrigar e atrair artistas e intelectuais como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Victor Brecheret, Anita Malfati, Di Cavalcanti, John Graz, Regina Gomide Graz, Antônio Gomide, Oswald Goeldi, incluindo a mineira Zina Aita, o pernambucano Vicente do Rego Monteiro e o russo Lasar Segall20 20 Lasar Segall nasceu onde hoje é a atual Lituânia. No ano do seu nascimento, o território pertencia ao então Império Russo. A independência do país veio em 1918, após a Primeira Guerra Mundial. , que passou a residir na capital paulista na década de 1920.
Nas artes plásticas, o texto de Aracy Amaral destacou a obra e trajetória da pintora Tarsila do Amaral desde a capa até o texto escolhido.21 21 Cabe lembrar que, além de estudá-la em seu doutoramento, também teve contato com a artista, antes do seu falecimento em 1973. Na década de 1970, a pintora já tinha alcançado certa notoriedade no país22 22 Como se sabe, a pintora expos ao lado de principais nomes, como Picasso, em exposições de arte moderna na cidade de São Paulo, durante a década de 1920 e 1930. Também ganhou uma exposição individual no recém fundado Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1950. , porém era pouco conhecida no exterior, em especial, na América Latina. Apoiada em Sergio Milliet, Aracy Amaral elegia em seu prólogo, a pintora Tarsila do Amaral como uma das maiores artistas modernistas do Brasil, ao lado de Di Cavalcanti. Até então, o artista moderno brasileiro mais conhecido entre especialistas latino-americanos era Candido Portinari.
No balanço sobre a produção pictórica latino-americana na primeira metade do século XX, realizado por Marta Traba no início da década de 1960, em La pintura nueva em Latinoamerica, a intelectual destacou dos pintores brasileiros o trabalho de Candido Portinari (TRABA, 1961TRABA, Marta. Duas décadas vulneráveis nas artes plásticas latino-americanas, 1950-1970. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.). Além disso, a intelectual criticou aspectos formais de sua obra. Nota-se que, sobretudo, a partir dos anos 1970, Traba passou a destacar nomes como o brasileiro Di Cavalcanti em suas refexões sobre a arte na América Latina. Além disso, em alguns textos de cunho mais literário da mesma época, a intelectual passou a fazer menção à antropofagia de artistas latino-americanos, que remete ao movimento antropófago brasileiro, como apontou a pesquisadora Elsa Crousier.23 23 Segundo Elsa Crousier, em alguns textos da década de 1970, como La jugada del sexto día, evoca-se o ato da antropofagia em algumas descrições de possíveis atos de resistência de alguns artistas latino-americanos, “remetendo ao movimento antropófago brasileiro, que consiste em “engolir” o legado europeu para apropriar-se dele, bem como menciona-se a possibilidade de uma apropriação das obras devido à sua “digestão”. Ver: CROUSIER, 2020.
Em ensaios de Marta Traba escritos no início dos anos 1980, que foram publicados postumamente pelo Banco Interamericano, em espanhol e em inglês, nota-se claramente uma maior importância dada pela intelectual argentina ao modernismo brasileiro engendrado em São Paulo, algo que não se via nas produções anteriores. Além disso, há diversas referências a própria Aracy Amaral nestas passagens, um indicativo de que não apenas o trabalho da brasileira passava a ser cada vez mais lido e citado por Marta Traba, como também o conteúdo sobre a Semana e sobre os modernistas brasileiros ecoava no trabalho de uma das principais vozes da crítica de arte latino-americana.
Em La transfusión de las vanguardias, por exemplo, Traba deu um grande destaque a São Paulo e à Semana de 22, reproduzindo o cartaz do evento. Além disso, é possível notar a inclusão no seu texto de nomes de personagens, obras e manifestos que compõem o panteão modernista de São Paulo, tais como a obra Macunaíma, de Mario de Andrade, refexões de Sergio Milliet, menções à revista Klaxon, ao Manifesto Pau Brasil e Antropófago, com destaque para Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Ou seja, trabalhava-se com todo o arcabouço do modernismo brasileiro engendrado a partir da Semana de 22, conteúdo que em grande parte havia sido também abordado por Aracy Amaral em seu prólogo do livro Arte y arquitectura del modernismo brasileño (1917-1930), de 1978. Abaixo, segue um trecho significativo da incorporação deste conteúdo.
La Semana de Arte Moderno se llevó a cabo en Sao Paulo en 1922, al mismo tiempo que los muralistas comenzaban, en la Escuela Nacional Preparatoria de México, el primer conjunto monumental que sentaba una nueva estética…Los textos de la revista Klaxon, publicada en Sao Paulo, y los numerosos documentos públicos emanados de la Semana son refexiones estéticas y llaman a la discusión intelectual. Aun cuando el Manifesto Pau Brasil, escrito por Oswald de Andrade, está fechado en 1924, el Manifesto Nacionalista de Gilberto Freyre en 1926, el Manifesto del grupo Antropofagia data de 1928 y la Escuela de Bellas Artes dirigida por Lucio Costa arranca en 1930, es entre 1915 y 1920 que fermentan en Brasil las ideas que desembocarán en la Semana de Arte Moderno… Aunque a primera vista parezca haber una similitud hasta en los términos “decrepitud” y “esteticismo” con los textos de los mexicanos, la agresividad de éstos nada tiene que ver con el impulso renovador y romántico de los Andrade y de Tarsila do Amaral, la más importante pintora de la época. El crítico Sergio Milliet explicaba, en 1924, que ella huía de la grandilocuencia, la literatura y la anécdota y procuraba realizar con elementos brasileños (luz directa, colores rudos, líneas duras y volúmenes pesados) “una pintura verdaderamente nuestra, expresando el temperamento paulista a través de la geometría y la síntesis”. “Las fases Pau Brasil y ‘antropofágica’ de Tarsila son, sin ninguna duda, los puntos culminantes de su carrera como pintora, y a ellas se debe su importancia en el arte moderno del Brasil”, escribió su crítica mayor, Aracy Amaral, en 1975… La obra de Tarsila do Amaral (1890-1973) constituye la vanguardia más representativa de la doble vertiente, europea y latinoamericana. (TRABA, 1994 [c.1982], p. 53-54TRABA, Marta. Arte de América Latina 1900-1980. Washington: Banco Interamericano de Desarrollo, 1994.)
O rico trecho acima demonstra a tentativa de enxergar a produção brasileira como parte da América Latina. As conexões com a região também podem ser notadas no prólogo de Aracy Amaral, ao ressaltar as semelhanças entre o modernismo brasileiro e os movimentos de vanguarda que ocorreram na maioria dos países latino-americanos. Para Amaral, além de se desenvolverem sobretudo a partir da década de 1920, o binômio internacionalismo-nativismo24 24 Sobre o nativismo, a autora indicou o texto “B rasilidad” de Guilherme de Almeida, presente na coletânea de textos. O termo está relacionado aos aspectos culturais formadores da cultura nacional, incluindo povos indígenas e pessoas negras. aparece como uma característica semelhante entre os movimentos na América Latina, ou seja, o interesse nas correntes estéticas vigentes na Europa, as chamadas vanguardas artísticas europeias, junto à necessidade de descoberta e expressão sobre a própria terra a partir dos olhares dos próprios artistas latino-americanos. Nesse sentido, destaca-se o papel de escritores, artistas e intelectuais que passaram a trabalhar pela renovação de linguagens e temas na maior parte da região.
Maria Helena Capelato, outra intelectual brasileira de grande importância para os estudos da história social da arte, cultura e política na América Latina, ressaltou que a renovação na literatura já vinha ocorrendo desde o séc. XIX na região. Em seu artigo, sobre os movimentos artísticos latino-americanos, afirmou que especialmente na década de 1920, agora com grande participação dos brasileiros, esses movimentos ganharam aderência entre artistas plásticos latino-americanos “que mantiveram contato com artistas europeus de diferentes nacionalidades”, momento em que “a pintura, assumiu importância tão relevante quanto a literatura”, no contato com as “raízes” nacionais de seus países. Capelato também se referiu a esses agentes como “artistas intelectuais” pois, abriram um amplo debate de ideias, por meio de produções artísticas variadas, escreveram manifestos, criaram revistas e se preocuparam em refetir sobre a sociedade. Tudo isso em um momento em que a América Latina era palco de confitos sociais e políticos, além de nacionalismos, no contexto das comemorações das independências. Reafirmou ainda que:
A busca de uma identidade nacional fundamentada em novas bases coincidiu com o surgimento dos movimentos modernistas dos anos 1920. Literatos e artistas plásticos se inspiraram nas vanguardas europeias da época, mas a busca de raízes nacionais implicou num processo de releitura da produção externa a partir das questões que estavam postas nos diferentes países da América Latina. A tentativa de recuperação das origens foi, geralmente, orientada por uma valorização da cultura popular e das tradições. Com base nesses elementos, os modernistas pretendiam criar um produto novo a partir de novas linguagens artísticas aprendidas na Europa. A circulação de ideias e formas visuais entre os artistas latino-americanos e europeus possibilitou a existência de “diálogos através de imaginários” (CAPELATO, 2005, p. 256-260CAPELATO, M.H.R. “Modernismo latino-americano e a construção de identidades através da pintura”. In: Revista de História (USP), v. n. 153, 2005, p. 251-282.)25 25 É preciso diferenciar o modernismo latino-americano dos movimentos de vanguarda desta parte do continente. O modernismo, enquanto corrente estética que relacionava-se à literatura, foi uma vertente hispano-americana do final do sec. XIX, mais especificamente 1888, com a publicação de “Azul” de Ruben Dario. Já o vanguardismo é composto por correntes artísticas dos anos 1920, atreladas não somente à literatura, mas às artes visuais e outras correntes estéticas, dentre as quais se incluem a que convencionamos chamar no Brasil de modernismo.
Mais recentemente, a historiadora argentina Andrea Giunta, outra grande estudiosa contemporânea sobre arte latino-americana, afirmou que dentre os movimentos artísticos e culturais com abrangência entre os países latino-americanos se destacam: o movimento muralista mexicano, o antropófago, que surge a partir do movimento modernista brasileiro e a Escuela del Sur, que surge a partir das proposições do artista uruguaio Joaquín Torres-Garcia (GIUNTA, 1995, p. 53-67GIUNTA, Andrea. Strategies of Modernity in Latin America. In: MOSQUERA, Gerardo (éd.). Beyond the Fantastic. Contemporary Art Criticism from Latin América, Institute of International Visual Arts. London, 1995.).
Outro ponto importante indicado no texto de Aracy Amaral foi o fato de que a maior parte dos artistas modernistas adquiriam conhecimento sobre as novas linguagens na Europa, especialmente em Paris. Poucas exceções, como Anita Malfati, circularam por Nova York nestas primeiras décadas do século XX. Como se sabe, ainda nos anos 1920, Paris era considerado o centro cultural do mundo ocidental e o destino de muitos artistas brasileiros e latino-americanos desde o século XIX. Grande parte dos artistas que ganhavam bolsas de estudos e prêmios eram orientados a passar temporadas na França para completar os seus estudos.26 26 Diego Rivera, por exemplo, ícone da pintura muralista no México vai completar seus estudos em Paris antes de retornar ao México e se comprometer com os ideários da Revolução Mexicana, assinando o Manifesto del Sindicato de Obreros Técnicos Pintores y Escultores, em 1924.
No artigo “Artistas latino-americanos na Paris modernista: a difícil consagração”, Ana Paula Cavalcanti Simioni analisou, a partir de variáveis como nacionalidade e gênero, as possibilidades de artistas latino-americanos alcançarem a almejada consagração na Paris modernista. Segundo a pesquisadora, a Cidade Luz era o centro preferido no séc. XIX para artistas latino-americanos buscarem algum reconhecimento internacional e que se manteve como um destino importante no século XX, apesar de Nova York ter despontado como um centro potente. Contudo, a pesquisadora destacou que poucas obras de artistas latino-americanos adquiridas por instituições no séc. XX foram consagradas ao ponto de comporem as coleções públicas da cidade (SIMIONI, 2021SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Artistas latino-americanos na Paris modernista: a difícil consagração. In: Anais Do Museu Paulista: História E Cultura Material, 29, 1-39, 2021. https://doi.org/10.1590/1982-02672021v29e17
https://doi.org/10.1590/1982-02672021v29...
).
Enquanto isso, na metrópole norte-americana, passava-se a expor não apenas a arte moderna da América Latina, mas também as suas arquiteturas. Na década de 1950, o Museu de Arte Moderna de Nova York se empenhava em colocar sob o seu radar o que havia de moderno na produção arquitetônica da região por meio da exposição “Latin American Architecture”. Naquela época, as artes plásticas da América Latina ficaram de escanteio, para tentar se forjar uma certa unidade continental, mas dessa vez, por meio da arquitetura, como apontou Fabiana Santos (SANTOS, 2019SANTOS, Fabiana Fernandes Paiva dos. Em busca da América Latina e suas arquiteturas: contextos, proposições e tensões nas exposições do MoMA (1955 e 2015). Dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). São Paulo, 2019.).
Sobre a arquitetura, ressalta-se no texto de Aracy Amaral a falta de uma perspectiva modernista clara neste campo durante a Semana. Contudo, além da chegada do arquiteto russo Gregori Warchavchik a São Paulo, em 1925, que posteriormente inaugurou a exposição pública intitulada “Casa Modernista”, Aracy Amaral considerou o arquiteto e múltiplo artista paulista Flavio de Carvalho um importante nome consolidado, sobretudo nos anos 1930, com vários projetos de residências em estilo art-déco na cidade de São Paulo. Flavio de Carvalho aparece no texto da historiadora como “a grande personalidade pós-modernista”, de uma segunda geração. Como se sabe, na década de 1950, o artista vai andar pelas ruas de São Paulo com os seus chamados experimentos, vestindo saia e questionando o uso do terno masculino nos trópicos. Tudo isso, antes de se inventarem nos grandes centros dos EUA e Europa a categorias de “performance” ou “happenings”. Nota-se tímidas referências em seu texto à importante passagem ao Brasil do arquiteto francês Le Corbusier, em 1929. Em seu texto, Aracy Amaral fez menção apenas ao famoso projeto do Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, que além de Le Corbusier, contou com Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e murais de Portinari.27 27 Além de ter visitado São Paulo e Rio de Janeiro, com o apoio de Paulo Prado e alguns modernistas, Le Corbusier também visitou Buenos Aires, apoiado por Victoria Ocampo, outra importante intelectual e mecenas das artes modernas na Argentina. Impactado pela Semana de Arte Moderna de 22, o arquiteto e intelectual francês proferiu palestras, publicou textos, prospectou projetos e foi importante para consolidar a perspectiva modernista entre uma geração de arquitetos, que com grande demanda estatal, se desenvolvera sobretudo a partir dos anos 1930. Em seu artigo sobre a passagem de Le Corbusier ao Brasil e suas relações com o movimento modernista e seus impactos na arquitetura, José Carlos Durant afirmou que depois do declínio das Academias de Bellas Artes, as artes plásticas perderam apoio estatal, contudo “em arquitetura, todavia, a derrota do academicismo diante dos movimentos de vanguarda do início do século XX não teve o mesmo efeito. A necessidade de amparo estatal até aumentou. As principais encomendas, por exemplo, ainda partem de órgãos de governo, e a conservação da tradição é demasiado onerosa para dispensar o gasto público, financiado pelas políticas de preservação do patrimônio. Além disso, a arquitetura continua a ser ensinada em universidades, o que lhe define desde logo um vínculo de dependência administrativa e econômica em relação à política educacional. Finalmente, ao incorporar o urbanismo, a arquitetura do século XX infiltrou-se bastante na administração das cidades”. (DURANT, 1991).
Ainda assim, alguns desses nomes como Gregori Warchavchik, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Flávio de Carvalho também aparecem nos textos de Marta Traba no início da década de 1980. O primeiro aparece em nota sobre nomes representativos da cena moderna do Brasil. Lúcio Costa e Oscar Niemeyer foram citados mais vezes, principalmente ao abordar a emergência e importância da arquitetura modernista brasileira para a região, sobretudo nos anos 1950, com o movimento Neoconcreto e a construção de Brasília. Neste trecho, cita-se o intelectual Ferreira Gullar como referência (TRABA, 1994 [c.1982], p. 148TRABA, Marta. Arte de América Latina 1900-1980. Washington: Banco Interamericano de Desarrollo, 1994.).
Já o caso de Flávio de Carvalho, Traba o avaliou como um artista único e pioneiro para a América Latina, não apenas para o Brasil, principalmente no questionamento das vanguardas e proposição de linguagens artísticas como a performance. Nesse caso, novamente, Marta Traba utilizou como suporte os textos da brasileira Aracy Amaral. (TRABA, 1994 [c.1982], p. 148TRABA, Marta. Arte de América Latina 1900-1980. Washington: Banco Interamericano de Desarrollo, 1994.). Notadamente, percebe-se os impactos dos textos de Aracy Amaral e de importantes críticos brasileiros como Ferreira Gullar na obra de Marta Traba no início dos anos 1980.
Ao relacionar sujeitos, movimentos e ideias do modernismo brasileiro e dos movimentos de vanguardas na região, detectava-se como ponto comum, o diálogo com as vanguardas internacionais e a preocupação de artistas, arquitetos e intelectuais com o meio em que viviam. Como bem salientou Maria Helena Capelato em seu texto, na América Latina, mesmo os “discípulos defensores da arte pela arte, não se identificaram completamente com essa perspectiva. A maioria deles revelou preocupação com os problemas da sociedade a que pertenciam” (CAPELATO, 2005, p. 258CAPELATO, M.H.R. “Modernismo latino-americano e a construção de identidades através da pintura”. In: Revista de História (USP), v. n. 153, 2005, p. 251-282.). Na inserção do modernismo brasileiro no escopo latino-americano durante os anos 1970, Aracy Amaral e Marta Traba foram duas vozes muito importantes e representativas de uma ampla rede de intelect uais que ecoaram o desejo de nos aproximar.
Considerações Finais
Este artigo trabalha com a hipótese de que durante os anos 1970, intelectuais latino-americanas atuaram na produção e difusão de conhecimento sobre arte e cultura na América Latina, buscando aproximações entre os países da região. Para isso, estabeleceram projetos e construíram redes na afirmação da perspectiva latino-americana em um contexto marcado pela difusão da cultura norte-americana na região. Ao mesmo tempo, em São Paulo, vivia-se um momento de revisitação do legado modernista da Semana de 22, por conta do aniversário de cinquenta anos do evento, e também uma guinada latino-americana nas artes, a partir da construção de um polo artístico-cultural através da I Bienal Latino-Americana de São Paulo.
Aracy Amaral, que atuou em várias dessas frentes, foi convidada a selecionar os textos dos modernistas contidos na obra e a elaborar o prólogo que contava a história do movimento brasileiro, com a participação de umas das mais respeitadas críticas de arte latino-americana naquele momento, a intelectual argentina Marta Traba, a qual foi conferida a importante tarefa de tradução do volume. O livro coloca o modernismo brasileiro entre as temáticas escolhidas para fazer parte da coleção, no caso a da Biblioteca Ayacucho. Nos primeiros volumes desta coleção, explicita-se que havia ali a pretensão em “recolher as mais importantes obras da criação e do pensamento latino-americanos, desde sua origem até o presente, cuidadas, prologadas e anotadas por especialistas de reconhecida competência em seus respectivos gêneros” (Apud DEMENECH, 2016, p. 96DEMENECH, Pedro. Coleção e identidade na crítica de Ángel Rama nos anos setenta. In: História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography. Ouro Preto: n. 20, abril 2016, p. 87-101.). Com Arte y arquitectura del modernismo brasileño (1917-1930) o modernismo brasileiro foi alçado ao plano internacional, dando mais um passo na construção deste polo cultural moderno e também na tentativa de aproximar o Brasil da América Latina por meio das ar tes e da cultura. Nesse sentido, a construção desta obra, além de aglutinar intelectuais e leitores em torno de um projeto sobre a história da América Latina, também pretendeu entregar ao leitor tudo o que há de fundamental sobre o tema proposto, neste caso o modernismo brasileiro.
O próprio Ángel Rama, que estabeleceu relações com o casal Antônio Candido e Gilda de Mello e Souza, entendia que o modernismo brasileiro era um marco cultural não só do Brasil, mas também da América Latina. Marta Traba, por sua vez, uma das grandes especialistas no tema, foi uma fgura fundamental na intermediação com a intelectual brasileira Aracy Amaral, na tradução do livro para o espanhol e, consequentemente, na difusão deste conhecimento para a América Latina e para o mundo, devido ao trânsito que tinha nas universidades, museus e centros de pesquisa em arte do continente.
Aracy Amaral, fgura central na construção desta obra, teve contato, nesta mesma década, com Marta Traba, juntamente com o tema da arte e cultura na América Latina. A obra representa na sua carreira um momento de ampliação de territórios, ainda que estivesse falando do Brasil para o público latino-americano. Mas, a partir de 1978, sem dúvida consolida-se na sua produção a adesão à perspectiva latino-americana. Com a responsabilidade de construir uma narrativa e elencar os principais elementos do modernismo brasileiro, privilegiou a perspectiva engendrada na Semana de Arte Moderna de 22. Apesar de destacar a importância do Rio de Janeiro, a sua visão sobre o tema contida no texto buscou legitimar São Paulo como o polo aglutinador e propulsor do movimento modernista brasileiro, na medida em que estabeleceu conexões, ainda que tímidas, com a América Latina. Além disso, elegeu artistas, intelectuais e mecenas da arte e da arquitetura modernas do país que viviam na cidade, com destaque para Tarsila do Amaral, Mario de Andrade, Anita Malfati, Oswald de Andrade, Flávio de Carvalho, Gregori Warchavchik, Mina Klabin Warchavchik, Olivia Guedes Penteado e Paulo Prado.
Se Linda Nochlin, na América do Norte, questionava na década de 1970 porque não existiram grandes artistas mulheres na história da arte, na América do Sul, intelectuais como Aracy Amaral e Marta Traba, além de tantas outras ainda pouco conhecidas no mundo, trabalhavam para a construção de pontes e afirmação da perspectiva latino-americana em um contexto de ditaduras e Guerra Fria. Nesse sentido, participaram ativamente de projetos que visavam a integração regional, como a Biblioteca Ayacucho e a Bienal Latino-Americana de São Paulo. Apesar de trajetórias distintas, ambas passaram a pensar as artes e a cultura, feitas por mulheres e homens, em plena periferia do ocidente, mirando suas refexões e olhares para além do eixo EUA-Europa, que até então predominava nos manuais e estudos da história da arte. No DNA de suas práticas enquanto intelectuais e latino-americanistas, havia a perspectiva de uma América Latina mais autônoma em relação à construção de suas histórias, pensamentos e manifestações artísticas.
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Tradução própria: “Por que não existiram grandes artistas mulheres?”.
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Depois, em 1969, deu continuidade à sua formação na Universidade de São Paulo, onde fez mestrado em Filosofa na Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), doutorado em Artes na Escola de Comunicação e Artes (1975) e Livre-Docência na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1983), onde se titulou e foi professora até se aposentar. As informações foram coletadas do próprio currículo Lates da autora. Ver: https://uspdigital.usp.br/tycho/CurriculoLatesMostrar?codpub=B7A0ABABFBFB (visualizado em 17 de outubro de 2016).
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No ano de 2016, foi defendida no programa de História Social da USP, a dissertação de Eustáquio Ornelas sobre o processo de formação da coleção latino-americana do MoMA, sob orientação da Professora Emérita Maria Ligia Coelho Prado. O trabalho foi publicado em livro pela Paco Editorial em 2019. Ver: COTA JR, 2019COTA JR., Eustáquio Ornelas. A formação da coleção latino-americana do MoMA: arte, cultura e política (1931-1943). Jundiaí (SP): Paco Editorial, 2019..
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Em 1976, por exemplo, a professora ministrou uma disciplina na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), intitulada “Introdução à Arte na América Latina”. Aracy Amaral tornou a ministrar outras vezes uma disciplina desse tipo, na mesma universidade.
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Ver também apud COSTA, 2018, p. 158COSTA, Adriane Vidal; MAÍZ, Claudio (Org.) Nas tramas da “cidade letrada”: sociabilidade dos intelectuais latinoamericanos e as redes transnacionais. Belo Horizonte: Fino Traço, 2018..
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[Bilhete de Gilda de Mello e Souza para Marta Traba] “São Paulo, 8 de outubro de 1974”. In: CANDIDO, 2018, p. 92CANDIDO, Antonio. Conversa cortada: a correspondência entre Antonio Candido e Ángel Rama (1960-1983). Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Edusp, 2018..
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[Mensagem de Marta Traba para Gilda de Mello e Souza]-“Caracas, 27 de outubro de 1974”. In: CANDIDO, 2018, p. 95CANDIDO, Antonio. Conversa cortada: a correspondência entre Antonio Candido e Ángel Rama (1960-1983). Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Edusp, 2018.
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10
[Carta de Ángel Rama para Gilda de Mello e Souza]-“Caracas, 10 de setembro de 1976”. In: CANDIDO, 2018, p. 202-203CANDIDO, Antonio. Conversa cortada: a correspondência entre Antonio Candido e Ángel Rama (1960-1983). Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Edusp, 2018..
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Gilda de Mello e Souza foi professora na Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde Aracy Amaral defendeu o seu mestrado.
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Sobre o viés transnacional, ver também: WEINSTEIN, 2013.
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Marta Traba citou Darcy Ribeiro em alguns de seus textos da época, admirando as refexões do intelectual brasileiro.
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Além de participar ativamente do evento, Aracy Amaral escreveu na época um conjunto de ensaios que documentam esse momento único no Brasil. Ver: AMARAL, 1983AMARAL, Aracy A. Arte e meio artístico (1961-1981): entre a feijoada e o x-burguer. São Paulo: Nobel, 1983..
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Há correspondência datada até 1982, mas com uma menor frequência que nos anos de 1978 e 1979. Ver: Arquivo do Instituto Estudos Brasileiros IEB – USP, Acervo Aracy Abreu Amaral, código de referência: AAA-C-MT-001 – 013
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Apesar de apoiar o projeto, a própria Marta Traba criticou a exposição do evento por privilegiar Brasil, Argentina e México, em detrimento de outros países com menor poder econômico. Assim como Traba, o mineiro Frederico Morais, outro grande especialista em arte latino-americana, também fez grandes ressalvas em relação à falta de representação de alguns países, e considerou o Simpósio muito melhor que a exposição. Ver: MORAIS, 1979, p. 63MORAIS, Frederico. Artes plásticas na América Latina: do transe ao transitório. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.. Apud. ALAMBERT, 2004, p. 152ALAMBERT, Francisco; CANHÊTE, Polyana Lopes. As bienais de São Paulo: da era do museu à era dos curadores (1951-2001). São Paulo: Boitempo, 2004..
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Arquivo do Instituto Estudos Brasileiros IEB – USP, Acervo Aracy Abreu Amaral, código de referência: AAA-C-MT-003.
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A discordância do futurismo proposto por Marineti se refere sobretudo ao aspecto do abandono completo do passado. No texto, Aracy Amaral exemplificou a situação trazendo um trecho da carta de Rubens Borba de Moraes a Joaquim Inojosa, em que o primeiro critica esse aspecto do futurismo italiano.
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Cabe salientar leituras que procuram perceber pontos de ligação e não somente rupturas entre um momento e outro, seja nos ambientes, seja nas produções artísticas. Em estudo intitulado “Los primeiros modernos”, a historiadora argentina Laura Malosseti Costa, por exemplo, questiona narrativas que enfatizam rupturas abruptas, sem perceber as continuidades que se deram no processo de transição entre a arte dita “acadêmica” do séc. XIX e a arte moderna do séc. XX. (MALOSETTI COSTA, 2001MALOSETTI COSTA, Laura. Los primeros modernos. Arte y sociedad en Buenos Aires a fines del siglo XIX. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2001.).
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Lasar Segall nasceu onde hoje é a atual Lituânia. No ano do seu nascimento, o território pertencia ao então Império Russo. A independência do país veio em 1918, após a Primeira Guerra Mundial.
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Cabe lembrar que, além de estudá-la em seu doutoramento, também teve contato com a artista, antes do seu falecimento em 1973.
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Como se sabe, a pintora expos ao lado de principais nomes, como Picasso, em exposições de arte moderna na cidade de São Paulo, durante a década de 1920 e 1930. Também ganhou uma exposição individual no recém fundado Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1950.
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Segundo Elsa Crousier, em alguns textos da década de 1970, como La jugada del sexto día, evoca-se o ato da antropofagia em algumas descrições de possíveis atos de resistência de alguns artistas latino-americanos, “remetendo ao movimento antropófago brasileiro, que consiste em “engolir” o legado europeu para apropriar-se dele, bem como menciona-se a possibilidade de uma apropriação das obras devido à sua “digestão”. Ver: CROUSIER, 2020CROUSIER, Elsa. De Europa a América: la obra critica de Marta Traba y sus evoluciones, Artelogie [En ligne], 15 | 2020, mis en ligne le 20 avril 2020, consulté le 13 septembre 2022. URL: http://journals.openedition.org/artelogie/4962; DOI : https://doi.org/10.4000/artelogie.4962.
http://journals.openedition.org/artelogi... . -
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Sobre o nativismo, a autora indicou o texto “B rasilidad” de Guilherme de Almeida, presente na coletânea de textos. O termo está relacionado aos aspectos culturais formadores da cultura nacional, incluindo povos indígenas e pessoas negras.
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É preciso diferenciar o modernismo latino-americano dos movimentos de vanguarda desta parte do continente. O modernismo, enquanto corrente estética que relacionava-se à literatura, foi uma vertente hispano-americana do final do sec. XIX, mais especificamente 1888, com a publicação de “Azul” de Ruben Dario. Já o vanguardismo é composto por correntes artísticas dos anos 1920, atreladas não somente à literatura, mas às artes visuais e outras correntes estéticas, dentre as quais se incluem a que convencionamos chamar no Brasil de modernismo.
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Diego Rivera, por exemplo, ícone da pintura muralista no México vai completar seus estudos em Paris antes de retornar ao México e se comprometer com os ideários da Revolução Mexicana, assinando o Manifesto del Sindicato de Obreros Técnicos Pintores y Escultores, em 1924.
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Além de ter visitado São Paulo e Rio de Janeiro, com o apoio de Paulo Prado e alguns modernistas, Le Corbusier também visitou Buenos Aires, apoiado por Victoria Ocampo, outra importante intelectual e mecenas das artes modernas na Argentina. Impactado pela Semana de Arte Moderna de 22, o arquiteto e intelectual francês proferiu palestras, publicou textos, prospectou projetos e foi importante para consolidar a perspectiva modernista entre uma geração de arquitetos, que com grande demanda estatal, se desenvolvera sobretudo a partir dos anos 1930. Em seu artigo sobre a passagem de Le Corbusier ao Brasil e suas relações com o movimento modernista e seus impactos na arquitetura, José Carlos Durant afirmou que depois do declínio das Academias de Bellas Artes, as artes plásticas perderam apoio estatal, contudo “em arquitetura, todavia, a derrota do academicismo diante dos movimentos de vanguarda do início do século XX não teve o mesmo efeito. A necessidade de amparo estatal até aumentou. As principais encomendas, por exemplo, ainda partem de órgãos de governo, e a conservação da tradição é demasiado onerosa para dispensar o gasto público, financiado pelas políticas de preservação do patrimônio. Além disso, a arquitetura continua a ser ensinada em universidades, o que lhe define desde logo um vínculo de dependência administrativa e econômica em relação à política educacional. Finalmente, ao incorporar o urbanismo, a arquitetura do século XX infiltrou-se bastante na administração das cidades”. (DURANT, 1991).
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Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Agradecemos à pesquisadora Gabriela Dalla Vecchia que, em tempos pandêmicos, gentilmente compartilhou o livro analisado neste artigo.
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Este artigo integra o Dossiê 1922/2022: o século da Semana – balanços e perspectivas organizadoresFrancisco Cabral Alambert Junior, Marcos Antonio da Silva, Nelson Tomelin
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Doutorando e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofa, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP. O presente artigo é oriundo da tese de doutorado Um diálogo sobre arte latino-americana: ensaios críticos de Marta Traba e Aracy Amaral (1960-1980), a ser defendida em 2022, sob a orientação da Profa. Dra. Stella Maris Franco. O trabalho conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES-Código de Financiamento 001 88882.333226/2019-01.
Fontes
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- ARQUIVO DO INSTITUTO ESTUDOS BRASILEIROS (IEB – USP). Acervo Aracy Abreu Amaral, código de referência: AAA-C-MT-001 – 013
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
31 Mar 2022 -
Aceito
15 Set 2022