Acessibilidade / Reportar erro

Sub-registro dos eventos vitais: estratégias para a sua diminuição

ATUALIDADES/ACTUALITIES

Sub-registro dos eventos vitais: estratégias para a sua diminuição

Maria Helena P. de Mello Jorge

Do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP – Av. Dr. Arnaldo, 715 – 01255 – São Paulo, SP – Brasil

O problema relativo à subenumeração dos eventos vitais tem se constituído em um grande empecilho para que as localidades tenham seus indicadores de saúde bem medidos e avaliados.

No Brasil são conhecidos alguns trabalhos que desde a década de 40, têm procurado conhecer e mensurar as deficiências das estatísticas referentes a esses eventos. Relativamente a nascimentos, estudos elaborados por Saade 17, Scorzelli18 e Moraes12, naquela época, e alguns outros realizados mais tarde, em São Paulo 5,7,9,11,16,20, Rio Grande do Sul19 e Bahia1 têm mostrado não ser desprezível o número de crianças que nascem e, por motivos já expostos, descritos e destacados em trabalhos anteriores 21,22, não têm seus nascimentos comunicados aos Cartórios do Registro Civil. Do ponto de vista de mortes é sabido que a certidão do óbito, fornecida pelo Cartório – em vista do atestado do médico, se houver lugar ou de duas testemunhas que tenham presenciado ou verificado a morte –é o documento oficial hábil para que a pessoa seja considerada morta, permitindo, portanto, seja iniciada toda uma seqüência de atos jurídicos, principalmente dentro do Direito de Família e do Direito das Sucessões. O número de registros de óbitos efetuados pelos Cartórios vai se constituir, do ponto de vista quantitativo, na base das estatísticas de mortalidade, e os atestados médicos, que os mesmos enviam às Repartições de Estatísticas, em seu estudo do ponto de vista qualitativo. Algumas pesquisas têm sido realizadas no Brasil com o intuito de mostrar os aspectos falhos desse problema 10,19.

Preocupadas com as deficiências das estatísticas vitais baseadas no Sistema de Registro Civil, algumas autoridades têm tentado contornar essa situação através de sua obtenção por meio de outros métodos naturais ou indiretos. Instituições, como por exemplo, a Fundação SESP (Serviço Especial de Saúde Pública), para algumas localidades brasileiras, tem tentado conhecer o número de nascimentos através dos partos realizados nas maternidades somado aos daqueles que, embora feitos no domicílio, são comunicados à Fundação SESP pelas parteiras por ela controladas 2,4. O Estado do Pará, a partir de 1980, está implantando, gradativamente, um Sub-Sistema de Natalidade 23 visando também a conhecer maior número de nascimentos do que, simplesmente, o fornecido pelo Registro Civil.

Apesar de permitido pelas próprias organizações internacionais, que países que apresentam estatísticas vitais de qualidade discutível possam se valer de sistemas paralelos 15, tem sido enfatizado que o emprego desses métodos indiretos deva ser de curta duração. Em trabalho anterior8 já se mostrou também ser anti-econômica a concomitância de dois Sistemas visando a objetivos comuns.

Com o intuito de melhorar as estatísticas vitais provindas do Registro Civil, considerada historicamente desde Graunt e Farr como sua fonte legítima 13,14, o Centro Nacional de Estatísticas de Saúde dos Estados Unidos elaborou, em caráter experimental, o chamado Projeto VISTIM (Vital Statistics Improvement), que vem se desenvolvendo em algumas áreas do mundo, como o próprio nome indica, tendo como meta a melhoria das estatísticas vitais 3 .No Peru, onde se iniciou em 1978, foi implantado em quatro áreas, com características geográficas e culturais bastante diversas (Santa, na Região do Litoral, Caylloma e Castilla, na Região da Serra e Coronel Portillo na Região da Selva) e teve como objetivos principais os de melhorar a cobertura e a qualidade dos registros, reduzir o tempo de envio dos formulários do escritório central às zonas de registros e sua recuperação para processamento dos dados, bem como elaborar um arquivo central de fatos vitais para fins legais e estatísticos. A fim de alcançar esses objetivos, o Projeto procedeu a modificações legais, alterações de forma e conteúdo dos documentos, introduziu alterações no processamento de dados e executou intenso trabalho de campo visando à capacitação de pessoal, educação e motivação da população, bem como da extensão da rede de registros 3. O Estudo está em fase de avaliação, com vistas à sua possível expansão a nível nacional, em função das modificações propostas 3.

No Brasil foi elaborado pelo Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, projeto de trabalho bastante semelhante mas que, entretanto, por motivos vários, não pôde ainda ser implantado * * LAURENTI, R. et al. – VISTIM-BR: Projeto piloto Cotia. São Paulo, 1980 [Mimeografado]. ** Dados inéditos. O arquivo disponível sofreu correções conforme ERRATA publicada no Volume 17 Número 3 da revista. .

Neste momento, a Secretaria de Saúde do Estado do Piauí, em colaboração com a Universidade Federal do mesmo Estado, sob os auspícios do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e com a assessoria do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública, está iniciando pesquisa denominada "Estudo da Mortalidade no Município de Teresina". Essa Investigação engloba quatro sub-projetos, dentre os quais merece destaque, pela pertinência ao assunto em questão, o Sub-projeto II, relativo aos óbitos de 1983 não registrados em Cartórios do Registro Civil.

O município de Teresina, com uma população de 378.026 habitantes, segundo o censo de 19806, está dividida em zona urbana e extensa zona rural. Existem no município quatro agências funerárias, todas particulares, três Cartórios de Registro Civil e, conforme pôde ser constatado em levantamento efetuado em 1976 pela Secretaria da Saúde, 7 cemitérios oficiais e 101 não oficiais ("clandestinos") ** * LAURENTI, R. et al. – VISTIM-BR: Projeto piloto Cotia. São Paulo, 1980 [Mimeografado]. ** Dados inéditos. O arquivo disponível sofreu correções conforme ERRATA publicada no Volume 17 Número 3 da revista. .

O Sub-projeto referido consiste basicamente em:

– levantamento e recadastramento dos cemitérios "clandestinos" nas zonas rural e urbana do Município;

– "descoberta" de cada caso de enterramento feito a partir de janeiro de 1983, tarefa a ser realizada com o auxílio dos guardas da SUCAM – Superintendência das Campanhas do Ministério da Saúde – e agentes da Secretaria da Saúde, especialmente treinados para esse fim, através de visitas mensais a cada um desses cemitérios;

– aplicação de questionário específico para cada caso de óbito enterrado nesses locais, visando à obtenção de dados relativos à identificação do falecido, história da doença que levou à morte, assistência médica recebida e situação sócio-econômica familiar do falecido.

Todo esse processo objetiva anexar os dados obtidos àqueles advindos do Registro Civil, a fim de tornar possível uma maior aproximação da realidade do Município de Teresina, no ano referido, quanto à sua mortalidade.

A assessoria dada pela Faculdade de Saúde Pública tem ainda como escopo uma tentativa de alteração do fluxo da informação sobre morte na área, através de reuniões – a primeira das quais já realizada – entre elementos da Universidade Federal do Piauí, Secretaria da Saúde, Prefeitura Municipal, Agências Funerárias e Cartórios. Essa primeira reunião visou primordialmente, conforme aliás já vinha sendo preconizado desde 1972 21,22, a promover e estimular as relações entre todos os profissionais que militam nas áreas dos registros – em sua dupla finalidade, a jurídica e a estatística – a fim de que cada um, conhecendo a importância do trabalho do outro, possa, com maior proficuidade, realizar suas tarefas e atingir seus objetos. É necessário frizar ainda que a educação médica não foi esquecida, pois, visando a que cada profissional médico – gerador da informação sobre mortes – passe a entender melhor a importância do preenchimento e encaminhamento dos atestados de óbito, estão sendo sugeridas palestras e encontros em Hospitais e Associações de Classe da cidade, por técnico especializado do Centro Brasileiro de Classificação de Doenças. Reuniões futuras com elementos da Prefeitura Municipal e Governo do Estado do Piauí – aparentemente bastante interessados no problema – podem levar a que, gradualmente, a Prefeitura vá assumindo cada um dos chamados cemitérios "clandestinos", a fim de torná-los oficiais.

No momento como este em que vivemos, e contando com a existência de autoridades altamente interessadas na desburocratização de determinados atos da vida civil, é preciso lembrar que os trâmites legais para os registros de nascimento e de morte precisam ser simplificados. Conforme se frizou em trabalho anterior 8, o registro de nascimento faz prova da identidade e da cidadania do indivíduo, bem como o registro de óbito, de seu desaparecimento. Como tais, devem eles ser uma função de Estado, não se podendo admitir que a sua realização fique à mercê da vontade ou da possibilidade dos pais ou outros parentes. A cobrança de tributos para esses registros atenta contra a integridade de suas próprias funções e de seus próprios objetivos, porque faz colocar o interesse privado ou individual acima do interesse social 8.

O estudo que ora se inicia no Piauí deve ser exemplo seguido por outras áreas; as autoridades governamentais, não esquecendo de que são elas próprias, talvez, os principais usuários das estatísticas de saúde, devem procurar, na medida do possível, equacionar o problema, tentando encontrar uma solução viável para a importante questão relativa ao sub-registro dos nascimentos e dos óbitos, em nosso país.

Recebido para publicação em 09/03/1983

Aprovado para publicação em 15/03/1983

  • 1. ALMEIDA, M.M.G. Sub-registro de nascimento em Salvador, Bahia (Brasil). Rev. Saúde públ., S. Paulo. 13:208-19, 1979.
  • 2. CARVALHO, A.V.W. Sugestões para o aperfeiçoamento do Sistema Nacional de Estatísticas Vitais. Rio de Janeiro, Fundação IBGE, 1974. [Mimeografado]
  • 3
    CONFERENCIA IBEROAMERICANA SOBRE ESTRATEGIAS PARA EL MEJORAMIENTO DEL SISTEMA DE REGISTRO CIVIL Y ESTADISTICAS VITALES, Lima, Peru, 1980. Documento I: Tema VIII. Lima, Peru. 1981.
  • 4
    FACULDADE DE SAÚDE PÚBLICA da USP. Marabá. 1980: trabalho de campo multiprofissional. São Paulo, 1981. [Mimeografado].
  • 5
    FACULDADE DE SAÚDE PÚBLICA da USP. Presidente Wenceslau: trabalho de campo multiprofissional. São Paulo, 1972 [Mimeografado].
  • 6
    FUNDAÇÃO IBGE. Censo de 1980; resultados preliminares. Rio de Janeiro, 1982.
  • 7. LAURENTI, R. et al. O sub-registro de nascimento em crianças falecidas com menos de um ano. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 5:237-42, 1971.
  • 8. MELLO JORGE, M.H.P. O sub-registro de nascimentos e de óbitos: sua importância em estatísticas de saúde. [Apresentado na Reunião do Grupo de Trabalho de Geografia da Saúde da União Geográfica Internacional, Brasília, 1982].
  • 9. MILANESI, M.L. & SILVA, E.P.C. Sub-registro de nascimento no distrito de São Paulo. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 2:23-8, 1968.
  • 10. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Mortalidade em Aracaju. Recife, CRESNE, 1973. (Publicação n.° 42).
  • 11. MONTEIRO, A.P.C. Contribuição para o estudo da mortalidade infantil em município do Estado de São Paulo. São Paulo, 1972. [Tese de Doutoramento Faculdade de Saúde Pública da USP].
  • 12. MORAES, N.L. de A. Estudo sobre a importância dos fatores que podem condicionar a deficiência dos registros de nascimento. Rev. Serv. Saúde públ., Rio de Janeiro, 2:743-74, 1949.
  • 13
    NACIONES UNIDAS. Departamento de Asuntos Economicos y Sociales. Manual de métodos de estadisticas vitales. Nueva York, 1955. (Estudios Metodológicos, série F, n.° 7).
  • 14
    NACIONES UNIDAS. Principios y recomendaciones para um sistema de estadisticas vitales. Nueva York, 1974. (Informes Estadísticos, série M, n.° 19, Rev. 1).
  • 15. PUFFER, R.R. & SERRANO, C.V. Dados basicos esenciales sobre nascimientos y defunciones para la planificacion de salud y las estadisticas demograficas. Bol. Ofic. sanit. panamer., 76:187-208, 1974.
  • 16. RIBEIRO, A.C. Mortalidade infantil no município de Marília, SP, em 1978: características e fatores condicionantes. São Paulo, 1982. [Dissertação de Mestrado Faculdade de Saúde Pública USP].
  • 17. SAADE, M.J. Verificação estatística do grau de deficiência do registro de nascimentos. Rev. Serv. Saúde públ., Rio de Janeiro, 1:449-67, 1947.
  • 18. SCORZELLI Jr., A. Coleta de dados vitais em pequenas localidades. Rev. Serv. Saúde públ., Rio de Janeiro, 1:397-32, 1947.
  • 19 . SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE. Sub registro de nascimentos e óbitos. Porto Alegre, 1976.
  • 20. SILVA, E.P.C. Estimativas de coeficientes e índices vitais e de sub-registros de nascimentos no distrito de São Paulo, baseadas em amostra probabilística de domicílios. São Paulo, 1970. [Dissertação de Mestrado Faculdade de Saúde Pública da USP].
  • 21. SILVEIRA, M.H. & LAURENTI, R. Os eventos vitais: aspectos de seus registros e interrelação da legislação vigente com as estatísticas de saúde. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 7:37-50, 1973.
  • 22. SILVEIRA, M.H. & SOBOLL, M.L, Sub-registro de nascimento: aspecto educativo visando à sua diminuição. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 7:151-160, 1973.
  • 23
    SUB-SISTEMA de fatos vitais – Natalidade: projeto. Belém, Secretaria da Saúde do Pará. Centro de Processamento de Dados, 1981. [fotocópia].
  • *
    LAURENTI, R. et al. – VISTIM-BR: Projeto piloto Cotia. São Paulo, 1980 [Mimeografado].
    **
    Dados inéditos.
    O arquivo disponível sofreu correções conforme ERRATA publicada no Volume 17 Número 3 da revista.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 1983

    Histórico

    • Recebido
      09 Mar 1983
    • Aceito
      15 Mar 1983
    Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Avenida Dr. Arnaldo, 715, 01246-904 São Paulo SP Brazil, Tel./Fax: +55 11 3061-7985 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revsp@usp.br