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Análise sociodemográfica da epidemia de Aids no Brasil, 1989-1997

A sociodemographic analysis of the AIDS epidemic in Brazil, 1989-1997

Resumos

OBJETIVO: Descrever a evolução temporal da epidemia de Aids, no nível individual, sob a perspectiva de variáveis sociodemográficas e comportamentais, com ênfase na escolaridade. MÉTODOS: Foram analisados os casos de Aids de 20 a 69 anos de idade, notificados ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde e diagnosticados entre 1989 e 1997, com diferença maior que sete dias entre as datas de óbito e de diagnóstico. Foram considerados três graus de escolaridade: "grau I" (com até 8 anos de estudo), "grau II" (com mais de 8 anos de estudo) e "ignorado". Para cada sexo, foi analisada a evolução temporal da distribuição dos casos por grau de escolaridade, região, tamanho populacional do município e categoria de exposição. Foi utilizado um modelo logístico multivariado para avaliar o efeito conjunto dessas variáveis. RESULTADOS: O grau de escolaridade foi "ignorado" em 22% dos casos. Entre os casos com escolaridade informada, percentuais mais elevados de "grau I" foram observados no sexo feminino, nas regiões Sudeste e Sul, nos municípios com menos de 500 mil habitantes e nas categorias de exposição "heterossexual" e "uso de drogas injetáveis". Observou-se uma redução gradativa do percentual de casos com maior escolaridade ao longo dos anos analisados para ambos os sexos e em todas as variáveis analisadas, menos pronunciado na categoria de exposição "homo/bissexual". CONCLUSÕES: A epidemia de Aids no Brasil teve início nos estratos sociais de maior escolaridade e depois se expandiu entre as populações com menor escolaridade, principalmente do sexo feminino, residentes em municípios de menor população e por meio das exposições heterossexuais e do uso de drogas injetáveis.

Síndrome de imunodeficiência adquirida; Escolaridade; Fatores socioeconômicos; Distribuição por sexo; Distribuição por idade; Comportamento sexual; Condições sociais


OBJECTIVE: To describe the temporal evolution of AIDS epidemic analyzed from a socio-demographic and behavioral perspective and focusing on the individual's educational level. METHODS: All AIDS cases aged 20 to 69, diagnosed with more than 7 days of difference between the dates of death and of diagnosis and reported to the Ministry of Health's Case Report Data Center from 1989 to 1997 were analyzed. Three educational levels were considered: "level I" (less or equivalent to 8 years of schooling), "level II" (more than 8 years of schooling) and "unknown" (no available information). A descriptive analysis of the temporal evolution of the distribution of AIDS cases during the study period was carried out for both sexes and categorized by educational levels, geographic region, county population size, and exposure categories. Multivariate logistic analysis was performed to assess the variables combined effect. RESULTS: Information on educational level was not available in 22% of the cases. Where there was available information, higher percentages of "level I" were observed among females, in the southeast and south regions, municipalities with less than 500,000 inhabitants, and in the "heterosexual" and "IDU" exposure categories. For all variables analyzed, it was observed a gradual reduction on the percentages of cases with a higher level of education, in the time period analyzed, for both sexes, less intense among the cases in "homosexual or bisexual" exposure category. CONCLUSIONS: The AIDS epidemic in Brazil started in social strata of higher educational level, spreading to populations with low educational level, especially among females, as well as to smaller population counties, through heterosexual contacts and use of injecting drugs.

Acquired immunodeficiency syndrome; Educational status; Socioeconomic factors; Sex distribution; Age distribution; Sex behavior; Social conditions


Análise sociodemográfica da epidemia de Aids no Brasil, 1989-1997

A sociodemographic analysis of the AIDS epidemic in Brazil, 1989-1997

Maria Goretti Pereira Fonsecaa, Célia Landmann Szwarcwaldb e Francisco Inácio Bastosb

aCoordenação Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e Aids. Ministério da Saúde. Brasília, DF, Brasil. bDepartamento de Informações em Saúde, Centro de Informação Científica e Tecnológica. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

DESCRITORES
Síndrome de imunodeficiência adquirida, epidemiologia. Escolaridade. Fatores socioeconômicos. Distribuição por sexo. Distribuição por idade. Comportamento sexual. Condições sociais.

RESUMO

OBJETIVO:

Descrever a evolução temporal da epidemia de Aids, no nível individual, sob a perspectiva de variáveis sociodemográficas e comportamentais, com ênfase na escolaridade.

MÉTODOS:

Foram analisados os casos de Aids de 20 a 69 anos de idade, notificados ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde e diagnosticados entre 1989 e 1997, com diferença maior que sete dias entre as datas de óbito e de diagnóstico. Foram considerados três graus de escolaridade: "grau I" (com até 8 anos de estudo), "grau II" (com mais de 8 anos de estudo) e "ignorado". Para cada sexo, foi analisada a evolução temporal da distribuição dos casos por grau de escolaridade, região, tamanho populacional do município e categoria de exposição. Foi utilizado um modelo logístico multivariado para avaliar o efeito conjunto dessas variáveis.

RESULTADOS:

O grau de escolaridade foi "ignorado" em 22% dos casos. Entre os casos com escolaridade informada, percentuais mais elevados de "grau I" foram observados no sexo feminino, nas regiões Sudeste e Sul, nos municípios com menos de 500 mil habitantes e nas categorias de exposição "heterossexual" e "uso de drogas injetáveis". Observou-se uma redução gradativa do percentual de casos com maior escolaridade ao longo dos anos analisados para ambos os sexos e em todas as variáveis analisadas, menos pronunciado na categoria de exposição "homo/bissexual".

CONCLUSÕES:

A epidemia de Aids no Brasil teve início nos estratos sociais de maior escolaridade e depois se expandiu entre as populações com menor escolaridade, principalmente do sexo feminino, residentes em municípios de menor população e por meio das exposições heterossexuais e do uso de drogas injetáveis.

KEYWORDS

Acquired immunodeficiency syndrome, epidemiology. Educational status. Socioeconomic factors. Sex distribution. Age distribution. Sex behavior. Social conditions.

ABSTRACT

OBJECTIVE:

To describe the temporal evolution of AIDS epidemic analyzed from a socio-demographic and behavioral perspective and focusing on the individual's educational level.

METHODS:

All AIDS cases aged 20 to 69, diagnosed with more than 7 days of difference between the dates of death and of diagnosis and reported to the Ministry of Health's Case Report Data Center from 1989 to 1997 were analyzed. Three educational levels were considered: "level I" (less or equivalent to 8 years of schooling), "level II" (more than 8 years of schooling) and "unknown" (no available information). A descriptive analysis of the temporal evolution of the distribution of AIDS cases during the study period was carried out for both sexes and categorized by educational levels, geographic region, county population size, and exposure categories. Multivariate logistic analysis was performed to assess the variables combined effect.

RESULTS:

Information on educational level was not available in 22% of the cases. Where there was available information, higher percentages of "level I" were observed among females, in the southeast and south regions, municipalities with less than 500,000 inhabitants, and in the "heterosexual" and "IDU" exposure categories. For all variables analyzed, it was observed a gradual reduction on the percentages of cases with a higher level of education, in the time period analyzed, for both sexes, less intense among the cases in "homosexual or bisexual" exposure category.

CONCLUSIONS:

The AIDS epidemic in Brazil started in social strata of higher educational level, spreading to populations with low educational level, especially among females, as well as to smaller population counties, through heterosexual contacts and use of injecting drugs.

INTRODUÇÃO

Estudos ecológicos acerca da dinâmica da epidemia de Aids11,14 levantam a hipótese de que a expansão da epidemia no Brasil vem se fazendo acompanhar de mudanças referentes às condições sociais dos indivíduos com HIV/Aids, com uma disseminação que afeta progressiva e mais profundamente as classes menos favorecidas.

Estudo recente descreve a crescente disseminação do HIV/Aids nos municípios de menor tamanho populacional, de modo geral, com população de menor renda per capita.11 Outras análises mostraram uma difusão espacial vigorosa de casos entre mulheres de áreas mais pobres da cidade do Rio de Janeiro, o que refletiria desigualdades sociogeográficas na difusão da epidemia entre as mulheres naquela cidade, além de desigualdades específicas de gênero.13,14

Poucos estudos brasileiros abordam, sob a ótica dos indivíduos, as eventuais mudanças das condições socioeconômicas dos casos de Aids. Grangeiro,5 analisa o perfil socioeconômico dos casos de Aids no município de São Paulo e descreve mudanças no perfil dos indivíduos de acordo com a ocupação exercida quando da notificação da doença, no período entre 1985-90. No início da epidemia, predominavam indivíduos inseridos em "ocupações técnico-científicas". A participação proporcional dessas ocupações entre os casos notificados foi progressivamente se reduzindo, com aumento proporcional de indivíduos com ocupações de menor qualificação profissional.

O grau de escolaridade tem sido bastante utilizado como indicador do nível socioeconômico dos indivíduos e seu impacto sobre a saúde. A escolaridade mostra-se um indicador mais estável ao longo da vida do indivíduo por sofrer poucas interferências em função de mudanças conjunturais vivenciadas pelas populações e grupos10 ou eventuais conseqüências advindas do próprio processo de adoecimento.

Fonseca & Castilho3 descrevem o aumento relativo dos casos de Aids com menor escolaridade já no início da década de 90, principalmente entre pertencentes às categorias de transmissão "usuário de drogas injetáveis" (UDI) e "heterossexual" e entre as mulheres. Em estudo recente, que analisou as taxas de incidência de Aids por grau de escolaridade, Fonseca et al4 mostram que a epidemia no Brasil iniciou-se nas camadas da população de maior nível socioeconômico para depois disseminar-se, progressivamente, entre as de nível socioeconômico mais baixo.

O presente estudo tem por objetivo descrever a evolução temporal da epidemia de Aids no Brasil entre 1989 e 1997, no nível individual, tomando a escolaridade como variável indicadora da condição social. Busca-se, assim, obter melhor compreensão das tendências da epidemia de uma perspectiva das demais variáveis sociodemográficas e comportamentais, disponíveis no Sistema Nacional de Agravos de Notificação - AIDS (SINAN-AIDS). O estudo também objetiva identificar que outras variáveis podem estar relacionadas a um maior ou menor grau de escolaridade.

MÉTODOS

A análise compreende os casos de Aids notificados por meio do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN/AIDS), da Coordenação Nacional de DST e Aids (CN DST/AIDS) do Ministério da Saúde. Foram incluídos os casos de 20 a 69 anos de idade, com data de diagnóstico entre 1989 e 1997 e notificação até 3/9/2000. O ano de 1997 foi o último considerado, de modo a evitar viés na análise em decorrência do atraso de notificação.1

A primeira etapa do trabalho consistiu em uma análise descritiva da proporção de casos discriminados por escolaridade e segundo diferentes variáveis. Para cada sexo, analisou-se a evolução temporal da distribuição dos casos por categoria de escolaridade, segundo regiões geográficas (região de residência do caso), tamanho populacional dos municípios de residência do caso e categorias de exposição.

No SINAN/AIDS, nas versões até 1998, o grau de instrução está assim categorizado: analfabeto; primeiro grau; segundo grau; superior e ignorado. Esta classificação, contudo, passou por reformulações sucessivas, o que torna impossível analisar a evolução temporal por grau de instrução considerando, separadamente, as categorias correspondentes ao segundo grau e ao superior. Portanto, para os propósitos do presente estudo, foram considerados três níveis de escolaridade: "grau I", compreendendo os casos de Aids analfabetos ou com o primeiro grau (escolaridade mais baixa); "grau II", composto dos casos com segundo grau ou superior (escolaridade mais elevada); e "ignorado", compreendendo os casos sem informação sobre a escolaridade.

A categoria de exposição do caso foi estabelecida pelo SINAN/AIDS de acordo com os critérios definidos pela CN DST/AIDS. Para a análise, foram consideradas as seguintes categorias: "homo/bissexual", "heterossexual", "usuário de drogas injetáveis – UDI", "transfusão sangüínea" e "ignorada" – compostas pelo agrupamento das categorias simples correspondentes acrescidas das categorias múltiplas, segundo a hierarquização proposta pela The Joint United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS) em 1999.15

O tamanho populacional dos municípios foi assim categorizado: "até 50 mil habitantes"; "de 50 a 200 mil habitantes"; "de 200 a 500 mil habitantes"; e "maior de 500 mil habitantes".

No SINAN/AIDS, a informação sobre a parceria sexual é assim estabelecida: "casos com múltiplos parceiros", "parceiro UDI", "parceiro hemofílico ou transfundido", "parceiro soropositivo para o HIV" e "parceiro com múltiplos parceiros".

No sentido de estabelecer o efeito conjunto das variáveis consideradas, a segunda etapa do trabalho compreendeu uma análise multivariada para cada sexo, tendo como variável dependente o grau de instrução classificado em dois níveis – "grau I" e "grau II" – e como co-variáveis, "ano de diagnóstico" e "idade". Como variáveis independentes dicotômicas (atribuindo-se o valor 1 para a presença da condição e 0 para sua ausência) foram consideradas "região de residência", "tamanho populacional do município", "categoria de exposição" e "tipo de parceria". Para tanto, utilizou-se um modelo de regressão logística como procedimento para seleção de variáveis potencialmente associadas à variável dependente, tipo "stepwise", maximizando-se em cada passo a razão de verossimilhança. O nível de significância para inclusão de uma variável no modelo é de 0,05; para exclusão, é de 0,10. Utilizou-se o software estatístico SPSS, versão 9.0.1. Por tratar-se de estudo com base populacional, o modelo utilizado não tem a finalidade de testar hipóteses, mas, meramente, de descrever as variáveis associadas ao grau de instrução dos casos.

Devido ao fato de os casos conhecidos por ocasião do óbito (24.561 casos, representando 18,7% do total de casos) apresentarem maior percentual de "ignorados" nas informações que constam no SINAN – categoria de exposição, tipo de parceria e, particularmente, grau de escolaridade – decidiu-se excluir esses casos da análise. O critério de exclusão foi uma diferença de até sete dias entre a data de óbito e a data do diagnóstico.

RESULTADOS

Entre 1989 e 1997, foram notificados cerca de 107 mil casos de Aids entre indivíduos de 20 a 69 anos de idade, com diferença entre as datas do óbito e a do diagnóstico maior do que sete dias. O número de casos registrados aumentou expressivamente entre 1989 e 1992, com uma aparente estabilização em torno de 17 mil casos novos por ano após 1995.

A participação proporcional dos casos femininos aumentou gradativamente ao longo do período. Em 1989, as notificações referentes às mulheres representavam 13% do total de casos, chegando a 30% em 1997. A razão entre os sexos passou de seis homens registrados com Aids para cada mulher – 6:1, em 1989, para apenas dois homens para cada mulher – 2:1, em 1997.

A Tabela 1 apresenta a distribuição dos casos de Aids por sexo e ano de diagnóstico, segundo escolaridade. Não havia informações sobre a escolaridade em 22% dos casos de Aids, com variações anuais no período estudado, para ambos os sexos, sendo a ausência de informações ligeiramente mais elevada entre as mulheres no início do período.

Entre os casos com informação sobre a escolaridade, observou-se que os homens apresentavam percentuais maiores no "grau II" de escolaridade do que as mulheres, em todos os anos analisados. Em 1989, quase 50% dos casos entre homens possuíam grau II de escolaridade. Essa porcentagem reduziu-se gradativamente ao longo do tempo. Dinâmica inversa foi observada entre aqueles com menor escolaridade ("grau I"), que passaram a representar quase 70% dos casos notificados em 1997. Entre as mulheres, dinâmica similar foi observada, embora em menores proporções, já que no primeiro ano analisado, a proporção de casos com menor escolaridade representava 71% entre as mulheres com escolaridade informada.

A região Centro-Oeste foi a que apresentou o menor número de casos sem informação sobre a escolaridade, mantendo-se acima de 30% no fim do período analisado, para ambos os sexos. Nas regiões Norte e Sul, a proporção de casos com escolaridade ignorada manteve-se abaixo de 20% desde o início da década de 90. Nas regiões Nordeste e Sudeste, tal índice pôde ser observado somente no final do período analisado.

A Figura 1 apresenta a distribuição proporcional dos casos de Aids por sexo, região de residência e grau de escolaridade informada. Entre os homens, exceto na região Sudeste, houve maior número de casos com escolaridade informada de "grau II" no início do período analisado. Esta proporção reduziu-se gradativamente ao longo dos anos, com aumento dos casos com menor escolaridade, com diferenças expressivas entre as regiões. Na região Sudeste, em 1989, já havia sido notificada uma maior proporção de casos com escolaridade mais baixa. Na região Sul, esta mudança ocorreu em 1991; enquanto que nas demais regiões foi observada somente em 1993.


Entre as mulheres, em todas as regiões, à exceção da região Sudeste, entre 1989 e 1997 (embora não para a última metade da década de 1980),4 também foi observado um aumento proporcional dos casos com menor escolaridade, embora sobressaia a maior (se comparada aos casos masculinos) proporção de casos com escolaridade de "grau I", ao longo do período. A região Sudeste apresentava, desde 1989, elevadas proporções de casos com escolaridade mais baixa (75%). As demais regiões passaram a apresentar proporções mais elevadas de casos com menor escolaridade nos primeiros anos da década de 90. A região Nordeste manteve proporções mais elevadas de casos com escolaridade "grau II" ao longo do período (Figura 1).

Os municípios com mais de 500 mil habitantes notificaram um maior número de casos (de ambos os sexos) com escolaridade ignorada nos últimos anos analisados. Os municípios com população entre 50 mil e 200 mil habitantes registraram as menores proporções de casos com escolaridade ignorada – abaixo dos 20% desde 1993.

Dentre os casos com escolaridade informada (Figura 2), observou-se que a proporção de casos "grau I" mostrou-se inversamente proporcional ao tamanho da população do município. O número de casos com maior escolaridade também se reduziu ao longo do período analisado em todos os municípios, independentemente de seu tamanho populacional, embora esta redução tenha sido menos evidente nos grandes municípios.


As mulheres em todos os municípios apresentaram, ao longo de todo o período analisado, maiores proporções de casos com escolaridade mais baixa do que os homens. Nos municípios maiores, a proporção de casos com escolaridade "grau II" foi de 28% para as mulheres e de 47% entre os homens. Nos demais municípios, o índice esteve abaixo de 20% entre as mulheres e manteve-se acima dos 25% entre os homens. Contudo, o aumento da proporção de casos registrados com menor escolaridade mostrou-se mais evidente entre os homens do que entre as mulheres ao longo do período analisado.

Para ambos os sexos, os casos com categoria de exposição ignorada foram os que apresentaram maiores proporções de "não-informação" sobre a escolaridade, principalmente entre os casos do sexo masculino. Essa proporção manteve-se acima de 30% até o último ano analisado. Nas demais categorias de exposição, a proporção de casos com escolaridade ignorada ficou abaixo de 20% desde 1994, com exceção da categoria "UDI", entre as mulheres, que se manteve acima desse percentual até o fim do período.

Entre os casos masculinos com informação sobre a escolaridade (Figura 3), a categoria de exposição "homo/bissexual" foi a que apresentou a maior proporção – quase 50% – de casos com escolaridade mais elevada até o fim do período, com ligeiro declínio destes nos últimos anos analisados. A categoria de exposição "UDI" apresentou a maior proporção de casos com escolaridade mais baixa, sendo que, já em 1989, 78% possuíam escolaridade "grau I". A categoria de exposição "heterossexual" apresentou também proporções elevadas de casos com escolaridade baixa desde o início do período sob análise. Os casos com categoria de exposição ignorada também apresentaram grau de escolaridade mais elevado, no início do período, com importante queda ao longo dos anos. Observa-se, entretanto, em todas as categorias de exposição, um aumento da proporção de casos com nível de escolaridade mais baixo.


Entre as mulheres, observou-se uma distribuição mais homogênea quanto à escolaridade por categoria de exposição. Em todas elas foram observadas proporções acima de 50% de casos com escolaridade "grau I", desde os primeiros anos do período analisado, sendo as maiores proporções observadas na categoria "UDI", que se manteve acima dos 80%. Os casos devidos à transfusão de sangue e derivados foram os que apresentaram maiores proporções de indivíduos com escolaridade mais elevada (Figura 3).

A Tabela 2 apresenta o resultado da análise multivariada, por ordem de inclusão, das diferentes variáveis no modelo, assim como o odds ratio, bruto e ajustado, para cada sexo. Pode-se observar que para ambos os sexos o ano de diagnóstico, a categoria de exposição "UDI", as parcerias do caso e os municípios menores de 500 mil habitantes se mostraram relacionadas a menor escolaridade; e todas as regiões, com exceção da Sudeste, com escolaridade mais elevada. Para o sexo masculino, a categoria de exposição "heterossexual" se mostrou relacionada ao "grau I" de escolaridade, enquanto a idade se mostrou associada ao "grau II". No sexo feminino, a categoria de exposição "ignorado" se mostrou relacionada ao "grau II" de escolaridade.

Quanto mais recente a epidemia, uma vez que tenha ela se expandido para os municípios de menor população – principalmente se isto se deu preferencialmente por transmissão heterossexual e uso de drogas injetáveis – maior a proporção de casos com menor escolaridade e, portanto, com nível socioeconômico mais baixo.

DISCUSSÃO

A análise apresentada no presente estudo confirma que a epidemia de Aids no Brasil teve início nos estratos sociais de maior nível socioeconômico, expresso pelo grau de escolaridade, expandindo-se para grupos de indivíduos de menor nível socioeconômico no decorrer do período. Fonseca et al4 descreveram a inversão da incidência de Aids por grau de escolaridade entre 1989 e 1996 com aumento progressivo das taxas de incidência nos indivíduos com menor escolaridade até ultrapassar aquelas encontradas para os indivíduos com maior escolaridade, fato evidente na região Sudeste.

O presente estudo também evidencia que a redução na proporção de casos com escolaridade mais elevada foi observada segundo todas as variáveis consideradas, o que mostra consistência nos resultados. Entretanto, essa redução foi menos pronunciada na categoria de exposição "homo/bissexual", indo de encontro à hipótese de que, entre os homossexuais, estaria ocorrendo processo de pauperização da epidemia na mesma proporção observada nas demais categorias de exposição. A teoria das redes sociais, na qual indivíduos mantêm parcerias dentro de grupos específicos, contribui para explicar o padrão encontrado.7 Szwarcwald et al14 demonstraram que, no município do Rio de Janeiro, não houve difusão espacial dos casos de Aids pertencentes à categoria de exposição homossexual, observando-se crescimento in situ e concentrado nas áreas geográficas que apresentavam taxas elevadas desde o início da epidemia.

A epidemia de Aids atinge vigorosamente as mulheres, que têm apresentado taxas de incidência crescentes nos últimos anos.8 Além disso, os casos de Aids entre as mulheres apresentaram maiores proporções na categoria de escolaridade mais baixa. As mulheres constituem um segmento populacional mais vulnerável à infecção pelo HIV por razões biológicas,2 devido às "regras" de pareamento entre os gêneros (com homens mais velhos interagindo com mulheres mais jovens),2 e, principalmente, por serem tratadas desigualmente em termos políticos, culturais e socioeconômicos, com menor acesso a bens materiais, proteção social e, certamente, à educação.2

As diferenças entre a proporção de casos com escolaridade mais elevada ou mais baixa entre as regiões brasileiras deve-se, basicamente, aos diferentes estágios da epidemia em cada região. As maiores proporções de casos com escolaridade mais baixa na região Sudeste já no início do período analisado confirmam observações anteriores de que a Aids no país apresenta-se sob a forma de subepidemias regionais.3,11 Iniciada no País na década de 1980, a epidemia alcançou taxas elevadas de crescimento já na metade da década na região Sudeste, com tendência à estabilização após 1995. As regiões Sul e Centro-Oeste apresentaram taxas de crescimento mais pronunciado no início da década de 90 e mantêm tendência ascendente, especialmente na região Sul. As demais regiões do país vêm sendo atingidas mais recentemente.8 Portanto, é de se esperar que a região Sudeste apresente maiores proporções de casos de Aids com menor escolaridade desde o início do período analisado, uma vez que nessa região a epidemia encontra-se em estágio mais "amadurecido", e, portanto, em pleno processo de "pauperização".

O modelo de regressão múltipla relacionou cada variável a um dos graus de escolaridade. Os anos mais recentes da epidemia e as categorias de exposição "heterossexual" e "UDI" se mostraram relacionados a menor escolaridade, reforçando a hipótese de que a epidemia de Aids vem atingindo as camadas mais empobrecidas da população, principalmente por meio da transmissão heterossexual e do uso de drogas injetáveis. Szwarcwald et al11 descreveram o crescimento da epidemia de Aids para os municípios de menor porte populacional, reconhecidamente mais pobres, principalmente devido aos casos por transmissão heterossexual, achado corroborado, no âmbito local, pelo estudo desenvolvido no Rio de Janeiro.14

A multiplicidade de parceiros sexuais também está relacionada a uma escolaridade mais baixa. Szwarcwald et al,12 analisando os conscritos do exército brasileiro (jovens de 17-18 anos de idade) no ano de 1998, identificaram que quanto menor a escolaridade do conscrito, maior a proporção de parceiros sexuais e um uso menos consistente de preservativos. Destaca-se, igualmente, o papel da educação na adoção de práticas saudáveis. Em todos os estratos, os conscritos com primeiro grau incompleto iniciavam mais precocemente sua vida sexual, apresentavam taxas mais elevadas de atividade sexual, maior número de parceiros casuais e menores freqüências de uso de preservativo.

Como discutem os autores, os jovens adolescentes de baixa instrução e nível socioeconômico precário são os mais suscetíveis às infecções sexualmente transmissíveis (IST), provavelmente devido ao comportamento sexual de maior risco e ao menor conhecimento sobre essas doenças e suas medidas de prevenção.

A evolução da epidemia de Aids no Brasil afeta seletivamente uma população menos favorecida do ponto de vista socioeconômico com implicações importantes para as ações de prevenção e assistência. O acesso restrito à educação dificulta a apreensão das mensagens educativas. Além disso, alguns autores têm mostrado associação entre a rapidez da progressão da infecção pelo HIV,9 ou da sobrevida após infecção pelo HIV,6 e o nível socioeconômico do indivíduo em coortes de homossexuais masculinos. Schechter et al9 verificaram uma menor progressão para Aids entre indivíduos infectados pelo HIV com renda anual maior que US$ 100,000 e entre aqueles que concluíram o nível médio de educação. Hogg et al6 relataram associação independente entre renda elevada e maior sobrevida.

As restrições encontradas na elaboração deste trabalho devem-se, basicamente, ao uso de dados secundários e ao fato de tais informações refletirem as infecções pelo HIV ocorridas na década de 1980, pelo longo período de latência entre a infecção pelo HIV e as manifestações clínicas e/ou laboratoriais da Aids, o que dificulta, em parte, a compreensão dos caminhos mais recentes da epidemia.A análise da tendência da infecção pelo HIV em diversos segmentos populacionais seria de maior valia para o delineamento da epidemia. São exemplos disso os estudos de soroprevalência em conscritos do exército (ainda que restritos a grupo jovem, com prevalências reconhecidamente baixas) e estudos dos casos de Aids por transmissão vertical.14 Neste último estudo, foi encontrada associação entre os casos de Aids por transmissão vertical e o nível de pobreza da região administrativa do município do Rio de Janeiro, entre 1991 e 1996. Os dados referentes à transmissão vertical podem ser tomados como indicadores de infecções mais recentes, já que, grosso modo, as gestantes são representativas das mulheres em idade fértil. Nesse caso, seria interessante que a Ficha de Notificação de Casos de Aids em Menores de 13 Anos contemplasse informações mais detalhadas sobre as condições socioeconômicas e demográficas das mães, como idade, escolaridade, ocupação e local de moradia.

A proporção de casos com informação ignorada sobre a escolaridade, embora tendo se reduzido gradativamente ao longo do período, manteve-se elevada e diferenciada segundo região de residência do caso. Certamente, a redução ocorrida ao longo do período estudado pode ser atribuída à melhoria da vigilância epidemiológica e à maior conscientização dos profissionais de saúde sobre a importância da coleta destas informações. Entretanto, a variação observada ano a ano pode ter levado a interpretações incorretas dos dados. Como houve aumento na proporção de casos com escolaridade mais baixa ao longo do período analisado, coincidentemente com a redução na proporção de casos com escolaridade ignorada, é possível que o aumento tenha sido menos pronunciado do que o descrito no presente trabalho, uma vez que os casos sem informação sobre a escolaridade no início dos anos analisados poderiam ser aqueles casos com menor escolaridade.

Correspondência para/ Correspondence to:

Maria Goretti Pereira Fonseca

SHIN QL 07 conj. 06 cs. 18 Lago Norte

70515-065 Brasília, DF, Brasil

E-mail: goretti@aids.gov.br

Parcialmente financiado pela Coordenação Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde.

Recebido em 10/10/2001. Reapresentado em 22/4/2002. Aprovado em 15/7/2002.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2002
  • Data do Fascículo
    Dez 2002

Histórico

  • Aceito
    15 Jul 2002
  • Revisado
    22 Abr 2002
  • Recebido
    10 Out 2001
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