Resumos
A Vasodilatação Mediada por Fluxo (VMF) da artéria braquial, por meio da ultrassonografia, é um método de avaliação da função endotelial que pode oferecer informações fisiopatológicas, diagnósticas e prognósticas. A realização dessa revisão sistemática objetivou avaliar o nível de evidência na literatura a respeito da capacidade preditora da função endotelial, medida pela VMF da artéria braquial, por meio da ultrassonografia, quanto a eventos cardiovasculares, em indivíduos portadores de aterosclerose. Foram realizadas buscas nas bases de dados MEDLINE, SCIELO e LILACS e selecionados estudos de coorte prospectivos, em seres humanos, que analisaram o valor prognóstico da função endotelial medida pela VMF da artéria braquial, em populações portadoras de doença aterosclerótica, periférica ou coronariana. Trabalhos com evidentes vieses metodológicos foram excluídos. A seleção final constituiu-se de 15 estudos. Dos 13 estudos que, na análise univariada, mostraram significância estatística do método da VMF na predição de eventos cardiovasculares, 12 deles demonstraram sua capacidade preditora independente, em análise multivariada. Em nenhum dos trabalhos foi descrito valor prognóstico incremental em relação a modelos preditores tradicionais, como escore de Framingham. Resultados de três trabalhos sugerem que o método agrega valor prognóstico a marcadores isolados como: Índice Tornozelo-Braquial (ITB), diabetes e Proteína C Reativa (PCR) de alta sensibilidade. Em conclusão, a VMF da artéria braquial prediz risco cardiovascular, porém não é estabelecido seu valor preditor incremental a modelos prognósticos clínicos, não havendo, até o momento, evidências sólidas que amparem seu uso na rotina clínica para predição de risco cardiovascular.
Função endotelial; vasodilatação mediada por fluxo; artéria braquial; prognóstico; aterosclerose
Analysis of flow-mediated vasodilation (FMV) of the brachial artery by use of ultrasound allows assessing endothelial function, and provides pathophysiological, diagnostic and prognostic information. This systematic review was aimed at assessing the literature level of evidence of the predictive capacity of endothelial function, measured through brachial artery FMV by use of ultrasound, regarding cardiovascular events in individuals with atherosclerosis. The MEDLINE, SCIELO and LILACS databases were searched, and prospective cohort studies on human beings about the prognostic value of endothelial function, measured by use of brachial artery FMV in individuals with peripheral or coronary atherosclerosis, were selected. Studies with clear methodological biases were excluded. The final selection consisted of 15 studies. Of the 13 studies that on univariate analysis showed statistical significance of the FMV method to predict cardiovascular events, 12 showed independent predictive capacity on multivariate analysis. None of the studies reviewed described the incremental predictive value of FMV to the traditional predictive models, such as the Framingham score. Results of three studies have suggested that the method adds prognostic value to isolated markers such as ankle-brachial index (ABI), diabetes, and high-sensitivity C-reactive protein (hsCRP). In conclusion, brachial artery FMV predicts cardiovascular risk, but its incremental predictive value to clinical prognostic models has not been established. In addition, solid evidence supporting its use in routine clinical practice to predict cardiovascular risk still lacks.
Endothelial function; flow-mediated vasodilation; brachial artery; prognosis; atherosclerosis
Valor prognóstico da função endotelial em portadores de aterosclerose: revisão sistemática
Maristela Magnavita Oliveira Garcia; Paulo Roberto Passos Lima; Luis Claudio Lemos Correia
Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP) - Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências (FDBC), Salvador, BA - Brasil
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Luis Claudio Lemos Correia Av. Princesa Leopoldina, 19/402 - Graça CEP 40150-080 Salvador, BA - Brasil E-mail: lccorreia@cardiol.br; lccorreia@terra.com.br
RESUMO
A Vasodilatação Mediada por Fluxo (VMF) da artéria braquial, por meio da ultrassonografia, é um método de avaliação da função endotelial que pode oferecer informações fisiopatológicas, diagnósticas e prognósticas.
A realização dessa revisão sistemática objetivou avaliar o nível de evidência na literatura a respeito da capacidade preditora da função endotelial, medida pela VMF da artéria braquial, por meio da ultrassonografia, quanto a eventos cardiovasculares, em indivíduos portadores de aterosclerose.
Foram realizadas buscas nas bases de dados MEDLINE, SCIELO e LILACS e selecionados estudos de coorte prospectivos, em seres humanos, que analisaram o valor prognóstico da função endotelial medida pela VMF da artéria braquial, em populações portadoras de doença aterosclerótica, periférica ou coronariana. Trabalhos com evidentes vieses metodológicos foram excluídos.
A seleção final constituiu-se de 15 estudos. Dos 13 estudos que, na análise univariada, mostraram significância estatística do método da VMF na predição de eventos cardiovasculares, 12 deles demonstraram sua capacidade preditora independente, em análise multivariada. Em nenhum dos trabalhos foi descrito valor prognóstico incremental em relação a modelos preditores tradicionais, como escore de Framingham. Resultados de três trabalhos sugerem que o método agrega valor prognóstico a marcadores isolados como: Índice Tornozelo-Braquial (ITB), diabetes e Proteína C Reativa (PCR) de alta sensibilidade.
Em conclusão, a VMF da artéria braquial prediz risco cardiovascular, porém não é estabelecido seu valor preditor incremental a modelos prognósticos clínicos, não havendo, até o momento, evidências sólidas que amparem seu uso na rotina clínica para predição de risco cardiovascular.
Palavras-chave: Função endotelial; vasodilatação mediada por fluxo; artéria braquial; prognóstico; aterosclerose.
Introdução
No Brasil, as doenças do aparelho circulatório são responsáveis pela maior mortalidade proporcional por grupos de causas (32%), sendo as doenças isquêmicas do coração a segunda taxa mais elevada de mortalidade, de 48,5 por 100 mil habitantes ao ano1. Portanto, a estratificação de risco de eventos cardiovasculares em portadores de algum grau de aterosclerose é uma área importante de pesquisa, em busca de marcadores aprimorados da avaliação prognóstica, numa tentativa de modificar a evolução clínica.
A disfunção endotelial participa como elemento-chave na aterogênese, e todos os fatores de risco maiores para doença cardiovascular estão a ela associados, além de ter comprovado envolvimento nos processos isquêmicos agudos, relacionando-se diretamente com a instabilização da placa aterosclerótica.
Os estudos pioneiros de Furchgott e Zawadzki2 comprovaram o papel do endotélio na regulação do tônus vascular e que o método da Vasodilatação Mediada por Fluxo (VMF) da artéria braquial permite avaliar a função endotelial, sendo capaz de fornecer informações fisiopatológicas e diagnósticas. A VMF mede as mudanças do diâmetro da artéria braquial em resposta ao aumento de fluxo por hiperemia reativa (resposta dependente do endotélio) e nitrato sublingual (não dependente do endotélio), como padronizado pela International Brachial Artery Reactivity Task Force3. Quanto s técnicas usadas, a automatizada é mais robusta e acurada4; contudo, a técnica manual também é confiável, possibilitando seu uso para diagnóstico e monitoramento da função endotelial5. Nesta atual revisão, pretende-se avaliar o método quanto aos seus dados prognósticos.
Apesar das relevantes informações que a VMF da artéria braquial oferece e de ter o endotélio importante papel na aterosclerose, os trabalhos sobre função de marcador prognóstico são bastante recentes e estão emergindo como uma perspectiva para o arsenal avaliador de risco individual e mesmo de potenciais alvos terapêuticos. Contudo, como toda evolução do conhecimento, as publicações nessa área surgem revelando heterogeneidade quanto a aspectos metodológicos, que comprometem uma conclusão segura a respeito do tema. Dessa forma, o intuito dessa revisão foi, especialmente, organizar as informações da literatura para saber se o conhecimento científico, disponível até o momento, permite concluir sobre a capacidade preditora da função endotelial quanto a eventos cardiovasculares, em indivíduos portadores de aterosclerose.
Métodos
Pesquisa da literatura
A base de dados MEDLINE (Medical Literature Analysis and Retrieval System) foi a principal fonte para revisão sistematizada de trabalhos sobre o tema. Para pesquisa de trabalhos não indexados no MEDLINE e realizados na América Latina, foram utilizadas as bases de dados SCIELO (Scientific Electronic Library Online) e LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde), aplicando-se as mesmas palavras-chave do MEDLINE. As referências de cada artigo original e de artigos de revisão foram checadas a fim de selecionar estudos que não tenham sido identificados pela pesquisa nas bases de dados.
Inicialmente, o dicionário MeSH (Medical Subject Heading Terms) foi utilizado para definição dos termos para pesquisa nos títulos dos trabalhos. As expressões endothelial function ou endothelial dysfunction ou flow mediated vasodilation ou reactive hyperemia foram escolhidas para combinação com os termos prognosis ou prognostic value ou cardiovascular events e com o termo atherosclerosis, totalizando 12 combinações de três termos, utilizando-se a conjunção AND. Após leitura dos títulos e dos resumos encontrados, os estudos com as seguintes características foram selecionados: estudos de coorte prospectivos, em seres humanos, com amostras superiores a 60 indivíduos, que analisaram a função endotelial, especificamente, com o método não invasivo da VMF da artéria braquial e com populações portadoras de algum grau de aterosclerose, periférica ou coronariana. Trabalhos com evidentes vieses metodológicos foram excluídos.
Na compilação dos dados, para cada artigo, foram registrados: autor, perfil da população, tamanho da amostra, idade média dos sujeitos da pesquisa, desfechos considerados, período de seguimento, capacidade preditora e predição independente. Foram também analisados risco relativo e valor incremental, bem como o uso adequado das covariáveis.
Desfechos avaliados
Para seleção dos artigos foram considerados os eventos mais duros, como morte cardiovascular, infarto do miocárdio, angina instável e acidente vascular cerebral isquêmico. Não fizeram parte da análise principal desfechos menos robustos, como re-estenose de stent, necessidade de revascularização, angioplastia ou ocorrência de arritmias cardíacas.
Critérios de avaliação da qualidade dos trabalhos
Os seguintes critérios foram avaliados para julgamento da qualidade dos estudos: se foi realizada análise multivariada, e caso positivo, se a metodologia de inclusão das covariáveis seguiu exigência de significância, além de e se todas aquelas consideradas importantes por plausibilidade biológica foram incluídas no modelo. Itens considerados relevantes, como análise do valor incremental, randomização da população, tamanho da amostra, cegamento, utilização do método padronizado da VMF, tempo de seguimento e técnica para coleta dos eventos, foram todos checados.
Resultados
Seleção dos estudos
Foram encontrados 217 trabalhos no MEDLINE, 10 no LILACS e um no SCIELO. As razões de não inclusão dos trabalhos foram: análise metodológica da função endotelial outra que não a VMF da artéria braquial; população de indivíduos sadios ou com outras patologias, mas sem aterosclerose, porque não eram coortes prospectivas ou eram estudos experimentais em modelos animais. A seleção dos registros identificados encontra-se no diagrama, segundo protocolo do PRISMA (preferred reporting items for systematic reviews and meta-analyses)6 (Figura 1).
Após a seleção, o conjunto final consistiu de 15 artigos (Tabela 1), todos na língua inglesa, da base de dados MEDLINE. Todos os trabalhos selecionados foram com indivíduos portadores de aterosclerose, tanto na Doença Arterial Periférica (DAP) como na coronariana (DAC), em situação estável e em fase aguda da síndrome. O período das publicações foi entre 2000 e 2009.
Características dos estudos
A busca para avaliar a capacidade preditora do método da VMF, em portadores de aterosclerose, iniciou-se recentemente, em 20007. As amostras populacionais foram de no mínimo de 73 até no máximo de 444 participantes7,8.
Tanto revistas especializadas de imagem quanto as de pesquisa clínica publicaram trabalhos sobre o tema, sendo nestas últimas o maior predomínio de artigos relacionados a esta revisão. Revista de prestígio internacional, como o Journal of The American College of Cardiology, abrange quatro dos 15 artigos selecionados8-11. Publicações nacionais de ensaios clínicos randomizados sobre o tema específico da revisão não foram encontradas. Existe registro nacional de uma revisão com portadores de diabetes tipo 1, concluindo que a detecção precoce da disfunção endotelial tem valor prognóstico para o desenvolvimento de complicações vasculares e sugerindo que pode ser importante em estratégias de prevenção primária de eventos cardiovasculares12.
A utilização da metodologia correta na aferição da vasodilatação endotélio dependente não sofreu variação significativa entre os trabalhos, embora falte a citação da diretriz mais recente 3, publicada em 2002, em metade das publicações que surgiram após este artigo. A aferição da vasodilatação não dependente do endotélio, com uso de nitrato, variou significativamente, tendo, inclusive, faltado em número expressivo dos participantes de alguns estudos11,13.
De modo geral, pode-se considerar satisfatória a qualidade dos trabalhos apresentados, tendo como parâmetros para julgamento a preocupação na inclusão de covariáveis importantes e realização rotineira de análise multivariada. No entanto, ficou prejudicada a avaliação do valor incremental sobre marcadores ou escores estabelecidos.
As investigações em portadores de DAP foram publicadas em quatro estudos e demonstraram ser a disfunção endotelial preditora independente de eventos cardiovasculares nos pacientes clínicos e nos cirúrgicos. Os desfechos cardiovasculares considerados nesses estudos foram: morte de causa cardíaca, infarto do miocárdio, angina instável, insuficiência cardíaca, procedimento de revascularização miocárdica e acidente vascular cerebral.
Foram 11 artigos publicados a respeito do valor preditor da função endotelial avaliada pelo método ultrassonográfico da VMF da artéria braquial, quanto ao risco de eventos cardiovasculares em indivíduos coronarianos. Desses, os três trabalhos em populações com síndrome coronariana clássica confirmaram positivamente sua capacidade preditora, sendo dois em infarto agudo do miocárdio (IAM) sem supradesnivelamento e um em IAM com supradesnivelamento do segmento ST.
Oito estudos que contemplaram diversos espectros da coronariopatia, como doença estável, selecionados para implante de stent, portadores de dor torácica ou de teste isquêmico alterado encaminhados para cateterismo, revelaram discordantes informações do valor prognóstico do método, sendo cinco favoráveis e três, opostamente, negando qualquer potencial de predição.
Análise do valor prognóstico
As evidências disponíveis são crescentes, porém ainda são poucas as publicações que exploraram o tema do valor prognóstico da hiperemia reativa. Todos os trabalhos reconhecem a importância da função endotelial; contudo, a valorização da sua capacidade prognóstica mostra-se controversa.
Será analisado o valor prognóstico da VMF em portadores de aterosclerose, quanto a três aspectos: o valor prognóstico geral (análise univariada), o valor prognóstico independente (análise multivariada) e o valor prognóstico incremental (estatística C). Nesses tópicos, serão apresentadas as evidências da importância prognóstica da VMF em diferentes populações portadoras de doença aterosclerótica, permitindo observar as diferenças entre os trabalhos e a influência da doença nos resultados.
Análise geral do valor prognóstico da VMF
Valor prognóstico da VMF
A análise univariada para avaliar a capacidade preditora da VMF quanto a eventos cardiovasculares, na maioria dos estudos (13 dos 15), revelou significância estatística favorável ao método. Os resultados se repetem com diferentes pontos de corte para a VMF e também para perfis clínicos distintos. Apenas dois trabalhos, avaliando populações de coronariopatas, encontraram resultados diferentes e contrários ao valor prognóstico do método.
No estudo de Frick e cols.10, em uma população de 398 indivíduos encaminhados para cateterismos devido a dor torácica ou teste ergométrico positivo, não houve diferença no número de eventos entre os grupos abaixo e acima da mediana da VMF da artéria braquial, no seguimento de 39 ± 12 meses (HR 1,52; 95% IC 0,75 - 3,08, p = 0,24). Foram espessura médio-intimal da artéria braquial e presença de doença coronariana na angiografia que apresentaram capacidade preditora, de forma que esses resultados demonstraram maior valor para a morfologia do que para a função do endotélio. Contudo, há que registrar que esse trabalho não cita se suspendeu estatina antes de aferir a VMF e causa admiração ter sido acima do esperado a VMF de 7,6% para uma população supostamente isquêmica.
De forma semelhante, numa população de 195 pacientes internados com síndrome de dor torácica, Venneri e cols.14 não obtiveram significância preditora na análise univariada para a VMF, sendo as medidas de índice de massa do ventrículo esquerdo, fração de ejeção e doença coronariana, as variáveis que se mostraram preditores.
Valor prognóstico independente da VMF
Dos 13 estudos que mostraram, na análise univariada, significância estatística do método da VMF na predição de eventos cardiovasculares, 12 deles, também na análise multivariada, demonstraram sua capacidade preditora independente.
Na análise da qualidade das covariáveis utilizadas nas análises multivariadas, observou-se que muitos autores optaram por realizar ajustes baseados, exclusivamente, em significâncias demonstradas previamente nas análises univariadas. Caberia, em algumas situações, incluir variáveis, por plausibilidade biológica e por prévias evidências, como a inclusão de diabetes e de outros fatores clássicos de risco. Nesse contexto, pode-se citar o trabalho de Huang e cols.15, em DAC, que na análise multivariada ajustou apenas para as covariáveis significativamente relacionadas a eventos cardiovasculares da univariada (idade, hipertensão, vasodilatação mediada por fluxo (VMF) e proteína C reativa altamente sensível (PCRas)), bem como o trabalho de Brevetti e cols.16, em DAP (dislipidemia, hipertensão, AVC prévio, índice tornozelo-braquial (ITB) e VMF). Não se detectou, ainda de forma mais representativa, em nenhuma das análises, ajuste para um modelo completo, como Framingham ou GRACE.
A avaliação do curto prognóstico pós-operatório, de 30 dias, em uma população grave de 187 indivíduos portadores de DAP, incluindo pacientes cirúrgicos de endarterectomia carotídea, by-pass arterial periférico, aneurisma aórtico e amputação, demonstrou a capacidade preditora independente da disfunção endotelial, medida pela reduzida VMF da artéria braquial para eventos cardiovasculares (odds ratio (OR) 9,0; 95% IC 1,2 - 68; p = 0,03), juntamente com a variável idade, que também foi preditora (OR 2,0; 95% IC 1,2 - 3,3; p = 0,006). Também ficou demonstrado, na Curva de Kaplan-Meier, que no mais alto tercil de VMF, maior que 8,1%, sendo relativamente normal a função endotelial, o risco de eventos foi muito baixo13. Os mesmos autores, no ano seguinte, publicaram o valor preditor para um período mais longo de seguimento, de 1,2 ano, confirmando por meio do modelo de regressão de Cox que a VMF é preditora independente de risco cardiovascular, bem como também são idade e cirurgia mais invasiva, como a endarterectomia carotídea. Após para controlar essas duas covariáveis, a função endotelial manteve-se preditora independente, com OR 9,6; 95% IC 1,2 - 74, p = 0,0311.
Huang e cols.17 confirmaram em 267 portadores de DAP encaminhados a cirurgia que tanto a reduzida dilatação arterial quanto a baixa velocidade de fluxo apresentam capacidade preditora de risco cardiovascular (OR 4,2; 95% IC 1,8 - 9,8; p = 0,001 e OR 2,7; 95% IC 1,2 - 5,9; p = 0,0018, respectivamente), mesmo quando ajustadas a outras variáveis de risco.
Nesses estudos, foi interessante constatar que a vasodilatação mediada por nitrato (VMN), ou seja, a não dependente do endotélio, não apresentou significativo valor prognóstico na predição de risco cardiovascular.
O estudo inicial em doença coronariana descreveu os resultados do seguimento de uma média de cinco anos de uma pequena coorte de 73 indivíduos, quanto ocorrência de morte, infarto, angioplastia coronariana e revascularização cirúrgica, tendo dividido a população abaixo e acima de 10% de VMF da artéria braquial. Encontraram maior número de eventos no grupo com VMF menor do que 10% (50% X 15%, p = 0,002). Na análise multivariada, correlacionaram-se com eventos tanto VMF quanto VMN, e também gênero, com OR de 0,75, 1,25 e 3,9, respectivamente. Neste trabalho, contudo, apesar de encaminhados para cateterismo, não há clara descrição clínica, eletrocardiográfica ou enzimática para a caracterização de síndrome coronariana aguda (SCA), sendo uma população heterogênea quanto doença coronariana. O ponto de corte de 10% é considerado alto (valor normal) para uma população com doença coronariana, podendo justificar por que não ocorreram mortes nos cinco anos de evolução, e também por que quando ajustado para DAC (estenose ≥ 30% em mais de um vaso) nenhum desses fatores permaneceu significativamente correlacionado7.
A capacidade preditora do status estrutural e funcional do sistema arterial, quanto a eventos coronarianos em portadores de DAC, foi analisada de forma multivariada, demonstrando que VMF/VMN e área da placa aterosclerótica revelavam capacidade preditora independente para eventos. Observa-se nesse trabalho que a VMF isoladamente foi preditora apenas na análise univariada (p = 0,03)9.
O estudo prospectivo de Akcakoyun e cols.18, com 135 pacientes encaminhados para implante eletivo de stent, demonstrou que o único preditor independente de eventos cardiovasculares e re-estenose intra stent foi a VMF, com ajuste na análise multivariada para os fatores de risco clássicos, comprimento e diâmetro do stent, sexo, índice de massa corporal (IMC) e tratamento medicamentoso. Contudo, a população estudada é proveniente de pacientes excluídos de um outro estudo19 que, entre outros fatores, excluiu aqueles indivíduos que apresentaram SCA e AVC, constituindo um viés de seleção. O ponto de corte observado de VMF nesse estudo para predição foi de 7,5%.
O primeiro trabalho em SCA sem supradesnivelamento do segmento ST foi com uma amostra populacional de 98 participantes, apenas do sexo masculino, tendo registrado 20 eventos cardiovasculares no seguimento de longo prazo. Os portadores no primeiro tercil de VMF (<1,9%) apresentaram significativo maior número de eventos do que aqueles acima desse valor. A regressão multivariada de Cox, ajustando para covariáveis adequadas, mostrou que VMF <1,9% teve capacidade preditora independente para eventos cardiovasculares (HR 3,035; 95% IC 1,148 - 8,023, p = 0,025)20.
Em 101 pacientes com infarto do miocárdio com supradesnivelamento de ST, após angioplastia coronária, foram registrados 29 eventos em 12 meses de seguimento, permitindo a demonstração da capacidade preditora independente da VMF (HR 0,705; 95% IC 0,573 - 0,868. p = 0,0010), diabetes (HR 2,934; 95% IC 1,314 - 6,548. p = 0,0086) e fração de ejeção (HR 0,900; 95% IC 0,832 - 0,973. p = 0,0082), quando ajustados para covariáveis basais de risco. O ponto de corte sugerido nesse trabalho foi de 5,5% para significativo pior prognóstico nessa população21.
Contrariamente, o trabalho de Fathi e cols.8, que estudou uma coorte australiana, composta de 444 pacientes, por dois anos, a VMF, apesar de ser menor nos pacientes com eventos, não foi preditora independente de eventos cardiovasculares. Essa população, mista de risco para eventos cardiovasculares, provém de hospital terciário, com alta prevalência de renais e transplantados, porém não declaradamente isquêmicos ou portadores de aterosclerose. As médias de VMF foram consideradas baixas (5,2 ± 6,1%) e compatíveis com estudos em pacientes portadores de DAC. Foi a espessura médiointimal carotídea (EMIC), o fator vascular, que independentemente, se associou com mortalidade. Numa análise do subgrupo de baixo risco, a VMF também não apresentou capacidade preditora independente, e apenas em indivíduos encaminhados a teste isquêmico foi verificado valor prognóstico independente, semelhantemente EMIC.
Valor prognóstico incremental da VMF
Não existiu, em nenhum dos trabalhos revisados, análise de valor incremental, avaliada pela estatística-C em modelo multivariado, após incorporação do novo marcador, no caso, a VMF, a um escore de risco (Framingham, TIMI, GRACE) e o quanto essa incorporação agregaria ao desempenho desse escore.
Dos 15 trabalhos selecionados, apenas três analisaram se o método da VMF adiciona capacidade preditora em relação apenas a outro marcador prognóstico conhecido; contudo, os modelos empregados para testar tal hipótese não permitem conclusões definitivas.
Brevetti e cols.16 acompanharam 131 pacientes com claudicação, durante uma média de 23 meses, e concluíram que uma baixa VMF da artéria braquial possui independente capacidade preditora de risco. Os autores testaram se a VMF adiciona valor prognóstico ao ITB, que já é um índice estabelecido como poderoso marcador de risco. Nesse trabalho, a acurácia preditora de risco foi maior para a combinação dos dois índices VMF e ITB abaixo da mediana (risco relativo (RR) 13,0; 95% IC, 3,0 - 56,2; p < 0,01) do que o ITB (RR, 6,4; 95% IC, 1,4 - 29,1; p < 0,02) e a VMF (RR, 4,8; 95% IC, 1,1 - 23,3; p < 0,05), isoladamente. Pelo método utilizado para avaliação incremental, podemos apenas inferir a existência do valor adicional, tendo-se em conta que OR > 3 é capaz de promover um aumento clinicamente relevante na estatística-C (> 0,05). Como se tratou de análise univariada esse dado pode estar superestimado.
Em indivíduos com infarto do miocárdio sem supradesnivelamento do segmento ST, procurou-se demonstrar se a VMF agrega valor prognóstico a capacidade preditora do diabetes. Tanto VMF quanto diabetes apresentaram capacidade preditora independente, com boa acurácia demonstrada na curva ROC, de 63% e 67%, respectivamente. Seu melhor ponto de corte foi de 4,5%. Na análise de Kaplan-Meier, a sobrevida livre de eventos, no seguimento médio de 14 meses, foi significativamente menor para o grupo com diabetes e VMF ≤ 4,5% conjuntamente (38,5%) do que para os demais grupos: sem diabetes e VMF > 4,5% (88,7%), sem diabetes e VMF ≤ 4,5% (78,4%), com diabetes e VMF > 4,5% (67,7%)22. Além de a análise realizada não permitir conclusões sobre a capacidade incremental, a obtenção dos dados por meio de revisão de prontuários pode ser considerada uma limitação validade interna desse trabalho.
Estudou-se também a VMF em relação ao marcador da PCRas em portadores com precordialgia típica e observou-se uma significativa pior sobrevida livre de eventos em 36 meses no grupo de VMF < 6% combinado com PCRas ≥ 1 mg/dL, quando comparados com cada um isoladamente e com a combinação de VMF ≥ 6% e PCRas < 1 mg/dL. Enquanto o RR para o grupo de VMF ≥ 6% e PCRas ≥ 1 mg/dL foi 3,36, para o grupo de VMF < 6% e PCRas ≥ 1 mg/dL aumentou para 12,5 (p = 0,014)15.
Na população estudada por Takase e cols. foi demonstrado, pela Curva ROC, equivalência de acurácia da VMF com o teste ergométrico (0,67 x 0,64) e sua inferioridade da carga aterosclerótica dada pela EMIC (0,68). Os autores não testaram a capacidade incremental do método a nenhum marcador. Vale ressaltar que a maioria dos indivíduos não apresentava estenose coronariana significativa, mas de pelo menos 25% de estenose (DAC leve)23.
Discussão
Em indivíduos sabidamente portadores de aterosclerose periférica, a técnica da VMF reforça o papel da disfunção endotelial na patogênese da doença cardiovascular e tem chances de tornar-se marcador substituto de risco cardiovascular. Na avaliação individual do risco cirúrgico, que depende do histórico prévio de comorbidades, do tipo de cirurgia e do grau de emergência do procedimento, a VMF pode se tornar um novo parâmetro de avaliação de risco, ajudando a identificar subgrupos de mais alto risco de eventos cardiovasculares agudos, e pode conduzir a estratégias diagnósticas e terapêuticas específicas para cada paciente. Contudo, não existem registros na literatura do valor prognóstico da VMF da artéria braquial em assintomáticos portadores de DAP, quando, certamente, a importância clínica da disfunção endotelial, mais precocemente diagnosticada, possibilitaria intervenções e mudança da evolução, com redução do risco futuro de eventos cardiovasculares.
As discordâncias nos resultados dos trabalhos podem se justificar pelas características diferentes das populações, distintas situações clínicas e também a diversidade de anatomia coronariana. Igualmente variabilidade e falta de emprego uniformizado do método da VMF, que ainda está em evolução, antes de se tornar uma ferramenta recomendada da prática clínica.
Os menores valores de VMF foram observados nos trabalhos em SCA. Mesmo entre eles, diferentes pontos de corte para a VMF foram detectados, com valor mais elevado na população de IAM com supradesnivelamento de segmento ST, comparativamente com as demais de IAM sem supradesnivelamento de ST, onde foram detectadas piores respostas dilatadoras, e onde o papel do endotélio parece ser ainda mais importante. Provavelmente o mecanismo fisiopatológico de maior instabilidade e de grande dependência do endotélio que envolve as SCA sem supradesnivelamento explique esse achado, em virtude da situação vasoconstrictora e pró-trombótica da circulação coronária nessa situação específica.
A maioria dos trabalhos trata de populações selecionadas, portadoras de doença aterosclerótica, podendo incorrer no viés de "workup bias", que em estudos prognósticos de seguimento pode levar a falso aumento de sensibilidade do método.
Não é possível comparar entre os trabalhos os diferentes RR para eventos encontrados, em razão da grande heterogeneidade entre eles, especialmente no aspecto da população selecionada. Observamos valores de RR de 0,721 até maiores valores de 12,515.
Quanto análise de agregação de capacidade preditora do método, que depende da capacidade incremental e da capacidade de mudar o desfecho dos pacientes, essa não foi devidamente testada nos trabalhos, com um modelo multivariado clínico que levasse em conta todas as variáveis importantes.
É preciso também fazer considerações sobre o custo possível desse novo método, que por envolver ultrassonografia e demandar tempo considerável para o exame deverá ser maior do que exames laboratoriais e escores já estabelecidos. Da mesma forma, o método deverá enfrentar resistências para sua aceitabilidade quanto s questões práticas, e também da reprodutibilidade das suas medidas; portanto, dificilmente virá a substituir um marcador já padronizado na prática clínica.
Pode-se afirmar que a VMF preenche o conceito primário de que seus valores diferem entre os indivíduos com e sem resultado (desfecho); no entanto, ainda não é validada prospectivamente, ou seja, a VMF só prevê o desenvolvimento futuro de desfechos em situações específicas, como demonstraram os estudos de coorte prospectivos analisados. Ainda mais, o valor incremental do marcador em adicionar capacidade preditora a marcador padrão estabelecido não foi, realmente, documentado. Nos trabalhos com SCA, por exemplo, não se avaliou sua capacidade incremental aos escores já validados, como o escore TIMI ou GRACE. De fato, a utilização do método não mostrou, na maioria dos estudos, que melhora a estimativa de desfechos nos ensaios clínicos randomizados.
Adicionalmente, não há demonstrações da implicação do uso da VMF em alterar qualquer terapia já padronizada, não sendo assim comprovada a sua utilidade clínica na avaliação de risco. Em relação avaliação de custo-efetividade, visto as constatações anteriores, não há justificativas na prática clínica para custos adicionais com este teste.
Serão necessários estudos que avaliem esse novo marcador quanto a sua capacidade incremental de predição sobre o que já temos estabelecido como marcadores de risco, ou seja, que utilizem testes estatísticos que identifiquem o quanto de significante informação prognóstica incremental a VMF adiciona a um modelo de risco que inclua marcadores já estabelecidos. Apenas após essa comprovação será possível também analisar se a VMF possui importantes características para a clínica, como capacidade discriminadora (de pacientes que no futuro terão o desfecho daqueles que permanecerão livres do desfecho), de calibração (acurácia de predizer qual a probabilidade de um indivíduo apresentar o desfecho) e de reclassificação (capacidade de refinar a estratificação de risco). Tais características, se demonstradas, poderiam influenciar na terapêutica e na evolução da doença.
Conclusão
A VMF da artéria braquial é um método validado para aferir a função endotelial e associa-se com fatores de risco cardiovascular. Contudo, apesar de suas fortes bases fisiopatológicas e dos resultados iniciais de predição de risco cardiovascular, ainda não está estabelecido seu valor preditor incremental a modelos prognósticos clínicos e não existem evidências sólidas que amparem seu uso na rotina clínica para predição de risco cardiovascular.
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.
Fontes de Financiamento
O presente estudo foi financiado por Fundação de Amparo Pesquisa do Estado da Bahia - FAPESB (a partir de 2010).
O presente estudo foi parcialmente financiado por Programa de Bolsas de Apoio para Pesquisa em Cardiologia da SBC (ano de 2009).
Vinculação Acadêmica
Este artigo é parte de tese de doutorado de Maristela Magnavita Oliveira Garcia pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
Artigo recebido em 06/01/12
Revisado em 10/01/12
Aceito em 09/04/12
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Ago 2012 -
Data do Fascículo
Set 2012
Histórico
-
Recebido
06 Jan 2012 -
Aceito
09 Abr 2012 -
Revisado
10 Jan 2012