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Varfarina em valvopatia: antiguidade é ou não é posto?

PONTO DE VISTA

Varfarina em valvopatia: antiguidade é ou não é posto?

Max Grinberg

Instituto do Coração - InCor, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Max Grinberg Rua Manoel Antonio Pinto, 04 ap. 21A, Paraisópolis CEP 05663-020, São Paulo, SP - Brasil E-mail: max@cardiol.br, grinberg@incor.usp.br

Palavras-chave: Doenças das Valvas Cardíacas / terapia, Varfarina, Anticoagulantes / administração & dosagem.

A pesquisa de novos fármacos atuantes via oral sobre a cascata da coagulação (RE-LY, 20091; ROCKET, 20112; ARISTOTLE, 20113) reproduz nos serviços que lidam com cardiopatia valvar esperanças e receios já vivenciados com a indicação da varfarina e o lidar com adversidades ao uso ao longo da segunda metade do século XX. Mente aberta fechada com a ética!

A anticoagulação oral tornou-se um dos mais complexos métodos terapêutico-preventivos receitados ao portador de valvopatia no ambulatório4. A não identificação de sinais de embolia ou de hemorragia durante o uso do anticoagulante oral está longe de constituir uma certeza de continuidade do status clínico, até porque a conformidade com o estado da arte da aplicação da varfarina pode vir a sofrer, a qualquer momento, impactos multifatoriais na individualidade dos pacientes. Método é da Medicina, expertise é do médico, resultado é do paciente!

Os caminhos clínicos pioneiros da anticoagulação oral não foram exatamente os atuais idealizados para inovações desde a bancada para a beira do leito. No início, o conhecimento foi de natureza veterinária, com o isolamento da dicumarina do trevo doce, componente da ração causador de hemorragia digestiva no gado, passou pelo desenvolvimento da mais potente varfarina para uso como raticida e culminou com a observação em pronto-socorro que a ingestão do mesmo com o intuito de suicídio podia ter a hemorragia controlada com transfusão de sangue e administração de vitamina K, e a morte evitada. É essencial o destaque: o anticoagulante oral mostrou inicialmente a sua face hemorrágica, indicativa do nome. Mais um dos encontros do acaso da natureza com a mente voltada para a ciência!

O evento tromboembólico associado à doença reumática, partícipe tardio da cadeia de perturbações cardiocirculatórias da homeostase consequente à reação imunopatológica ao Streptococcuspyogenes, foi mais bem percebido em portadores de estenose mitral por Harris e Levine5 nos primórdios da década de 1940. Eles constataram, inclusive, que a embolia cerebral era mais comum em pacientes sem queixa de dispneia do que nos que haviam manifestado sinais de insuficiência cardíaca congestiva, o que acentuavam as inquietudes sobre imprevisibilidade da manifestação neurológica. Nessa ocasião, ninguém pensara no anticoagulante como agente antitrombótico. Mas, na mesma década, ao seu final, Irwing Sherwood Wright (1901-1997) teve a iniciativa de prescrever dicumarol a fim de evitar recorrências embólicas relacionadas a condições cardiológicas6. O pioneirismo deu-se numa época em que as opções para um presumido sucesso antitrombótico recorrente eram a reversão da fibrilação atrial pelo uso de quinidina e a ressecção cirúrgica do apêndice atrial.

Passaram-se alguns anos e Szekely7 deu ênfase ao primeiro ano pós-fibrilação atrial como o período mais vulnerável de risco para a embolização sistêmica em cardiopatia valvar reumática, criando o conceito do benefício preventivo primário da anticoagulação oral em presença da "arritmia perpétua".

A ênfase do acréscimo de conhecimento estava nos dados clínicos e havia carência sobre fundamentos bioquímicos da anticoagulação oral. O que se sabia, ao final da década de 1950, era que elevar o tempo de protrombina acima dos 20s, pelo uso do dicumarol, reduzia drasticamente a recorrência de manifestação tromboembólica em portadores de cardiopatia valvar reumática8 e que excessos podiam ser revertidos pela administração de vitamina K.

Na década de 1950, a varfarina ganhou destaque como anticoagulante mais prático, visto que a heparina era cara e necessitava de várias doses diárias, o início da ação do dicumarol era muito tardio e outros anticoagulantes não eram recomendados pelas adversidades. Faz-se surpreendente para a rotina atual que a varfarina fosse prescrita na dose inicial de 1 mg/kg de peso até 75 mg, via parenteral (venosa ou intramuscular, ampola com 75 mg de varfarina a ser diluída em 3 ml de água destilada) ou via oral, ao mesmo tempo em que se firmava o conceito que o grau de hipoprotrombinemia era dependente da dose de manutenção9.

Os relatos das primeiras observações clínicas objetivaram não a verificação do benefício antitrombótico, mas a frequência de evento hemorrágico e, tão somente, no decorrer do período inicial do uso da varfarina. Nesse destaque da segurança do uso, Pollock10 acompanhou 100 pacientes com indicações diversificadas pelo período médio de 15,8 dias que receberam indução de 75 mg de varfarina endovenosa ou via oral e manutenção entre 4 mg e 19 mg de acordo com análise diária do tempo de protrombina, com alvo aquém de 30% do normal; houve oito manifestações hemorrágicas, cinco foram atribuídas à varfarina com base no valor do tempo de protrombina e nenhum dentre quatro óbitos foi relacionado ao uso da droga.

É interessante observar, que, anos após, no início da década de 1980 de tantos progressos da Medicina, a constatação clínica que a anticoagulação reduzia drasticamente o evento tromboembólico associado à fibrilação atrial não provocava unanimidade de opinião. A ausência de estudos controlados e o receio da hemorragia determinavam relutância à prevenção farmacológica. Milliken11 deu o tom ainda cauteloso da recomendação: muito embora pendente de pesquisas controladas, a suposta relação risco-benefício em cada paciente com fibrilação atrial crônica deve ser considerada a fim de evitar mortes e sequelas do tromboembolismo; assim a anticoagulação não deveria ser aplicada apenas para pacientes que sofreram manifestação embólica. Na mesma década houve a introdução da Razão Normalizada Internacional (INR) pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, ao final da mesma, a varfarina tinha o seguinte conceito: há muitas armadilhas que podem ser evitadas pela avaliação laboratorial e recomendações ao paciente; a varfarina persiste droga de valor que precisa ser usada com muito respeito12.

O acervo científico acumulado desde então reforçou que a Medicina passou a dispor de dados e fatos do cotidiano e de estudos como AFASAK, 198913; BAATAF, 199014; SPAF, 199015; e SPINAF, 199216, que permitiram construir evidências para a recomendação ética de desequilibrar o pro/anti da coagulação natural no portador de valvopatia com o uso da varfarina, sem contar com uma revelação evolutiva clínica do efeito.

O ponto de referência da relação benefício que "estaria acontecendo", presumido pela ação farmacológica, versus segurança que "estaria em nível adequado", pela inexistência de sinais de alerta sobre hemorragia, ao transcender a clínica, centra-se no teste evolutivo do INR com periodicidade em feedback com realidades individuais. Assim, é uma plataforma laboratorial constituída em faixas de INR que dá a relativa segurança aos seguintes objetivos do contexto da anticoagulação oral: a) levar uma nova aplicação à estabilidade; b) preservar a estabilidade conseguida; c) eliminar totalmente o efeito da anticoagulação oral ao surgimento de uma necessidade de intervenção invasiva; d) subsidiar avaliação de hemorragia durante o uso.

Eventos trombóticos ou hemorrágicos durante o uso da varfarina costumam estar associados a números de INR em faixas inadequadas e decorrentes de inobservância da tríade fundamental do uso (dose-controle-interação com droga, alimento, procedimento). Todavia, não é rara a participação de uma lesão oculta (genital feminina, urinária e digestiva) facilitadora do sangramento, que se manifesta, inclusive, com valores de INR dentro da faixa-alvo. Nesse aspecto, Lavitola e cols.17 identificaram essa correspondência em todos os episódios hemorrágicos associados a INR < 3,5. Por outro lado, é digno de nota que há uma expressão heterogênea de hemorragia perante níveis altos de INR, realçando a individualidade.

Nesta segunda década do século XXI, a varfarina guarda o destaque da anticoagulação oral, sendo a droga recomendada por diretriz brasileira e estrangeira e "certificada" por valor de INR preventivo/seguro. Como expressão da realidade brasileira, cabe divulgar que cerca de 1.500 receitas emitidas no Ambulatório de Valvopatias do InCor, mensalmente, incluem a varfarina, o que significa que um em cada dois pacientes (em fibrilação atrial crônica e/ou com história de evento tromboembólico e/ou portador de prótese metálica), mantém-se em permanente iatrogenia - em seu conceito de quebra de segurança, independentemente de consequência. Ademais, não há perspectivas de mudanças no universo da indicação de anticoagulação oral no campo da valvopatia nas próximas décadas e, portanto, as incertezas sobre o equilíbrio entre dois estados sanguíneos opostos continuam a desafiar a assistência, estimular a pesquisa e subsidiar o ensino.

Considerando a perspectiva que eventual inovação farmacológica poderá vir a ser tanto uma alternativa quanto uma substituição à varfarina, sugerimos ao cardiologista que lida com o subgrupo de pacientes com valvopatia que tem necessidade de anticoagulação de longo prazo, fazer reflexões sobre o conjunto de questões abaixo, emanadas da experiência de fato vivenciada com o uso da varfarina e temperada pelo histórico comentado. Afinal, por mais que as pesquisas possam vir a sustentar previsibilidades de utilidade e de segurança da inovação farmacológica a portadores de cardiopatia valvar, o mais de meio século da experiência universal com o uso da varfarina é um forte aviso sobre a relevância da atenção às imprevisibilidades próprias da fase 4 de mercado.

1. Qual a importância do histórico individual do paciente? Muitos anos de ausência de eventos trombo-hemorrágicos desaconselhariam eventual substituição?

2. A maior destinação de recursos para a disponibilidade da nova droga poderia ser compensada por reduções no custo do controle laboratorial e de internações por intercorrências?

3. A desimportância da periodicidade de um teste laboratorial reduzia a ligação do paciente com o médico e, indiretamente, a adesão ao seguimento da valvopatia?

4. A baixa da ênfase no teste laboratorial, ao contrário, eliminaria um fator de não adesão?

5. A menor perspectiva de ajustes periódicos da dose seria fator positivo para o cumprimento da anticoagulação oral pelo paciente?

6. Uma dose fixa de anticoagulante oral seria um alívio ou uma preocupação no seu entendimento de responsabilidade construído há anos pelos vaivéns da varfarina?

7. Episódios hemorrágicos com nova droga poderiam ser controlados com a mesma presteza?

8. A imperiosidade da suspensão da nova droga em virtude de um procedimento a ser efetuado em caráter de urgência estaria bem amparada, teórica e praticamente, por medidas pró-retorno rápido à coagulação normal?

9. O potencial de uma lesão oculta facilitadora de sangramento traria algum impacto?

10. Haveria menos apreensão quanto ao uso da anticoagulação oral em idoso?

11. Haveria vantagem em relação ao uso de mulheres em idade fértil acerca do potencial de embriopatia?

12. Associações com outras drogas influentes na coagulação ficariam mais seguras?

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa, Redação do manuscrito e Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Grinberg M.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 02/08/12, revisado em 16/11/12, aceito em 27/11/12.

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  • Correspondência:

    Max Grinberg
    Rua Manoel Antonio Pinto, 04 ap. 21A, Paraisópolis
    CEP 05663-020, São Paulo, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Maio 2013
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