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Cardiomiopatia Tóxica Dilatada: Reconhecendo uma Doença Potencialmente Reversível

Cardiomiopatia Dilatada; Cocaína; Heroína; Entorpecentes

Introdução

O uso de drogas ilícitas aumentou nos últimos anos11. Ghuran A, Nolan J. Recreational drug misuse: issues for the cardiologist. Heart. 2000;83(6):627-33.. Com relação a este aumento, há uma crescente necessidade de reconhecer e tratar adequadamente os efeitos adversos associados ao consumo de tais drogas.

Estas substâncias podem induzir diversas complicações cardiovasculares (CV), sendo estas agudas ou crônicas11. Ghuran A, Nolan J. Recreational drug misuse: issues for the cardiologist. Heart. 2000;83(6):627-33.. Algumas delas são os eventos isquêmicos e arrítmicos, o desenvolvimento de cardiomiopatia dilatada (CMD) e a disfunção sistólica do ventrículo esquerdo (DSVE).

Existem diversos tipos de drogas com diferentes propriedades farmacológicas e fisiopatológicas, e o sinergismo é descrito entre elas11. Ghuran A, Nolan J. Recreational drug misuse: issues for the cardiologist. Heart. 2000;83(6):627-33.. Dentre elas, a cocaína e a heroína se destacam.

A chave para uma intervenção de sucesso com relação a um destes efeitos adversos é o alto índice de suspeita e a intervenção precoce.

Relato do Caso

Descrevemos o caso de uma mulher portuguesa, com 46 anos de idade, viciada em heroína e cocaína (consumo intravenoso e fumo) desde os 23 anos de idade, uma portadora crônica dos vírus das hepatites B e C, com um histórico prévio de tuberculose pulmonar (tratada) e hábitos de utilização moderada de bebidas alcoólicas.

A paciente foi admitida no Departamento de Emergência (DE) com dispneia sob esforço com evolução de quatro meses e piora progressiva no último mês (dispneia sob esforço leve). Ela negou dor torácica, febre, calafrios ou quaisquer outros sintomas relacionados. Ela negou ter viajado recentemente para o exterior. A paciente apresentava taquicardia (115 batimentos por minuto) e hipertensão (168/90 mmHg). Na auscultação cardíaca, ela exibiu um murmúrio holossistólico, de grau II/VI, no nível do foco mitral, com irradiação axilar. Além disso, a paciente exibiu sinais de congestão pulmonar, hepatomegalia e edemas periféricos leves.

O raio-x torácico exibiu um índice cardiotorácico elevado, sinais de cefalização vascular, com hipotransparência no nível dos terços inferiores de ambos os campos pulmonares, compatíveis com congestão pulmonar. O eletrocardiograma revelou taquicardia do sinus e bloqueio do ramo esquerdo do feixe de His (BRE). Analiticamente, ela apresentava anemia normocrômica e normocítica (hemoglobina de 11,9 g/ dL), função renal e ionograma normais; elevação geral das enzimas hepáticas (AST 287 U/L, ALT 207 U/L, Gamma-GT de 109 U/L, bilirrubina total de 2,04 mg/dL, bilirrubina direta de 0,4 mg/dL) bem como dos níveis de BNP (3600 pg/ mL). Ela apresentava ausência de elevação significativa de necrose miocárdica ou marcadores biológicos inflamatórios. A angiografia por tomografia computadorizada excluiu sinais de tromboembolia pulmonar e exibiu a presença de efusão pleural bilateral e consolidação alveolar.

Para avaliação adiciona, a paciente foi submetida a uma ecocardiografia, a qual exibiu dilatação das câmaras cardíacas da esquerda (volume ventricular esquerdo [VE] diastólico final de 125 ml/m22. Lange RA, Hillis LD. Cardiovascular complications of cocaine use. N Engl J Med. 2001;345(5):351-8.; volume atrial máximo de 39 ml/m22. Lange RA, Hillis LD. Cardiovascular complications of cocaine use. N Engl J Med. 2001;345(5):351-8.), com DSVE global e grave (fração de ejeção [FE] de 11%), com assimetrias da contratilidade segmental e dois pequenos trombos apicais foram identificados (Figura 1). A leve disfunção do ventrículo direito também era evidente.

Figura 1
Ecocardiograma transtorácico na admissão, exibindo a presença de cardiomiopatia dilatada, com regurgitação mitral devido à coaptação insatisfatória dos folhetos das válvular (A) e trombo aderindo ao ápex (seta) (B).

Dados tais achados, conduzimos o diagnóstico de insuficiência cardíaca descompensada (IC) em uma paciente com cardiomiopatia dilatada e disfunção ventricular, com provável etiologia tóxica.

Ela iniciou o tratamento farmacológico de HF (diuréticos da alça, β bloqueadores [BB] e inibidor da enzima conversora da angiotensina [IECA]), bem como anticoagulante, com evolução clínica favorável. Ela recebeu alta no quinto dia de hospitalização, e foi orientada a comparecer na consulta ambulatorial no hospital e ao Centro de Suporte para Viciados. Ela permaneceu na classe funcional da NYHA desde o primeiro mês após a alta. Após seis meses de abstinência total das drogas, sob tratamento otimizado para IC, ela estava completamente assintomática, com valores de BNP abaixo de 10 pg/mL. A reavaliação ecocardiográfica exibiu tamanho normal da câmara cardíaca e recuperação da função sistólica biventricular (volume diastólico final de VE 57 ml/m22. Lange RA, Hillis LD. Cardiovascular complications of cocaine use. N Engl J Med. 2001;345(5):351-8.; volume atrial máximo de 21 ml/m22. Lange RA, Hillis LD. Cardiovascular complications of cocaine use. N Engl J Med. 2001;345(5):351-8.; VE FE 62%), sem evidência de trombo no interior da cavidade. O hipocoagulante oral foi suspenso, mantendo-se a terapia com BB (carvedilol) e inibidor de IECA (lisinopril).

Discussão

Todos os tipos de drogas recreativas podem induzir importantes complicações CV e elas são também responsáveis pela alta morbidade e mortalidade.

Após os canabinoides, as drogas psicoestimulantes são as substâncias ilícitas mais consumidas. A intoxicação aguda por estas drogas é uma causa frequente da recorrência ao DE, especialmente por dor torácica, bem como são uma causa importante do óbito relacionado a drogas22. Lange RA, Hillis LD. Cardiovascular complications of cocaine use. N Engl J Med. 2001;345(5):351-8..

Os psicoestimulantes e opioides estiveram relacionados a DSVE. Contudo, poucos relatos clínicos ilustraram o papel da abstinência na recuperação da insuficiência cardíaca e disfunção miocárdica, que podem ser alcançados em um curto período de tempo33. Pamplona D, Gutierrez PS, Mansur AJ, César LA. [Fatal acute myocardial infarction in a young cocaine addict]. Arq Bras Cardiol. 1990;55(2):125-7.,44. Bertolet BD, Freund G, Perchalski DL, Pepine CJ, Martin CA, Williams CM. Unrecognized left ventricular dysfunction in an apparently healthy cocaine abuse population. Clin Cardiol. 1990;13(5):323-8.. As principais manifestações cardiovasculares, secundárias ao abuso das drogas cocaína e heroína, serão revisadas aqui.

A toxicidade CV associada aos psicoestimulantes é bem descrita e é um fenômeno independente do padrão de consumo, dosagem ou via de administração.

Os efeitos CV do abuso de cocaína se originam essencialmente da ativação do sistema nervos simpático, contribuindo para a ocorrência de arritmias e eventos isquêmicos33. Pamplona D, Gutierrez PS, Mansur AJ, César LA. [Fatal acute myocardial infarction in a young cocaine addict]. Arq Bras Cardiol. 1990;55(2):125-7.,55. Afonso L, Mohammad T, Thatai D. Crack whips the heart: a review of the cardiovascular toxicity of cocaine. Am J Cardiol. 2007;100(6):1040-3..

Os eventos isquêmicos são indubitavelmente as complicações CV mais frequentes nos consumidores de estimulantes como a cocaína22. Lange RA, Hillis LD. Cardiovascular complications of cocaine use. N Engl J Med. 2001;345(5):351-8.. Há até uma relação temporal entre o consumo e o evento. Descobriu-se que dois terços dos infartos agudos do miocárdio (IAM) relacionados ao efeito da cocaína ocorrente dentro das primeiras três horas após o seu consumo66. Mittleman MA, Mintzer D, Maclure M, Tofler GH, Sherwood JB, Muller JE. Triggering of myocardial infarction by cocaine. Circulation. 1999;99(21):2737-41..

A isquemia pode resultar do consumo máximo de oxigênio elevado pelo miocárdio, bem como do fenômeno de vasoespasmo coronário, provavelmente em relação à ativação dos receptores α-adrenérgicos nos vasos coronários55. Afonso L, Mohammad T, Thatai D. Crack whips the heart: a review of the cardiovascular toxicity of cocaine. Am J Cardiol. 2007;100(6):1040-3.. Além disso, a cocaína promove a trombogênese, através da formação de placa aterosclerótica e ativação e agregação de plaquetas33. Pamplona D, Gutierrez PS, Mansur AJ, César LA. [Fatal acute myocardial infarction in a young cocaine addict]. Arq Bras Cardiol. 1990;55(2):125-7.,77. Schwartz BG, Rezkalla S, Kloner RA. Cardiovascular effects of cocaine. Circulation. 2010;122(24):2558-69..

Mais raramente, o uso crônico da cocaína está associado ao desenvolvimento de CMD e DSVE, sendo esta última potencialmente reversível com uma descontinuação do consumo77. Schwartz BG, Rezkalla S, Kloner RA. Cardiovascular effects of cocaine. Circulation. 2010;122(24):2558-69.. O mecanismo que causa a disfunção sistólica inclui os efeitos tóxicos diretos da cocaína, a presença de isquemia sustentada, o estado hiperadrenérgico persistente e mecanismos inflamatórios, incluindo as alterações da produção de citosina e indução de apoptose do miócito55. Afonso L, Mohammad T, Thatai D. Crack whips the heart: a review of the cardiovascular toxicity of cocaine. Am J Cardiol. 2007;100(6):1040-3..

Os opioides são outro tipo de drogas recreativas. A heroína é o opiáceo mais amplamente consumido. Elas atuam através do aumento da atividade parassimpática e diminuição da atividade simpática, que pode causar bradicardia e hipotensão11. Ghuran A, Nolan J. Recreational drug misuse: issues for the cardiologist. Heart. 2000;83(6):627-33..

Assim como os psicoestimulantes, este tipo de drogas também esteve associado à ocorrência de diversos tipos de arritmias, eventos isquêmicos e DSVE potencialmente reversível11. Ghuran A, Nolan J. Recreational drug misuse: issues for the cardiologist. Heart. 2000;83(6):627-33.,33. Pamplona D, Gutierrez PS, Mansur AJ, César LA. [Fatal acute myocardial infarction in a young cocaine addict]. Arq Bras Cardiol. 1990;55(2):125-7.. Acredita-se que o mecanismo mais provável de isquemia miocárdica seja também o vasoespasmo.

Além disso, a intoxicação aguda por heroína pode causar edema pulmonar não cardiogênico devido ao rompimento da integridade da membrana alvéolo-capilar.

O tratamento indicado para a maioria dos pacientes internados sob o uso de drogas recreativas é o tratamento convencional, considerando suas complicações e medidas de suporte. Contudo, a conduta para a dor torácica em pacientes consumidores de cocaína ainda permanece uma controvérsia com relação ao uso de BB, já que poderia exacerbar o vasoespasmo coronário em uma fase mais séria da síndrome coronária aguda (SCA), pela inibição do efeito vasodilatador inerente ao estímulo dos receptores β2 adrenérgicos88. McCord J, Jneid H, Hollander JE, de Lemos JA, Cercek B, Hsue P, et al; American Heart Association Acute Cardiac Care Committee of the Council on Clinical Cardiology. Management of cocaine-associated chest pain and myocardial infarction: a scientific statement from the American Heart Association Acute Cardiac Care Committee of the Council on Clinical Cardiology. Circulation. 2008;117(14):1897-907.. Embora não existam estudos suficientes sobre a melhor estratégia terapêutica neste contexto clínico, as recomendações atuais sugerem que os nitratos e bloqueadores do canal de cálcio sejam as drogas preferidas para o controle inicial da hipertensão arterial, vasoconstrição coronariana e taquicardia (verapamil). Em caso de resposta insuficiente a esta estratégia terapêutica, é razoável administrar um β bloqueador com efeito adicional de α-bloqueador (por exemplo, labetalol)99. Anderson JL , Adams CD, Antman EM, Bridges CR, Califf RM, Casey DE Jr, et al; 2011 WRITING GROUP MEMBERS; ACCF/AHA TASK FORCE MEMBERS. 2011 ACCF/AHA Focused Update Incorporated Into the ACC/ AHA 2007 Guidelines for the Management of Patients With Unstable Angina/ Non-ST-Elevation Myocardial Infarction: a report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines. Circulation. 2011;123(18):e426-579. Erratum in Circulation. 2011 Jun 7;123(22):e627. .

Conclusão

O consumo de drogas recreativas pode induzir uma ampla gama de manifestações cardiovasculares, causando muitas condições médicas graves, as quais incluem arritmias, eventos isquêmicos e DSVE.

O caso descrito ilustra significativamente a importância do reconhecimento da etiologia tóxica, especialmente para o abuso de drogas recreativas associada à cardiomiopatia dilatada, que quando adequadamente tratada e comprovada, é potencialmente reversível e pode ter um prognóstico favorável.

  • Contribuição dos autores
    Concepção e desenho da pesquisa: Rangel I; Obtenção de dados: Rangel I, Amorim M, Gonçalves A; Análise e interpretação dos dados: Rangel I, Gonçalves A; Redação do manuscrito: Rangel I, Amorim M; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Gonçalves A, Sousa C, Bettencourt P, Maciel MJ.
  • Fontes de Financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação Acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Referências

  • 1
    Ghuran A, Nolan J. Recreational drug misuse: issues for the cardiologist. Heart. 2000;83(6):627-33.
  • 2
    Lange RA, Hillis LD. Cardiovascular complications of cocaine use. N Engl J Med. 2001;345(5):351-8.
  • 3
    Pamplona D, Gutierrez PS, Mansur AJ, César LA. [Fatal acute myocardial infarction in a young cocaine addict]. Arq Bras Cardiol. 1990;55(2):125-7.
  • 4
    Bertolet BD, Freund G, Perchalski DL, Pepine CJ, Martin CA, Williams CM. Unrecognized left ventricular dysfunction in an apparently healthy cocaine abuse population. Clin Cardiol. 1990;13(5):323-8.
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    Afonso L, Mohammad T, Thatai D. Crack whips the heart: a review of the cardiovascular toxicity of cocaine. Am J Cardiol. 2007;100(6):1040-3.
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    Mittleman MA, Mintzer D, Maclure M, Tofler GH, Sherwood JB, Muller JE. Triggering of myocardial infarction by cocaine. Circulation. 1999;99(21):2737-41.
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    McCord J, Jneid H, Hollander JE, de Lemos JA, Cercek B, Hsue P, et al; American Heart Association Acute Cardiac Care Committee of the Council on Clinical Cardiology. Management of cocaine-associated chest pain and myocardial infarction: a scientific statement from the American Heart Association Acute Cardiac Care Committee of the Council on Clinical Cardiology. Circulation. 2008;117(14):1897-907.
  • 9
    Anderson JL , Adams CD, Antman EM, Bridges CR, Califf RM, Casey DE Jr, et al; 2011 WRITING GROUP MEMBERS; ACCF/AHA TASK FORCE MEMBERS. 2011 ACCF/AHA Focused Update Incorporated Into the ACC/ AHA 2007 Guidelines for the Management of Patients With Unstable Angina/ Non-ST-Elevation Myocardial Infarction: a report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines. Circulation. 2011;123(18):e426-579. Erratum in Circulation. 2011 Jun 7;123(22):e627.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2014

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2013
  • Revisado
    03 Jul 2013
  • Aceito
    09 Ago 2013
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