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Cardiomiopatia Cirrótica: Um Novo Fenótipo Clínico

Palavras-chave:
Cirrose Hepática / mortalidade; Obesidade; Envelhecimento; Síndrome Metabólica; Fígado Gorduroso; Cardiomiopatia Alcoólica

Introdução

A cirrose hepática é o espectro final de diversas agressões ao fígado, com grande relevância para a saúde pública. Dados nacionais estimam prevalência de 0,14% a 0,35%, mortalidade de 3 a 35 por 100.000 habitantes e média anual de 30.000 internações no Brasil.(11 Carvalho JR, Portugal FB, Flor LS, Campos MR, Schramm JM. Method for estimating the prevalence of chronic hepatitis B and C and cirrhosis of the liver in Brazil, 2008. Epidemiol Serv Saúde. 2014;23(4):691-700.,22 Schuppan D, Afdhal NH. Liver cirrhosis. Lancet. 2008;371(9615):838-51.) Com o envelhecimento populacional, a prevalência de doenças crônicas hepáticas, em particular a esteatohepatite ligada à obesidade e síndrome metabólica, resulta em aumento do número de casos de cirrose hepática.(33 Yusuf S, Reddy S, Ounpuu S, Anand S. Global burden of cardiovascular diseases: part I: general considerations, the epidemiologic transition, risk factors, and impact of urbanization. Circulation. 2001;104(22):2746-53.)

As manifestações cardíacas da cirrose hepática foram relatadas, primeiramente, no século XX, com as alterações sobre o débito cardíaco.(44 Kowalski HJ, Abelmann WH. The cardiac output at rest in Laennec's cirrhosis. J Clin Invest. 1953;32(10):1025-33.) Com os novos conhecimentos das repercussões extra-hepáticas da cirrose, a cardiomiopatia cirrótica (CMC) foi descrita como um espectro de alterações crônicas morfofuncionais no coração de pacientes cirróticos sem doença cardíaca prévia.(55 Sampaio F, Pimenta J, Bettencourt N, Fontes-Carvalho R, Silva AP, Valente J, et al. Systolic and diastolic dysfunction in cirrhosis: A tissue-Doppler and speckle tracking echocardiography study. Liver Int. 2013;33(8):1158-65.

6 Møller S, Bendtsen F. Cirrhotic multiorgan syndrome. Dig Dis Sci. 2015; 60(11):3209-25.
-77 Heidelbaugh JJ, Sherbondy M. Cirrhosis and chronic liver failure: Part II. Complications and treatment. Am Fam Physician. 2006;74(5):767-76.) A lesão ao cardiomiócito é provocada pelo desequilíbrio da homeostase que ocorre na progressão da cirrose, com exaustão de receptores beta-adrenérgicos, impregnação citoplasmática pelos endocanabinóides, desequilíbrio de óxido nítrico e endotelinas.(77 Heidelbaugh JJ, Sherbondy M. Cirrhosis and chronic liver failure: Part II. Complications and treatment. Am Fam Physician. 2006;74(5):767-76.) A CMC é assintomática, porém são descritas alterações estruturais no eletrocardiograma (ECG) e ecodopplercardiograma (ECHO), tanto sistólicas quanto diastólicas.(88 Licata A, Novo G, Colomba D, Tuttolomondo A, Galia M, Camma' C. Cardiac involvement in patients with cirrhosis: a focus on clinical features and diagnosis. J Cardiovasc Med (Hagerstown). 2016;17(1):26-36.)

Devido a CMC ser assintomática, exceto em situações de estresse, os estudos de prevalência são limitados. A insuficiência cardíaca (IC) secundária à CMC é frequente nos pacientes submetidos a transplante hepático, em que metade desses pacientes apresenta clínica de IC, e até 21% morrem de causa cardíaca.(99 Barbosa M, Guardado J, Marinho C, Rosa B, Quelhas I, Lourenço A, et al. Cirrhotic cardiomyopathy: Isn't stress evaluation always required for the diagnosis? World J Hepatol. 2016;8(3):200-6.) Hoje é possível identificar o acometimento miocárdico em até 50% dos pacientes com cirrose,(1010 Henriksen JH, Gøtze JP, Fuglsang S, Christensen E, Bendtsen F, Møller S. Increased circulating pro-brain natriuretic peptide (proBNP) and brain natriuretic peptide (BNP) in patients with cirrhosis: relation to cardiovascular dysfunction and severity of disease. Gut. 2003;52(10):1511-7.) porém, na maioria das vezes, sem expressão clínica.

O objetivo desta revisão é descrever descobertas recentes da fisiopatologia do sistema cardiovascular na cirrose hepática, e mostrar a importância dos biomarcadores e métodos de cardioimagem no reconhecimento de um novo fenótipo clínico da CMC.

O sistema cardiovascular na cirrose hepática

A evolução da cirrose hepática é insidiosa, podendo ser assintomática, ou oligossintomática, até fases avançadas. Os sinais e sintomas de insuficiência hepática tendem a ser tardios, com manifestações clínicas e laboratoriais sutis, por vezes de difícil interpretação.

O cardiologista poderá se defrontar com um paciente com queixa de dispneia, apresentando-se com ascite, sem turgência jugular patológica, com ECG normal, ECHO com fração de ejeção normal, porém com peptídio natriurético do tipo B (BNP) elevado - quadro que pode ser sugestivo de CMC.(1111 Horvatits T, Drolz A, Rutter K, Roedl K, Kluge S, Fuhrmann V. Hepatocardiac disorders. World J Hepatol 2014; 6(1): 41-54.) Por ser diferente de uma apresentação clássica de IC, são necessários o conhecimento dessa síndrome (CMC) e um grau de suspeição clínica para o seu reconhecimento precoce, a fim de prevenir evolução para complicações relacionadas, tais como insuficiência suprarrenal e síndrome hepatorrenal (SHR).

No passado, a cardiomiopatia na cirrose alcoólica era entendida como um dano miocárdico concomitante ao dano hepático e tinha como fenótipo a cardiomiopatia dilatada. Acreditava-se que a agressão do álcool, no coração, era sempre na forma de doença crônica com dilatação das cavidades. Com o conhecimento das hepatites virais, foram descritas as miocardites pelo vírus das hepatites B e C, com fenótipo clínico variável, desde oligossintomáticos, associadas ou não a cardiomiopatia dilatada. O conceito da CMC permite o entendimento de um novo fenótipo clínico: o paciente assintomático, sem limitações funcionais aparentes, mas com doença cardíaca celular e estrutural subclínica (Figura 1).

Figura 1
Evolução do conceito de cardiomiopatia cirrótica; HBV: vírus da hepatite B; HCV: vírus da hepatite C; NASH: doença hepática não alcoólica.

Pacientes cirróticos possuem uma circulação hiperdinâmica, pela vasodilatação periférica imposta pelo desequilíbrio neuroendócrino da cirrose hepática, com aumento do débito cardíaco em repouso e diminuição na resistência vascular periférica.(1212 Zardi EM, Abbate A, Zardi DM, Dobrina A, Margiotta D, Van Tassel BW, et al. Cirrhotic cardiomyopathy. J Am Coll Cardiol. 2010;56(7):539-49. Erratum in: J Am Coll Cardiol. 2010;56(12):1000.) Predomina a vasodilatação arterial, que induz a ativação do sistema nervoso autônomo e do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA), para que se preserve a perfusão periférica. Esse padrão hiperdinâmico é diretamente dependente da reserva cardíaca (capacidade inotrópica e cronotrópica), para que o débito cardíaco seja preservado.

A Figura 2 resume as principais alterações hemodinâmicas no paciente cirrótico. Observa-se aumento relativo do débito cardíaco, hiperestimulação simpática e elevação de frequência cardíaca e fluxo sanguíneo pulmonar, com redução da resistência vascular pulmonar. Em contraposição, ocorre diminuição de volume arterial circulante efetivo, pressão arterial sistêmica e pós-carga por vasodilatação.(1212 Zardi EM, Abbate A, Zardi DM, Dobrina A, Margiotta D, Van Tassel BW, et al. Cirrhotic cardiomyopathy. J Am Coll Cardiol. 2010;56(7):539-49. Erratum in: J Am Coll Cardiol. 2010;56(12):1000.)

Figura 2
A progressão da doença cardíaca é concomitante à evolução para cirrose hepática, evoluindo de disfunção diastólica, disfunção sistólica e cardiomiopatia dilatada. SHR: síndrome hepatorrenal; DC: débito cardíaco.

Com a evolução dos estudos bioquímicos e de avaliação morfofuncional do coração, o conceito de CMC passou a representar a resposta ventricular subótima ao estresse, fisiológico ou induzido, apesar de o paciente apresentar débito cardíaco aparentemente normal em repouso, na ausência de doença cardíaca prévia.(1313 Páll A, Czifra A, Vitális Z, Papp M, Paragh G, Szabó Z. Pathophysiological and clinical approach to cirrhotic cardiomyopathy. J Gastrointestin Liver Dis. 2014;23(3):301-10.)

A patogênese da CMC envolve fatores celulares, neurais e humorais, cuja base fisiopatológica está nas alterações da membrana plasmática dos cardiomiócitos: influências na sinalização do cálcio, hiperestímulo aos receptores beta, ação mediada por óxido nítrico, monóxido de carbono e endocanabinóides. Há aumento nos níveis circulantes de substâncias vasoativas (endotelina, glucagon, peptídeo intestinal vasoativo, fator de necrose tumoral, prostaciclinas e peptídeo natriurético) que, usualmente, estão elevados na cirrose devido à insuficiência hepática e à presença de vasos colaterais portossistêmicos.(1414 Mota VG, Markman Filho B. Echocardiography in chronic liver disease: systematic review. Arq Bras Cardiol. 2013;100(4):376-85.)

Concomitantemente à progressão da doença hepática, observa-se disfunção miocárdica diastólica (rigidez miocárdica por fibrose, hipertrofia miocárdica e edema subendotelial) e sistólica (circulação hiperdinâmica e vasodilatação esplâncnica, com aumento da complacência arterial).(1414 Mota VG, Markman Filho B. Echocardiography in chronic liver disease: systematic review. Arq Bras Cardiol. 2013;100(4):376-85.)

Entende-se que as disfunções diastólicas e sistólicas estão diretamente relacionadas à gravidade da disfunção hepática e da hipertensão portal.(55 Sampaio F, Pimenta J, Bettencourt N, Fontes-Carvalho R, Silva AP, Valente J, et al. Systolic and diastolic dysfunction in cirrhosis: A tissue-Doppler and speckle tracking echocardiography study. Liver Int. 2013;33(8):1158-65.) A disfunção diastólica costuma preceder a disfunção sistólica, sendo essa observada em situações em que há aumento da demanda do débito cardíaco associada à diminuição da contratilidade miocárdica, como nas situações de estresse hemodinâmico - processos infecciosos, exercícios físicos, uso de determinados medicamentos e cirurgias.(99 Barbosa M, Guardado J, Marinho C, Rosa B, Quelhas I, Lourenço A, et al. Cirrhotic cardiomyopathy: Isn't stress evaluation always required for the diagnosis? World J Hepatol. 2016;8(3):200-6.)

A disfunção cardíaca pode interferir negativamente no prognóstico dos pacientes cirróticos, reduzindo a sobrevida e participando na gênese de complicações. A SHR e a disfunção circulatória pós-paracentese, que é um estado de hipoperfusão sistêmica secundário à retirada rápida de grandes volumes de líquido ascítico sem aporte apropriado de albumina, são as principais complicações ligadas à resposta embotada do miocárdio ao estresse.(1515 Zardi EM, Abbate A, Zardi DM, Dobrina A, Margiotta D, Van Tassell BW, et al. Cirrhotic Cardiomyopathy. J Am Coll Cardiol. 2010;56(7):539-49. Erratum in: J Am Coll Cardiol. 2010;56(12):1000.) A disfunção cardíaca também pode se manifestar em situações de estresse miocárdico, como o aumento de pré-carga secundário à inserção de shunt portossistêmico transjugular (TIPS), habitualmente indicado para pacientes pré-transplante hepático.(1010 Henriksen JH, Gøtze JP, Fuglsang S, Christensen E, Bendtsen F, Møller S. Increased circulating pro-brain natriuretic peptide (proBNP) and brain natriuretic peptide (BNP) in patients with cirrhosis: relation to cardiovascular dysfunction and severity of disease. Gut. 2003;52(10):1511-7.)

Abordagem diagnóstica da CMC

Como a maioria dos pacientes são assintomáticos nas fases iniciais da CMC, eles devem ser submetidos à avaliação clínica, laboratorial, eletrocardiográfica e métodos de imagem para o diagnóstico precoce.(1111 Horvatits T, Drolz A, Rutter K, Roedl K, Kluge S, Fuhrmann V. Hepatocardiac disorders. World J Hepatol 2014; 6(1): 41-54.,1616 Wiese S, Mortensen C, Gøtze JP, Christensen E, Andersen O, Bendtsen F, et al. Cardiac and proinflammatory markers predict prognosis in cirrhosis. Liver Int. 2014;34(6):e19-30.) Os critérios de reconhecimento da CMC estão descritos na Tabela 1.

Tabela 1
Critérios diagnósticos para cardiomiopatia cirrótica

O emprego de biomarcadores tem sido útil na prática clínica, especificamente a troponina I, o BNP e a fração N-terminal do pro-BNP (NT-pro-BNP), que podem ser encontrados em níveis anormais na cirrose.(1616 Wiese S, Mortensen C, Gøtze JP, Christensen E, Andersen O, Bendtsen F, et al. Cardiac and proinflammatory markers predict prognosis in cirrhosis. Liver Int. 2014;34(6):e19-30.

17 Wong F. Cirrhotic cardiomyopathy. Hepatol Int. 2009;3(1):294-304.
-1818 Wiese S, Hove JD, Bendtsen F, Møller S. Cirrhotic cardiomyopathy: pathogenesis and clinical relevance. Nat Rev Gastroenterol Hepatol. 2014;11(3):177-86.) A elevação da troponina I foi associada à diminuição do débito sistólico e da massa ventricular esquerda, porém, sem correlação com a gravidade da cirrose.(1919 Merli M, Calicchia A, Ruffa A, Pellicori P, Riggio O, Giusto M, et al. Cardiac dysfunction in cirrhosis is not associated with the severity of liver disease. Eur J Intern Med. 2013;24(2):172-6.) A elevação do pró-BNP foi associada à espessura da parede do septo interventricular e da parede ventricular. A elevação de BNP e pro-BNP está associada à gravidade da cirrose e da disfunção cardíaca, mas não à circulação hiperdinâmica.(2020 Ruiz-del-Árbol L, Serradilla R. Cirrhotic cardiomyopathy. World J Gastroenterol. 2015;21(41):11502-21.,2121 Møller S, Bernardi M. Interactions of the heart and the liver. Eur Heart J. 2013;34(36):2804-11.) O aumento de BNP e pro-BNP em pacientes cirróticos comparados com o grupo controle e indivíduos saudáveis tem correlação direta com a gravidade da doença hepática (pelo escore de Child-Pugh e pelo gradiente de pressão venosa hepática) e com marcadores de disfunção cardíaca (intervalo QT, frequência cardíaca e volume plasmático).(1616 Wiese S, Mortensen C, Gøtze JP, Christensen E, Andersen O, Bendtsen F, et al. Cardiac and proinflammatory markers predict prognosis in cirrhosis. Liver Int. 2014;34(6):e19-30.) Níveis elevados de BNP e pro-BNP em pacientes cirróticos indicam a origem miocárdica desses peptídeos, mediante o estiramento dos cardiomiócitos pela sobrecarga ventricular esquerda, o que faz aumentar a expressão do gene responsável pela transcrição do BNP.(1717 Wong F. Cirrhotic cardiomyopathy. Hepatol Int. 2009;3(1):294-304.)

O fator de necrose tumoral alfa e as interleucinas 1 e 6 são citocinas inflamatórias hiperestimuladas na cirrose hepática e na IC. A elevação de biomarcadores de disfunção cardíaca (troponina I, BNP e pro-BNP) indica, no contexto da cirrose, o acometimento miocárdico, o que está relacionado com a gravidade da doença hepática.(1616 Wiese S, Mortensen C, Gøtze JP, Christensen E, Andersen O, Bendtsen F, et al. Cardiac and proinflammatory markers predict prognosis in cirrhosis. Liver Int. 2014;34(6):e19-30.)

A avaliação da telerradiografia de tórax (Rx) é usualmente normal, ou pode revelar sinais indiretos de aumento atrial esquerdo e, em fases avançadas, aumento do ventrículo esquerdo e cardiomegalia, com derrame pleural. O ECG pode auxiliar no diagnóstico quando evidencia prolongamento de intervalo QT (alteração mais precoce e prevalente), aparecimento de múltiplas extrassístoles e, em fases mais avançadas, bloqueio de ramo e infradesnivelamento do segmento ST. O holter de 24 horas tem maior sensibilidade para identificação de bradiarritmias e taquiarritmias e pode auxiliar no diagnóstico de doenças subclínicas ou paroxísticas.

O ECHO é um método não invasivo cujos achados se correlacionam com o grau de disfunção hepática: aumento do diâmetro diastólico do VE e diminuição do pico de velocidade sistólica e da taxa de deformidade sistólica do VE avaliados pelo Doppler tecidual. Outros achados que podem ser encontrados na disfunção diastólica da CMC são: redução da capacidade de relaxamento ventricular precoce (E) e tardio (A) e diminuição da taxa E/A com prolongamento do tempo de desaceleração da onda E. Nas fases avançadas, ocorre disfunção sistólica do VE, com redução da fração de ejeção. O strain rate (SR) é um novo parâmetro ecocardiográfico capaz de identificar redução na função sistólica do VE quando a fração de ejeção ainda está normal.(55 Sampaio F, Pimenta J, Bettencourt N, Fontes-Carvalho R, Silva AP, Valente J, et al. Systolic and diastolic dysfunction in cirrhosis: A tissue-Doppler and speckle tracking echocardiography study. Liver Int. 2013;33(8):1158-65.)

A ressonância magnética (RM) tem sido cada vez mais empregada no contexto de avaliação morfofuncional da doença hepática e cardíaca. Pode determinar a fração de ejeção, o volume das câmaras cardíacas (aumento da massa do VE e dos volumes diastólicos finais no AE e VE) e alterações morfológicas miocárdicas, incluindo as teciduais (áreas de edema e fibrose), com a identificação da lesão por meio do uso de contrastes como o gadolíneo.(88 Licata A, Novo G, Colomba D, Tuttolomondo A, Galia M, Camma' C. Cardiac involvement in patients with cirrhosis: a focus on clinical features and diagnosis. J Cardiovasc Med (Hagerstown). 2016;17(1):26-36.) Pode auxiliar na identificação do acometimento simultâneo dos dois órgãos, como na hemocromatose e na amiloidose.

Reconhecer o momento apropriado da abordagem terapêutica nestes pacientes é um desafio frente ao entendimento da CMC. O acometimento cardíaco é habitualmente subclínico, e se manifesta como insuficiência ventricular esquerda (IVE) em momentos de demanda aumentada, como em situações de estresse clínico ou cirúrgico. A IC congestiva, com sinais de congestão pulmonar, é o espectro final das CMP dilatadas de qualquer etiologia em que se inclui a CMC - cenário clínico de prognóstico ruim e elevada mortalidade. A CMC ainda não tem tratamento específico; hoje é feita a mesma abordagem instituída para IC, que inclui restrição de água e sódio, uso de diuréticos, inibidores do SRAA e betabloqueadores.(1919 Merli M, Calicchia A, Ruffa A, Pellicori P, Riggio O, Giusto M, et al. Cardiac dysfunction in cirrhosis is not associated with the severity of liver disease. Eur J Intern Med. 2013;24(2):172-6.)

A abordagem da CMC no curso da cirrose hepática ainda é um desafio na prática clínica, pois, quando se faz o diagnóstico de CMP dilatada com franca congestão pulmonar, o prognóstico é reservado. Recentemente, nosso grupo relatou, de forma pioneira, dois casos de pacientes com BNP elevado, Rx sem congestão pulmonar e ECHO com FEVE normal, porém com progressão para SHR refratária aos tratamentos convencionais, em que houve benefício com o uso de dobutamina como terapia de resgate da função renal, com ótima resposta clínica.(2222 Mocarzel L, Lanzieri P, Nascimento J, Peixoto C, Ribeiro M, Mesquita E. Hepatorenal syndrome with cirrhotic cardiomyopathy: case report and literature review. Case Reports Hepatol. 2015;2015:573513.,2323 Mocarzel LO, Bicca J, Jarske L, Oliveira T, Lanzieri P, Gismondi R, et al. Cirrhotic cardiomyopathy: another case of a successful approach to treatment of hepatorenal syndrome. Case Rep Gastroenterol. 2016;10(3):531-7.) A idéia central é que a SHR é um marcador de má perfusão sistêmica, e que o débito cardíaco, apesar de na faixa normal do ECHO, está insuficiente para a demanda. O inotrópico, então, promoveria um aumento do débito cardíaco e da perfusão renal. Nos casos publicados houve boa resposta clínica com recuperação da função renal.

Conclusão

O acometimento miocárdico, subdiagnosticado em pacientes cirróticos, e a CMC representam um novo fenótipo clínico. Uma vez compreendidas as repercussões cardiovasculares, o cardiologista deve observar as suas manifestações, sejam sinais de congestão ou de complicações clínicas como SHR, particularmente em situações de estresse clínico ou cirúrgico, estimulando sua avaliação com métodos de cardioimagem e biomarcadores. Falta o entendimento de como aplicar esse conhecimento, na prática diária, para benefício dos pacientes. São necessários estudos com o objetivo de identificar potenciais tratamentos que alterem a história natural da doença cardíaca nos cirróticos, principalmente na fase assintomática.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação acadêmica
    Este artigo é parte de dissertação de Mestrado de Pedro Gemal Lanzieri pela Universidade Federal Fluminense.

Agradecimentos

Ao professor Evandro Tinoco Mesquita pela contribuição e pelo apoio na elaboração deste trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2016
  • Revisado
    19 Set 2016
  • Aceito
    01 Nov 2016
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