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Dados Longitudinais e o Viés da Correlação de Medidas: A Alternativa dos Modelos Mistos

Palavras-chave
Estudos de Coortes; Estudos Longitudinais; Estudos Transversais; Epidemiologia; Bioestatística

Estudos longitudinais têm duas tipologias importantes de dados: desfechos únicos ou medidas repetidas.11. Medronho RA, Bloch KV, Raggio LR, Werneck GL. Epidemiologia. 2ª ed. São Paulo: Atheneu; 2009. 685 P . Coortes de desfecho único, como a morte ou surgimento de doença, devem ter um tratamento de dados diferente daqueles estudos com desfecho de medidas repetidas. Mas todos eles têm em comum a detecção de mudanças ao longo do tempo e os fatores contribuintes para esta alteração. Isto difere dos estudos transversais que buscam apenas relação de variáveis, sem o necessário efeito de causalidade.

O estudo de Fernandes et al.,22. Fernandes RA, Mantovani AM, Sanches Codogno J, Camilo Turi-Lynch B, Pokhrel S, Anokye N. Relação entre Estilo de Vida e Custos Relacionados ao Uso de Medicamentos em Adultos. Arq Bras Cardiol. 2018;11(2):749-55. intitulado de Relação entre Estilo de Vida e Custos Relacionados ao Uso de Medicamentos em Adultos, publicado neste periódico no volume 112, número 6 em 2019, utilizou variáveis independentes de comportamento para estimar os efeitos sobre o desfecho de custos com medicamentos, coletado na forma de medidas repetidas em um desenho de coorte prospectiva.

O que se pretende com esta exposição é evidenciar que, provavelmente, ocorreu um equívoco na análise de dados do trabalho de Fernandes et al.,22. Fernandes RA, Mantovani AM, Sanches Codogno J, Camilo Turi-Lynch B, Pokhrel S, Anokye N. Relação entre Estilo de Vida e Custos Relacionados ao Uso de Medicamentos em Adultos. Arq Bras Cardiol. 2018;11(2):749-55. que compromete as inferências de causalidade devido à grande possibilidade de precisão das estimativas apresentadas estarem equivocadas.

Vamos aos fatos. Considerando o desenho de coorte prospectiva com medidas repetidas constata-se a existência de estrutura hierárquica nos dados do desfecho devido ao aninhamento deles nas diversas medidas do mesmo participante. O aninhamento de dados faz com que o erro, isto é, o que foi predito pelo modelo e a real aferição das medidas, do mesmo participante em momentos distintos sejam correlacionados.33. Fausto MA, Carneiro M, Antunes CMDF, Pinto JA, Colosimo EA. O modelo de regressão linear misto para dados longitudinais: Uma aplicação na análise de dados antropométricos desbalanceados. Cad Saude Publica. 2008;24(3):513-24. Isto é uma condição para não uso da regressão linear múltipla (RLM) a qual tem como pressuposto a independência do erro dada pela assunção de que a distribuição de cada participante é igual. A RLM não extraidos dados aquilo que é variabilidade dentro do indivíduo da variabilidade entre indivíduos (população).33. Fausto MA, Carneiro M, Antunes CMDF, Pinto JA, Colosimo EA. O modelo de regressão linear misto para dados longitudinais: Uma aplicação na análise de dados antropométricos desbalanceados. Cad Saude Publica. 2008;24(3):513-24.

Usar RLM em medidas repetidas gera erros-padrão dos coeficientes de regressão viciados. Exige-se nesta situação a aplicação de uma matriz de covariância que produzirá estimativas mais confiáveis, ou seja, intervalos de confiança mais estreitos a partir de modelos de efeitos mistos.44. Helena Constantino Spyrides M, José Struchiner C, Tereza Serrano Barbosa Gilberto Kac M. Análise de Dados com Medidas Repetidas. In: Kac G, Sichieri R, Gigante D Epidemiologia nutricional. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ/Atheneu; 2007.P . 245-60. Esta é a melhor alternativa para se verificar mudanças ao longo do tempo ou o efeito de condicionantes no desfecho em estudos longitudinais, controlando os efeitos individuais.

Como existe uma variabilidade maior entre indivíduos que intra-indivíduo, devido principalmente às diferenças biológicas e de condicionantes sociais, observa-se que os custos com medicamentos irão ser mais correlacionados ao longo do tempo no mesmo indivíduo que entre os participantes. Pensar que essa distribuição é igual nos participantes do estudo, ignora o pressuposto teórico da determinação social em saúde no comportamento das pessoas.55. Garbois JA, Sodre F, Dalbello-Araujo M. Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde. Saúde Debate. 2017;41(112):63-76.

A criação de RLM distintas (A, B, C e D), ver Fernandes et al.,22. Fernandes RA, Mantovani AM, Sanches Codogno J, Camilo Turi-Lynch B, Pokhrel S, Anokye N. Relação entre Estilo de Vida e Custos Relacionados ao Uso de Medicamentos em Adultos. Arq Bras Cardiol. 2018;11(2):749-55. não controla esse efeito de covariância e, portanto, podem estar produzindo coeficientes com intervalos de confiança enviesados para as variáveis independentes e não consegue também detectar a taxa de mudança em relação ao basal.33. Fausto MA, Carneiro M, Antunes CMDF, Pinto JA, Colosimo EA. O modelo de regressão linear misto para dados longitudinais: Uma aplicação na análise de dados antropométricos desbalanceados. Cad Saude Publica. 2008;24(3):513-24. Além disso, com os modelos mistos seria possível também aproveitar medidas que foram aferidas em participantes perdidos, aumentando a sensibilidade da modelagem.44. Helena Constantino Spyrides M, José Struchiner C, Tereza Serrano Barbosa Gilberto Kac M. Análise de Dados com Medidas Repetidas. In: Kac G, Sichieri R, Gigante D Epidemiologia nutricional. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ/Atheneu; 2007.P . 245-60.

Em outra perspectiva, sendo o objetivo da pesquisa estimar a inter-relação do custo com medicamentos e os hábitos comportamentais, sem o estabelecimento de causalidade, seria necessário apenas um desenho transversal dos participantes com a coleta de dados do desfecho e variáveis independentes em um único momento. Assim, o modelo de regressão basal seria suficiente para estimar associações brutas e ajustadas.11. Medronho RA, Bloch KV, Raggio LR, Werneck GL. Epidemiologia. 2ª ed. São Paulo: Atheneu; 2009. 685 P .

Dessa forma, o uso de RLM deve ficar restrito aos desenhos transversais de pesquisa e que estudos longitudinais necessitam diferenciar o efeito individual do efeito populacional na identificação das mudanças temporais e os condicionantes da mesma. Possivelmente, os achados de Fernandes et al.,22. Fernandes RA, Mantovani AM, Sanches Codogno J, Camilo Turi-Lynch B, Pokhrel S, Anokye N. Relação entre Estilo de Vida e Custos Relacionados ao Uso de Medicamentos em Adultos. Arq Bras Cardiol. 2018;11(2):749-55. devem estar enviesados quanto às conclusões sobre a relação inversa do uso de álcool com os custos dos medicamentos ou as relações não-significativas do ponto de vista estatístico com a gordura corporal, gênero e tabagismo que têm grande impacto em outras situações de saúde, principalmente crônicas.

References

  • 1
    Medronho RA, Bloch KV, Raggio LR, Werneck GL. Epidemiologia. 2ª ed. São Paulo: Atheneu; 2009. 685 P .
  • 2
    Fernandes RA, Mantovani AM, Sanches Codogno J, Camilo Turi-Lynch B, Pokhrel S, Anokye N. Relação entre Estilo de Vida e Custos Relacionados ao Uso de Medicamentos em Adultos. Arq Bras Cardiol. 2018;11(2):749-55.
  • 3
    Fausto MA, Carneiro M, Antunes CMDF, Pinto JA, Colosimo EA. O modelo de regressão linear misto para dados longitudinais: Uma aplicação na análise de dados antropométricos desbalanceados. Cad Saude Publica. 2008;24(3):513-24.
  • 4
    Helena Constantino Spyrides M, José Struchiner C, Tereza Serrano Barbosa Gilberto Kac M. Análise de Dados com Medidas Repetidas. In: Kac G, Sichieri R, Gigante D Epidemiologia nutricional. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ/Atheneu; 2007.P . 245-60.
  • 5
    Garbois JA, Sodre F, Dalbello-Araujo M. Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde. Saúde Debate. 2017;41(112):63-76.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2019
  • Revisado
    04 Set 2019
  • Aceito
    04 Set 2019
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