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Revascularização do Miocárdio Guiada pela Fisiologia: Está na Hora do Cirurgião Cardíaco Incorporar a Reserva de Fluxo Fracionada na Prática?

Palavras-chave
Angiografia Coronariana/fisiologia; Doença da Artéria Coronariana/fisiopatologia; Ponte de Artéria Coronariana; Reserva Fraccionada de Fluxo Miocárdio

De acordo com as diretrizes mais recentes de revascularização do miocárdio, a intervenção coronária percutânea guiada pela reserva de fluxo fracionada (RFF) deve ser considerada em pacientes com doença de múltiplos vasos. Tal medida inclui a avaliação de todas as lesões com estenose de 40 a 90% de diâmetro antes do implante de stent.11 Feres F, Costa RA, Siqueira D, Costa Jr JR, Chamié D SR et al. Diretriz Sobre Intervenção Coronária Percutânea. Arq Bras Cardiol. 2017;109(1 Suppl 1):1-–81.,22 Neumann FJ, Sousa-Uva M, Ahlsson A, Alfonso F, Banning AP, Benedetto U, et al. 2018 ESC/EACTS Guidelines on myocardial revascularization. Eur Heart J. 2019;40(2):87–165. As mesmas diretrizes sugerem priorizar a revascularização completa, ou seja, em que todos os vasos com estenose superior a 50% de diâmetro devem ser tratados, quando se decide pela cirurgia de revascularização miocárdica (CRM) (bypass).22 Neumann FJ, Sousa-Uva M, Ahlsson A, Alfonso F, Banning AP, Benedetto U, et al. 2018 ESC/EACTS Guidelines on myocardial revascularization. Eur Heart J. 2019;40(2):87–165.

Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Martins et al.33 Martins J, Afreixo V, Santos L, Fernandes L, Briosa A. Physiology or Angiography-Guided Coronary Artery Bypass Grafting: A Meta-Analysis. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(6):1115-1123. abordaram esse paradoxo com uma metanálise de cinco estudos, incluindo um total de 1114 pacientes, comparando a CRM guiada pela fisiologia com a CRM convencional guiada por angiografia. Embora a análise dos dados agrupados mostrou que não houve diferença nas taxas de infarto do miocárdio e revascularização do vaso alvo, observou-se uma redução de 37% no risco relativo de mortes por todas as causas com a CRM guiada pela fisiologia.

Vários estudos realizados nas duas últimas décadas revelaram desfechos favoráveis e menor custo com o uso de angioplastia guiada pela RFF, com revascularização de somente lesões funcionalmente significativas.44 Zimmermann FM, Ferrara A, Johnson NP, Van Nunen LX, Escaned J, Albertsson P, et al. Deferral vs. performance of percutaneous coronary intervention of functionally non-significant coronary stenosis: 15-year follow-up of the DEFER trial. Eur Heart J. 2015;36(45):3182–8.

5 Xaplanteris P, Fournier S, Pijls NHJ, Fearon WF, Barbato E, Tonino PAL, et al. Five-Year Outcomes with PCI Guided by Fractional Flow Reserve. N Engl J Med. 2018;379(3):250–9.
-66 Quintella EF, Ferreira E, Azevedo VMP, Araujo D V., Sant anna FM, Amorim B, et al. Clinical outcomes and cost-effectiveness analysis of FFR compared with angiography in multivessel disease patient. Arq Bras Cardiol. 2019;112(1):40–7. Além disso, a reclassificação dos pacientes adicionando-se as informações da RFF ao escore SYNTAX melhora sua correlação com eventos após a revascularização, o que é conhecido como escore SYNTAX funcional.77 Nam CW, Mangiacapra F, Entjes R, Chung IS, Sels JW, Tonino PAL, et al. Functional SYNTAX score for risk assessment in multivessel coronary artery disease. J Am Coll Cardiol 2011;58(12):1211–8. Todos esses dados foram traduzidos na incorporação da fisiologia invasiva à conduta na maioria dos laboratórios de cateterismo.

Nos centros cirúrgicos, no entanto, o bypass de lesões angiográficas acima de 50% de diâmetro é ainda o procedimento padrão. O estudo FAME (do inglês Fractional Flow Reserve versus Angiography for Multivessel Evaluation ou RFF versus angiografia para avaliação de múltiplos vasos) mostrou que somente 35% das lesões com 50-70% de diâmetro de estenose eram hemodinamicamente significativas,88 Tonino PAL, Fearon WF, De Bruyne B, Oldroyd KG, Leesar MA, Ver Lee PN, et al. Angiographic Versus Functional Severity of Coronary Artery Stenoses in the FAME Study. Fractional Flow Reserve Versus Angiography in Multivessel Evaluation. J Am Coll Cardiol 2010;55(25):2816–21. mas os cirurgiões ainda optam pelo bypass dessas lesões com a justificativa de prevenir contra possível progressão da aterosclerose. No entanto, estudos demonstraram que a revascularização de lesões sem relevância hemodinâmica resulta não só na falência precoce do enxerto, como na progressão mais rápida da doença arterial coronariana na artéria nativa.99 Harskamp RE, Alexander JH, Ferguson TB, Hager R, MacK MJ, Englum B, et al. Frequency and Predictors of Internal Mammary Artery Graft Failure and Subsequent Clinical Outcomes. Circulation. 2016;133(2):131–8.

10 Manninen HI, Jaakkola P, Suhonen M, Rehnberg S, Vuorenniemi R, Matsi PJ. Angiographic predictors of graft patency and disease progression after coronary artery bypass grafting with arterial and venous grafts. Ann Thorac Surg. 1998;66(4):1289–94.
-1111 Botman CJ, Schonberger J, Koolen S, Penn O, Botman H, Dib N, et al. Does Stenosis Severity of Native Vessels Influence Bypass Graft Patency? A Prospective Fractional Flow Reserve-Guided Study. Ann Thorac Surg. 2007;83(6):2093–7. Ainda, um estudo prévio1212 Toth G, De Bruyne B, Casselman F, De Vroey F, Pyxaras S, Di Serafino L, et al. Fractional flow reserve-guided versus angiography-guided coronary artery bypass graft surgery. Circulation. 2013;128(13):1405–11. mostrou que a CRM guiada por RFF em comparação à guiada por angiografia levou a um menor número de anastomoses de enxertos e de cirurgias com circulação extracorpórea. Todos esses argumentos não têm sido suficientes para convencer os cirurgiões.

A presente metanálise contribui para essa controvérsia. Três ensaios controlados randomizados e dois estudos retrospectivos foram avaliados em conjunto. A redução na mortalidade poderia convencer os cirurgiões cardíacos a utilizar a RFF na tomada de decisão, mas algumas limitações importantes do estudo impossibilitam tal reviravolta: 1) o tamanho pequeno das amostras e consequente baixo número de eventos nos ensaios controlados randomizados; 2) o estudo com o maior número de pacientes tem delineamento retrospectivo, e assim, é sujeito a vieses; 3) a ausência de um seguimento em longo prazo, quando os possíveis benefícios da revascularização completa seriam mais evidentes; 4) a redução na mortalidade relatada por Martins et al.33 Martins J, Afreixo V, Santos L, Fernandes L, Briosa A. Physiology or Angiography-Guided Coronary Artery Bypass Grafting: A Meta-Analysis. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(6):1115-1123. é difícil de ser explicada sem uma redução no infarto do miocárdio e na revascularização de vaso-alvo, e seria mais convincente se uma redução na mortalidade cardíaca também fosse revelada.

Embora o ensaio DEFER44 Zimmermann FM, Ferrara A, Johnson NP, Van Nunen LX, Escaned J, Albertsson P, et al. Deferral vs. performance of percutaneous coronary intervention of functionally non-significant coronary stenosis: 15-year follow-up of the DEFER trial. Eur Heart J. 2015;36(45):3182–8. tenha mostrado uma incidência de infarto do miocárdio de apenas 2,2% em um grupo de pacientes com lesões não significativas com base da RFF após um seguimento de 15 anos, e o estudo recente ISCHEMIA tenha levantado questões sobre os benefícios de qualquer procedimento de revascularização, “colateralização cirúrgica” e “revascularização completa” ainda serão as justificativas de cirurgiões cardíacos até o desenvolvimento de um grande ensaio randomizado com um seguimento em longo prazo, comparando a CRM guiada por RFF com a CRM guiada por angiografia.

Por hora, o “heart team” deve seguir as diretrizes e utilizar a fisiologia coronária antes de se decidir sobre a necessidade de algum tipo de revascularização miocárdica. Se a decisão for pela intervenção coronária percutânea, a RFF ou índices não-hiperêmicos devem ser utilizados para guiar o procedimento. Se a decisão for pela CRM, o benefício da RFF ainda precisa ser comprovado.

  • Minieditorial referente ao artigo: Enxerto de Bypass de Artéria Coronária Guiado por Angiografia ou Fisiologia: Uma Metanálise

Referências

  • 1
    Feres F, Costa RA, Siqueira D, Costa Jr JR, Chamié D SR et al. Diretriz Sobre Intervenção Coronária Percutânea. Arq Bras Cardiol. 2017;109(1 Suppl 1):1-–81.
  • 2
    Neumann FJ, Sousa-Uva M, Ahlsson A, Alfonso F, Banning AP, Benedetto U, et al. 2018 ESC/EACTS Guidelines on myocardial revascularization. Eur Heart J. 2019;40(2):87–165.
  • 3
    Martins J, Afreixo V, Santos L, Fernandes L, Briosa A. Physiology or Angiography-Guided Coronary Artery Bypass Grafting: A Meta-Analysis. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(6):1115-1123.
  • 4
    Zimmermann FM, Ferrara A, Johnson NP, Van Nunen LX, Escaned J, Albertsson P, et al. Deferral vs. performance of percutaneous coronary intervention of functionally non-significant coronary stenosis: 15-year follow-up of the DEFER trial. Eur Heart J. 2015;36(45):3182–8.
  • 5
    Xaplanteris P, Fournier S, Pijls NHJ, Fearon WF, Barbato E, Tonino PAL, et al. Five-Year Outcomes with PCI Guided by Fractional Flow Reserve. N Engl J Med. 2018;379(3):250–9.
  • 6
    Quintella EF, Ferreira E, Azevedo VMP, Araujo D V., Sant anna FM, Amorim B, et al. Clinical outcomes and cost-effectiveness analysis of FFR compared with angiography in multivessel disease patient. Arq Bras Cardiol. 2019;112(1):40–7.
  • 7
    Nam CW, Mangiacapra F, Entjes R, Chung IS, Sels JW, Tonino PAL, et al. Functional SYNTAX score for risk assessment in multivessel coronary artery disease. J Am Coll Cardiol 2011;58(12):1211–8.
  • 8
    Tonino PAL, Fearon WF, De Bruyne B, Oldroyd KG, Leesar MA, Ver Lee PN, et al. Angiographic Versus Functional Severity of Coronary Artery Stenoses in the FAME Study. Fractional Flow Reserve Versus Angiography in Multivessel Evaluation. J Am Coll Cardiol 2010;55(25):2816–21.
  • 9
    Harskamp RE, Alexander JH, Ferguson TB, Hager R, MacK MJ, Englum B, et al. Frequency and Predictors of Internal Mammary Artery Graft Failure and Subsequent Clinical Outcomes. Circulation. 2016;133(2):131–8.
  • 10
    Manninen HI, Jaakkola P, Suhonen M, Rehnberg S, Vuorenniemi R, Matsi PJ. Angiographic predictors of graft patency and disease progression after coronary artery bypass grafting with arterial and venous grafts. Ann Thorac Surg. 1998;66(4):1289–94.
  • 11
    Botman CJ, Schonberger J, Koolen S, Penn O, Botman H, Dib N, et al. Does Stenosis Severity of Native Vessels Influence Bypass Graft Patency? A Prospective Fractional Flow Reserve-Guided Study. Ann Thorac Surg. 2007;83(6):2093–7.
  • 12
    Toth G, De Bruyne B, Casselman F, De Vroey F, Pyxaras S, Di Serafino L, et al. Fractional flow reserve-guided versus angiography-guided coronary artery bypass graft surgery. Circulation. 2013;128(13):1405–11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2021
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