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Uso de plantas medicinais por mulheres negras: estudo etnográfico em uma comunidade de baixa renda* * Extraído da dissertação “Mulheres negras, o cuidado com a saúde e as barreiras na busca por assistência: estudo etnográfico em uma comunidade de baixa renda”, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2013

Resumos

Objetivo

Explorar crenças, valores e práticas relativas ao uso das plantas medicinais entre famílias negras de baixa renda.

Método

Pesquisa etnográfica cujo processo de observação participante foi desenvolvido em uma comunidade de baixa renda da periferia da Cidade de São Paulo. Vinte mulheres negras foram entrevistadas.

Resultados

Dois subtemas culturais, Uso remédios que aprendi a fazer com minha mãe e com os religiosos para cuidar das doenças e Remédios caseiros servem para resolver problemas que não são graves, e o tema cultural Uso remédio caseiro para resolver doenças simples, pois tenho sempre que preciso, é de graça e não precisa de receita médica representam as crenças, valores e práticas relativos ao uso das plantas medicinais entre famílias negras de baixa renda.

Conclusão

O desenvolvimento dessas práticas, que pode estar mascarando vulnerabilidades étnicas e sociais, revela a resiliência das mulheres negras de baixa renda no enfrentamento dos problemas que encontram no processo saúde-enfermidade.

Plantas medicinais; Negros; Antropologia cultural; Saúde da mulher; Pesquisa qualitativa


Objective

To explore beliefs, values and practices related to the use of medicinal plants among low-income black families.

Method

The research method was ethnography and the participant observation process was done in a low-income community in the peripheral area of the City of São Paulo. Twenty black women were interviewed.

Results

Two cultural sub-themes, I do use medicines that I learned to make with my mother and with religious practitioners to care for diseases and Home medicines are to treat problems that are not serious, and the cultural theme I do use home medicines to treat simple diseases because I always have them at my disposal, they are free and I don’t need a medical prescription represent beliefs, values, and practices related to the use of medicinal plants among low-income black families.

Conclusion

The development of such practices, which can hide ethnic and social vulnerability, reveals the resilience of low-income black women in the process of confronting problems during the health-illness process.

Plants, medicinal; Blacks; Anthropology, cultural; Women’s health; Qualitative research


Objetivo

Explorar las creencias, valores y prácticas sobre el uso de las plantas medicinales entre las familias negras de bajos ingresos.

Método

El método de investigación fue la etnografía y el proceso de observación participante fue desarrollado en una comunidad de bajos ingresos en las afueras de la Ciudad de São Paulo. Se entrevistó a veinte mujeres negras.

Resultados

Dos subtemas culturales Uso remedios que aprendí a hacer con mi madre y con los religiosos para cuidar de enfermedades y Remedios caseros se utilizan para resolver problemas que no son graves y el tema cultural Uso remedio casero para resolver enfermedades simples porque tengo todo lo que necesito, es gratuito y no necesita una receta médica simbolizam las prácticas de las mujeres.

Conclusión

Estas prácticas, que pueden estar enmascarando vulnerabilidades étnicas y sociales, ponen de manifiesto la resiliencia de las mujeres negras de bajos ingresos en el confrontamiento de los problemas del proceso salud-enfermedad.

Plantas medicinales; Negros; Antropología cultural; Salud de la mujer; Investigación cualitativa


Introdução

O emprego das plantas medicinais com finalidades terapêuticas possui especificidades entre as famílias afro-americanas, sobre as quais podem incidir também os rituais religiosos praticados com finalidades místicas e curativas(101 Giger JN. Transcultural nursing: assessment & interventions. 6th ed. Philadelphia: Elsevier; 2013-202 White L, Duncan G, Baumle W. Cultural considerations: foundations of basic nursing. São Paulo: Cengage Learning; 2010). Entre as famílias da raça/cor negras brasileiras isso não é diferente; embora os membros dessas mesmas famílias negras desconheçam os aspectos religiosos relacionados ao uso das plantas, essas são amplamente utilizadas e representam práticas de natureza cultural, embasadas em conhecimentos transmitidos de uma geração à seguinte(303 Gomes HHS, Dantas IC, Catão MHCV. Plantas medicinais: sua utilização nos terreiros de umbanda e candomblé na zona leste da cidade de Campina Grade-PB. Rev Biol Farmácia. 2008;1(3):110-29).

O uso de plantas medicinais com finalidades terapêuticas, prática amplamente disseminada na população brasileira, foi regulado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) a partir de 2013(404 Brasil. Ministério da Saúde; Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC n. 18, de 3 de abril de 2013. Dispõe sobre as boas práticas de processamento e armazenamento de plantas medicinais, preparação e dispensação de produtos magistrais e oficinais de plantas medicinais e fitoterápicos em farmácias vivas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet]. Brasília; 2013 [citado 2014 mar. 14]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2013/rdc0018_03_04_2013.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
). Essa Agência definiu planta medicinal como espécie vegetal, cultivada ou não, utilizada com propósitos terapêuticos (404 Brasil. Ministério da Saúde; Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC n. 18, de 3 de abril de 2013. Dispõe sobre as boas práticas de processamento e armazenamento de plantas medicinais, preparação e dispensação de produtos magistrais e oficinais de plantas medicinais e fitoterápicos em farmácias vivas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet]. Brasília; 2013 [citado 2014 mar. 14]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2013/rdc0018_03_04_2013.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
) e criou legislação específica sobre a matéria. Desse modo, os processos de preparo, dispensação e armazenamento dos medicamentos fitoterápicos estão regulamentados no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)(404 Brasil. Ministério da Saúde; Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC n. 18, de 3 de abril de 2013. Dispõe sobre as boas práticas de processamento e armazenamento de plantas medicinais, preparação e dispensação de produtos magistrais e oficinais de plantas medicinais e fitoterápicos em farmácias vivas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet]. Brasília; 2013 [citado 2014 mar. 14]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2013/rdc0018_03_04_2013.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
).

Muitos pesquisadores têm estudado o uso das plantas medicinais, sobretudo no contexto comunitário, cenário onde crenças e valores relativos ao cuidado com a saúde, inclusive o uso dos fitoterápicos, estão profundamente arraigados. Trata-se de práticas embasadas em conhecimentos transmitidos de uma geração a outra, nos âmbitos familiares e sociais, e permanecem restritas aos membros do grupo cultural onde são desenvolvidas(505 Di Stasi LC. Plantas medicinais: verdades e mentiras. São Paulo: Ed.UNESP; 2007-606 Ceolin T, Heck RM, Barbieri RL, Schwartz E, Muniz RM, Pillon CN. Medicinal plants: knowledge transmission in families of ecological farmers in Souther Rio Grande do Sul. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2014 Apr 17];45(1):47-54. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n1/en_07.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n1/en...
).

Convém destacar que os termos negros, população negra ou afrodescendente são utilizados com significado análogo neste estudo e significam que as pessoas ou um grupo de pessoas fazem parte do seguimento populacional brasileiro pertencente à população negra ou afrodescendente. Esses termos são empregados em estudos que focalizam a questão da negritude como categoria de análise étnico/racial. Quando utilizamos esses termos nos referimos também à parcela da população brasileira que se autodeclara preta ou parda, segundo os quesitos de raça/cor disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essas terminologias costumam ser empregadas em razão das similaridades existentes entre os indicadores sociais característicos das duas populações em estudos epidemiológicos(707 Paixão M, Carvano LM. Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2007-2008 [Internet]. Rio de Janeiro: Garamond; 2008 [citado 2014 Mar 15]. Disponível em: http://www.laeser.ie.ufrj.br/PT/relatorios pdf/RDR_2007-2008_pt.pdf
http://www.laeser.ie.ufrj.br/PT/relatori...
). Com base nessa prerrogativa, foi adotada a mesma linha de raciocínio para fazer referência às mulheres que colaboraram neste estudo.

Na perspectiva do planejamento e desenvolvimento da assistência à saúde à comunidade negra, sobretudo considerando as especificidades relativas ao uso de plantas medicinais com finalidades terapêuticas, o conhecimento de tais costumes por parte dos profissionais da saúde assume especial importância(101 Giger JN. Transcultural nursing: assessment & interventions. 6th ed. Philadelphia: Elsevier; 2013-202 White L, Duncan G, Baumle W. Cultural considerations: foundations of basic nursing. São Paulo: Cengage Learning; 2010,808 Leininger MM. Culture care diversity and universality theory and evolution of the ethnonursing method. In: Leininger MM, McFarland MR, editors. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. 2nd ed. Sudbury (CA): Jones Bartlett; 2006). Ao buscar aprofundar esse conhecimento, os profissionais de saúde não podem ignorar a possibilidade de tais práticas de cuidado e cura serem derivadas das dificuldades socioeconômicas que afetam essa parcela da população. Nesse cenário, surge a necessidade de focalizar também as situações de vulnerabilidade a que essas pessoas estão sujeitas no tocante ao uso inadequado das plantas medicinais.

Ao explorar a literatura específica, constatou-se uma lacuna no conhecimento científico relativa às práticas de cuidado e cura desenvolvidas mediante o uso das plantas medicinais entre as mulheres negras. Aspirando contribuir no preenchimento dessa lacuna, foi desenvolvido este estudo para obter respostas ao seguinte questionamento: Quais são as crenças e valores que permeiam as práticas cotidianas das mulheres negras de baixa renda relativas ao uso de plantas medicinais no processo saúde-enfermidade?

Este estudo objetivou explorar as crenças, valores e práticas de mulheres negras brasileiras de baixa renda relativas ao uso das plantas medicinais no cuidado da própria saúde e da saúde dos membros da família.

Método

Trata-se de estudo de abordagem qualitativa, desenvolvida mediante o método etnográfico, apropriado para explorar crenças, valores e práticas desenvolvidas em contextos socioculturais específicos(909 Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC; 2008). Esse método requer o desenvolvimento do processo de observação participante (OP), iniciado com predomínio da observação e sua gradativa substituição pela participação, cada vez mais ativa, nas práticas cotidianas próprias da cultura estudada(808 Leininger MM. Culture care diversity and universality theory and evolution of the ethnonursing method. In: Leininger MM, McFarland MR, editors. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. 2nd ed. Sudbury (CA): Jones Bartlett; 2006).

O estudo foi desenvolvido em um bairro com características de baixa renda, localizado em região periférica da Cidade de São Paulo. A decisão de estudar esse bairro se deveu ao fato de 40% de sua população ser de raça/cor negra(1010 Fundação SEADE. Maior população negra do país [Internet]. São Paulo; 2005 [citado 2014 abr. 17]. Disponível em: http://www.seade.gov.br/produtos/idr/download/populacao.pdf
http://www.seade.gov.br/produtos/idr/dow...
), além do índice elevado de vulnerabilidade social(1111 Fundação SEADE. Índice de vulnerabilidade social [Internet]. São Paulo; 2010 [citado 2014 mar. 14]. Disponível em: http://www.iprsipvs.seade.gov.br/view/pdf/ipvs/principais_resultados.pdf
http://www.iprsipvs.seade.gov.br/view/pd...
) a que seus moradores estão submetidos. A discriminação racial é cada vez mais reconhecida como determinante das iniquidades étnicas e raciais em saúde, com evidente crescimento e forte associação entre discriminação racial e efeitos na saúde de adultos, jovens e crianças(1212 Priest N, Paradies Y, Trenerry B, Truong M, Karlsen S, Kelly Y. A systematic review of studies examining the relationship between reported racism and health and wellbeing for children and young people. Soc Sci Med. 2013;95:115-27-1313 Bastos JL, Faerstein E. Conceptual and methodological aspects of relations between discrimination and health in epidemiological studies. Cad Saúde Pública [Internet]. 2012 [cited 2014 Mar 15];28(1):177-83. Available from: http://www.scielosp.org/pdf/csp/v28n1/19.pdf
http://www.scielosp.org/pdf/csp/v28n1/19...
). O foco deste estudo foram as mulheres, pelo fato de elas geralmente tomarem para si as responsabilidades relativas às práticas de cuidado e cura do processo saúde-enfermidade no contexto familiar e social(1414 Hoga LAK. Illness care at home or in health institutions: the decision process in a low income community. Rev Lat Am Enfermagem. 2008;16(1):115-21).

No desenvolvimento do processo OP, foram anotados dados do cenário cultural, em um diário de campo elaborado com essa finalidade(808 Leininger MM. Culture care diversity and universality theory and evolution of the ethnonursing method. In: Leininger MM, McFarland MR, editors. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. 2nd ed. Sudbury (CA): Jones Bartlett; 2006-909 Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC; 2008). A inserção no cenário cultural e a abordagem das informantes do estudo foram facilitadas pelo fato de uma das pesquisadoras ter residido no local durante 17 anos. Ciente das dificuldades inerentes ao estudo de um cenário cultural por um pesquisador que um dia foi um de seus integrantes, foi destinada especial atenção à manutenção da atitude de estranhamento em relação às práticas cotidianas da cultura(1515 Munhall PL. Nursing research: a qualitative perspective. 4 th ed. Sudbury (CA): Jones and Bartlett; 2007). Por outro lado, essa prévia familiaridade com a cultura estudada possibilitou desenvolver a fase de observação em um tempo breve, tendo sido possível passar para a fase seguinte, de participação ativa nas práticas cotidianas da cultura, e dar início às entrevistas etnográficas com as mulheres residentes no bairro, que se tornaram informantes do estudo.

Informante é a denominação atribuída aos participantes dos estudos etnográficos. Tornam-se informantes gerais os nativos da cultura que demonstram interesse no tema e tenham facilidade para expressar crenças, valores e práticas cotidianas relacionados ao tema estudado. Dentre elas, são eleitas as que se tornam informantes-chave, pessoas que detêm conhecimentos profundos, grande familiaridade e experiência em relação ao tema sob estudo(808 Leininger MM. Culture care diversity and universality theory and evolution of the ethnonursing method. In: Leininger MM, McFarland MR, editors. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. 2nd ed. Sudbury (CA): Jones Bartlett; 2006).

Os critérios de inclusão na pesquisa foram características fenotípicas visíveis de afrodescendência, inclusive a cor escura da pele, independente da tonalidade e gradação, a sua associação ou não com a textura do cabelo e o formato do nariz. Contudo, a autodeclaração como pessoa de raça/cor negra ou preta foi imprescindível.

O conceito de raça adotado nesta pesquisa é o do sentido analítico, reivindicado pela sociologia, que se refere aos discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos remetendo à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, pelo sangue e psicológicas. Neste estudo, o conceito de raça é compreendido como construção social, que, no campo da sociologia, ou das ciências sociais, estuda as identidades sociais na perspectiva da cultura(1616 Guimarães ASA. Como trabalhar com “raça” em sociologia. EducPesqui [Internet]. 2003 [citado 2014 Mar 15];29(1). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v29n1/a08v29n1
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).

A primeira informante foi uma pessoa que pertencia à rede familiar de uma das pesquisadoras. As informantes subsequentes foram sendo incluídas por meio da técnica da bola de neve, em que o entrevistado indica outros potenciais informantes que fazem parte de sua rede social. Trata-se de estratégia pertinente para incluir novos informantes nos estudos etnográficos, além de ser amplamente utilizada em outras modalidades de estudos qualitativos(1717 Polit D, Beck C, Hungler B. Fundamentos de pesquisa em enfermagem: métodos, avaliação e utilização. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2004). Durante o processo de inclusão de novas informantes, teve-se o cuidado de incluir mulheres com características diversas quanto à idade, escolaridade, religião, existência de trabalho remunerado formal ou informal.

Perguntas etnográficas, de caráter descritivo e exploratório, foram empregadas no início das entrevistas, para facilitar a expressão das crenças, valores e práticas cotidianas do grupo cultural. Foram apresentadas as seguintes questões: 1) Fale-me sobre os cuidados com a saúde adotados no seu dia a dia, em relação a você mesma e às demais pessoas que moram com você. 2) Nas situações de enfermidade, o que aprendeu sobre as práticas de cuidado, cura e o uso de plantas para essa finalidade? 3) O que você leva em conta ao cuidar da enfermidade em casa ou acha que é melhor buscar ajuda fora de casa? 4) Quais recursos você procura nesse caso? 5) Diga-me se você já percebeu alguma diferença de tratamento por parte dos profissionais de saúde pelo fato de ser negra.

Antes de dar início às entrevistas, foram obtidos dados relativos à caracterização sociodemográfica, como idade, religião, estado civil, anos de estudo, trabalho, renda, lazer, pessoas com que morava e tempo de moradia no bairro.

A solicitação para ser informante do estudo foi feita para 22 mulheres. Duas entre elas recusaram, alegando inibição relativa ao gravador. Desse modo, foram entrevistadas 20 mulheres, tendo sido três informantes-chave e 17 informantes-gerais. Os parâmetros para entrevistar essa quantidade de mulheres foram a repetição contínua do conteúdo das narrativas, observada a partir da 15ª entrevista, e o alcance da saturação teórica, compreendida como a possibilidade de descrever o tema estudado com abrangência e, sobretudo, profundidade(808 Leininger MM. Culture care diversity and universality theory and evolution of the ethnonursing method. In: Leininger MM, McFarland MR, editors. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. 2nd ed. Sudbury (CA): Jones Bartlett; 2006,1818 Morse J. Qualitative health research: creating a new discipline. Walnut Greek (CA): Left Coast; 2012). A inclusão das 20 informantes possibilitou também alcançar a diversidade necessária em termos de idade, religião, escolaridade e renda.

As entrevistas individuais face a face, realizadas entre agosto e setembro de 2013, foram agendadas pessoalmente ou por telefone e realizadas na residência ou local de trabalho das informantes. Foram respeitadas as preferências das informantes quanto à data, horário e local.

Todas as entrevistas tiveram duração entre 40 minutos e uma hora e dez minutos, foram integralmente gravadas em áudio, transcritas em seu inteiro teor e, na sequência, as perguntas foram suprimidas. A análise das entrevistas foi feita mediante processo indutivo e interpretativo, de modo a possibilitar a construção de subtemas e temas culturais, que simbolizam as práticas de cuidado e cura desenvolvidas por meio de plantas medicinais. Pequenos trechos foram extraídos dos depoimentos originais para exemplificar os principais conteúdos dos subtemas e do tema cultural. Embora as informantes não tenham utilizado exatamente as mesmas palavras para expressar suas experiências, aquelas cujas narrativas foram similares quanto ao tópico focalizado foram identificadas na sequência de cada exemplo, mediante citação dos números sequenciais (I1, I2, I3...), conforme a ordem das entrevistas. Essa estratégia, importante para elucidar os componentes dos subtemas e tema cultural, representa um dos principais aspectos de rigor no desenvolvimento da pesquisa etnográfica(808 Leininger MM. Culture care diversity and universality theory and evolution of the ethnonursing method. In: Leininger MM, McFarland MR, editors. Culture care diversity and universality: a worldwide nursing theory. 2nd ed. Sudbury (CA): Jones Bartlett; 2006).

Outro aspecto de rigor, essencial na pesquisa etnográfica, é a validação dos resultados produzidos junto às informantes do estudo. Desse modo, os títulos dos subtemas e o tema cultural e seus principais conteúdos foram apresentados, na forma esquemática, para as informantes-chave do estudo. Todas reafirmaram a veracidade dos fatos simbolizados nos resultados apresentados.

O projeto de pesquisa foi submetido à análise de um Comitê de Ética em Pesquisa, credenciado junto ao Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), e teve seu desenvolvimento aprovado sob o número 403369.

Resultados

As características do cenário sociocultural

Os 17.314 habitantes do bairro cadastrados pelo Programa de Saúde da Família (PSF) estão distribuídos em 4.772 famílias. Essa quantidade pode estar subestimada, pois muitos moradores não são encontrados nas residências pelos agentes comunitários de saúde, responsáveis pelo cadastramento dos moradores do bairro. Contatou-se a insuficiência de recursos de saúde, tendo em vista que o PSF estabelece a proporção de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) para cada 12 mil habitantes(1919 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Da infraestrutura e funcionamento da atenção básica [Internet]. Brasília; 2012 [citado 2014 mar. 14]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/pnab.pdf
http://189.28.128.100/dab/docs/publicaco...
).

Localizado a uma distância aproximada de 30 km do centro da cidade de São Paulo, morar neste bairro significa ter que fazer longos deslocamentos para conseguir acessar recursos considerados básicos, como os serviços de correios, postos de gasolina, cartórios, agências bancárias, hospitais, pronto socorros, entre outros. O bairro está localizado em uma área de mananciais. Consequentemente, muitos equipamentos sociais não existem no bairro em razão das barreiras impostas pela legislação ambiental. Associam-se, também, as problemáticas relacionadas ao acesso, difícil e perigoso, que é derivado das estradas sinuosas que margeiam o bairro, além do risco eminente de cair na represa, que beira a região.

Quanto à origem das informantes, eram provenientes dos estados da Bahia (1010 Fundação SEADE. Maior população negra do país [Internet]. São Paulo; 2005 [citado 2014 abr. 17]. Disponível em: http://www.seade.gov.br/produtos/idr/download/populacao.pdf
http://www.seade.gov.br/produtos/idr/dow...
), Minas Gerais (505 Di Stasi LC. Plantas medicinais: verdades e mentiras. São Paulo: Ed.UNESP; 2007), Pernambuco (303 Gomes HHS, Dantas IC, Catão MHCV. Plantas medicinais: sua utilização nos terreiros de umbanda e candomblé na zona leste da cidade de Campina Grade-PB. Rev Biol Farmácia. 2008;1(3):110-29) e uma natural de São Paulo. O motivo da migração, quando ainda adolescentes ou adultas jovens, foi o desejo de usufruir de melhores condições de vida em São Paulo. Desse modo, adquirir um imóvel próprio representou ter vencido a especulação imobiliária prevalente na capital paulista, o que significou a possibilidade de se livrar do aluguel e poder sair das favelas, onde muitas residiam antes de chegarem ao bairro. As informantes mais antigas no bairro relataram que, há cerca de quinze ou vinte anos, o local possuía características próximas às das zonas rurais e, no decorrer desse tempo, passou por intenso processo de urbanização, mas sem o devido planejamento urbanístico. Consequentemente, a população sofre também com a escassez de equipamentos de lazer e de mobilidade urbana.

No Quadro 1, estão sintetizadas as características sociodemográficas das informantes-chave e gerais.

Quadro 1
Características sociodemográficas das informantes

Os subtemas e o tema cultural

Subtema cultural 1 – Uso remédios que aprendi a fazer com minha mãe e com os religiosos para cuidar das doenças

O uso de plantas medicinais em receitas caseiras para cuidar da própria saúde e dos demais membros da família foi quase unanimidade entre as mulheres. Estas encaram tais recursos como uma forma de superar uma situação de saúde passível de solução mediante os próprios recursos.

(...) a gente se vira muito com o chá caseiro (I1, I2, I3, I4, I5, I7, I8, I9, I10, I11, I12, I13, I14, I16, I17, I18, I20).

Observou-se que há diferença entre as gerações no que se referiu ao uso de tais recursos. Eram as mulheres com mais idade que recorriam, de modo mais habitual, aos recursos de cuidado e cura aprendidos no contexto doméstico e familiar, inclusive o preparo e uso das plantas medicinais. As mulheres mais jovens, por sua vez, se mostraram mais propensas a buscar recursos de cuidado e cura nas situações de doença nas instituições de saúde.

Há bastante diferença na forma que eu cuido da minha saúde e minha mãe, que é de outra geração. As pessoas mais jovens ficam doentes e vão logo procurar um médico primeiro e os mais velhos falam: Não, eu vou estar bem melhor amanhã. Minha mãe fala: Estou bem, amanhã vou estar melhor e nunca vai ao médico. Minha mãe se benze, se alguém quiser, ela benze também (I17).

As mulheres foram enfáticas ao afirmarem que o uso das plantas medicinais como recurso de cuidado e cura das doenças era uma prática muito mais corriqueira há alguns anos, sobretudo em seus estados de origem, onde o acesso ao sistema de saúde era mais difícil e quase impraticável.

(...) Antigamente, era bem mais, agora é que nem tanto, principalmente no estado onde eu morava antes (I1, I2, I3, I5 I7, I8, I9, I10, I11, I12, I13, I14, I16, I17, I18, I20).

Conhecimentos a respeito dos recursos de cuidado e cura, inclusive o preparo e emprego das plantas medicinais, foram transmitidos de uma geração à próxima no contexto familiar ou por meio dos líderes religiosos, sobretudo os responsáveis pelas pastorais de saúde e terreiros de umbanda.

Eu aprendi sobre as folhas com a minha mãe e com a minha avó. Na época, a minha avó, por parte de mãe. Não tinha esse negócio de médico, era só chá caseiro mesmo. É que eles conheciam todo tipo de folha (I1, I2, I5, I11, I12, I13, I16, I20).

Mulheres cujas religiões eram de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, relataram que o uso de ervas, folhas e banhos feitos com esses elementos representava uma prática corriqueira, empregada cotidianamente para tentar solucionar problemas de saúde. Relataram que algumas pessoas associam fármacos industrializados às receitas elaboradas com ervas e demonstraram preocupação com esse fato, sobretudo os eventuais prejuízos que poderiam provocar sobre as condições de saúde.

Algumas pessoas misturam com medicamento, por exemplo, Citotec®, mas isso é muito forte; quando faz isso, o útero depois não serve mais. Correm o risco de não engravidar mais ou de ter a gravidez de alto risco (I4).

Subtema cultural 2 – Remédios caseiros servem para resolver problemas que não são graves

Os remédios caseiros eram empregados para tentar resolver problemas de saúde considerados simples e sem gravidade, como as gripes e resfriados, tosse, dores abdominais ou estomacais, diarreias e cefaleias. Algumas mulheres até chegaram a mencionar que tais recursos eram utilizados na tentativa de resolver problemas mais graves, como as crises renais, cálculos vesiculares e edemas.

As coisas que se tratam com chás são gripe, dor de barriga, dor de cabeça... sabe, esses dá para manter só na base do chá (I1, I2, I3, I4, I5, I7, I8, I9, I10, I11, I12, I13, I14, I16, I17, I18, I20). Meu marido ficou com uma crise nos rins (...) eu dei um chá de quebra-pedra para ele (I7, I8). Existe uma tal de pata de vaca e há outro cana do macaco que é ótimo, eu tinha um tio que estava para fazer uma cirurgia de pedra na vesícula e daí ele tomou cana de macaco e, quando chegou na hora, ele tinha expelido a pedra (I7, I8).

Em geral, os remédios caseiros eram feitos a partir de plantas cultivadas no próprio quintal ou cedidas pelos vizinhos. Os ingredientes mais populares eram: hortelã, poejo, limão, erva-doce, alho, cebola, guaco, gengibre, mel, boldo, cidreira, capim santo, quebra-pedra, buchinha, cabelo de milho, caroço de abacate, romã, casca de chuchu, manjeroba, pata de vaca, cana do macaco e o carvalho branco. O cultivo das ervas no próprio quintal representou uma forma de facilitar o acesso e o uso desses recursos. Elas podiam colher as ervas bem frescas ou pediam aos vizinhos, que também tinham os seus cultivos. Observou-se ser uma prática comum a existência de vasos com uma grande variedade de plantas medicinais sendo cultivadas dentro da residência ou plantadas no quintal das casas. Os conhecimentos a respeito da indicação de uso das plantas medicinais eram similares entre elas. Tinham o costume de usar chás de hortelã, poejo, limão, erva-doce, alho e cebola para curar gripes e resfriados; guaco, gengibre, limão e mel para curar tosses; o boldo para dores estomacais; e a cidreira e capim santo para melhorar a sensação de nervosismo.

No caso de gripe e resfriado eu faço chá de hortelã, poejo, limão, alho, cebola. Fervo tudo junto com açúcar (I1, I3, I4, I5, I7, I8, I9, I10, I11, I12, I13, I16, I17, I20). O chá de hortelã com poejo é bom para resfriado, principalmente, para crianças. A erva-doce também é boa para resfriado se a criança estiver com peitinho cheio, o chá de erva-doce que é uma beleza! (I1). O xarope de abacaxi é ótimo, tem muita vitamina C, corta a gripe na hora (I10, I11, I14). Para tosse eu faço chá de guaco, gengibre, limão e alho (I5).

Tema cultural – Uso remédio caseiro para resolver doenças simples, pois tenho sempre que preciso, é de graça e não preciso de receita médica

Conhecimentos a respeito do preparo e uso de remédios caseiros foram adquiridos dos próprios ascendentes familiares e no meio social, sobretudo dos líderes religiosos. Desse modo, foi uma prática aprendida e enraizada nos costumes familiares. Embora se trate de costume cujo emprego na vida cotidiana está se tornando cada vez mais escasso, o fato é que as mulheres continuam a usar esse recurso para resolver problemas de saúde considerados de solução relativamente simples. Por se tratar de costume enraizado no cotidiano cultural, o cultivo das plantas medicinais com finalidades terapêuticas permanece entre as práticas familiares que são preservadas.

Eu sou do nordeste e me lembro das histórias que a minha mãe contava. Ela dizia que naquele tempo não existia posto, que os médicos eram todos longe; então, ela cuidava da gente, tratava da gente muito com o remédio caseiro (I10, I12, I16).

É nítido para as mulheres que os remédios caseiros devem ser usados, quando o problema de saúde não é grave e eles são suficientes para solucioná-lo. Destinam grande importância ao fato de os remédios caseiros estarem disponíveis a qualquer momento no próprio domicílio ou poderem ser cedidos pelos vizinhos, representando uma grande via de acesso a eles. Acresce-se o fato de os remédios caseiros não demandarem gastos financeiros. Além de que seu uso não demanda a busca por assistência à saúde institucionalizada, em cuja qualidade pairam desconfianças. Entre as mulheres, existe o entendimento quanto à ordem de uso dos recursos de cuidado e cura, estando em primeiro lugar os remédios caseiros e, na sequência, os recursos institucionalizados, onde se encontram os profissionais de saúde.

Eu tenho algumas plantas aqui no quintal; quando não tenho, peço para alguma vizinha (I1, I3, I4, I5, I7, I8, I9, I10, I11, I12, I13, I16, I17, I20). Sempre primeiro o chá depois o médico. Primeiro a gente tenta chá; aí é que vai procurar um médico. Isso porque é difícil conseguir um médico hoje; vou dar o exemplo daqui, o posto de saúde: se você quiser marcar uma consulta você só vai conseguir para daqui a dois meses (I1).

Sair de casa em busca de assistência médica institucionalizada representa a necessidade de acessar um meio de transporte e seu respectivo custo, além da longa distância que precisa ser percorrida.

Acho que aqui é longe de tudo (...) essa estradinha é uma tortura (I8, I20). Eu particularmente não procuro muito médico, acho que onde moramos é um lugar muito esquecido por vários motivos (I17). Não gosto muito daqui, só estou aqui por que aqui é meu (casa própria); se pudesse escolher, estaria longe, acho que aqui é longe de tudo (...) Essa estradinha é muito ruim (I8).

Esse conjunto de fatores faz com que as mulheres usem remédios caseiros para dar uma solução às situações de enfermidade que consideram ser simples. Acresce-se a facilidade representada pelo livre acesso a eles, que sempre estão disponíveis, sem ônus financeiro, no próprio domicílio ou na vizinhança. Esse conjunto, estratégico no enfrentamento dos problemas que surgem no processo saúde-enfermidade, é, sobretudo, valorizado pela ausência de dispêndios financeiros e de tempo, essenciais para acessar os recursos de assistência à saúde disponíveis nas instituições e poder dar prosseguimento à própria rotina de vida.

Discussão

Os dois subtemas culturais, cujos conteúdos reforçam o tema cultural deste estudo etnográfico, uso remédio caseiro para resolver doenças simples, pois tenho sempre que preciso, é de graça e não precisa de receita médica, sintetizam as crenças, valores e práticas das mulheres negras moradoras da região periférica da Cidade de São Paulo, relativas ao uso de plantas medicinais no cuidado da própria saúde e no cuidado da saúde dos demais membros da família.

As dificuldades de acesso aos equipamentos de saúde, derivadas do isolamento geográfico, que estão associadas às barreiras de natureza subjetiva e racial(2020 Santa Rosa PLF. Mulheres negras, o cuidado com a saúde e as barreiras na busca por assistência: estudo etnográfico em uma comunidade de baixa renda [dissertação]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2013), além da percepção que as mulheres possuem, de que os serviços públicos de saúde oferecem assistência de qualidade insatisfatória, demonstram uma nítida sobreposição de fatores que torna o grupo das mulheres negras moradoras da periferia de São Paulo mais vulneráveis(2121 Ayres JRCM, França Junior I, Calazans GJ, Saletti Filho HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM. Promoção da Saúde: conceitos, reflexões e tendências. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2009. p. 117-39).

Nesse sentido, pesquisadores da temática da vulnerabilidade articulam os conceitos de vulnerabilidade socioambiental e territorial para discutir questões relacionadas à saúde. Eles consideram que as vulnerabilidades socioambientais podem marcar territórios e populações em sua relação com riscos ambientais, intensificando ou agravando os processos saúde-doença(2222 Porto MFS, Pivetta F. Por uma promoção da saúde emancipatória em territórios vulneráveis. In: Czeresnia D, Freitas CM. Promoção da Saúde: conceitos, reflexões e tendências. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2009. p. 207-29). Consideramos que esses conceitos fazem grande sentido no âmbito da saúde coletiva, pois evidenciam e dão o devido reconhecimento à maior vulnerabilidade prevalente em tais territórios, além de dar direcionamento aos gestores para o planejamento das políticas públicas que devem ser direcionadas aos territórios prioritários(2222 Porto MFS, Pivetta F. Por uma promoção da saúde emancipatória em territórios vulneráveis. In: Czeresnia D, Freitas CM. Promoção da Saúde: conceitos, reflexões e tendências. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2009. p. 207-29).

Nesse sentido, o uso de plantas com finalidade terapêutica pode estar mascarando a ausência ou insuficiência de serviços de saúde, fazendo com que a população acesse esses recursos como mecanismos paliativos e alternativos à falta de assistência institucionalizada(2323 Ferreira J, Espírito Santo W. Os percursos da cura: abordagem antropológica sobre os itinerários terapêuticos dos moradores do complexo de favelas de Manguinhos, Rio de Janeiro. Physis Rev Saúde Coletiva. 2012;22(1):179-98). Essas práticas terapêuticas não institucionalizadas, que estão sendo utilizadas pelas mulheres, podem estar relacionadas à percepção existente da baixa qualidade de atendimento à saúde que costumam receber. Esta representa um indício da necessidade de focalizar, com maior profundidade, o tema relativo ao atendimento disponibilizado à população negra por parte do SUS. Dados de pesquisa epidemiológica de nível nacional revelaram que 67% da população atendida pelo SUS são da raça/cor negra. Trata-se de população que possui menos acesso e apresenta percepção mais acentuada da precária qualidade da assistência prestada pelos serviços de saúde(2424 Paixão M, Rossetto I, Montovanele F, Carvano LM. Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010: Constituição Cidadã, seguridade social e seus efeitos sobre as assimetrias de cor ou raça [Internet]. Rio de Janeiro: Garamond; 2011 [citado 2014 mar. 14]. Disponível em: http://www.laeser.ie.ufrj.br/PT/relatorios%20pdf/Relat%C3%B3rio_2009-2010.pdf
http://www.laeser.ie.ufrj.br/PT/relatori...
).

As mulheres apresentaram diferenças em seus modos de agir e pensar diante das situações cotidianas e de saúde, segundo a faixa etária a que pertenciam. Esse achado corrobora os resultados de outro estudo, onde foi observado que mulheres mais velhas tendiam a buscar recursos terapêuticos fora da medicina oficial, especialmente os recursos de cuidado e cura embasados na religiosidade(2323 Ferreira J, Espírito Santo W. Os percursos da cura: abordagem antropológica sobre os itinerários terapêuticos dos moradores do complexo de favelas de Manguinhos, Rio de Janeiro. Physis Rev Saúde Coletiva. 2012;22(1):179-98).

O uso de plantas medicinais na elaboração dos remédios caseiros deve ser respeitado como hábito cultural das pessoas que recebem cuidados da enfermagem, o que também corrobora os resultados reportados em estudos internacionais que focalizaram a diversidade cultural no cuidado da saúde(101 Giger JN. Transcultural nursing: assessment & interventions. 6th ed. Philadelphia: Elsevier; 2013-202 White L, Duncan G, Baumle W. Cultural considerations: foundations of basic nursing. São Paulo: Cengage Learning; 2010). Entretanto, cabe aos profissionais de saúde permanecer atentos à possibilidade de essa prática estar mascarando potenciais vulnerabilidades dos segmentos populacionais que enfrentam dificuldades para acessar o sistema de saúde institucionalizado, derivadas da discriminação racial, socioambiental e geracional.

Estudo realizado com mulheres moradoras em uma comunidade de baixa renda constatou que elas recorrem às plantas medicinais de cultivo doméstico para curar enfermidades, independentemente da origem étnica(1414 Hoga LAK. Illness care at home or in health institutions: the decision process in a low income community. Rev Lat Am Enfermagem. 2008;16(1):115-21). Esse dado aponta para a necessidade de verificar se as mulheres pertencentes a outros segmentos étnico-sociais brasileiros também recorrem às plantas medicinais para as práticas de cuidado e cura. Importa ainda saber se as fontes de conhecimento e as motivações das mulheres para desenvolver tais práticas são similares ou diferentes em relação às encontradas nesta pesquisa. Esses resultados podem dar indícios concretos para a necessidade de adequação sociocultural no desenvolvimento de atividades de promoção e recuperação da saúde mediante o emprego das plantas medicinais, já regulamentadas pela ANVISA no âmbito do SUS.

Conclusão

O uso de plantas medicinais com finalidades terapêuticas, preparadas por meio de receitas caseiras, é amplamente utilizado pelo grupo estudado. Observou-se que são as mulheres com mais idade que empregam esse recurso de cuidado e cura com maior assiduidade. Esses dados indicaram a necessidade de conhecer e considerar as crenças, valores e práticas culturais de cuidado e cura no processo de planejamento e implementação da assistência à saúde e enfermagem.

Observamos, entretanto, a importância de considerar as vulnerabilidades econômicas e socioambientais a que as mulheres negras moradoras das localidades periféricas das grandes cidades estão sujeitas. Por outro lado, devemos levar em conta a grande capacidade de resiliência demonstrada pelas mulheres negras de baixa renda no enfrentamento dos problemas do processo saúde-enfermidade.

São necessários novos estudos focalizando essas questões, pois o conhecimento profundo delas poderá contribuir para o desenvolvimento da assistência de enfermagem socioculturalmente congruente. São conhecimentos importantes para embasar as futuras políticas públicas no âmbito da assistência à saúde. A inclusão de projetos de promoção e recuperação da saúde, mediante o emprego das plantas medicinais, já devidamente regulamentadas pelo SUS, deve ser incentivada e implementada na prática assistencial cotidiana.

  • *
    Extraído da dissertação “Mulheres negras, o cuidado com a saúde e as barreiras na busca por assistência: estudo etnográfico em uma comunidade de baixa renda”, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2013

Agradecimentos

Aos professores Dr. Alessandro de Oliveira dos Santos e Dra. Dulce Maria Senna, pelas valiosas contribuições nas bancas de qualificação e defesa do mestrado. À Profa. Dra. Edna Tomiko Myiake Kato, pelo auxílio nas questões pertinentes às plantas medicinais e à legislação relacionada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2014
  • Aceito
    05 Jul 2014
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