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Sentidos e dimensões do câncer por pessoas adoecidas - análise estrutural das representações sociais* * Extraído da tese: “Representações Sociais do câncer e da quimioterapia para pessoas adoecidas”, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Estadual de Maringá, 2017.

Resumo

Objetivo:

Descrever os conteúdos e a estrutura da representação social do câncer.

Método:

Estudo qualitativo, embasado na Teoria das Representações Sociais, realizado em uma Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia. Para a coleta de dados, empregaram-se questionário de caracterização sócio-ocupacional e clínica e formulário de evocações livres em 100 pacientes com câncer em tratamento quimioterápico e entrevistas em profundidade com 29 deles. A análise foi realizada com auxílio do software EVOC.

Resultados:

Participaram do estudo 100 pacientes. A representação social do câncer possui em seu núcleo central as palavras doença normal, difícil, morte e medo. A aparente ambivalência entre a continuidade da vida e sua finitude como significados estruturadores dessa representação permite estabelecer uma hipótese inferencial que relaciona a doença normal à possibilidade de tratamento, controle e cura do câncer, enquanto o medo da morte permanece no campo representacional atrelado à doença, que possui um tratamento difícil de ser enfrentado.

Conclusão:

As representações sociais do câncer, a partir das inter-relações apresentadas, propiciam reflexões que podem contribuir para o incremento do cuidado individual e social do paciente com neoplasia maligna e sua família, nos serviços de saúde.

Descritores:
Neoplasias; Enfermagem Oncológica; Psicologia social

Abstract

Objective:

To describe the contents and structure of the social representation of cancer.

Method:

A qualitative study based on the Theory of Social Representations, carried out in a High Complexity Care Unit in Oncology. Data collection included a socio-occupational and clinical characterization questionnaire and free evocations form from 100 cancer patients in chemotherapy treatment and in-depth interviews with 29 of them. The analysis was performed using EVOC software.

Results:

One hundred (100) patients participated in the study. The social representation of cancer has the words normal, difficult disease, death and fear in its central nucleus. The apparent ambivalence between the continuity of life and its finitude as structuring meanings of this representation enables establishing an inferential hypothesis that relates normal disease to the possibility of treatment, control and cure of cancer, while the fear of death remains in the representational field linked to the disease, which has a difficult treatment to cope with.

Conclusion:

The social representations of cancer based on the presented interrelationships provide reflections which may contribute to increasing the individual and social care of patients with malignant neoplasm and their family in health services.

Descriptors:
Neoplasms; Oncology Nursing; Psychology Social

Resumen

Objetivo:

Describir los contenidos y la estructura de la representación social del cáncer.

Método:

Estudio cualitativo, fundado en la Teoría de las Representaciones Sociales, llevado a cabo en una Unidad de Asistencia de Alta Complejidad en Oncología. Para la recolección de los datos, se emplearon cuestionario de caracterización socio-ocupacional y clínica y formulario con libre evocación de palabras en 100 pacientes con cáncer en tratamiento quimioterápico y entrevistas en profundidad con 29 de ellos. Se realizó el análisis con la ayuda del software EVOC.

Resultados:

Participaron en el estudio 100 pacientes. La representación social del cáncer tiene en su núcleo central las palabras enfermedad normal, difícil, muerte y miedo. La aparente ambivalencia entre la continuidad de la vida y su finitud como significados estructuradores de dicha representación permite establecer una hipótesis inferencial que relaciona la enfermedad normal con la posibilidad de tratamiento, control y curación del cáncer, mientras que el miedo a la muerte permanece en el campo representativo vinculado a la enfermedad, que tiene un tratamiento difícil de enfrentarse.

Conclusión:

Las representaciones sociales del cáncer, mediante las interrelaciones presentadas, proporcionan reflexiones que pueden contribuir al incremento del cuidado individual y social del paciente con neoplasia maligna y su familia, en los servicios sanitarios.

Descriptores:
Neoplasias; Enfermería Oncológica; Psicología Social

INTRODUÇÃO

O câncer é uma doença crônico-degenerativa, que tem como característica o crescimento desordenado e a propagação rápida, em nível local ou sistêmico(11. Herr GE, Kolankiewicz ACB, Berlezi EM, Gomes JS, Magnago TSBS, Rosanelli CP, et al. Avaliação de conhecimentos acerca da doença oncológica e práticas de cuidado com a saúde. Rev Bras Cancerol. 2013;59(1):33-41.). Por suas condições clínicas e complexidade terapêutica, trata-se de uma patologia socialmente temida, relacionada à finitude no imaginário leigo e profissional desde os primeiros relatos de sua existência(22. Lerner K, Vaz P. "Minha história de superação": sofrimento, testemunho e práticas terapêuticas em narrativas de câncer. Interface (Botucatu). 2017;21(61):153-63.-33. Palacios-Espinosa X, Zani B. Representaciones sociales del cáncer y de la quimioterapiaen pacientes oncológicos. Diversitas Perspect Psicol. 2014;10(2):207-23.). A dificuldade de controle do câncer e seu consequente potencial de letalidade marcaram a história da doença, associando-a a um mal devastador, responsável pela instabilidade do corpo como um todo(44. Ferreira DM, Castro-Arantes JM. Câncer e corpo: uma leitura a partir da psicanálise. Analytica. 2014;3(5):37-71.).

Nesse sentido, as neoplasias são objeto de estigmatização, associadas à morte, desfiguração, deterioração do corpo, sofrimento e dor(22. Lerner K, Vaz P. "Minha história de superação": sofrimento, testemunho e práticas terapêuticas em narrativas de câncer. Interface (Botucatu). 2017;21(61):153-63.). A própria palavra câncer é relacionada às implicações negativas da doença, inclusive sua pronúncia é reprimida por alguns pacientes, em uma tentativa de negá-la ou de afastar-se do sofrimento que ela traz(55. Sette CP, Gradvohl SMO. Vivências emocionais de pacientes oncológicos submetidos à quimioterapia. Rev Psicol UNESP. 2014;13(2):26-31.).

Para as pessoas adoecidas, o câncer pode se constituir em um castigo, punição ou algo que chega para devastar suas vidas. Tais percepções pautam-se, principalmente, nas alterações que a doença e seus tratamentos podem causar, construídas a partir das vivências de pessoas que já enfrentaram seu percurso terapêutico(66. Alcantara LS, Sant'Anna JL, Souza MGN. Adoecimento e finitude: considerações sobre a abordagem interdisciplinar no Centro de Tratamento Intensivo oncológico. Ciênc Saúde Coletiva. 2013;18(9):2507-14.). Depois do diagnóstico, mudanças expressivas na vida do paciente se instalam, de forma que questionamentos sobre o adoecimento, a vida e a morte passam a tomar conta de seus pensamentos de forma crescente, tornando-se mais significativos à medida que os tratamentos são instaurados(55. Sette CP, Gradvohl SMO. Vivências emocionais de pacientes oncológicos submetidos à quimioterapia. Rev Psicol UNESP. 2014;13(2):26-31.).

Estudos que analisaram as representações sociais do câncer evidenciaram dimensões predominantemente negativas pelos os pacientes, que verbalizam principalmente a morte, a dor, o sofrimento, a doença e sua gravidade, além do próprio tratamento quimioterápico, relacionando-os às dificuldades de enfrentamento do câncer(33. Palacios-Espinosa X, Zani B. Representaciones sociales del cáncer y de la quimioterapiaen pacientes oncológicos. Diversitas Perspect Psicol. 2014;10(2):207-23.,77. Leitão BFB, Duarte IV, Bettega PB. Pacientes com câncer de cavidade bucal submetidos à cirurgia: representações sociais acerca do adoecimento e tratamento. Rev SBPH. 2013;16(1):113-40.).

Apesar da forte correlação das neoplasias com a morte e o sofrimento, é necessário pensar em novas formas de significar a experiência da doença na contemporaneidade, que varia nas suas formas de ‘viver, sentir e falar’, de acordo com os atores sociais envolvidos, locais ocupados no espaço e transformações ao longo dos tempos(22. Lerner K, Vaz P. "Minha história de superação": sofrimento, testemunho e práticas terapêuticas em narrativas de câncer. Interface (Botucatu). 2017;21(61):153-63.). No que se refere ao câncer, os tratamentos antineoplásicos foram amplamente desenvolvidos nos últimos anos, o que tem repercutido na sobrevida dos pacientes(88. DeSantis CA, Lin CC, Mariotto AB, Siegel RL, Stein KD, Kramer JL, et al. Cancer treatment and survivorship statistics, 2016. CA Cancer J Clin. 2016;66(4):271-89.) e, possivelmente, nas percepções e construções simbólicas sobre a doença. Diante desse contexto, questiona-se: como as representações sobre o câncer são organizadas no grupo de pacientes na atualidade?

Nesse sentido, este estudo se justifica pela possibilidade de modificação das representações diante de mudanças no contexto social e ambiente ideológico relativo ao objeto. Além disso, a oferta de informação e a consequente construção de representações sociais sobre o câncer e seus tratamentos podem conferir subsídios para a participação do paciente nas decisões terapêuticas durante o curso de sua doença(99. Charles C, Dauchy S, Bungener C. Choix thérapeutiques: s'appuyer davantage sur les representations individuelles des traitements. Bull Cancer. 2013;100(10):999-1005.). A utilização das representações sociais em pesquisas permite o desvelamento da realidade de grupos sociais, abarcando os elementos prescritores de ações e de comportamentos dos grupos sociais no meio que os cerca.

Seguindo essas premissas o objetivo deste estudo é descrever os conteúdos e a estrutura das representações sociais do câncer.

MÉTODO

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo exploratório, descritivo, de abordagem qualitativa, embasado na Teoria das Representações Sociais (TRS), a partir dos pressupostos da Abordagem Estrutural ou Teoria do Núcleo Central(1010. Abric JC. A abordagem estrutural das representações sociais: desenvolvimentos recentes. In: Campos PHF, Loureiro S, organizadores. Representações sociais e práticas educativas. Goiânia: UCG; 2003. p. 37-57.). A TRS é definida como uma forma específica de saber, que tem como função o reconhecimento e a elaboração de comportamentos entre sujeitos mediante as interações que estes apresentam com o meio social, transformando-o, ou seja, quando os indivíduos se reconhecem como parte de um grupo que constrói uma realidade(1111. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2013.).

A TRS(1111. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2013.) é considerada uma grande teoria, a partir da qual surgiram abordagens complementares. Entre estas, a Teoria do Núcleo Central, utilizada neste estudo, possui o propósito de tornar a TRS mais heurística para a prática social e para a pesquisa(1212. Sá CP. Estudos de psicologia social: história, comportamento, representações e memória. Rio de Janeiro: Ed UERJ; 2015. Teoria e pesquisa do núcleo central das representações sociais; p. 209-26.). Por meio desta abordagem, afirma-se que as representações sociais são estabilizadas por um núcleo central (NC), no qual se encontram as significações compartilhadas do objeto em estudo. Em torno deste se organizam os elementos periféricos, que são intimamente relacionados ao núcleo, representando os diversos posicionamentos ante a representação pelo sistema de valores e normas sociais que constituem o ambiente ideológico do grupo e pelas relações que este mantém com o objeto(1212. Sá CP. Estudos de psicologia social: história, comportamento, representações e memória. Rio de Janeiro: Ed UERJ; 2015. Teoria e pesquisa do núcleo central das representações sociais; p. 209-26.).

Cenário

O estudo foi desenvolvido em uma Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (UNACON), localizada no norte do estado do Paraná, com 100 pacientes com câncer em tratamento quimioterápico, a partir dos critérios de inclusão: possuir 18 anos ou mais, estar ciente do diagnóstico de câncer e ter realizado no mínimo 3 meses de tratamento quimioterápico. Foram excluídos os pacientes que tiveram piora do quadro clínico, impedindo-os de se expressarem verbalmente e os que morreram durante o período de coleta de dados.

Coleta de dados

Para a coleta de dados foi aplicado um questionário de caracterização dos participantes, um formulário de evocações livres e entrevistas em profundidade. O questionário de caraterização dos sujeitos foi composto de questões que abordavam características sociodemográficas, ocupacionais e clínicas dos pacientes.

Já o formulário de evocações livres, utilizado a fim de caracterizar a estrutura da representação social, foi aplicado aos participantes por uma única pesquisadora, que os solicitou a expressar as primeiras cinco palavras ou expressões que lhes ocorressem a partir do termo indutor “câncer”, anotando-as na ordem evocada. Essa técnica é capaz de acessar elementos que poderiam ser mascarados em uma produção discursiva, pelo seu caráter de espontaneidade de expressão, o qual permite o alcance do universo semântico acerca do objeto em estudo de maneira mais rápida e acessível(1313. Oliveira DC, Marques SC, Tosoli AM. Análise das evocações livres: uma técnica de análise estrutural das representações sociais. In: Paredes AS. perspectivas teórico-metodológicas em representações sociais. João Pessoa: Ed. UFPB, 2005. p. 573-603.). Ressalta-se que todos os formulários de evocações livres foram preenchidos pela pesquisadora no momento da coleta de dados, não oportunizando aos participantes momentos de reflexão sobre o termo evocado, o que descaracterizaria o método proposto. Os 100 participantes do estudo responderam ao questionário de caracterização e o formulário de evocações livres.

As entrevistas em profundidade foram realizadas com 29 pacientes, selecionados por conveniência entre os 100 participantes das etapas anteriores. O convite foi realizado para aqueles que expressaram o desejo de relatar mais detalhadamente suas percepções e vivências sobre o câncer. A fim de garantir maior privacidade durante as entrevistas, a instituição disponibilizou um consultório médico desocupado nos períodos da manhã, o que proporcionou maior liberdade de expressão aos pacientes e conforto durante as entrevistas. Nestas foi utilizado um roteiro semiestruturado, composto de três blocos temáticos: 1. Representações sociais sobre o câncer e o tratamento quimioterápico; 2. Vida cotidiana do paciente em quimioterapia; e 3. Relações de cuidado estabelecidas com a equipe e o serviço de saúde. As entrevistas tiveram duração média de 30 minutos.

Análise e tratamento dos dados

Na análise dos dados sociodemográficos e clínicos foi utilizada a estatística descritiva, com auxílio do programa Microsoft Excel 2010. As evocações, por sua vez, foram analisadas a partir do software EVOC 2005, que permite a organização do conteúdo da representação, bem como de sua estrutura, a partir da construção do quadro de quatro casas ou análise prototípica. As entrevistas objetivaram revelar a conjuntura semântica das evocações e confirmar as inferências realizadas a partir da análise, possibilitando contextualizar o que é representado pelo grupo nas experiências individuais dos pacientes. Assim, buscou-se nas entrevistas a confirmação das inferências propostas na análise prototípica, contextualizando-as individualmente, além da validação da análise da relação entre os elementos presentes na estrutura representacional.

Aspectos éticos

A presente pesquisa se desenvolveu sob o cumprimento das questões éticas, estabelecidas pela Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012. O projeto foi aprovado pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com seres humanos da Universidade Estadual de Maringá, sob parecer 1.328.979. O anonimato dos pacientes foi preservado a partir de códigos (e1, e2, e3... e100), seguidos de sua idade e diagnóstico.

RESULTADOS

Entre os 100 participantes do estudo, houve predominância do sexo feminino (67) e maior concentração da faixa etária entre 40 e 59 anos da idade (48). Em relação à moradia, 90 residiam com a família, e 74 eram casados ou viviam com companheiro. A maior parte dos sujeitos (50) cursou o ensino fundamental incompleto, somente duas pessoas possuíam ensino superior.

A caracterização sócio-ocupacional dos pacientes após o adoecimento revela um total de 56 pessoas afastadas de sua ocupação anterior ao diagnóstico, 30 foram aposentadas, e apenas 10 continuaram a trabalhar durante o tratamento quimioterápico. Ressalta-se que 38 pacientes relataram uma diminuição na renda individual após o início do tratamento.

Os principais diagnósticos observados entre os pacientes foram: câncer de mama (38), de órgãos digestivos (26) e de órgãos genitais masculinos e femininos (16). A maior parte dos entrevistados (54) realizava tratamento quimioterápico adjuvante, ou seja, em associação com radioterapia ou cirurgia oncológica.

O produto das evocações a partir do termo indutor “câncer” constituiu um total de 428 palavras, entre as quais 116 eram diferentes. A partir desse valor, foi estabelecida a frequência mínima de oito e calculada a frequência média (OME) de 16 para a construção do quadro de quatro casas. Em uma escala de um a cinco, a ordem média das evocações foi de 2,70.

O Quadro 1 apresenta os resultados da análise realizada.

Quadro 1
Quadro de Quatro Casas ao termo indutor “Câncer” entre pacientes com câncer em quimioterapia - Arapongas, PR, Brasil, 2017.

A análise prototípica identifica o provável núcleo central (NC) da representação social, localizado no quadrante superior esquerdo do quadro. Os elementos centrais possuem alta frequência e são mais prontamente evocados, ou seja, são os elementos mais significantes para os sujeitos em estudo. Assim, como possível NC da representação do câncer, foram evocados os termos: doença normal, difícil, morte e medo. Entre estes, os elementos difíceis, morte e medo expressam significados negativos, enquanto o termo doença normal simboliza um elemento positivo ou neutro nesta estrutura representacional. A partir dos conteúdos do NC é possível identificar a presença de dimensões conceituais, imagéticas e atitudinais, que compõem uma representação social.

Na estrutura apresentada, a partir do elemento doença normal, se verifica uma dimensão conceitual por meio da palavra doença, associada a uma dimensão atitudinal, de caráter avaliativo, presente na palavra normal. A evocação difícil pertence também à dimensão atitudinal que evidencia o processo avaliativo dos sujeitos em relação ao processo de adoecimento, e a palavra morte se situa em uma dimensão imagética, estruturando o campo representacional do câncer arraigado à destruição da vida. Por fim, o NC possui uma dimensão afetiva retratada pelo medo, que se vincula à morte e às dificuldades e incertezas causadas pela doença.

Para contextualizar os elementos constantes no NC e suas relações, apresentam-se trechos das entrevistas nos quais aqueles foram empregados. A vinculação do câncer a uma doença normal, o termo mais evocado pelos participantes, provém da ideia de uma patologia passível de tratamento e cura na atualidade, na tentativa de superar sua concepção atrelada à morte:

Agora, eu sei que é uma doença, mas é uma doença tratável, curável. E só cura quem trata, porque se a pessoa já vai lá desanimada e não trata, não cura, e você não vai ver retorno. Então, para mim, o câncer é uma doença curável, tratável. Eu estou levando numa boa. Está sendo normal. Eu nem penso que eu tenho a doença. Eu penso assim, às vezes é como se eu tivesse uma gripe, uma doença mais crônica, como um colesterol, uma diabetes. Mas eu não penso como uma doença trágica, eu levo minha vida normal (e20, 34 anos, mama).

Então o câncer é uma doença que, eu sei que na verdade é uma doença que se fizer o diagnóstico no início é fácil de ser curada, mas que é uma doença maldita, ela é. Matou muita gente (e53, 64 anos, próstata).

Por outro lado, a palavra mais prontamente evocada pelos sujeitos no NC (e em todo o quadro) foi medo, com OME de 1,875, relacionada com o termo morte (OME 2,000). O medo e a morte são presentes nas representações do câncer, a partir da ideia da morte como realidade que permeia o prognóstico da doença, causando medo:

(...) hoje eu ainda fico um pouquinho assustada. Tenho segurança, porque descobrimos cedo, mas, mesmo assim, lá no fundinho tenho um pouco de medo. Não vou falar pra você que não tenho não, porque eu tenho sim. Sabe que tem horas que eu fico pensando. Tem horas que eu penso assim: será que meu psicológico está agindo dentro do que eu sinto no meu coração, de que vai dar certo, vai dar certo? Mas lá no fundo, esse medo... Por isso eu acho que eu tenho esse medo, a gente tem um pouco de medo, de receio (e22, 52 anos, mama).

Medo de morrer todo mundo tem, eu não vou falar: ― Ah, eu não ligo se eu morrer. Então... Mas eu estou tentando lidar da melhor maneira e, pedindo sempre pra Deus, pedindo força (...). Só que quando eu penso que eu pedi para morrer rápido e penso que eu estou com essa enfermidade, daí eu fico com medo. Eu pedi, agora eu vou ter que aguentar (e66, 53 anos, mama).

Já o elemento difícil expressa uma dimensão avaliativa, relacionada ao medo, à busca pela cura, permeada pelo tratamento e todos os seus percalços, como pode ser observado nos discursos:

Difícil, muito difícil. Aterrorizador... mas tem que procurar a cura. Penso em tantas coisas... é uma realidade que você tem que enfrentar, que você tem que vencer. Uma luta difícil, porém necessária... que tem que chegar ao objetivo final, que é a cura. Pelo menos tentar, com todas as garras (e4, 58 anos, mama).

(...) é uma doença difícil, tem tratamento, é difícil o tratamento, mas tem que fazer, tem que correr atrás, tem que se esforçar. A gente pensa... Quando você não tem e você vê parece que é pior do que quando você tem e vê outras pessoas falarem. Parece que é mais associado pra mim, mais relevante. Eu entendo melhor agora (e41, 19 anos, ovário).

No quadrante inferior esquerdo se alocam os elementos da zona de contraste, que possuem baixa frequência (menor que 16) e ordem de evocação inferior à média (2,70). A tríade encontrada a partir dos elementos assusta-negação-tristeza compõe dimensões negativas da representação e reflete a adaptação social e psicológica dos pacientes ante seu diagnóstico. Esse quadrante tem como significado articulador a negação, atitude que permeia a fuga de pensamentos negativos, do sentimento de tristeza e do susto causado pelo diagnóstico, como revelam os pacientes:

Mas não fico pensando em doença, só que também não escondo: se a pessoa perguntar eu falo, não sou de ficar escondendo. Não vou entrar em depressão por causa disso não, de ficar trancada dentro do quarto, trancada dentro de casa, debaixo das cobertas, eu não! (e40, 42 anos, reto).

Eu não tenho por que demonstrar tristeza e coisa. Tem que tratar, então o que adianta eu ficar chorando, lamentando, então... (e13, 54 anos, cabeça e pescoço).

Olha, o câncer não me assusta em nada, eu não esquento a cabeça. A gente sabe que é uma doença grave, uma doença traiçoeira, vamos dizer. Mas eu não esquento, eu não me preocupo nem um pouco. Está nas mãos de Deus e dos médicos. Eu não me preocupo de jeito nenhum, quando eu soube, eu não me abalei (e84, 66 anos, mama).

Observando o plano cartesiano que dá origem ao quadro de quatro casas, tem-se à direita da ordenada a primeira e a segunda periferias da representação, localizadas nos quadrantes superior e inferior direito, respectivamente, compondo o sistema periférico. Esses elementos são mais flexíveis, exercem a função de defesa da representação contra mudanças, intimamente relacionados ao NC, pois comportam os diferentes posicionamentos presentes na representação. Os termos constantes da primeira periferia possuem alta frequência (≥ 16) e ordem média de evocação igual ou maior a 2,70, e é formado neste estudo pelas palavras Deus, tratamento e cura. O termo Deus foi o mais frequente e prontamente evocado neste quadrante, seguido de tratamento e cura, todos inter-relacionados pelos pacientes. A partir dos discursos, é possível demostrar que a cura só pode ser alcançada com o tratamento ou com a ajuda de Deus, quando não, pelas duas forças em união para chegar ao objetivo final: a ausência de doença.

Eu acredito, Deus deixou os médicos pra isso, se não ele não teria deixado os médicos pra fazer o tratamento. Agora porque eu me sinto curada, eu não vou fazer o tratamento? Então tem que continuar, tudo são etapas, tem que ser seguido, eu não desisto do tratamento (e23, 47 anos, mama).

(...) é isso que me faz... Saber que eu vou ser curada. Que eu falei que qualquer coisa pode me matar, mas o câncer não vai, porque eu confio no Deus que eu sirvo. Então, eu acho assim, se o pensamento da gente e o que sai da boca da gente tem força, então eu estou curada. Então é nisso que eu acredito, e é só uma fase, vai passar (e25, 52 anos, mama).

Hoje a gente vê que não é o fim do mundo, que tem muita gente que se cura, muita que fez o tratamento e hoje está bem, está tudo tranquilo, então hoje eu vejo assim (e85, 51 anos, mama).

Já a segunda periferia é composta de elementos mais próximos do cotidiano e também protegem a formação representacional. São os elementos menos frequentes e não prontamente evocados, com frequências abaixo de 16 neste estudo, sendo eles: família, luta, esperança e dor.

A família, a luta e a esperança se relacionam como estratégias positivas utilizadas pelos pacientes a fim de se protegerem contra os danos que a doença pode lhes causar. Ressalta-se a família como elemento com maior número de evocações na 2ª periferia, ao considerar seu papel como fonte de apoio e cuidados do paciente com câncer, no contexto de enfrentamento da doença:

Mas todos os dias de manhã eu vou ver minha família, depois volto pra casa, eles moram no sítio. Então, só de ver eles já fica tudo bem. Agora mesmo meu irmão ligou pra mim, faz pouquinho tempo, então já fica tudo bem (e1, 54 anos, orofaringe).

(...) a família inteira muda. Muda, todo mundo muda. Começam a perceber mais a gente, a notar mais a gente, a dar mais carinho pra gente, aquele excesso de carinho. E a gente também com eles, começa a ter mais paciência (e85, 51 anos, mama).

Nesse cenário, a luta é o elemento atitudinal da segunda periferia, que representa uma maneira positiva de se comportar diante da facticidade do câncer, estabelecendo um posicionamento ativo em relação à doença, como relatam os pacientes:

Então, se tem o tratamento, a gente tem que lutar e sair dessa. Tem tanta gente que sai, então a gente tem que lutar. Muita gente sai, aqui mesmo, hoje mesmo conversando com uma menina, faz 11 anos que ela fez a quimioterapia, e tem um menininho de 2 anos, então isso anima. É que quando a gente está fazendo o tratamento a gente fica muito... Mas tem que lutar, tem tratamento, então tem que lutar até o último minuto de vida (e67, 45 anos, tireoide).

Porque o diagnóstico... A gente não espera, mas a gente tem que lutar. Mas depois a gente vai vendo, que tem pessoas piores que a gente, passando por problemas piores que a gente (e98, 26 anos, linfoma).

A esperança, pertencente à dimensão afetiva da construção representacional, foi o termo mais prontamente evocado na segunda periferia, e se reflete na confiança e otimismo durante o tratamento contra o câncer, de forma a permitir que o paciente vislumbre a sua cura.

Esperança, muita esperança. A gente sabe que a ciência está avançada, e que existem muitos casos de cura com um prolongamento de vida saudável. Porque daqui uns 4, 5 anos ela pode voltar de novo e esse tratamento não servir, tem muitas pessoas que acontecem isso (e66, 53 anos, mama).

(...) eu sou um ser humano falho também, então não seria normal eu te falar que está tudo ok, não seria. Mas a gente tem que lutar. Mas é isso, enquanto há vida, há esperança (e25, 52 anos, mama).

O termo dor é o único que se apresenta totalmente negativo à direita do plano cartesiano, revelando-se como consequência associada ao câncer, capaz de impactar substancialmente o cotidiano do paciente:

(...) mudou é que eu tiver que largar o serviço, não posso fazer nada, não posso trabalhar, fico com dor... (e15, 34 anos, esôfago).

Você vê, eu não faço quase nada por causa do mal-estar, mas daí com dor você também não faz nada, porque daí você fica em um desespero, a dor te enlouquece. Eu tenho medo de ficar mal-humorada, é melhor ficar quietinha do que ficar... Esse é o maior problema assim (e25, 52 anos, mama).

A análise interpretativa do quadro de quatro casas, em associação aos discursos dos pacientes, fomenta a discussão deste estudo, além das bases já construídas sobre esse saber.

DISCUSSÃO

O estudo do câncer, enquanto objeto de representação social, possui embasamento teórico e resultados incontestes para cada momento e realidades já estudados(33. Palacios-Espinosa X, Zani B. Representaciones sociales del cáncer y de la quimioterapiaen pacientes oncológicos. Diversitas Perspect Psicol. 2014;10(2):207-23.,77. Leitão BFB, Duarte IV, Bettega PB. Pacientes com câncer de cavidade bucal submetidos à cirurgia: representações sociais acerca do adoecimento e tratamento. Rev SBPH. 2013;16(1):113-40.,1414. Rodríguez AMC, Palácios-Espinosa X. Representaciones sociales del câncer y de la quimioterapia. Psicooncología. 2013;10(1):79-93.). No entanto, novas imagens, conceitos ou atitudes podem ser associados a uma representação, de forma a integrar diferentes conformações que afetam o objeto a partir do grupo social estudado. Cada elemento representacional é importante durante a assistência à saúde do ser humano, considerando a complexidade que se instala no cotidiano de um ente adoecido, tanto no contexto individual como no social.

Neste estudo, a presença do termo doença normal no NC da representação social agrega um elemento positivo ou neutro à construção avaliativa sobre o câncer, até então negativa em estudos realizados sobre o tema(33. Palacios-Espinosa X, Zani B. Representaciones sociales del cáncer y de la quimioterapiaen pacientes oncológicos. Diversitas Perspect Psicol. 2014;10(2):207-23.,77. Leitão BFB, Duarte IV, Bettega PB. Pacientes com câncer de cavidade bucal submetidos à cirurgia: representações sociais acerca do adoecimento e tratamento. Rev SBPH. 2013;16(1):113-40.,1414. Rodríguez AMC, Palácios-Espinosa X. Representaciones sociales del câncer y de la quimioterapia. Psicooncología. 2013;10(1):79-93.). A aparente ambivalência retratada no NC desta representação, que coloca em contraste a continuidade da vida, pelo elemento doença normal e sua finitude, a partir do termo morte, traz à luz uma hipótese inferencial que relaciona a doença normal ao tratamento e à cura, elementos estes presentes na 1ª periferia.

A partir dessa reflexão, é possível afirmar que a referência à doença normal é relacionada à possibilidade de tratamento, controle e cura do câncer. Pode-se considerar o termo doença normal como uma construção social recente, ou seja, possivelmente se trata de nova avaliação do câncer, que passa a ser associado a resultados positivos, a partir de processos terapêuticos que visam à cura da doença.

De fato, atualmente a incurabilidade do câncer não é tão expressiva como outrora: houve um avanço importante no que tange ao diagnóstico e aos tratamentos para variados tipos de neoplasias, aumentando a sobrevida desses pacientes de maneira progressiva(1515. Nascimento FB, Pitta MGR, Rêgo MJBM. Análise dos principais métodos de diagnóstico de câncer de mama como propulsores no processo inovativo. Arq Med. 2015;29(6):153-9.).

A partir dessa análise, os termos medo e morte, também presentes no NC desta representação, podem expressar condições relativas ao câncer que se construíram no decorrer da história da doença. Diante disso, é possível apoiar a hipótese de que esses elementos estão presentes na memória coletiva relacionada às neoplasias, observados principalmente no passado e que ainda intimidam os pacientes que convivem com o câncer.

Tal inferência se ampara em um estudo sobre o status da memória na estrutura das representações sociais, a partir do qual o autor assegura que uma das características do NC seria a marcação da memória coletiva de um grupo, reflexa de seus valores e condições sócio-históricos(1616. Sá CP. O núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes; 1996. A teoria do núcleo central das representações sociais; p. 51-98.), como possivelmente ocorre na estrutura apresentada. Vale lembrar que os termos medo e morte já foram associados às representações do câncer em outros estudos, o que reafirma sua permanência enquanto conteúdos participantes da representação do câncer(33. Palacios-Espinosa X, Zani B. Representaciones sociales del cáncer y de la quimioterapiaen pacientes oncológicos. Diversitas Perspect Psicol. 2014;10(2):207-23.,77. Leitão BFB, Duarte IV, Bettega PB. Pacientes com câncer de cavidade bucal submetidos à cirurgia: representações sociais acerca do adoecimento e tratamento. Rev SBPH. 2013;16(1):113-40.).

Corroborando tal inferência, um estudo sobre as representações sociais do câncer afirma que o estigma relacionado à doença tem passado por diversas mudanças ao longo da história: as neoplasias, que anteriormente eram fatais, agora podem se moldar como uma patologia crônica, mesmo que suas características epidemiológicas e terapêuticas favoreçam representações sociais negativas sobre ela. Apesar de uma sutil desvinculação do estigma atrelado à morte, o câncer ainda significa uma ameaça aos pacientes e possui o poder de afetar o bem-estar de pessoas adoecidas(1717. Knapp S, Marzilian A, Moyer A. Identity threat and stigma in cancer patients. Health Psychol Open. 2014;1(1):2055102914552281.).

Assim, no que se refere ao medo, considera-se sua associação com a angústia e a ameaça, relativos ao adoecimento por câncer, assim como ao desafio da doença, ao atentado contra a vida e ao inesperado, inclusive se mencionou o fato de não se querer ouvir a palavra câncer e nem conhecer seu significado(33. Palacios-Espinosa X, Zani B. Representaciones sociales del cáncer y de la quimioterapiaen pacientes oncológicos. Diversitas Perspect Psicol. 2014;10(2):207-23.). O medo do câncer é sentimento presente na sociedade, em maior grau entre pessoas já diagnosticadas com a doença, mas também prevalente na população geral(1818. Nelissen S, Beullens K, Lemal M, Van den Bulck J. Fear of cancer is associated with cancer information seeking, scanning and avoiding: a cross-sectional study among cancer diagnosed and non-diagnosed individuals. Health Info Libr J. 2015;32(2):107-19.).

Ademais, o câncer se relaciona ao que é difícil, pois possui um fardo simbólico relacionado ao sofrimento, que se associa à dificuldade de controle da doença e de sobrevida a partir do diagnóstico(22. Lerner K, Vaz P. "Minha história de superação": sofrimento, testemunho e práticas terapêuticas em narrativas de câncer. Interface (Botucatu). 2017;21(61):153-63.). Além disso, o tratamento antineoplásico é complexo e imbricado em peculiaridades, as quais repercutem em novas dificuldades, exigindo persistência na busca pelo bem-estar cotidiano(1919. Milagres MAS, Mafra SCT, Silva EP. Repercussões do câncer sobre o cotidiano da mulher no núcleo familiar. Ciênc Cuid Saúde. 2016;15(4):738-45.). Nesse sentido, a partir do NC da representação, é possível inferir que o câncer, apesar de ser considerado como uma doença normal pelos pacientes, ainda carrega em si o medo da morte e possui um tratamento difícil de ser enfrentado.

Os elementos presentes na zona de contraste - assusta, negação e tristeza - reafirmam o medo, presente no NC, por meio do termo avaliativo assusta, além de complementar os termos difícil e morte mediante o elemento funcional tristeza. A zona de contraste não demonstrou disparidade em termos de novos significados em comparação aos outros quadrantes, reservando a sua função de reforçar as demais dimensões presentes, especialmente no núcleo central.

Nesse sentido, a tríade encontrada na zona de contraste a partir dos elementos assusta-negação-tristeza compõe dimensões negativas da representação e reflete a resistência dos pacientes frente ao seu diagnóstico. Esse quadrante tem como elemento articulador a negação, termo de natureza atitudinal que expressa o desejo de não pensar ou falar sobre a doença e a fuga de sentimentos que causam sofrimento aos pacientes. Pode-se inferir que, durante o adoecimento por câncer, nega-se a gravidade da doença como forma de enfrentá-la, o medo da morte, a dor e a tristeza, na tentativa de reforçar a concepção do câncer como uma doença normal. Assim, o termo doença normal pode ser reforçado pela negação, ou seja, o paciente reafirma o câncer como doença normal em seu viver, a fim de negar os sofrimentos associados à vivência da doença.

Seguindo esse raciocínio, a literatura revela que existe uma relação entre estigmas e comportamento social(2020. Palacios-Espinosa X, Zani B. La stigmatisation de la maladie physique: le cas du cancer. Psycho Oncol. 2012;6:189-200.). No caso do câncer, construíram-se estigmas sobre a doença a partir de várias ideias preconcebidas, que podem explicar comportamentos de confronto do paciente, como o uso de eufemismos para designar a doença, os quais auxiliam a ressignificar o câncer, afastando-o dos sentidos de pena ou medo a ele associados socialmente(2020. Palacios-Espinosa X, Zani B. La stigmatisation de la maladie physique: le cas du cancer. Psycho Oncol. 2012;6:189-200.).

No tocante ao sistema periférico, a análise dos elementos apresentados reitera a aplicabilidade do sistema, que possui as funções de concretização, regulação e defesa(1010. Abric JC. A abordagem estrutural das representações sociais: desenvolvimentos recentes. In: Campos PHF, Loureiro S, organizadores. Representações sociais e práticas educativas. Goiânia: UCG; 2003. p. 37-57.). A concretização resulta da ancoragem de cada representação para a realidade concreta, a fim de torná-la compreensível e transmissível. Já a regulação integra informações novas ou transformações do meio ambiente, pois os elementos periféricos são móveis e evolutivos dentro das representações. A função de defesa tem o objetivo de lidar com contradições, que são toleradas pelo sistema periférico a partir de sua transformação, a fim de proteger o NC(1010. Abric JC. A abordagem estrutural das representações sociais: desenvolvimentos recentes. In: Campos PHF, Loureiro S, organizadores. Representações sociais e práticas educativas. Goiânia: UCG; 2003. p. 37-57.).

Na primeira periferia, destaca-se a presença da tríade cura, Deus e tratamento. Esse quadrante se centraliza no alcance da cura do câncer a partir de duas vertentes que não se opõem: o conhecimento científico voltado ao tratamento e a crença em um ente superior, expressa pela fé e religiosidade (Deus). Nesse sentido, o termo cura centraliza o entendimento da primeira periferia, ou seja, a cura pode ter seu caráter funcional apoiado tanto na crença em uma entidade superior (Deus), a partir da restauração da saúde por meios não tangíveis, como também pela prática do tratamento, baseado em preceitos terapêuticos e tecnológicos. Nesse sentido, a cura do câncer pode ser alcançada como consequência da ação do tratamento e/ou de Deus na luta contra a doença e a morte.

A presença de Deus e da espiritualidade já foi revelada em outros estudos sobre o tema(33. Palacios-Espinosa X, Zani B. Representaciones sociales del cáncer y de la quimioterapiaen pacientes oncológicos. Diversitas Perspect Psicol. 2014;10(2):207-23.), no quais os autores afirmam que o pensamento e a evocação de um ente superior possuem valor para os pacientes adoecidos, auxiliando-os inclusive a entender melhor o diagnóstico a partir de explicações sobre o momento por eles vivenciado. Assim, os pacientes podem agarrar-se a milagres ou incumbir-se de uma missão de vida, com finalidade espiritual ou divina(33. Palacios-Espinosa X, Zani B. Representaciones sociales del cáncer y de la quimioterapiaen pacientes oncológicos. Diversitas Perspect Psicol. 2014;10(2):207-23.). Essas estratégias auxiliam o enfrentamento da doença e conferem alento e esperança aos pacientes adoecidos, além de conferir forças para a luta contra o câncer.

Verifica-se, ainda, que a dupla crença na cura, alcançada por obra divina e tratamento clínico, é reforçada pela esperança, elemento presente na segunda periferia, que se ampara tanto no conhecimento médico como na fé em Deus. Nesse sentido, a esperança, apesar de muitas vezes se fundar em meios não tangíveis, se constitui em estratégia importante no enfrentamento do câncer. A esperança se baseia não somente na cura, mas também na perspectiva da temporalidade, no sentido de se ter um “prolongamento de vida saudável”, como se observa nos discursos. Cabe, portanto, à equipe de saúde auxiliar o paciente a manter em níveis elevados a esperança durante o curso do câncer, ao mesmo tempo em que oferece subsídios para a informação assertiva sobre a doença e o prognóstico, auxiliando-o a lidar com as incertezas do percurso terapêutico(2121. Borneman T, Irish T, Sidhu R, Koczywas M, Cristea M. Death awareness, feelings of uncertainty, and hope in advanced lung cancer patients: can they coexist? Int J Palliat Nurs. 2014;20(6):271-7.).

A segunda periferia traz o termo luta, um elemento atitudinal que representa uma maneira positiva de se comportar ante a facticidade do câncer, estabelecendo um posicionamento ativo em relação à doença. A luta é capaz de organizar o cotidiano dos sujeitos durante o tratamento, motivados pela esperança na cura. Além disso, o meio social espera que o paciente adoecido se posicione diante dos recursos que possui para enfrentar o câncer, o que pode ser reforçado quando o ser humano passa a lutar contra a doença(33. Palacios-Espinosa X, Zani B. Representaciones sociales del cáncer y de la quimioterapiaen pacientes oncológicos. Diversitas Perspect Psicol. 2014;10(2):207-23.). Assim, a luta se associa à esperança, no sentido de que se constitui em uma atitude motivada pelo desejo da cura, ou seja, a luta nasce a partir da esperança na cura.

Nesse cenário, o apoio e o foco do pensamento na família e nos filhos são elementos importantes para a construção representacional desses pacientes. Tal condição revela avaliações positivas da família no contexto do câncer, no sentido de estar presente nas evocações diante da atribuição social que esta possui, principalmente no que tange ao amparo de um ente querido com a doença. Além disso, a família é também fonte de inspiração para a vida, de forma que os pacientes buscam viver com o pensamento no outro.

A família faz parte de todo o contexto terapêutico associado ao câncer, o que repercute em alterações nas dinâmicas e relações interpessoais e sociais entre seus membros. A vivência familiar ganha novo contexto a partir de mudanças no estilo de vida e preferências, de forma a adaptar escolhas, priorizar a vida dos familiares, assim como agir na tentativa de entender mais os outros e aproveitar o tempo com seus entes queridos(2222. Assis CL, Alves GF. Vivências e estratégias de enfrentamento em uma família com doente crônico com câncer. Rev Psicol Saúde. 2015;7(2):142-51.).

É importante também destacar que a presença do termo dor na periferia representacional indica que este, possivelmente é um sintoma físico e psicológico esperado, a partir do diagnóstico do câncer. A dor é motivo de preocupação para aqueles que realizam o tratamento antineoplásico e para os sobreviventes da doença(2323. Goodwin PJ, Bruera E, Stockler M. Pain in patients with cancer. J Clin Oncol. 2014;32(16):1637-9.). Além disso, a vivência da percepção dolorosa pode envolver tanto disfunções físicas, como crenças, estratégias de enfrentamento e interações sociais do doente(2424. Reticena KO, Beuter M, Sales CA. Life experiences of elderly with cancer pain: the existential comprehensive approach. Rev Esc Enferm USP. 2015;19(3):417-23. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420150000300009.
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)
. Nesse sentido, o sentir dor mostra-se como entrave significativo no cotidiano dessas pessoas, impossibilitando a continuidade da rotina ou a realização de simples afazeres cotidianos.

A construção representacional aqui apresentada é constituída por elementos que permeiam o cotidiano do paciente com câncer, de forma que permite delinear o viver com essa doença. Os conteúdos observados na estrutura representacional permite afirmá-la como sendo uma representação social, considerando a presença dos elementos que estabelecem sua construção pelos sujeitos sociais, a saber: a atitude, a informação e o campo de representação ou imagem(1111. Moscovici S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes; 2013.). Confirma-se, mediante os discursos dos pacientes, os significados presentes na análise prototípica, de forma a contribuir para o entendimento do câncer a partir da ótica daqueles que o vivenciam, fomentando o incremento na assistência à saúde dessas pessoas.

Aponta-se como limitação deste estudo a realização da coleta de dados apenas com pessoas em tratamento quimioterápico e em uma única instituição, com características econômicas, culturais e sociais específicas, o que não permitiu comparações ou generalizações. Além disso, a utilização da análise estrutural e das entrevistas em profundidade podem ter deixado lacunas ou vieses para a interpretação do objeto em estudo. Desse modo, considera-se que a utilização de novas formas de análise para o objeto poderia confirmar ou não a configuração aqui encontrada, sendo importante para a construção de suas representações sociais.

CONCLUSÃO

Neste estudo, foram identificados conteúdos e dimensões que compõem a representação social do câncer por pacientes em quimioterapia, com relação a conhecimentos, imagens, atitudes, sentimentos e memória.

Tal dinâmica estrutural evidenciou uma organização da representação social do câncer afeita à memória da doença, em contraste com sua configuração atual, o que até então não havia sido evidenciado na literatura, assim como a presença de um elemento positivo ou neutro no núcleo central da representação. Esta se organiza por intermédio da memória do câncer, associada ao medo e à morte, ao mesmo tempo em que a severidade terapêutica é avaliada como difícil. Esse cenário diverge da configuração do câncer como doença normal, baseada em sua alta prevalência e na possibilidade de tratamento e cura.

A pesquisa das representações sociais do câncer, a partir das inter-relações apresentadas, pode contribuir para o entendimento da doença sob a ótica dos pacientes que a vivenciam, propiciando reflexões que possibilitem o desenvolvimento profissional na atenção oncológica.

Nesse sentido, este estudo pode se tornar ferramenta de apoio no cuidado da pessoa em tratamento antineoplásico, principalmente no que tange ao incremento do cuidado individual, à desconstrução da negação e do medo da doença, ao manejo da dor e da tristeza e ao auxílio nas dificuldades impostas pelo câncer. Além disso, o apoio social e informativo ao paciente com neoplasia maligna e sua família pode contribuir para o enfrentamento da doença, manutenção da esperança e continuidade do tratamento, a fim de que o câncer de fato seja concebido como uma doença normal.

Acredita-se que estudos sobre as representações sociais do câncer com pessoas em outras fases de tratamento ou pessoas que não possuem o diagnóstico poderiam fomentar a compreensão das implicações do tratamento antineoplásico na construção representacional sobre a doença.

Sugere-se, portanto, a realização de novos estudos no sentido de confirmar a presença de elementos positivos no núcleo central da representação do câncer, a fim de reiterar a estruturação evidenciada.

  • *
    Extraído da tese: “Representações Sociais do câncer e da quimioterapia para pessoas adoecidas”, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Estadual de Maringá, 2017.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2018
  • Aceito
    02 Out 2018
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