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O cuidado da alma no contexto hospitalar de enfermagem: uma análise fundamentada no Cuidado Transpessoal

Resumo

Objetivo:

Desvelar a espiritualidade no processo de cuidado dos profissionais de enfermagem no contexto hospitalar sob as lentes do Cuidado Transpessoal.

Método:

Estudo descritivo-exploratório de abordagem qualitativa realizado com profissionais da equipe de enfermagem em um hospital geral da Bahia, mediante entrevista semiestruturada submetida à técnica de análise de conteúdo e analisada à luz do referencial teórico da Teoria do Cuidado Transpessoal.

Resultados:

A partir dos 16 participantes do estudo verificou-se que a equipe de enfermagem percebe no paciente e na sua família uma demanda de cuidado espiritual. Todavia, embora alguns destes profissionais desenvolvam experiências e sugestões neste contexto de cuidados, motivados, sobretudo, pelo cultivo pessoal da fé e espiritualidade, a maioria demonstra expressiva dificuldade, despreparo e temor em assumir tal assistência.

Conclusão:

Existe necessidade de desenvolvimento de melhores habilidades de interação/assistência espiritual pelos profissionais de enfermagem frente ao desafiador contexto da procura de sentido, fé e esperança mobilizados pela experiência da doença. Destacam-se, como dispositivos oportunos a Sistematização da Assistência Espiritual de Enfermagem e o Cuidado Transpessoal, os quais fornecem subsídios consistentes ao empreendimento do cuidado espiritual.

Descritores:
Cuidados de Enfermagem; Espiritualidade; Hospitais; Cuidados Paliativos

Abstract

Objective:

To unveil spirituality in the care process of nursing professionals in the hospital context under the lens of Transpersonal Caring.

Method:

A descriptive-exploratory study implementing a qualitative approach conducted with professionals from the nursing team in a general hospital in Bahia, using a semi-structured interview submitted to the content analysis technique and analyzed from the perspective of the Theory of Transpersonal Caring theoretical framework.

Results:

There were 16 professionals who participated. It was found that the nursing team perceives the patient and family’s demand for spiritual care, and sometimes even has experiences and suggestions for interventions, especially those which cultivate faith and spirituality, but this does not happen with most of these professionals who demonstrate difficulties, unpreparedness and fear of taking on such care responsibility.

Conclusion:

There is a need to develop better interaction/spiritual care skills by nursing professionals in the challenging context of the search for meaning, faith and hope mobilized by the disease experience. The Systematization of Spiritual Nursing Care and Transpersonal Caring stand out as appropriate devices, which provide consistent subsidies for undertaking spiritual care.

Descriptors:
Nursing Care; Spirituality; Hospitals; Palliative Care

Resumen

Objetivo:

Desvelar la espiritualidad en el proceso de cuidado de los profesionales de enfermería en el contexto hospitalario bajo las lentes del Cuidado Transpersonal.

Método:

Estudio descriptivo-exploratorio del abordaje cualitativo realizado con profesionales del equipo de enfermería en un hospital general da Bahia a través de entrevista semiestructurada sometida a la técnica de análisis del contenido y analizada a la luz del referencial teórico de la Teoría del Cuidado Transpersonal.

Resultados:

Participaron 16 profesionales y se ha verificado que el equipo de la enfermería percibe la demanda del cuidado espiritual del paciente y de la familia, y a veces hasta tiene experiencias y sugerencias de intervenciones sobre todos aquellos que cultivan fe y espiritualidad, lo que no acontece con la mayoría de esos profesionales que presenta dificultades, despreparo y temen asumir tal asistencia.

Conclusión:

Existe necesidad de desarrollo de mejores habilidades de interacción/asistencia espiritual por los profesionales de enfermería frente a lo desafiante contexto de procura de sentido, fe y esperanza movilizados pela experiencia de la enfermedad. Se destacan como dispositivos oportunos la Sistematización de la Asistencia Espiritual a la Enfermería y el Cuidado Transpersonal, que proporcionan subsidios consistentes al desarrollo del cuidado espiritual.

Descriptores:
Atención de Enfermería; Espiritualidad; Hospitales; Cuidados Paliativos

INTRODUÇÃO

Este estudo tem como temática a espiritualidade no contexto hospitalar de cuidado de enfermagem. Ele emergiu das inquietações vivenciadas no “Agrupamento Multidisciplinar de Acolhimento (AMA): ação de ensino-pesquisa-extensão ao cuidado da família que enfrenta o risco de morte hospitalar” e se desenvolveu à luz da Teoria do Cuidado Transpessoal de Watson, a qual se fundamenta em 10 fatores de cuidado: sistema de valores humanístico-altruísta; fé e esperança; cultivo da sensibilidade para si e para o outro; desenvolvimento de confiança no processo cuidado; promoção/aceitação da expressão de sentimentos positivos e negativos; uso sistemático e criativo da ciência; ensino-aprendizagem transpessoal; provisão de um ambiente de apoio mental, social, espiritual; satisfação das necessidades humanas e abertura à dimensão existencial-fenomenológica(11. Rosa W, Estes T, Watson J. Caring science conscious dying: an emerging metaparadigm. Nurs Sci Quart. 2017;30(1):58-64).

Para Watson, o cuidado de enfermagem deve alcançar o outro na sua totalidade corpo-mente-alma. A alma que, neste referencial, se define como espírito, eu interior, essência da pessoa - o que é acessado pelo autoconhecimento por meio de um grau de consciência mais elevado a respeito da força interior. Sua compreensão é ilustrada a partir dos Espelhos Sagrados de Grey, resultante dos estudos de anatomia humana e interligação corpo-mente-espírito, os quais mostram sucessivas imagens se modificando a partir do corpo físico, evoluindo ao nível espiritual. Essas imagens permitem ao espectador ‘espelhar’ a sua própria imagem, experimentando uma ressonância entre o seu ser e a imagem dos espelhos sagrados, criando o sentido de ver dentro de si próprio(22. Watson J. Enfermagem pós-moderna e futura. Lisboa: Lusociência; 2002.).

A espiritualidade comunica o desejo humano por um senso de significado, propósito, conexão e realização através de relacionamentos/experiências. Quando uma doença grave ou sofrimento advém sobre o indivíduo, geralmente desperta o domínio espiritual e desencadeia questionamentos sobre a vida. Deste modo, define-se espiritualidade como aquilo que dá sentido e propósito à existência e convida a modos particulares de estar no mundo em relação aos outros, a si mesmo e ao universo. Alguns também adotam uma religião, o que se distingue de espiritualidade, mas é convergente a esta. Religião é a afiliação a uma comunidade de fé particular que compartilha crenças, rituais, morais e, às vezes, um código de saúde centrado em um poder superior transcendente, frequentemente chamado de Deus(33. Wright LM. Suffering, and spirituality: the path to illness healing. Alberta: Floor Press; 2017.).

Todavia, a espiritualidade é considerada uma referência filosófica que transcende a dimensão da religião e remete ao encontro vivo com o divino, o qual mobiliza um estado interior ‘numinoso’ capaz de vivificar e (re)significar a vivência humana no direcionamento do sentido da vida frente às dificuldades que se colocam no dia a dia(44. Boff L. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana (edição comemorativa dos 20 anos). Petrópolis: Vozes; 2017.).

O cuidado espiritual é compreendido como um processo interprofissional, na medida em que mobiliza interdisciplinarmente procedimentos organizacionais e atitudes pessoais capazes de promover bem-estar espiritual convergente com a saúde do ser cuidado; e bidirecional, pela sua capacidade em desencadear uma resposta emocional reflexiva no cuidador ou enfermeiro que aceita interagir com o outro na dimensão universal da espiritualidades humana(55. Burkhart L, Bretschneider A, Gerc S, Desmond ME. Spiritual Care in Nursing Practice in Veteran Health Care. Glob Qual Nurs Res. 2019;7(6):1-9.). Diante disso, a literatura destaca os enfermeiros como seres profissionalmente e eticamente responsáveis ​​por prover cuidado espiritual direcionado a saúde, através da apropriação prática das evidências produzidas pelas pesquisas na área que apontam a relevância de uma formação curricular adequada para identificar, avaliar e intervir nas necessidades espirituais dos pacientes(66. Caldeira S, Simões Figueiredo A, Conceição A, Ermel C, Mendes J, Chaves E, et al. Spirituality in the undergraduate curricula of nursing schools in Portugal and São Paulo-Brazil. Religions. 2016;7(11):1-9.).

A fé e a espiritualidade aumentam a coragem, a tranquilidade e a confiança para o autocuidado, além de desenvolverem, no indivíduo, serenidade, felicidade autêntica e resiliência capazes de aumentar a qualidade de vida, mesmo no transcurso da doença. No entanto, o cuidado espiritual tem sido muitas vezes negligenciado ou esquecido por enfermeiros e outros profissionais de saúde, o que repercute no fato de ainda serem poucas as publicações sobre sua aplicação na prática de cuidados em saúde(33. Wright LM. Suffering, and spirituality: the path to illness healing. Alberta: Floor Press; 2017.,77. Souza VM, Frizzo HCF, Paiva MHP, Bousso RS, Santos AS. Spirituality, religion and personal beliefs of adolescents with cancer. Rev Bras Enferm. 2015;68(5):791-6.-88. Melo CF, Sampaio IS, Souza DLA, Pinto NSP. Correlação entre religiosidade, espiritualidade e qualidade de vida: uma revisão de literatura. Estud Pesqu Psicol. 2015;15(2):447-64.).

Neste sentido, este estudo visa agregar, ao estado da arte, conhecimentos sobre esta temática que apresenta um movimento de renascimento no cenário de saúde e que, embora possua pesquisas em seu entorno, ainda carece de mais investimentos e investigações na busca de ser mais bem compreendida como interface de cuidados profissionais de enfermagem. Assim, buscou-se explorar o problema: “Como se desenvolve a espiritualidade no processo de cuidado dos profissionais de enfermagem no contexto hospitalar?”, de modo que este estudo teve, como objetivo, desvelar a espiritualidade no processo de cuidado dos profissionais de enfermagem no contexto hospitalar sob as lentes do Cuidado Transpessoal.

MÉTODO

Desenho do estudo

Trata-se de uma pesquisa descritivo-exploratória, com abordagem qualitativa.

Cenário

O estudo foi desenvolvido em um hospital geral do interior da Bahia, durante o horário de descanso, no transcurso do plantão de cada sujeito, em salas privativas dos setores de Terapia Intensiva (Adulto), Clínica Médica e Clínica Cirúrgica, os quais dispõem de 19, 37 e 44 leitos, respectivamente. Os participantes foram 16 profissionais de enfermagem (6 de nível superior e 10 de nível técnico) que atuam na área de assistência hospitalar.

Como critério de inclusão foi observado ter pelo menos um ano de atuação na assistência hospitalar, visando uma experiência mais sólida entre os participantes.

A definição da amostra foi delimitada pela saturação teórica dos dados(99. Sandelowski M, Barroso M. Handbook for synthesizing qualitative research. New York: Springer; 2007.).

Coleta de dados

A coleta de dados envolveu o uso de multitécnicas: uma dinâmica com uso de espelho e uma entrevista semiestruturada simples contendo perguntas discursivas sobre a temática, ambas aplicadas por duas autoras, em dupla, sendo uma psicóloga e uma enfermeira, ambas com conhecimento/experiência em Cuidado Transpessoal. A dinâmica foi escolhida a partir do referencial deste estudo: a Teoria do Cuidado Humano(22. Watson J. Enfermagem pós-moderna e futura. Lisboa: Lusociência; 2002.). A sua utilização visou oportunizar melhor acesso do próprio participante à sua interioridade, viabilizando revelações mais reflexivas do que as oriundas da entrevista semiestruturada. A coleta aconteceu individualmente, em salas privativas no setor de trabalho de cada profissional, de forma a resguardar a privacidade dos participantes. A dinâmica consistiu em oferecer um espelho plano ao participante para que este, olhando a sua imagem, pudesse relatar o que estava vendo no espelho para além do físico. Assim, os profissionais puderam evocar suas vivências hospitalares, expressando sentimentos oriundos da reflexão sobre si mesmos.

Na segunda etapa, ocorreu a entrevista semiestruturada contendo questões elaboradas pelos autores, cujas respostas foram gravadas e posteriormente transcritas para viabilizar a análise. São elas: “Qual a relação entre espiritualidade e saúde, na sua opinião?”; “Como você costuma cultivar a sua própria espiritualidade?”; “Você já percebeu alguma necessidade espiritual de cuidado nos pacientes ou famílias no seu cotidiano de trabalho?”; “Você pode nos relatar alguma forma de cuidado espiritual que você tenha prestado?”; “Que sugestão você pode dar para que o cuidado de enfermagem contemple melhor as necessidades espirituais, previstas inclusive no escopo de possíveis diagnósticos de enfermagem?”

Análise e tratamento dos dados

A técnica de análise dos dados utilizada foi o modelo interativo de conteúdo que segue três passos: a redução dos dados, mediada pela exaustiva leitura e identificação de trechos-chave para responder ao objetivo (codificação); o tratamento dos dados, convergente à organização de categorias e subcategorias explicativas do fenômeno a ser desvelado (estruturação das informações) e a interpretação e verificação das conclusões, atribuição de significado aos dados reduzidos através da formulação de relações (discussão)(1010. Miles MB, Huberman M, Saldaña J. Qualitative data analysis: a methods sourcebook. 3ª ed. Thousand Oaks: Sage; 2014.).

Aspectos éticos

Foram respeitados, conforme versa a resolução nº 466/2012, os valores culturais, sociais, morais, religiosos e éticos dos participantes. Os mesmos foram anuentes à pesquisa por meio de assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido, o que se deu após a aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal da Bahia, campus Anísio Teixeira (Parecer 1.978.943, de 3 de março de 2017). Aos participantes foram atribuídos codinomes de pássaros, codificação utilizada para assegurar o seu anonimato, escolhida por remeter à espiritualidade(1111. Brasil. Ministério da Saúde; Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 466/12. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras pesquisas com seres humanos Internet . Brasília; 2012 citado 2018 nov. 17 . Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes...
)
.

Figura 1 -
Apresentação das categorias e subcategorias do estudo.

RESULTADOS

A análise gerou resultados convergentes em 4 categorias apresentadas na Figura 1:

Categoria I - Entendendo o significado da espiritualidade no contexto hospitalar

A primeira categoria se subdivide nas subcategorias: A espiritualidade como elemento da dimensão humana; e A espiritualidade como elemento que promove saúde.

Na subcategoria A espiritualidade como elemento da dimensão humana, fica evidente que existe, por parte dos profissionais, o reconhecimento da dimensão espiritual humana, com suas necessidades específicas de cuidado, desafiando o profissional a ofertar a assistência ampliada ao encontrar tais demandas.

Na realidade, a gente olha e dentro da gente existem várias coisas (...) o lado mãe, o lado amiga, o lado mulher, o lado religioso também (...). Dinâmica do espelho (Águia).

(...) tá passando por um processo de enfermidade, algum problema, seja ele psicológico ou físico, a primeira parte que a gente busca, que a gente procura refúgio, é a parte espiritual (...) se for ateu ele ainda vai procurar algo ali pra se refugiar (Graúna).

Quando o paciente está grave, a gente vê que todos os familiares apelam para Deus, independente de qual religião (...), fazem barganha, procuram um milagre, vem pastor, vem padre e a família apela para a equipe de saúde e para Deus (Bem-ti-vi).

Na subcategoria A espiritualidade como elemento que promove saúde, os profissionais de enfermagem expressam a compreensão de que o cuidado espiritual promove a melhoria e a recuperação da saúde, admitindo a grande influência e a interdependência que existem entre as dimensões espiritual, física e emocional.

(...) saúde, independente de crença ou religião, é uma questão espiritual. (...) se você busca a Deus, busca uma coisa que você crê, então você melhora (Andorinha).

Eu acredito muito no poder de Deus, da oração, da fé daquela pessoa. (...) O que ele acredita vai interferir em sua saúde e independente de religião, se eu tenho fé em algo que aquilo vai me ajudar, então me ajuda (Canário).

Categoria II - Percebendo a própria espiritualidade no contexto profissional

Esta categoria se subdivide nas subcategorias: Práticas religiosas de cultivo da própria espiritualidade; e Fé pessoal refletindo esperança ao indivíduo enfermo.

A subcategoria Práticas religiosas de cultivo da própria espiritualidade demonstra que os profissionais identificam as particularidades envolvidas nos conceitos de espiritualidade e religiosidade da mesma forma que reconhecem a articulação entre eles. Por outro lado, a aplicabilidade desta compreensão na prática esbarra na influência direta da sua própria espiritualidade e religiosidade, no receio de repercussão negativa, consequente da abordagem direta desses aspectos aos pacientes, e, ainda, na sua formação acadêmica.

[Cultivo minha espiritualidade] através da oração, através da minha crença em Deus (...). Eu tento conversar, ter um relacionamento com Deus. (...) Quando eu vou fazer algum procedimento, eu oro em pensamento, peço a Deus para ajudar que dê certo (Beija-flor).

(...) uma oração coletiva no início do plantão que me ajuda a manter minha conexão durante o dia, aí, mesmo diante das dificuldades do trabalho, a oração inicial me mantém conectada e tranquila (Arara).

A espiritualidade me traz um bem-estar mental, físico e o próprio espiritual. (...) Eu faço minhas orações, e todo domingo procuro ir a minha congregação, e estou querendo até trabalhar em prol dos carentes (...). Todo dia, na unidade, quando eu ponho o pé na porta, falo: Deus tem misericórdia: envia teus anjos para acampar ao meu redor (Sabiá).

Já a subcategoria Fé pessoal refletindo esperança ao indivíduo enfermo demonstra como os entrevistados, por meio de sua fé, compartilham com os pacientes a crença na intervenção divina para o conforto deles, estimulando-os a buscarem alívio e cura.

(...) eu sempre passo pra meus pacientes que eles têm que orar e pedir a Deus força. (...) sempre falo isso: converse com Deus no seu íntimo, ninguém precisa ouvir, ninguém precisa saber que você está conversando com Deus. Ele está lhe ouvindo (Mainá).

Eu estou sempre falando de Deus para quem me dá abertura ou fazendo oração em silêncio. Converso com as pessoas para perceber se elas têm alguma necessidade e aí a gente vai tentando ajudar, fazendo com que eles se fortaleçam no lado espiritual (Arara).

Categoria III - Empreendendo o cuidado espiritual ao indivíduo hospitalizado

Divide-se em subcategorias: Necessidades de cuidado espiritual percebidas no indivíduo e Estratégias sugeridas para o cuidado espiritual de enfermagem. Sua primeira subcategoria, Necessidades de cuidado espiritual percebidas no indivíduo-família, expressa as demandas específicas percebidas pela equipe de enfermagem, relativas ao cuidado espiritual, e compartilha experiências vividas no cotidiano profissional.

Eu percebo uma carência nos pacientes, de receber uma palavra que vem da parte de Deus, e também da parte da família, querendo se agarrar em algo maior. (...) faço oração durante os banhos, aconselho sobre esperança (Pomba).

(...) eu fiz a oração pra ela e depois ela disse que se sentiu melhor, ela disse que do nada se sentiu melhor, porque eu não falei pra ela entendeu? (...) orava sempre por ela. E minha família também (...). Quando você deseja que Deus abençoe alguém, você tá cuidando espiritualmente daquela pessoa (Pardal).

Neste sentido, a subcategoria Estratégias sugeridas para o cuidado espiritual da enfermagem hospitalar vem ao encontro das alternativas e das possibilidades eleitas pelos profissionais como viáveis e oportunas ao cuidado espiritual.

Foram mencionados o uso de palavras de conforto e a leitura de pequenos textos, orações e músicas como intervenções capazes de sarar angústias presentes no interior de cada paciente - estratégias que representam suporte não somente às famílias e aos pacientes, mas também aos próprios profissionais em meio à exaustão do seu dia a dia de trabalho.

(...) às vezes tem em uma só enfermaria um evangélico, outro católico, outro espírita, então tinha que ser algo bem assim leve, um texto bem bonito de algum livro ou até um versículo da bíblia bem curtinho que não falasse sobre religião nenhuma, depois colocava uma musiquinha instrumental que relaxa (...) seria uma terapia bem legal (...) (Pardal).

Assim, ao chegar ao local de trabalho, toda equipe fazer uma oração, pedir a Deus pra melhorar pelo menos um pouco o sofrimento né desses pacientes. (...) vir aqui com o violão, cantar, eles sentem aquela paz de espírito sabe. Teve um dia mesmo que tinha um grupo cantando (...) aí a paciente falou ‘poxa, que coisa linda, isso aí entrou no meu coração’ (Araponga).

Categoria IV - Identificando os nós da relação entre espiritualidade e cuidado

Esta última categoria, que aborda as dificuldades mencionadas pelos entrevistados para o cuidado espiritual de enfermagem no ambiente hospitalar, reuniu as subcategorias: dificuldades pessoais e despreparo profissional.

A subcategoria Dificuldades Pessoais revela o medo do profissional de ofender ou impor suas próprias crenças aos pacientes e familiares durante a tentativa do cuidado espiritual, além de temer não saber lidar com religiões diferentes da sua, expressando ainda sofrimento próprio em face da atmosfera de dor e tristeza típica do ambiente hospitalar.

(...) eu só vejo cansaço, [tenho] vontade de ir embora, vontade de ficar só na minha casa e esquecer que trabalho em hospital desse jeito, eu sinto isso (...) eu tô triste de tanto ver sofrimento (...); você ficar 12 horas ou 24 horas num lugar desses, trancada, só olhando gente morrendo, Ave Maria! Só dor. Você olha pra um lado, o paciente está sentindo dor, olha pro outro, também. É difícil, muito difícil. Dinâmica do espelho (Araponga).

Aqui é um ambiente muito carregado, de muita dor, muitos sentimentos, muitos problemas, é um negócio muito difícil! Eu já sofri muito em relação a isso, porque eu não posso me fechar, mas também não posso me abrir demais; então você tem que ter um equilíbrio muito grande, porque qualquer coisa você deprime. (...) tem hora que realmente é muito pesado (...). Então se você não souber administrar isso, você trava (Pardal).

Para além das dificuldades pessoais, sobrepõe-se o déficit de treinamento e preparo profissional. A subcategoria Despreparo profissional versa sobre a constatação dos entrevistados do despreparo da categoria para o desenvolvimento do cuidado espiritual; afinal, mesmo que pessoalmente o enfermeiro não tenha facilidade de lidar com a espiritualidade do outro, por atuar no contexto de sofrimento, certamente este profissional irá se deparar com necessidades de cuidado desta ordem - o que preconiza um preparo profissional para tal.

Pra poder você passar espiritualidade pro outro você tem que ser preparado espiritualmente e eu não vejo muito a enfermagem preparada. Aí fica difícil (João-de-barro).

Pra mim, é complicado porque eu não consigo chegar e abordar a pessoa pra falar sobre esse assunto (...); esse negócio de religião é complexo, pode acabar criando um conflito, então eu realmente não sei como tratar. (...) (Beija-flor).

[A enfermagem] pode muito pouco nesse sentido, eu acho que seria uma coisa mais voltada para a psicologia que está mais ligada ao subjetivo, enquanto a enfermagem está mais para a prática. (...) Para a enfermagem, eu não vejo muita coisa pra se fazer (Canário).

DISCUSSÃO

Categoria I - Entendendo o significado da espiritualidade no contexto hospitalar

A Organização Mundial de Saúde define a saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades, além de incluir o bem-estar espiritual(1212. World Health Organization. Constitution of the World Health Organization Internet . Geneva: WHO; 2006 cited 2018 Nov 17 . Available from: https://www.who.int/governance/eb/who_constitution_en.pdf
https://www.who.int/governance/eb/who_co...
)
. A espiritualidade traduz-se no fato de o homem ser espiritual e possuir, transitoriamente, um corpo físico. Pesquisas realizadas pelas ciências naturais (física e biologia) têm endossado essa afirmação. O corpo físico é apenas um reflexo do espírito, local onde a pessoa constrói de forma simbólica o sentido de sua vida e busca refúgio frente à vulnerabilidade desencadeada por situações de crise(33. Wright LM. Suffering, and spirituality: the path to illness healing. Alberta: Floor Press; 2017.,1313. Barros Júnior J, Barbosa RS, Luna Neto RTL, Tavares NBF, Freitas KM, Cruz CA, et al. Saúde e espiritualidade: as narrativas profissionais na Estratégia Saúde da Família. Rev Psicol. 2015;26(9):71-82.).

Um estudo alemão com cuidadores profissionais e voluntários definiu a espiritualidade como uma atitude que governa a forma com que as pessoas interagem umas com as outras, o que, para eles, no cenário de cuidados, determina um espírito de compaixão - que pode ser expresso através de pequenos gestos da enfermagem, envolvendo o toque, a sensibilidade e a gentileza, tão especiais em situações de crise como a doença e a finitude. Cuidado que é capaz de preencher as necessidades e os desejos espirituais de pacientes em sofrimento(1414. Walker A, Breitsameter C. The provision of spiritual care in hospices: a study in four Hospices in North Rhine-Westphalia. J Relig Health. 2017;56(6):2237-50. DOI: 10.1007/s10943-017-0396-y.
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.

Acerca disto Watson aponta para a necessidade de ressacralizar a existência humana, o que significa dizer resgatar a dimensão espiritual do ser em um movimento pela unidade antagônica à fragmentação que restringe o foco de cuidados apenas ao corpo. Esta visão incorpora um modelo de cuidado científico que integra uma enfermagem caritas evoluída(22. Watson J. Enfermagem pós-moderna e futura. Lisboa: Lusociência; 2002.). A Teoria do Cuidado Humano, posteriormente chamada de Caritas Process, tem, em seus conceitos basilares, 10 fatores de cuidado, dentre os quais dois aludem à importância da fé profissional: Fator 2: “Estimulação da fé e da esperança, representa a possibilidade de o enfermeiro manter e honrar a fé e a esperança de seu paciente e de sua família; e Fator 10: “Permissão de fatores existencial-fenomenológicos”, ou a aceitação de milagres que requer do profissional abertura aos aspectos espirituais, desconhecidos da dimensão existencial(11. Rosa W, Estes T, Watson J. Caring science conscious dying: an emerging metaparadigm. Nurs Sci Quart. 2017;30(1):58-64).

Assim sendo, os profissionais de enfermagem reconhecem, na Categoria I deste estudo, a importância do Cuidado Espiritual e compreendem ser relevante o investimento pessoal deles em estratégias de aproximação e manejo com a dimensão espiritual, o que segue expresso na Categoria II direcionada ao autoconhecimento espiritual desses profissionais.

Categoria II - Percebendo a própria espiritualidade no contexto profissional

A vida espiritual não é aprendida, o ser humano já se encontra no íntimo dela. Todavia, mesmo as espiritualidades não sendo do domínio das religiões, ambas podem estabelecer uma boa relação. O espírito, nato do ser humano, poderá ser manifesto também pelas práticas religiosas. Neste contexto, a religião tem por função gerar condições para que cada ser humano adepto possa pôr em prática sua imersão no íntimo e estar com o divino(44. Boff L. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana (edição comemorativa dos 20 anos). Petrópolis: Vozes; 2017.).

Assim sendo, capacitar e incentivar enfermeiros para o cuidado espiritual de pessoas doentes e seus familiares tornam-se mais fáceis quando o profissional está conectado com sua própria espiritualidade. Quanto mais autoconhecimento interior e desenvolvimento espiritual tiverem os enfermeiros, mais bem integrados e bem equipados estarão para socorrer e apoiar aqueles que sofrem. A espiritualidade gera reflexão nos profissionais, capaz de estimular sentimentos e comportamentos de competência, confiança e compreensão de seus papéis de forma mais completa, mediante a autoconsciência e o significado de suas ações(33. Wright LM. Suffering, and spirituality: the path to illness healing. Alberta: Floor Press; 2017.,1515. Jun WH, Lee G. The mediating role of spirituality on professional values and self-efficacy: a study of senior nursing students. J Adv Nurs, 2016;72(12):3060-7. DOI: 10.1111/jan.13069
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)
.

A religiosidade, por sua vez, é comprovadamente positiva para a equipe de saúde. Estudos comprovam que sua prática proporciona melhor bem-estar físico ao profissional, aumenta a qualidade de vida no trabalho e favorece a capacidade de relacionamento interpessoal. Ela reflete-se intensamente no entendimento do processo saúde-doença e no relacionamento empático com o doente, diferenciando sensivelmente o seu cuidado(1616. Longuiniere ACF, Yarid SD, Silva ECS. Influência da religiosidade/espiritualidade do profissional de saúde no cuidado ao paciente crítico. Rev Cuid Saúde. 2018;9(1):1961-72. DOI: http://dx.doi.org/10.15649/cuidarte.v9i1.413.
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)
.

Neste sentido, Watson destaca a transformação interior do ser como requisito para o Cuidado Transpessoal/Espiritual. Sugere que o coração humano do profissional ligue-se à ‘Fonte’ espiritual de manutenção do espírito humano, na perspectiva de que este esteja sempre se enchendo de cuidado, buscando da ‘Fonte’ o espírito de compaixão, sabedoria, verdade e fé. E converge este pensar no seu Fator de Cuidado 3: “cultivo da sensibilidade para si e para o outro”, que evidencia a necessidade de o enfermeiro cultivar práticas espirituais próprias para o aprofundamento da autoconsciência e do cuidado transpessoal/espiritual, e no Fator de Cuidado 1: “formação de um sistema de valores humanístico-altruístas”, que significa praticar o amor e a bondade para si mesmo e para os outros, no direcionamento da conexão da totalidade mente-corpo-alma entre humanos e com a Fonte que une a todos(11. Rosa W, Estes T, Watson J. Caring science conscious dying: an emerging metaparadigm. Nurs Sci Quart. 2017;30(1):58-64).

Categoria III - Empreendendo o cuidado espiritual ao indivíduo hospitalizado

A espiritualidade no contexto da saúde-doença aumenta as reservas dos indivíduos e os ajuda a suportarem as dificuldades do adoecimento. Ela pode ser experimentada por meio da emoção positiva, da reverência e do anseio pelo sagrado, expressos a partir, por exemplo, da postura de cada profissional de enfermagem junto aos pacientes(1717. Vaillant GE. Fé: evidências científicas. Barueri: Manole; 2010.).

Essa postura de cuidado espiritual é detalhada em outros estudos e vai desde intervenções gerais até aquelas mais específicas. Observa-se o uso da escuta, da comunicação, da valorização do silêncio, do vínculo e da música para minimizar sentimentos e emoções relacionadas ao processo de adoecimento e finitude. Distingue-se, também, na oferta da oração, no suporte religioso e no acesso a líderes, literatura, objetos significativos para cada paciente, além de um espaço físico para confidenciarem e expressarem a fé(1414. Walker A, Breitsameter C. The provision of spiritual care in hospices: a study in four Hospices in North Rhine-Westphalia. J Relig Health. 2017;56(6):2237-50. DOI: 10.1007/s10943-017-0396-y.
https://doi.org/10.1007/s10943-017-0396-...
,1818. Evangelista CB, Lopes MEL, Costa SFG, Abrão FMS, Batista PSS, Oliveira RC. Spirituality in patient care under palliative care: a study with nurses. Esc Anna Nery Internet . 2016 Mar cited 2018 Nov 05 ;20(1):176-82. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452016000100176&lng=en. http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20160023.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
-1919. Caldeira S, Timmins F, Carvalho E C, Vieira M. Clinical validation of the nursing diagnosis spiritual distress in cancer patients undergoing chemotherapy. Int J Nurs Knowl. 2017;28(1):44-52. DOI: 10.1111/2047-3095.12105.
https://doi.org/10.1111/2047-3095.12105...
)
.

Neste sentido, Watson assegura que toda ação motivada pelo amor e pelo zelo em cuidar contribui para o bem-estar espiritual do outro. Ela pontua o diálogo, o autoconhecimento, o cultivo da beleza e do calor humano nas relações, a intuição, a compaixão e o vínculo como alicerce para a promoção de paz interior e esperança no processo de Cuidado Transpessoal/Espiritual. Estratégias que convergem para o Fator 4: “Desenvolvimento de confiança no processo de ajuda/cuidado”, o qual refere-se à congruência relacional e à empatia; e o Fator 5: “Promoção e aceitação da expressão de sentimentos positivos e negativos”, que prevê um profissional atento aos sentimentos do paciente no direcionamento de intervir individualmente para o alívio do sofrimento físico-mental-espiritual(11. Rosa W, Estes T, Watson J. Caring science conscious dying: an emerging metaparadigm. Nurs Sci Quart. 2017;30(1):58-64-22. Watson J. Enfermagem pós-moderna e futura. Lisboa: Lusociência; 2002.).

A NANDA-I define o diagnóstico de enfermagem de sofrimento espiritual como um estado de sofrimento que se relaciona à capacidade prejudicada de experimentar significado na vida através de uma conexão consigo mesmo, com os outros, com o mundo ou com um ser maior. Esta ferramenta tão relevante na sistematização da assistência de enfermagem endossa a capacidade que os profissionais de enfermagem têm de diagnosticar, intervir e promover desfechos positivos por meio do cuidado espiritual(2020. NANDA Internacional. Diagnósticos de enfermagem da NANDA: definições e classificação 2015/2017. Porto Alegre: Artmed; 2015.). A angústia espiritual constituiu um diagnóstico de enfermagem, identificado em 42% de uma amostra de um estudo com idosos; uma prevalência que alerta para a necessidade da assistência espiritual de enfermagem(2121. Caldeira S, Carvalho EC, Vieira M. Entre o bem-estar espiritual e a angústia espiritual: possíveis fatores relacionados a idosos com cancro. Rev Latino Am Enfermagem Internet . 2014 citado 2016 maio 20 ;22(1):28-34. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v22n1/pt_0104-1169-rlae-22-01-00028.pdf
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Um estudo que validou o diagnóstico de enfermagem angústia espiritual em pacientes com câncer submetidos à quimioterapia, constatou que eles apresentaram como características definidoras mais importantes a expressão de sofrimento e a falta de sentido na vida, possibilitando a enfermagem desenvolver um raciocínio clínico para um cuidado centrado nas necessidades espirituais. Mas para que isso se efetive, primeiramente, é necessário que o enfermeiro reconheça os pacientes como seres espirituais, e que nessa condição estão passíveis a sofrimentos associados ao significado de sua vida, a relação com o outro, com o mundo ou com uma divindade(1919. Caldeira S, Timmins F, Carvalho E C, Vieira M. Clinical validation of the nursing diagnosis spiritual distress in cancer patients undergoing chemotherapy. Int J Nurs Knowl. 2017;28(1):44-52. DOI: 10.1111/2047-3095.12105.
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,2222. Caldeira S, Carvalho E C, Vieira M. Spiritual distress-proposing a new definition and defining characteristics. Int J Nurs Knowl. 2013;24(2):77-84. DOI: 10.1111/j.2047-3095.2013.01234.x.
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Outra pesquisa define que a coleta da história espiritual do paciente deve ser assumida por toda a enfermagem como ponto de partida para o planejamento do cuidado espiritual - que seguramente poderá ser multiprofissional. Assim, reconhece limitações que a enfermagem possa ter para tal assistência, mas não a exime de minimamente sistematizar as demandas espirituais de seus pacientes para melhorar a sua atuação neste âmbito(2323. Cervelin AF, Kruse MHL. Spirituality and religiosity in palliative care: learning to govern. Esc. Anna Nery Internet . 2014 cited 2018 Nov 05 ;18(1):136-42. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452014000100136&lng=en. http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20140020
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Categoria IV - Identificando os nós da relação entre espiritualidade e cuidado

A última categoria do presente estudo trata das dificuldades vivenciadas pela enfermagem em lidar com a espiritualidade no contexto de suas práticas de cuidado.

Na literatura, observam-se achados convergentes para a postura insegura diante do tema, justificadas pelas preocupações da equipe de enfermagem em tropeçar no tópico da religião, com pacientes que vêm de uma formação/crença diferente da deles, durante a tentativa de abordar a espiritualidade. É comum o medo de gerar conflitos ou interações negativas, o que direciona o profissional erroneamente para a omissão do assunto. Os programas de treinamento e outros esforços podem ajudar a equipe a conectar-se pessoalmente à ideia de espiritualidade; afinal, parte significativa do pessoal de enfermagem diz que gostaria de prestar cuidados espirituais mais frequentemente do que realmente os faz(2424. Bar-Sela G, Schultz MJ, Elshamy K, Rassouli M, Ben-Arye E, Doumit M, et al. Training for awareness of one's own spirituality: a key factor in overcoming barriers to the provision of spiritual care to advanced cancer patients by doctors and nurses. Palliat Support Care. 2019;17(3):345-52. DOI: https://doi.org/10.1017/S147895151800055X
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Além disso, na prática assistencial constata-se que pacientes com sofrimento espiritual exigem mais atenção e tempo da enfermagem, quando esta se encontra disposta a realizar este tipo de cuidado. Cabe assim, atenção por parte da gestão a fim de organizar os recursos, não só físicos, mas humanos suficientes para que este cuidado se concretize(1919. Caldeira S, Timmins F, Carvalho E C, Vieira M. Clinical validation of the nursing diagnosis spiritual distress in cancer patients undergoing chemotherapy. Int J Nurs Knowl. 2017;28(1):44-52. DOI: 10.1111/2047-3095.12105.
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Neste sentido, enfatiza-se a importância de abordar os aspectos espirituais dos pacientes ainda na academia, a fim de melhor preparar estes futuros profissionais para gerir e assistir este cuidado. Uma pesquisa entre docentes concluiu que há necessidade veemente de desenvolver, no estudante da área de saúde, não só a competência do cuidado do corpo físico, mas também a competência para cuidar do espírito. Afirma, portanto, ser imprescindível a incorporação da espiritualidade nos currículos da graduação em saúde(2525. Biondo CS, Ferraz MOA, Silva MLM, Yarid SD. Spirituality in urgent and emergency services. Rev Bioética. 2017;25(3):596-602. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422017253216.
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Tal expectativa, de uma formação mais atenta a esta demanda, também é evidenciada em um estudo realizado com ingressantes na graduação de uma área da saúde, em que se verificou a importância atribuída a religiosidade e a espiritualidade, e a expectativa que o currículo do curso escolhido contemple a integralidade do cuidado em saúde(2626. Zanetti GC, Lemos GL, Gotti ES, Tomé JM, Silva AP, Rezende EAMR. Percepção de acadêmicos de medicina e de outras áreas da saúde e humanas sobre as relações entre espiritualidade, religiosidade e saúde. Rev Bras Educ Med. 2018;42(1):67-74. DOI: https://dx.doi.org/10.1590/1981-52712018v42n1rb20160044
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. Em consonância a este achado, outro estudo aborda essa percepção em enfermeiros, porém eles relatam como entrave o fato de se sentirem mal preparados pela sua formação para fornecer tais cuidados(2727. Cone PH, Giske T. Integrating spiritual care into nursing education and practice: strategies utilizing Open Journey Theory. Nurse Educ Today. 2018;71(1):22-5. DOI: 10.1016/j.nedt.2018.08.015
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Assim sendo, incorporar o cuidado espiritual nos currículos de enfermagem é um desafio que pode utilizar estratégias, como: leituras, dramatizações, grupos de discussão e tarefas de construção de conceitos espirituais do simples para o complexo baseadas nas experiências vividas com os pacientes/famílias ao longo do curso(2727. Cone PH, Giske T. Integrating spiritual care into nursing education and practice: strategies utilizing Open Journey Theory. Nurse Educ Today. 2018;71(1):22-5. DOI: 10.1016/j.nedt.2018.08.015
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Sobre isto, Watson expressa sua preocupação na “utilização do conhecimento científico de forma sistemática e criativa”, para resolução de problemas no processo de cuidado (Fator de Cuidado 6), que perspectiva o uso criativo do seu próprio ser e de todas as formas de conhecimento, como parte do processo de cuidar. E, pelo Fator de Cuidado 7, incentiva a “promoção do ensino-aprendizagem transpessoal”, ou seja, a construção de um processo educativo que atenda a pessoa/estudante, considerando o significado subjetivo deste e sua espiritualidade, para que possa refletir tal comportamento em sua prática(11. Rosa W, Estes T, Watson J. Caring science conscious dying: an emerging metaparadigm. Nurs Sci Quart. 2017;30(1):58-64-22. Watson J. Enfermagem pós-moderna e futura. Lisboa: Lusociência; 2002.).

As limitações deste estudo perpassam pela restrição a um contexto específico. Assim, encoraja-se o desenvolvimento de mais estudos na área, assim como mais investimentos por parte de escolas e docentes formadores e, ainda, de gestores e instituições hospitalares que precisam empreender estrutura e oportunidades de acolhimento deste tão relevante cuidado, o espiritual.

CONCLUSÃO

Ficou evidente que a espiritualidade, parte do humano, aflora no encontro intersubjetivo entre cuidador-enfermeiro e ser-paciente como lugar de mobilização e força interior capaz de eclodir resiliência por meio da fé em momentos de doença. O cuidado espiritual é reconhecido pela equipe de enfermagem como oportuno, sobretudo no contexto da hospitalização, onde a vulnerabilidade humana aproxima as pessoas de forma marcante, favorecendo o vínculo e a troca de experiências positivas no processo de cuidado em saúde.

Todavia, observou-se que a temática “espiritualidade” e as suas práticas no cotidiano de trabalho dos profissionais de enfermagem ainda são um desafio que precisa ser melhor assumido e trabalhado no processo de educação permanente destes profissionais, para que desenvolvam habilidade e segurança para acolher esta demanda.

Destacam-se como dispositivos oportunos a Sistematização da Assistência Espiritual de Enfermagem, com uso da anamnese espiritual, diagnósticos NANDA específicos e intervenções planejadas e avaliadas que podem incluir escuta e acolhimento, música, oração, acessibilidade aos líderes/práticas religiosas, entre outros no direcionamento de mobilizar fé e esperança no paciente-família. O Cuidado Transpessoal também se mostrou um relevante dispositivo, capaz de subsidiar o cuidado espiritual ao oferecer um modelo de cuidado ao todo corpo-mente-alma através do empreendimento de ações organizadas a partir do Caritas Process, em seus fatores de cuidado explicitamente convergentes ao cuidado espiritual.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2019
  • Aceito
    02 Out 2019
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