Resumos
O artigo procurou discutir a evolução da presença feminina no emprego e nas escolas de engenharia por intermédio da análise de estatísticas oficiais, bem como conhecer as experiências e vivências profissionais de engenheiros(as), suas análises e avaliações sobre a profissão e sobre o lugar das mulheres dentro dela. O artigo discute também alguns dos limites de gênero com que as engenheiras se depararam na sua inserção em determinadas áreas de trabalho e no desenvolvimento de suas carreiras.
MULHERES; ENGENHARIA; RELAÇÕES DE GÊNERO; RELAÇÕES DE TRABALHO
This article reviews the evolution of the presence of women in engineering courses and occupations based on official statistical data. It aims to investigate the professional experience and expertise of both male and female engineers and their representations about their occupation and on the place given to women in it. The article also discusses some of the gender limitations female engineers have stumbled upon in their professional insertion and in to make progress in their carriers.
WOMEN; ENGINEERING; GENDER RELATIONSHIP; LABOUR RELATIONS
OUTROS TEMAS
Engenheiras brasileiras: inserção e limites de gênero no campo profissional
Brazilian female engineers: gendered obstacles to professional insertion
Maria Rosa Lombardi
Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, mlombardi@fcc.org.br
RESUMO
O artigo procurou discutir a evolução da presença feminina no emprego e nas escolas de engenharia por intermédio da análise de estatísticas oficiais, bem como conhecer as experiências e vivências profissionais de engenheiros(as), suas análises e avaliações sobre a profissão e sobre o lugar das mulheres dentro dela. O artigo discute também alguns dos limites de gênero com que as engenheiras se depararam na sua inserção em determinadas áreas de trabalho e no desenvolvimento de suas carreiras.
MULHERES - ENGENHARIA - RELAÇÕES DE GÊNERO - RELAÇÕES DE TRABALHO
ABSTRACT
This article reviews the evolution of the presence of women in engineering courses and occupations based on official statistical data. It aims to investigate the professional experience and expertise of both male and female engineers and their representations about their occupation and on the place given to women in it. The article also discusses some of the gender limitations female engineers have stumbled upon in their professional insertion and in to make progress in their carriers.
WOMEN - ENGINEERING - GENDER RELATIONSHIP - LABOUR RELATIONS
Este artigo analisa a presença das mulheres no campo profissional da engenharia no último quarto de século no Brasil, procurando, de um lado, identificar a evolução da sua participação no mercado de trabalho e nos cursos de engenharia e, de outro, conhecer como os(as) engenheiros(as) analisam e avaliam suas experiências profissionais, as chances de desenvolvimento das carreiras como homens e como mulheres, a própria profissão e o lugar das mulheres dentro dela. Recorreu-se à análise de dados estatísticos sobre empregos formais e rendimentos, sobre matrículas e conclusões em cursos de graduação de engenharia com base, respectivamente, na Relação Anual de Informações Sociais - Rais - do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE1 1 A Rais computa empregos com algum tipo de contrato de trabalho e remunerados. Consideraram-se apenas os empregos classificados sob o título ocupacional "engenheiros"; essa fonte de dados não permite identificá-los quando registrados sob outras denominações de cargos ou funções. e no Censo da Educação Superior do Ministério da Educação, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep2 2 O principal problema encontrado nesta fonte foi a ausência de cruzamento dos dados pela variável sexo durante duas décadas - 1970 e 1980. Por isso, a análise dessas informações ficou adstrita aos anos 90. . Realizaram-se também 33 entrevistas com engenheiros(as) e dirigentes sindicais3 3 Entre os entrevistados, 7 são do sexo masculino e 26, do feminino. no Brasil e na França.
A análise adotou como perspectiva teórica central a categoria "relações sociais de sexo" (Kérgoat, 1998), compreendendo-se que as relações entre os dois sexos na sociedade articulam-se de forma hierarquizada e se expressam sob a forma de relações de poder. No decorrer dos últimos trinta anos, o equilíbrio de forças entre os dois grupos em torno da divisão sexual do trabalho na engenharia vem se alterando a favor das mulheres. Quer dizer, alguns estereótipos de gênero que dificultavam o ingresso delas em certas áreas de conhecimento e de trabalho, em algumas atividades e atribuições, foram questionados socialmente e perderam parte do poder de intimidação nesse período de tempo. Nesse processo, contudo, a divisão sexual do trabalho se reproduziu dentro dessas mesmas áreas, dela decorrendo a atribuição de trabalhos diferentes, de diferente valor, a engenheiros e engenheiras.
O artigo está organizado em duas partes. A primeira discute a posição das engenheiras no mercado de trabalho e a evolução dos seus padrões de inserção, de meados da década de 80 aos primeiros anos do novo milênio. Também analisa a progressão da presença feminina nas escolas de engenharia, situando-a no processo de transformação pelo qual vem passando o ensino superior no Brasil, em especial durante os anos 90. A segunda parte discute alguns dos limites de gênero encontrados na inserção das engenheiras em determinadas áreas de trabalho e no desenvolvimento das suas carreiras em certas especialidades da engenharia e sua evolução, da década de 70 para cá.
ENGENHEIROS E ENGENHEIRAS: TENDÊNCIAS RECENTES DO EMPREGO E DA RENDA
Inicialmente procurou-se compreender como essa categoria profissional se inseria no mundo do trabalho, buscando informações sobre o número de engenheiros(as) ativos(as) e quais as proporções de assalariados(as), autônomos(as), empresários(as) dentre esses(as) profissionais. Na ausência de tais informações sistematizadas, elaborou-se uma estimativa do tamanho do mercado formal para engenheiros contrapondo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD4 4 A PNAD identifica os que se declararam ocupados como engenheiros, sob qualquer tipo de vínculo de trabalho (empregado com e sem contrato de trabalho, autônomo, empresário). - aos da Rais.
A tabela 1 apresenta números de ocupados e empregados e as proporções destes últimos sobre os primeiros. Segundo a PNAD de 2002, havia no Brasil 306.986 profissionais que se declararam ocupados como engenheiros, dos quais 273.037 eram do sexo masculino e 33.949, do feminino. O contraponto com a Rais indica que apenas 45% do total de ocupados estão empregados. Ou seja, 55% dos que se declararam ocupados como engenheiros são autônomos, empresários ou procuram emprego e não foram localizadas informações sistematizadas sobre as formas como eles se inserem na profissão e no mercado de trabalho. Observe-se ainda que o tamanho do segmento formal variou segundo o sexo do profissional: entre as engenheiras ocupadas, a parcela com empregos formais (59%) é bem mais importante do que a encontrada entre os engenheiros (43,7%), provavelmente devido ao maior peso do emprego público entre elas.
Focalizando especificamente os empregos formais entre 1985 a 2002, período de cobertura da Rais, verifica-se que sua evolução apresentou diferenças importantes, em consonância com as mudanças que ocorreram no mercado de trabalho brasileiro. Para melhor compreendê-las, esse longo intervalo foi subdividido em quatro períodos, atrelados às mudanças econômicas e políticas ocorridas no país, como demonstra a tabela 2.
1º Período de crescimento do emprego (gestão José Sarney): de 1985 a 1990, foi caracterizado pela pequena expansão do emprego total (3,6%). Os empregos femininos dobraram no período, passando de 12.438 em 1985, para 25.237 em 1990. A inserção das mulheres - e das engenheiras - foi favorecida pela expansão dos serviços, por meio, principalmente, da administração pública, que ofereceu 60% dos novos empregos para engenheiras.
1º Período de retração do emprego (gestão Collor de Mello): 1991 e 1992 são anos que se caracterizaram pelas altas taxas de crescimento negativo do emprego para engenheiros numa conjuntura de desaceleração abrupta do crescimento econômico e da atividade industrial, resultado imediato da implantação de nova orientação na política econômica, de sentido inverso à que vinha sendo adotada nos 30 anos precedentes. Nesse contexto, porém, as engenheiras foram as que mais perderam (-21,4% versus -10% para os homens). As mais importantes perdas ocorreram na indústria de transformação (emprego majoritariamente masculino dos ramos metalúrgico, mecânico e de material de transportes) e nos serviços (maiores cortes no emprego feminino na administração pública e, no masculino, na engenharia consultiva)5 5 O segmento da engenharia consultiva expandiu-se na década de 80 em torno das empresas estatais e das grandes empresas de engenharia civil nacionais que tocavam grandes obras públicas. .
2º Período de retração do emprego: de 1993 a 1998, anos em que continuaram a se estreitar as possibilidades de emprego para engenheiros (Tab. 2). As taxas de crescimento permanecem negativas, embora menores do que no período anterior. Dois presidentes se sucederam, Itamar Franco, entre 1993 e 1995, após o impeachment de Fernando Collor de Mello e daí, até o final do período, Fernando Henrique Cardoso. Continuaram a prevalecer a desaceleração da atividade econômica e o estreitamento do mercado formal, aí incluso o mercado para engenheiros. Ressalte-se que o mais baixo nível de emprego da categoria nos 17 anos aqui analisados (1985-2002) verificou-se em 1998. Durante 1992-1993 e 1998, a indústria de transformação, os serviços e, dentro destes, os serviços prestados às empresas, foram os que mais contribuíram para a destruição de postos de trabalho masculinos. Para as engenheiras, as chances de emprego diminuíram principalmente nos serviços.
2º Período de crescimento do emprego: de 1999 a 2002, correspondeu à segunda gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso. Nele o emprego para engenheiros volta a apresentar crescimento positivo modesto, após nove anos de taxas negativas (Tab. 2). Assim, nesse último período em análise, o emprego total cresceu 3,4%, o masculino 2,8% e o feminino, 7,2%. Essa retomada acompanha movimento mais amplo, qual seja, uma retomada na formalização dos empregos para ambos os sexos e, em especial para o feminino, que se estende da metade da década de 90 até hoje (Fundação Carlos Chagas, 1998).
A engenharia continua sendo um espaço profissional eminentemente masculino no Brasil. Em termos relativos, a participação das mulheres nos empregos formais dessa profissão não chegou a duplicar durante os 17 anos considerados: de 8,6% em 1985, atingirá 14,3% em 2002. Note-se, porém, que entre 1985 e 1988 houve um incremento importante na sua participação, passando de 8,6% para 11,4% e prosseguindo em alta até 1990, quando atinge 14,6%. Durante toda a década de 1990, a proporção das mulheres nos empregos para engenheiros manter-se-á em torno de pouco mais de 10%, voltando a atingir o patamar dos 14% em 2002 (Lombardi, 2005).
Esse mesmo perfil de participação feminina reduzida é encontrado em muitos países ocidentais, a exemplo do México, Canadá e França (Guevara 2003; Rabemanajara, 2001; Marry 2002). Neste último país a presença das mulheres na carreira de engenharia manteve-se em torno dos patamares encontrados para o Brasil, mas durante a década de 90, contrariamente ao que se presenciou por aqui, houve um movimento de progressão, modesta mas persistente: as francesas representavam 11,1% dos engenheiros em 1990, 13,1% em 1995 e 14,6% em 2001 (Marry, 2002).
Se na esfera dos empregos a participação das mulheres engenheiras mostrou-se praticamente estacionada em torno de 14%, do lado da formação, porém, durante toda a década de 90 e nos primeiros anos do novo milênio, veio crescendo lenta e continuamente o número de mulheres que ingressaram nos cursos de engenharia no Brasil. Assim, se em 1991 a parcela feminina no conjunto de matrículas em cursos de engenharia era 16,4%, ela cresce para 19,5% em 1995, tem uma ligeira diminuição nos anos seguintes e atinge 20% em 2002 (Lombardi, 2005). Essas cifras permitem concluir que a engenharia está incluída nas escolhas profissionais das mulheres, embora, como se viu, esse processo venha evoluindo lentamente. Um outro exemplo que reafirma a inclusão da engenharia no rol de possibilidades profissionais das mulheres vem da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. No espaço de 40 anos, entre 1950 e 1989, formaram-se 536 engenheiras e somente nos anos 1990, formaram-se 764 (Facciotti, Samara, 2004).
O maior ingresso das mulheres em escolas de engenharia ocorreu no processo de democratização do ensino superior de forma geral - e dessa profissão, em particular -, que se acelerou a partir de 1990, com a expansão do número de cursos de engenharia e, conseqüentemente, de formados. Os cursos de engenharia no país têm-se multiplicado desde a década de 60, mas a expansão mais expressiva aconteceu nos últimos 12 anos, entre 1990 e 2002, justamente no período de crise econômica mais agudo, marcado pela redução dos empregos para engenheiros. Como informam dados oficiais do Ministério da Educação, o número de cursos6 6 Inclusive Engenharia de operação e Agrimensura e exclusive Arquitetura e Urbanismo, e Geologia. para engenheiros no país evoluiu de 98 em 1963, para 179 em 1968, para 313 em 1975, chegando em 1991 a 330 e, em 2002, a 837. Apenas nos últimos dez anos, portanto, o número de cursos de engenharia cresceu uma vez e meia. Como decorrência, a oferta de formados acompanhou o mesmo movimento. Segundo a mesma fonte, o número de concluintes em cursos de engenharia era de 1.857 indivíduos em 1963, sobe para 4.335 em 1968, para 11.796 em 1974, para 13.026 em 1991, chegando a 19.886 em 2002. Assim, no espaço de dez anos, entre 1991 e 2002, o número de engenheiros formados que saíram do sistema escolar aumentou 53% (Brasil, 1965, 1969, 1977, 1992, 2002).
Num ambiente recessivo e economicamente instável, o incremento de profissionais lançados anualmente no mercado de certo contribuiu para a deterioração das condições de emprego e remuneração de toda a categoria, intensificando a segmentação interna. No caso dos engenheiros e de outros profissionais de nível superior, aquela segmentação parece começar a partir da escola de engenharia que o profissional cursou. No período focalizado, a grande expansão dos cursos de engenharia ocorreu no sistema de ensino privado, de onde, conseqüentemente, saíram as maiores proporções de formados. Tomando como exemplo o que ocorreu no Estado de São Paulo, até o final dos anos 60 a primazia na abertura de cursos era do setor público, mas tendência inversa delineia-se a partir dos anos 70 e se irá consolidar nos anos 90 (Brasil, 2003). Assim, se dos 36 cursos que começaram a funcionar entre 1970 e 1979, 19 eram ministrados em escolas particulares e 17, em instituições públicas; nos anos 90, foram autorizados a funcionar 94 novos cursos de engenharia, 78 na rede particular e 16 na pública. Entre 2000 e 2003, 77 novos cursos foram instalados, dos quais 57 na rede pública (Lombardi, 2005). O ensino de engenharia tradicionalmente é ministrado em período integral, mas as escolas particulares inauguraram os cursos noturnos na área: são elas que oferecem 93% das vagas no período noturno.
Outra constatação que se pode extrair dos dados refere-se ao ritmo da abertura de novos cursos, potencializado desde os anos 90 e em aceleração nos primeiros anos do novo milênio: se na década de 80 foram abertos 22 cursos, nos anos 90 começaram a funcionar 94, e entre 2000 e 2003, outros 77. Em outras palavras, se na década de 1990 o MEC autorizou o funcionamento de, em média, 9,4 novos cursos de engenharia por ano, em apenas quatro anos, de 2000 a 2003, foram inaugurados 19,25 novos cursos anualmente, duplicando o ritmo!
Segundo os entrevistados, uma questão candente perpassa a engenharia atualmente: a ampliação de escolas e cursos, considerada "indiscriminada" pelo Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Estado de São Paulo - Crea/SP, aprofunda a segmentação do grupo profissional, que se inicia nas escolas em razão do seu prestígio e da qualidade do ensino ministrado. Na opinião dos entrevistados, a excessiva oferta de profissionais, a maioria formada na nova rede de estabelecimentos particulares em que, de uma forma geral, a qualidade do ensino deixa a desejar, estaria comprometendo as oportunidades de trabalho, emprego e remuneração de toda a categoria. Além disso, a má qualidade do serviço prestado por profissionais provenientes de algumas dessas escolas, remunerados a preços aviltados, contribuiria, num círculo vicioso, para a desvalorização profissional. O mercado de trabalho do engenheiro civil, por exemplo, se comporia, de um lado, de um pequeno segmento altamente qualificado, formado em escolas de engenharia prestigiadas, em geral públicas, o qual disputa os melhores empregos existentes e, de outro, da maioria de prestadores de serviços pontuais e de curta duração, engenheiros que se formaram predominantemente em faculdades particulares recentemente inauguradas.
Acresce-se a isso a maior diversificação na oferta de cursos por meio de novas especialidades, o que sinaliza a continuidade do processo de especialização. A criação de novas especialidades no ensino da engenharia pelo desdobramento das antigas áreas levou à diversificação das escolhas de homens e mulheres, mas incidiu especialmente sobre as opções femininas que, até meados dos anos 90 encontravam-se mais concentradas nas engenharias Civil e Química. Em 1990, essas duas especialidades eram responsáveis por 59% das conclusões femininas (44% na Civil e 15% na Química) e em 2002, por 40% (30% na Civil, 10% na Química). Neste último ano, conforme se pode observar em Lombardi (2005), despontam como outras opões que mais interessavam às mulheres: Alimentos (10% das conclusões), Florestal (4%), Produção e Mecânica (3%).
Esse padrão concentrado na escolha de especialidades é também revelador da segregação feminina no campo de estudos e de trabalho da engenharia e, nesse sentido, a recente ampliação da oferta de especialidades parece ter favorecido a inclusão das mulheres na profissão, oferecendo-lhes possibilidades de inserção em novos campos de atuação profissional, justamente num período em que elas ingressaram em número crescente nas escolas de engenharia, como já se comentou. Giannini (2003), Guevara (2003) e Rodrigues (no prelo) em seus respectivos países, Itália, México e Portugal, concluem que a segmentação interna das especialidades da engenharia e o alargamento do campo de atividades profissionais dos engenheiros - em direção a outras áreas além do "chão-de-fábrica", como por exemplo, marketing, compras, administração - favoreceram e estimularam o ingresso das mulheres. Giannini (2003) pondera que na Itália, naquelas especialidades mais ligadas à indústria, as estratégias profissionais dos engenheiros tendem a monopolizar as possibilidades de trabalho para os homens, enquanto em outras que surgiram recentemente e ainda não têm seu campo de atuação claramente delimitado ou, naquelas em que o trabalho da engenharia vem sofrendo transformações, a exclusão das mulheres é menos drástica. Observando os dados brasileiros e dando crédito a esta interpretação proveniente de outros países, pode-se afirmar que as engenheiras brasileiras têm sido bem-sucedidas na ocupação dos espaços profissionais.
Apesar de pontuada em algumas reportagens, que demonstravam a preocupação do Crea/SP, órgão regulador da categoria, o problema da ampliação de cursos e escolas de engenharia e da crescente especialização na área não parece, contudo, ter recebido nenhum encaminhamento para a sua resolução durante toda a década, ou ao menos, nada foi noticiado nesse sentido no Jornal do Crea São Paulo7 7 Os Creas de São Paulo e Santa Catarina levaram ao 5º Congresso Nacional de Profissionais do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia - CNP/Confea (dez. 2004) proposta para instituição de um exame de ordem, que não foi aprovada. . O mesmo padrão de resposta dos órgãos representativos paulistas, (o Crea e o Sindicato dos Engenheiros - SEE/SP) parece ter-se repetido diante da crise do emprego dos anos 1990. Mesmo que, sobretudo o SEE/SP denunciasse seguidamente o desemprego, a queda na remuneração e a desvalorização da categoria, houve poucas propostas concretas para enfrentar essas questões. Uma dessas propostas perpassou toda a década e diz respeito à constituição de um serviço de engenharia e arquitetura públicas, quer dizer, um sistema público de controle da construção das habitações populares, gratuito para a população e financiado por verbas públicas. Ela foi vitoriosa, pois foi incluída no Estatuto da Cidade8 8 A discussão do Estatuto da Cidade teve lugar no bojo da Constituição Federal de 1988 e se prolongou por 13 anos. a obrigatoriedade de os municípios promoverem a universalização da assistência técnica à construção popular. Outra iniciativa, posta em prática apenas no ano de 2000 pelo sindicato paulista mencionado, foi o Programa Engenheiro Empreendedor, em resposta a constatação do estreitamento do mercado formal de empregos para a categoria e à conseqüente flexibilização dos vínculos de trabalho. O programa pretende qualificar e apoiar engenheiros autônomos, auto-empregados, desempregados, subempregados, micro e pequenos empresários etc.9 9 Jornal do Engenheiro, n.150, p.6, 1-15, ago. 2000, n.152, p.5, 1-15 set. 2000.
Quais são os espaços de trabalho das mulheres na engenharia no Brasil? Nos anos 90 e nos primeiros anos do novo milênio, para os homens e mais ainda para as mulheres, a engenharia Civil continua a ser a especialidade mais absorvida pelo mercado durante todo o período: em 2002 ela oferecia 27% dos empregos para engenheiros e 32% dos postos para engenheiras. Em seguida, para eles destacam-se a Elétrica e Eletrônica, a Mecânica e a Agronomia. Para elas, também por ordem de importância, vêm Produção, Elétrica e Eletrônica e Agronomia. Ressalte-se o peso da Química nos empregos femininos (6,2%), quase o dobro daquele que assume nos masculinos (3,7%), conforme Lombardi, (2005). A distribuição dos empregos, segundo especialidades da engenharia para cada um dos sexos, não se alterou profundamente entre 1990 e 2002 e, no que diz respeito especificamente aos empregos femininos, podem ser identificados três patamares de participação: a. maior na Química e Produção (entre 21% e cerca de ¼ dos empregos); b. menor expressão na Mecânica e na Metalurgia (não ultrapassando 6% em 2002); c. expressão intermediária (entre 9 e 16%) nas demais especialidades, devendo-se ressaltar a Civil, com 16,4%, no limite superior desse patamar (Lombardi, 2005).
Quanto aos rendimentos do trabalho, a tabela 3 demonstra três tendências gerais: em primeiro lugar, a queda na remuneração da categoria a partir de 1990; em segundo, lugar, a remuneração das engenheiras inferior à dos engenheiros em todo o período e, em terceiro, a diminuição da diferença entre a remuneração dos dois sexos no decorrer dos anos. Esse movimento parece se originar de um lado, do aumento dos valores recebidos pelas engenheiras e, de outro, da diminuição do rendimento dos engenheiros. Em 2002, as engenheiras ganhavam, em média, 71% do que recebiam seus colegas.
LIMITES DE GÊNERO NAS TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS DAS ENGENHEIRAS
A maioria dos entrevistados pela pesquisa afirma que, no trabalho, ser um homem engenheiro ou uma mulher engenheira não é a mesma coisa. Há áreas de trabalho mais resistentes à presença das engenheiras, a começar pela engenharia Civil no segmento obras, em que, de um modo geral, a presença das engenheiras ainda hoje causa certa estranheza, seja junto aos "peões" ou, principalmente, junto aos colegas engenheiros. O depoimento de Lauro, engenheiro civil formado em 1971, hoje com 56 anos, resume a maior parte dos argumentos segundo os quais as mulheres engenheiras não combinariam com canteiros de obras: ambiente abrutalhado, trabalho pesado e sujo e a falta de infra-estrutura de alojamentos e sanitários para recebê-las.
Márcia (engenheira civil, 50 anos, formada em 1980) conta que mesmo fora dos canteiros de obras, ou melhor, antes da sua construção, em "campo aberto", na fase exploratória de medições, análises de áreas para instalação de obras, as mulheres também não são bem-vistas, embora dos anos 80 para cá essa situação pareça ter-se alterado em favor das mulheres, ao menos no caso da empresa de saneamento público em que trabalha. Os argumentos utilizados eram da mesma ordem: trabalho pesado ou que utilizava instrumentos pesados como os teodolitos, necessidade de viagens e deslocamentos constantes, longas caminhadas em áreas não urbanizadas, contato com populações rurais, camponeses. Da parte das próprias engenheiras notam-se restrições ao trabalho nas obras; poucas são as que "gostam" dessa atividade. E parece que os problemas de aceitação das engenheiras nas obras continua até hoje, conforme afirma Dalva, engenheira civil de 35 anos, formada em 1992, que diz "não se dar bem em obras" por causa do tratamento duplamente discriminatório que recebeu em seus dois estágios, por ser mulher e jovem. Há outras razões dadas pelas entrevistadas para justificar sua rejeição ao canteiro de obras. Entre elas está o fato de o engenheiro ficar "confinado" na obra, isolando-se dos seus pares e aproximando seu modo de ser e agir do dos "peões", voltando-se preferencialmente para coisas práticas em detrimento das teorias e dos estudos.
Cláudia, 48 anos, relata sua experiência como engenheira civil, diretora em empresa da área de saneamento e dirigente sindical. Ela relembra os modelos de comportamentos de mulheres engenheiras civis que encontrou e identifica um abrandamento na necessidade de identificação das mulheres com o modelo de comportamento dos profissionais do sexo masculino. Assim, se suas antecessoras tiveram que, nas suas palavras, "se endurecer" mais, ela pôde fazê-lo um pouco menos, escolhendo, nas suas palavras, "um viés político". E as jovens engenheiras, menos ainda, no seu ponto de vista.
Três engenheiras que foram minha referência... A Rosa era muito brilhante e lembro que um diretor disse para ela: "Rosa, você é tão inteligente que parece um homem". Essa foi uma frase que me marcou. Então, eu percebi que as pessoas tinham que ter um comportamento diferente para chegar lá. Por exemplo, tomei uma opção dentro do meu casamento, que eu queria fazer carreira e não queria filhos e vi na minha trajetória aqui na empresa que a maioria das mulheres que chegaram no topo são mulheres que não têm filhos. Vai pegar a geração de hoje: ninguém mais fala nisso... Há 24 anos atrás, quando eu entrei aqui, você tinha que passar por um modelo meio masculino. Uma engenheira, a Améris, imagina, ela é casada, tem dois filhos, minha super-amiga, mas na época as pessoas falavam que era muito abrutalhada. Não tem nada a ver, mas ela incorporou esse "modelito". ...porra, caralho o tempo inteiro, porque ela é engenheira de obras, então, ela tinha que ser a mais boca suja de todos... ela também conviveu o tempo todo nos canteiros de obra.
Aurélia, por sua vez, informa que se as obras se abriram para aceitar algumas moças que não se intimidam com aquele ambiente, elas realizam preferencialmente atividades de gerenciamento do canteiro, cuidando de compras de materiais, da seleção do pessoal. Raramente são responsáveis pela obra, mandam nos operários, embora o problema pareça não estar na relação com os peões, mas com os colegas engenheiros. Informa também que a crendice de que mulheres nos túneis em construção dá azar, traz acidentes, foi sendo esquecida nos últimos trinta anos e hoje não é mais motivo para afastá-las dessas obras.
Outras áreas de trabalho mais refratárias às engenheiras são Minas - aí incluídas a prospecção de petróleo, Metalurgia e Mecânica. Os argumentos utilizados para seu afastamento dessas áreas são os mesmos presentes na construção civil: ambientes de trabalho agressivos e insalubres, processos de trabalho "pesados" em fundições e indústrias metalúrgicas e mecânicas, trabalho realizado em pontos longínquos ou muito distantes das zonas urbanas como é o caso das prospecções de minérios, menor força física das mulheres. Veja-se o relato de Júlio, engenheiro metalúrgico, 33 anos, formado em 1993:
Sem sombra de dúvida (a engenharia é uma carreira para mulheres)... talvez casos mais brutos, digamos onde a pretensa força bruta de um homem faria a participação das mulheres inviável. Engenheiros de minas, por exemplo, a grande maioria é de homens... É desbravatório, meio parecido com bandeirante, anda com arma na cintura, vê cobra o dia inteiro, acho que está mais próximo de uma força bruta que não é comum na maioria das mulheres. Não por ser homem é que teria capacidade de fazer isso, mas acho que aí teria um empecilho. Conheço uma engenheira que trabalha num lugar desses. Não impede... mas difere da visão padrão da mulher... acho que não é a visão de mundo da maioria das mulheres... as condições são duras para ambos os sexos, mas existe a tecnologia para facilitar... não é mais necessário ter força física para movimentar coisas, tem tecnologia para isso. Com o avanço da tecnologia acho que pode ter ainda mais engenheiras.
Outro engenheiro metalúrgico - Cristóvão, 48 anos, formado em 1981 - chega a identificar maior interesse feminino pela área quando a Metalurgia se ampliou, incluindo outros materiais como o plástico, além do metal.
O fato de o curso de Metalurgia ter-se aberto para materiais de um tempo para cá, isso foi uma tendência mundial, a motivação foi mais de perda de alunos, embora haja conteúdos comuns entre os materiais. No mundo os departamentos de Metalurgia estavam diminuindo, por causa dos problemas de meio ambiente, os salários não são atraentes; os setores mais ligados à terceira revolução industrial, a informática, telecomunicações, têm atraído mais estudantes que a Metalurgia... acho que (com Materiais) teve uma maior afluência de moças... a transformação de polímeros, por exemplo, é menos agressiva que a indústria metalúrgica; as temperaturas envolvidas são mais baixas. ...Eu acho que o fato do processo ser menos agressivo... porque tem uma coincidência entre esses dois eventos, a abertura da Metalurgia para Materiais e a maior afluência de moças ao curso.
Áurea, também engenheira metalúrgica, formada em 1981, contesta a opinião expressa pelos colegas citados, pois, na sua opinião, se na Metalurgia existem algumas áreas mais difíceis de trabalhar, como a aciaria, por causa do calor dos fornos, o trabalho de supervisão feito por uma engenheira é perfeitamente possível, embora fisicamente mais sofrido.
No que diz respeito a Minas, Amália (53 anos, formada em 1974) relata outra superstição que liga a presença de mulheres em minas subterrâneas a desabamentos, desastres e mortes. Refere-se também à falta de infra-estrutura para acolher as mulheres, por exemplo, sanitários.
Existe uma questão na mineração subterrânea, uma superstição de que mulher e padre não podem entrar porque desaba, porque mina subterrânea tem esse perigo de desabamento, soterramento... e os mineiros são uma categoria profissional muito cheia de crendices, superstições, extremamente masculina... No Brasil tem muito poucas minas subterrâneas, por exemplo, em uma viagem que eu fiz, fomos visitar a mina de Morro Velho em Minas Gerais, lá eu não pude descer porque é subterrânea. Mas eu já sabia que não ia descer... No Japão teve um episódio que não pude descer numa mina de carvão, não por superstição, mas porque nessa mina, ao descer a pessoa tinha que trocar completamente a roupa e botar um macacão e na saída tomava um banho e eles não tinham instalações separadas para mulheres.
Note-se nas falas dos três engenheiros metalúrgicos e da engenheira de minas uma dimensão importante, qual seja, as duras condições de trabalho que existem em algumas áreas da engenharia e que atingem a ambos os sexos. A tecnologia parece estar vindo em auxílio desses profissionais e das engenheiras em particular, desvinculando a execução de algumas tarefas da utilização de força física. No entanto, a organização do trabalho nessas áreas e as condições em que ele é exercido parecem ser o cerne da questão, tornando o trabalho pesado e desconfortável tanto para homens como para mulheres. Melhorar a infra-estrutura dos locais de trabalho em razão da presença feminina, instalando sanitários e alojamentos mais confortáveis, limpando o ambiente, diminuir a insalubridade devida a certos processos de fabricação, traria benefícios para todo o coletivo de trabalhadores, que no caso é, na maioria, masculino.
Danièle, de 44 anos, que nasceu e trabalha na França, em empresa especializada em estudos de prospecção de petróleo, faz uma análise lúcida e crítica da questão da igualdade profissional entre homens e mulheres na sua área e na empresa onde trabalha. Esta entrevistada - que também é delegada sindical - discorre sobre a imbricação dos espaços de trabalho franqueados a cada gênero, sobre a organização e as condições de exercício do trabalho atualmente:
...então, se de um lado, a igualdade profissional é uma miragem na empresa, por outro, seguir o modelo masculino, assumindo deslocamentos para o Oriente Médio, por exemplo, esbarra no fato que lá as mulheres não são bem vistas no canteiro de prospecção. Para colocar mulheres deveriam mudar as condições dos canteiros de terra e de mar, colocando cabinas individuais, banheiros para mulheres. Isso melhoraria também as condições dos homens. Deveria também melhorar o ambiente interno, com um tratamento mais civilizado para todos. Seria uma melhoria das condições de trabalho para os homens também, pois quando se colocam as questões das mulheres, muda-se para melhor também as condições de trabalho dos homens.
Esses indícios que afloraram das entrevistas ensejam a formulação de uma hipótese para ser investigada em futuras pesquisas: a organização e as condições de exercício do trabalho de engenharia, particularmente em determinadas áreas como obras e mineração, estariam entre as principais razões para manter distantes as engenheiras desses campos de trabalho, bem como teriam o papel de preservar esse espaço para os homens.
A divisão sexual do trabalho está presente em outras áreas, conforme esclarecem os depoimentos dos entrevistados. Por exemplo, Marcos, 46 anos, engenheiro de produção formado em 1981, relata que se abriu uma área de trabalho - a consultoria em informática - para engenheiros de ambos os sexos, com o desenvolvimento da indústria do software empresarial. As engenheiras teriam nessa atividade uma boa área de trabalho porque poderiam mobilizar alguns conhecidos atributos ou "dons" femininos: o saber se relacionar com os outros, saber ouvir, ter paciência, ensinar, a área de serviços, enfim. Uma das representações do setor de serviços enfatiza o caráter "relacional" dessas atividades em detrimento do seu conteúdo técnico. O "relacional", reforçaria, então, a aceitação das engenheiras nessas atividades, vistas como atividades tipicamente femininas (Daune-Richard, 2002). As engenheiras brasileiras parecem ter se aproveitado bem dessa brecha autorizada pelo estereótipo, para ocupar espaços no mercado de trabalho. A seguir, trechos da fala de Marcos.
Toda aquela indústria de serviços de consultoria que nasceu em volta do negócio do software, isso foi um mercado fantástico para engenheiros, tanto homens como mulheres, e havia muitas mulheres. O engenheiro de produção era o perfil ideal (para esse serviço) porque se precisava de alguém que conheça o que é a vida na fábrica, processos do negócio industrial, seja capaz de aprender um software que foi feito para fazer essa vida mais fácil e ensinar o pessoal da fábrica a fazer isso. ...nesse serviço de consultoria tinha muita mulher e acho perfeito, elas se dão super bem. A mulher tem facilidade de desenvolver relacionamento, elas são bem aceitas. ... por exemplo esse trabalho de consultoria em que basicamente você está ensinando o cara a fazer alguma coisa, as mulheres sabem ensinar. Vendas é outra posição boa. Então, a área de serviços, o desenvolvimento da indústria de serviços abriu um espaço tremendo e acho que as mulheres têm chance grande de dar mais certo que os homens, pela sua facilidade de tratar relacionamentos... (o trabalho) também é de natureza intelectual, não exige esforço físico, é mais leve... talvez seja estereótipo, não sei... mas existe uma predisposição masculina para ouvir mais a mulher... os consultores homens sempre são mais duros.
Na voz do mesmo engenheiro Marcos, a concepção de gênero mais corrente na engenharia na atualidade, repetida por outros entrevistados do sexo masculino e feminino: os domínios da produção e da fábrica continuam preferencialmente masculinos.
... algumas áreas de engenharia são mais fáceis para homens que para mulheres, particularmente com uma visão de que determinados trabalhos estão mais associados a homens que a mulheres. Engenheiro metalúrgico que vai ficar cuidando de produção dentro de uma fábrica, ainda vão preferir um homem para fazer isso; agora metalúrgico que vai trabalhar em laboratório, não vejo que haveria diferença para esse tipo de coisa... consultoria talvez tenha um pouco mais de chance para a mulher.
De fato, como notam os entrevistados que trabalham ou trabalharam em laboratórios desenvolvendo atividades em institutos de pesquisas tecnológicas, nesses ambientes, mormente na área pública, parece haver menos obstáculos ao ingresso e mesmo a uma certa progressão hierárquica das mulheres. Mas permanece intocada a separação de atividades segundo o sexo. Em laboratórios onde haja atividades de produção, o predomínio é masculino; em laboratórios onde a atividade principal é analítica e, em determinados campos de trabalho mais que outros, a predominância é feminina. Por exemplo, Áurea, que trabalha em um centro de pesquisas tecnológicas da Marinha brasileira, entende que na área militar a predominância continua sendo masculina, mesmo nos laboratórios analíticos.
Na engenharia Química, por sua vez, especialidade das mais permeáveis às mulheres10 10 Nesta área, 22% dos empregos formais em 2002 eram femininos (Brasil-MTE/ Rais, 2002). , considerando os relatos das três engenheiras químicas entrevistadas que trabalham (ou trabalharam) em grandes empresas multinacionais, também há campos de trabalho mais receptivos que outros. Se, de um modo geral, em determinados setores da indústria química, como o de artigos de toucador, higiene e beleza, elas chegam hoje a ser preferidas, não foi sempre assim. Na multinacional americana do ramo de higiene, beleza e perfumaria onde trabalham Beatriz e Lorena, engenheiras químicas de, respectivamente, 45 e 27 anos, um ingresso maior de mulheres engenheiras começou a se dar em meados dos anos 80, continuando, porém, os postos de gerência reservados aos homens. No final dos 80, também esses postos começaram a ser franqueados às mulheres, como relata Beatriz, formada em 1981:
Quando comecei me reportava a um homem, aliás, tinha muito mais homens que mulheres, tanto pesquisadores... e a parte de chefia, então, era praticamente masculina, todos. Isso numa empresa genuinamente para a mulher, porque tudo o que a empresa faz, ou a mulher usa ou ela compra. É nossa cliente principal e não tinha mulheres trabalhando na empresa; por um bom tempo quando eu entrei eu me reportei a homens, minha primeira chefe mulher foi em 1988. A partir daí, a coisa foi aumentando bastante; hoje de um total de 12 gerentes, 6 são mulheres.
De todo modo, Beatriz e Lorena, a exemplo de Mirtes - a mais velha engenheira da amostra, hoje com 56 anos, formada em Química em 1970 -, que desenvolveu grande parte de sua carreira numa multinacional da área química, atuavam preferencialmente em atividades de pesquisa e desenvolvimento de produtos, controle de qualidade, marketing. A fábrica, a linha de produção e a alta gerência foram e continuam sendo áreas masculinas de atuação, como se depreende do relato de Mirtes:
...entrei e fui chefiar o controle de qualidade... depois fui montar um centro de pesquisas lá dentro, com laboratório, tudo, uma fábrica em miniatura... depois fui para vendas, controle de qualidade na área de vendas... eu queria ser gerente de usina, mas eles nunca deixaram uma mulher ser gerente lá, até hoje.
Enfim, pode-se afirmar que a engenharia tem-se aberto para o ingresso das mulheres profissionais, ou melhor, as mulheres têm ousado outras especialidades além da Química, Civil e Produção. Como conclui Chantal, engenheira eletrônica francesa, de 55 anos, formada em 1970, associada à Association Française des Femmes Ingénieurs - AFFI -, comparando as condições sociais, culturais e profissionais que enfrentou no início de sua carreira com as que existem atualmente em seu país, o resultado tem sido favorável à engenheira, seja nas empresas, seja no âmbito doméstico e familiar.
Penso que as coisas melhoraram da minha geração para cá... Há também o progresso nas hierarquias das empresas e também muitas mulheres na produção industrial. Há também uma melhoria na vida familiar, ou seja, maior divisão do trabalho doméstico do casal e, além disso, hoje se discute quais escolhas se podem fazer também no âmbito do casal, considerando as possibilidades de carreira tanto dos homens como das mulheres. Antigamente o padrão era a mulher seguir o homem... No passado havia também o problema da licença maternidade, sabia-se que não se progrediria na carreira por causa disso. Hoje, as jovens gerenciam melhor essa questão... Elas não aceitam mais deixar de lado sua vida pessoal em favor da profissional. Há também máquinas domésticas, a possibilidade de trabalhar em casa etc. São progressos importantes que, penso, aos poucos vão facilitar a progressão das mulheres em postos mais altos da hierarquia profissional.
No entanto, ainda que esse movimento de expansão dos espaços de trabalho para mulheres na profissão venha ocorrendo, continua a haver lugares bastante delimitados para sua atuação, seja em termos de áreas ou campos de trabalho, seja no que diz respeito às atividades de trabalho propriamente ditas ou às suas posições nas hierarquias. A dinâmica da divisão sexual do trabalho tem-se encarregado de restabelecer a "ordem de gênero" internamente a esse campo profissional, sinalizando as atividades permitidas às engenheiras e aquelas que ainda não o são, a cada novo nicho, a cada nova subárea de trabalho que se abre nas engenharias. E as imagens e concepções de gênero presentes na sociedade de uma forma geral e na profissão, em particular, continuam exercendo seu papel simbólico, justificando aquela ordem: o feminino subordinado ao masculino.
Emblemática nesse sentido é a fala de Danièle, 44 anos, Ciências da Terra, formada em 1982, na França. Ela traz o exemplo das concepções de gênero atuantes na área da geofísica naquele país, área em que as mulheres se especializam em métodos de prospecção diversos, ocupando postos variados voltados para subáreas que não são costumeiramente as dos homens no mercado de trabalho: aos homens o petróleo, às mulheres a água e outros minérios. Mesmo diploma de engenheiro, trabalho igualmente árduo, mas sexos diferentes, aos quais se atribuem carreiras diferentes, com patamares de remuneração e prestígio diversos.
...isto é, há métodos que pertencem à geofísica geral e que são empregados para a pesquisa mineral da água. As mulheres, em geral, são especialistas nesses métodos, enquanto que a pesquisa de petróleo é um domínio mais masculino.
É uma área mais valorizada, dá mais dinheiro, existem grandes contratos. Já, as especialidades femininas são caracterizadas por pequenos contratos, de menor valor e são menos valorizadas. Isso não quer dizer que os trabalhos de campo realizados pelas mulheres não sejam igualmente duros; também é preciso tirar medidas, fazer prospecções. A prospecção de água e minérios é complementar à de petróleo e acontece que as mulheres estão mais "acantonadas" nessas disciplinas. Na escola não havia essa diferença, mas nas empresas existe.
Vida familiar e conjugal e escolhas profissionais femininas
Quase todas as entrevistadas reconhecem que a fim de conjugar a vida familiar e a carreira foi necessário fazer escolhas profissionais ou pessoais. Assim como Evetts (1994) conclui a partir de estudo realizado com engenheiras inglesas, na nossa amostra de engenheiras foram encontrados diversos arranjos na busca de ajustes entre a vida familiar e pessoal e a vida profissional. Houve engenheiras que em razão da carreira decidiram adiar ou rejeitar a maternidade e algumas optaram pela vida celibatária; outras, decidiram por uma carreira com ascensão mais lenta, pois entre a promoção e a família deram prioridade à vida familiar e aos filhos e, finalmente, para algumas cujo enfoque foi desde o início a carreira, essa questão não chegou a ser posta.
Lembre-se que as interfaces da vida produtiva e reprodutiva, e os problemas que daí advêm, continuam a ter impotância para as mulheres de todas as idades e que, se os homens engenheiros contam com suas esposas para lhes dar suporte no lar, no caso das engenheiras, seja qual for a escolha feita para lidar com a carreira e a vida pessoal e familiar, elas tendem a ser o suporte do lar. Não é de admirar, portanto, que uma pesquisa realizada na Dinamarca, em 25 empresas públicas e privadas, entre engenheiros de ambos os sexos, constatou que uma das principais fontes de estresse na categoria é a falta de equilíbrio entre a vida familiar e a profissional, o que atinge particularmente as mulheres. Não ter o tempo suficiente para dedicar à família e ter a consciência pesada por isso revelou-se uma fonte de estresse mais poderosa do que muitos outros fatores propriamente relacionados ao trabalho para as engenheiras dinamarquesas (The Society of Danish Engineers - IDA, 2003).
Amália informa como planejou os tempos de seu casamento e da maternidade em razão da carreira, antecipando a gravidez ao invés de postergá-la.
...tem uma peculiaridade da minha vida, que eu casei e meu filho nasceu no último ano da faculdade. Foi um planejamento que fiz, porque sabia que depois de formada seria mais difícil... Isso influenciou muito minha rota profissional, não segui uma rota típica de uma engenheira de minas. Acabei indo trabalhar no Instituto de Pesquisas Tecnológicas W porque tinha essa coisa de ficar em São Paulo... nessa época, os empregos mais desejáveis eram trabalhar em empresas mineradoras, fora de São Paulo. Eu tinha uma condição complicada, era casada com um engenheiro de minas e tinha uma criança pequena, então isso me empurrava para os escritórios, com poucas viagens.
Aurélia, professora da escola de engenharia A11 11 Uma das escolas de engenharia da Universidade de São Paulo. , também revela sua opção de construir uma carreira mais lenta em razão da família e dos filhos.
A mulher, pelo fato de ser mãe, não consegue levar a carreira da mesma forma que o homem porque ou ela só se dedica à carreira, ou ela tem que dividir um pouco e aí a carreira dela é mais lenta. Isso não quer dizer que ela seja menos competente, mas ela tem menos tempo... Então eu já sabia que ia ser uma carreira mais lenta mas não me incomodava porque eu queria isso, em primeiro lugar estão meus filhos, em segundo a carreira...
Revela também que a docência lhe convinha pela flexibilidade de horários, imprescindível para atender a família e os filhos pequenos. Mesmo que os melhores empregos estivessem fora dali, na época.
Coincidiu justamente de eu estar com os filhos pequenos e para mim foi muito melhor ficar num emprego público onde o horário era muito flexível. Se eu fosse para um escritório, tinha que trabalhar até 10 horas da noite, às vezes virar a noite porque você tinha que entregar o projeto. Aqui, chega uma certa hora acabam as aulas, mesmo que eu leve coisas para fazer, posso ir para casa.
Na época aquilo era importante para mim, poder sair daqui às 5 horas, almoçar com meus filhos.
Beatriz relata dois episódios que influenciaram profundamente a sua progressão profissional na empresa onde trabalha. O primeiro foi a necessidade de interromper o mestrado por causa do nascimento do segundo filho e o segundo episódio se inscreveu na esfera dos acordos conjugais sobre o desenvolvimento das carreiras profissionais dela e de seu marido, ambos engenheiros. Quando a empresa em que ela trabalha ofereceu-lhe a oportunidade de um estágio na matriz americana, não aceitou porque seu marido não quis acompanhá-la. Essa decisão truncou sua ascensão hierárquica na empresa ou tornou-a mais lenta que a dos colegas homens.
Tinha feito 80% dos créditos quando engravidei do segundo filho e tive que parar novamente porque tinha que amamentá-lo, o trabalho, não dava para conciliar todas essas atividades... depois voltei com ele pequeno, mas mesmo assim eu concluí os créditos, mas ficou faltando a parte experimental e o exame de qualificação... perdi o prazo... O fato de eu ser mulher influenciou negativamente no aparecimento de oportunidades. Quando eu estava aqui há uns quatro ou cinco anos, fui convidada para participar de um programa de treinamento de um ano e meio no exterior, na matriz, nos EUA, e teria de ir com a família.... Meu marido não quis ir, então eu não fui. Perdi essa oportunidade. O fato de ser mulher, ou melhor, de estar casada, dessa idéia que eles ainda têm de que a mulher acompanha o marido, mas o marido não acompanha a mulher... Isso atrapalha um pouco... Se eu fosse um homem seria mais fácil, ele decide que vai e a mulher tem que acompanhar, se vira, deixa de trabalhar. Mas o homem já tem mais restrições quanto a isso. Isso é uma perda de oportunidades, sim.
Essa engenheira, hoje com os filhos adolescentes, considera que a dupla carga de trabalho das mulheres é um fator limitador para as carreiras femininas, bem como os compromissos que se estabelecem no âmbito do casal quanto às carreiras profissionais de ambos.
Também concluiu Marry (1991), em estudo feito com engenheiros formados há 30, 20, dez e cinco anos na região francesa Nord-Pas de Calais, que houve uma evolução positiva na consideração das carreiras femininas nos casais em que o homem ou a mulher era engenheiro. Entre os casais mais velhos, o mais comum era privilegiar a carreira do marido; a mulher tendia a abandonar a carreira definitivamente ou a retomá-la somente depois que os filhos crescessem. Nos casais mais jovens ocorre a gestão conjugada das estratégias profissionais, pois a atividade em tempo integral da mulher é a norma; em casais em que ambos são engenheiros, a autora se deparou com estratégias partilhadas de procura de emprego, seja em regiões onde as empresas não costumam transferir pessoal para outras áreas do país, seja em áreas em que o casal poderá contar com uma rede de suporte e apoio familiar. No entanto, mesmo entre esses casais mais jovens, a gestão conjunta das carreiras repousa em acordos mais ou menos tácitos que atribuem a primazia à carreira do marido, mesmo quando a mulher também é engenheira, como também ocorreu no caso de Beatriz. Esses acordos parecem estar ligados à permanência da atribuição da responsabilidade pela casa e pelos filhos às mulheres, o que as levaria a se excluírem de trabalhos que exigem transferências ou muitas viagens e uma extrema disponibilidade.
Outras mulheres preferiram, como Antonieta (47 anos, Produção, formada em 1980), postergar a maternidade devido às exigências do trabalho e da carreira.
...tenho uma menina de 6 anos... tenho um nível de responsabilidade em que você fica mais tensa (alta gerência de um banco comercial); fui mãe tarde, com 41 anos, sinal de que eu adiei esse projeto... e aí você convive com o filho menos do que queria, ele tem menos, você se cobra... dá para conviver, tem que ter uma infra-estrutura, um apoio, uma babá, empregada, uma escola para deixar o filho... porque o segundo turno é amenizado... então, a tal segunda jornada os homens não têm. Tem uma coisa da mulher também, ela atrasa um pouco a carreira porque eu só tive uma filha, mas tenho colegas com dois ou três filhos... nada, nada é um ano que vai travar a carreira. O homem está progredindo, avançando e você não.
Na mesma linha seguem as entrevistadas mais jovens: elas têm a maternidade no horizonte futuro, mas declaram explicitamente sua intenção de investir na carreira, realizando outros cursos ou se colocando disponíveis para deslocamentos para outra cidade ou mesmo para outro país, se a oportunidade aparecer.
...aqui é uma área que trabalha para a América Latina inteira e está se tornando global, então trabalhar para desenvolver produtos... para o mundo todo eu acho legal, também a possibilidade de talvez trabalhar nos EUA. Existe a possibilidade e se acontecer vou querer, já manifestei minha vontade... sou casada e eu acho que ele iria, depende do momento profissional dele na época. Ele também é engenheiro civil... Pretendo ter criança, mas não logo. (Lorena, 27 anos, Química, 1999)
Agora não tenho como dar atenção, dar espaço para filhos... faço pós em marketing... eu precisava ter uma outra base, achei que faltava. É um MBA. (Jussara, 26 anos, Mecatrônica, 2000)
A cobrança do marido e dos filhos e a decorrente auto-recriminação reaparecem mesmo em lugares como na França, onde os trabalhadores podem optar por jornadas semanais de 35 horas sendo-lhes permitido sair mais cedo todos os dias ou acumular horas para um dia semanal ou quinzenal de folga, e onde as crianças ficam na escola em período integral, como afirma Danièle.
Minha jornada começa às 9h30 e termina por volta das 19h30... Aderi às 35 horas e as horas trabalhadas a mais podem também ser incorporadas nas férias. Conciliar família e trabalho não é tão difícil porque não me desloco muito, não tenho posto de responsabilidade que me obrigue a longas jornadas. Mesmo assim é difícil sair às 19h30 porque sempre tem uma pressão para sair mais tarde... Tenho sorte de ter um marido com horários mais fixos, ele termina às 17h30. Mas há sempre uma certa culpa de minha parte porque vejo as crianças cansadas de irem à escola o dia todo, eles são pequenos ainda, um tem cinco anos outro oito... Com a adesão à RTT [redução do tempo de serviço] tenho direito a ficar com as crianças uma quarta-feira a cada 15 dias, mas nem sempre dá... meu marido reclama disso e dos meus horários à noite, quando chego atrasada para jantar, porque fica por minha conta levar o pão. Então, às vezes tenho que ouvir, "hoje não tivemos pão no jantar".
Também Chantal pôde contar com os horários fixos de seu marido para auxiliá-la na progressão da carreira. Essa engenheira eletrônica, francesa de 55 anos, diferentemente das demais profissionais da sua geração, aceitou todos os desafios que a empresa na qual trabalha lhe propôs ao longo de sua carreira, como cursos de aperfeiçoamento, viagens constantes pela França e para o exterior, trabalho até tarde da noite. Essa situação, contudo, é excepcional mesmo para os padrões franceses.
Fui casada durante 25 anos... Pude seguir minha carreira porque meu marido tinha horários fixos e ajudava muito no cuidado com as crianças. Quando fiz os estudos superiores na área financeira e quando eu ia para o exterior com os clientes, meu marido me rendia em casa... Quando as crianças ficaram maiores passei a participar também de associações... Havia outra coisa, de fato eu ganhava duas vezes mais que meu marido.
Algumas das entrevistadas optaram por não se casar, como Marina, 44 anos engenheira eletrônica e Márcia, 50 anos, engenheira civil ou, ainda, decidiram não ter filhos como Cláudia, 48 anos, que teve seu foco totalmente voltado para a carreira profissional.
Enfim, pode-se concluir que as entrevistadas construíram suas carreiras, inicialmente segundo as possibilidades que se ofereciam na época da sua formatura em suas especialidades, algumas delas procurando ocupar espaços, muitas vezes não muito valorizados, mas disponíveis e nos quais eram mais bem aceitas. Mas essas mulheres não foram agentes passivas das situações. Ao contrário, traçaram seus objetivos profissionais e procuraram segui-los, enfrentaram e continuam enfrentando inúmeros desafios e dificuldades, fizeram suas escolhas, muitas vezes balizadas pela presença de filhos pequenos ou da família e estão conscientes de que estas tiveram influência no ritmo mais lento de progressão que imprimiram às suas carreiras.
Elas são, apesar de tudo, profissionais satisfeitas com suas carreiras, pois conforme a quase totalidade afirmou, fariam tudo de novo, escolheriam a engenharia como profissão e freqüentariam a mesma escola de engenharia. Note-se que a visão positiva da carreira e o prazer do exercício da atividade profissional a despeito das dificuldades encontradas foram detectados em outros estudos. Na França, por exemplo, Marry (2002) ao analisar as impressões sobre a carreira e a profissão, adotando o corte geracional, afirma que o prazer do exercício da profissão foi um traço comum tanto entre as suas entrevistadas mais velhas, as pioneiras, como entre as mais jovens. No Brasil, pesquisa mais antiga, de 1974, realizada por Bruschini (1978), referenda esse padrão: as engenheiras entrevistadas pela autora valorizavam a profissão, sentiam-se valorizadas dentro dela e esperavam progredir na carreira, razões pelas quais não fariam uma escolha profissional diferente, mesmo enfrentando problemas na área pelo fato de serem mulheres.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se afirmar que a posição das mulheres na área de conhecimento e no campo de trabalho da engenharia permanece, ainda hoje, especial e excepcional. No cômputo dos empregos formais, por exemplo, os postos de trabalho femininos não ultrapassam 15% do total e, nas escolas de engenharia, as matrículas femininas representavam 20% em 2002, embora essa proporção tenha-se mostrado crescente na última década. No ambiente profissional, pode-se afirmar que se as mulheres têm ousado outras especialidades além da Química, Civil e, mais recentemente, Produção, continuam existindo lugares bastante delimitados para sua atuação, seja em termos de áreas de trabalho, seja no que diz respeito às atividades de trabalho propriamente ditas, ou ainda à sua posição nas hierarquias das empresas e instituições. A ordem de gênero, transversal à engenharia, classifica/reclassifica e hierarquiza áreas de conhecimento e áreas de trabalho, atividades, atribuições e posições hierárquicas como mais ou menos masculinas ou femininas e as valoriza de forma diferente. Desse modo, em termos da divisão/redivisão sexual do trabalho, pode-se dizer que as regras gerais válidas para todas as especialidades são as seguintes: a. os domínios da produção e da fábrica continuam predominantemente masculinos; b. nos laboratórios, não voltados à produção, predominam as mulheres e naqueles onde há atividades de produção, os homens; c. as atividades de assistência técnica às empresas, as consultorias, as atividades de cunho "relacional" envolvendo clientes, fornecedores, empregados, parecem mais permeáveis à presença das engenheiras; d. nos cargos de alta gerência e direção, a tendência é haver um número menor de engenheiras; e. quando assumem postos de chefia, elas parecem se concentrar em determinadas áreas, como, por exemplo, pesquisa e desenvolvimento de produtos, marketing etc.; f. na direção das áreas de produção e na gerência das fábricas há restrições à presença das engenheiras, mesmo em ramos industriais em que a mão-de-obra feminina é tradicional, como o de produtos de higiene e beleza. Nesse sentido pode-se afirmar que o padrão de inserção das engenheiras no mercado de trabalho se assemelha ao padrão de todas as trabalhadoras, sendo marcado por segregação horizontal (áreas de trabalho) e vertical (ascensão hierárquica).
A maior presença de mulheres como estudantes de engenharia e engenheiras hoje trouxe modificações para a imagem que o próprio grupo faz de si e tem contribuído para quebrar arraigados padrões de gênero presentes no campo profissional. Hoje sua presença é mais bem-aceita que no início da década de 1970, seja no ambiente acadêmico, seja nas empresas. Alguns estereótipos que contribuíram para mantê-las fora da engenharia como um todo e, em particular, de algumas especialidades, áreas de trabalho e atividades têm sido questionados socialmente e, em conseqüência, perderam parte de seu poder de intimidação.
As concepções de gênero e a divisão sexual do trabalho que delas resultam, presentes na sociedade brasileira em geral e em algumas especialidades da engenharia em particular, tiveram influência nas possibilidades de inserção profissional das engenheiras e no desenvolvimento das suas carreiras. E essas possibilidades variaram segundo as gerações de profissionais, uma vez que algumas das concepções de gênero sofreram modificações nos últimos 30 anos. E nesse sentido, a configuração das relações de sexo no interior do grupo profissional está em movimento e parece favorável às mulheres, mesmo que a divisão sexual do trabalho se reproduza internamente a cada novo nicho de atuação que se abre nas engenharias.
________. Rio de Janeiro, 1969.
________. Brasília: Inep, 1977.
________. Brasília: Inep, 1992.
Recebido em: maio 2005
Aprovado para publicação em: setembro 2005
Este artigo apresenta resultados parciais de pesquisa de doutorado da autora, cuja tese foi defendida na Unicamp (Lombardi, 2005).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Jul 2006 -
Data do Fascículo
Abr 2006
Histórico
-
Aceito
Set 2005 -
Recebido
Maio 2005