Acessibilidade / Reportar erro

A reforma do ensino de Patologia na Faculdade de Medicina da UFRJ

As transformações conceptuais que ocorreram na Patologia justificam plenamente os anseios de modificação de seu método de ensino para que possa continuar, historicamente, a base do progresso médico.

Desde o início deste século, a patologia sofre de uma apatia, conseqüente à estereotipia diagnóstica que conduz a um crescente desinteresse; por outro lado, a metodologia histopatológica pouco se modificou nos últimos 100 anos. Poder-se-ia dizer que, além de experimentar uma apatia, a patologia vinha sofrendo, também, de senilidade44. GARDER, D. L. - The diagnosis of histopathology: senility, apathy or disease? Human Pathology, 3: 445, 1972. a despeito de ser ciência relativamente nova. Basta lembrar que o conceito de célula como unidade estrutural e funcional, estabelecido por Schwann, não tem mais de 150 anos.

A patologia moderna não é apenas uma ciência médica básica, mas, verdadeiramente, um ramo da biologia; o que vale dizer que a patologia não está apenas interessada na doença do homem, mas em um amplo espectro biológico que envolve todas as outras formas de protoplasma vivo. Por isto, a patologia é a base da pesquisa médica. O patologista, diante do paciente, pensa fundamentalmente nas alterações morfológicas, estruturais, químicas e funcionais das células e sua resultante nos órgãos. Relaciona tais modificações celulares e teciduais com a história patológica pregressa e o estado atual do indivíduo, e torna-se suficientemente hábil para extrapolar o provável curso da doença. Esta análise que inter-relaciona o papel de todos os fatores contribuintes da doença, não é apenas o fundamento da prática anatomoclínica, mas uma ampla base sobre a qual se constrói a pesquisa em patologia. E esta será tanto mais profícua, quanto mais for envolvida a correlação de disciplinas básicas e aplicadas88. STOWELL, R. E. - Training in pathology as a basis for a career in research. The new Physician, 13: 215, 1964..

A existência de uma patologia de processos gerais e uma anatomia patológica especial constitui a remanescência da patologia de Morgagni e de Bichat, destes dois últimos séculos.

O De Sedibus de Morgagni e o Sepulchretum de Bonet induziram particularmente a caracterização e a classificação das doenças. A análise nosológica baseava-se na dispersão anatômica; assim, asma, pneumonia e hemoptise formavam espécies próprias, por estarem localizadas no peito; o parentesco mórbido se baseava em um princípio de vizinhança orgânica. A introducão da correlacão anatomoclínica, isto é, a relação entre sintomas e sede de lesões constituiu, de acordo com Rayer77. RAYER, P. - Sommaire d'une histoire abrégée de I´anatomie pathologique. Paris, 1818. a grande fonte de progresso médico na época.

Todavia foram necessários 40 anos para que a obra de Morgagni fosse ressuscitada e a coerência anatomoclínica retornasse ao ensino da Medicina, graças à obra de Bichat. No seu Traité des membranes a noção de “espaço” e relação de vizinhança foi substituída por um outro “espaço” definido pela figura do tecido11. BICHAT, X. - Traíté des membranes. Paris, 1827.. Reduz-se assim os volumes orgânicos pelas grandes superfíceis teciduais homogêneas; os órgãos representam, assim, simples “dobras” funcionais. É o espírito cartesiano de Bichat que reduz o volume orgânico ao espaço tecidual.

E é claro que foi a homogeneidade tecidual que induziu à identificação de processos patológicos gerais. Assim, pouco importava que a aracnóide, a pleura e o peritôneo se situassem em diferentes regiões do corpo, se suas membranas sofressem lesões análogas no estado de flegmasia.

Contemporaneamente Petit66. PETIT, M. A. - Traíté de la fièvre entéro-mésentérique. Paris, 1813. introduz na análise anátomo-clínica o tempo mórbido capaz de modificar a leitura essencialmente temporal da clínica. Aliás, foi Hunter que distinguiu dois tipos de fenômenos que a anatomia de Morgagni confundira: as manifestações ao tempo da doença e as que antecedem a morte.

Todavia a introdução de novas ficções em patologia, como a imunoquímica, a genética, a imunologia, acrescentou ao macroscópico, e ao microscópico, o molecular, isto é, uma patobiologia. Esta evolução da patologia deve ser absorvida pela sua rotina a fim de melhorar o controle de qualidade dos serviços de saúde, como, também, deve ser introduzida no ensino22. CARTER, J. R. - A renascence role of anatomic pathology in modem medicine. Human Patology, 8: 237, 1977..

Infelizmente, a principal barreira ao progresso técnico e intelectual nas ciências biológicas tem sido, sempre, a inércia mental e a resistência a novos métodos e novas idéias. É mais fácil manejar um velho método, que dispende tempo, e cujos erros já se conhecem, do que utilizar um método rápido, que ofereça diagnóstico correto, porque este método, às vezes, requer conhecimentos matemáticos ou físicos. É preciso então, no dizer de Gardner, superar a barreira emocional que ainda mantém o microscópio ótico como símbolo subjetivo da patologia clássica44. GARDER, D. L. - The diagnosis of histopathology: senility, apathy or disease? Human Pathology, 3: 445, 1972..

Quando em 1942 Klemperer e cols, introduziram na literatura médica o conceito de colagenoses, em realidade provocaram duas importantes transformações conceituais:

removeram o conceito virchowiano de enfermidade, como conseqüência de lesão celular parenquimatosa e valorizaram o intercelular como sede de doença;

substituíram as arcaicas bases analíticas das doenças por um conceito integrativo, isto é, o agrupamento de doenças através de mecanismos lesionais comuns.

Em recente editorial33. DE PAOLA, D. - Raciocínio médico (ed.). Ars. Curandi, 14: 3, 1981. tivemos a oportunidade de enfatizar que a imunopatologia dava conta de que a intermediação e a resposta eram mais importantes que o agressor, na configuração dos danos estruturais e funcionais. O dano estrutural é caprichosamente dependente da imunorregulação, da higidez dos sistemas biológicos de amplificação, como coagulação, complemento etc. A doença é, pois, uma expressão fenotípica, que deve escapar ao superado postulado de Koch, porque ela é multifatorial e depende de uma pluricausalidade.

A despeito das modificações introduzidas na metodologia diagnóstica e mesmo investigativa da patologia, sua finalidade precípua de desvendar os mecanismos lesivos da estrutura humana não se modificou. O que de fato alterou foi a abordagem a tais mecanismos, uma vez que vários deles atuam simultaneamente transformando o que seria uma simples relação causa-efeito, em espectro complexo de danos, aferíveis em diferentes níveis e compartimentos biológicos.

O conceito de doença transformou-se não apenas pela sua pluricausalidade, mas sobretudo pelas possibilidades de variação de resposta à agressão. A intermediação deixou de ser estereotipada para ser determinada por discriminações genéticas.

O ensino de uma disciplina que variou tanto nos últimos anos em termos de métodos e conceitos deveria, por certo, sofrer as transformações adequadas. Qualquer que seja a operabilidade desta transformação, deverá obedecer às razões básicas de tal transformação:

  1. as modificações fundamentais do organismo que traduzem a perda da homeostase deverão valorizar, ao lado do agente causal e dos danos celulares e teciduais, os possíveis sistemas biológicos de intermediação. Só assim é possível compreender a natureza da lesão, sua conseqüência funcional e sua projeção clínica.

  2. as doenças devem ser ensinadas tendo por enredo, a correlação anatomoclínica. É preciso valorizar a patologia geográfica, o que vale dizer, a abordagem mais profunda de medicina social e profilaxia.

O primeiro tópico é facilmente alcançável através da multi-disciplinaridade, envolvendo ciências básicas. Se o objetivo a ser alcançado é fazer compreender como um agressor é capaz de produzir doença e qual seria o perfil desta doença, as informações sobre agentes causais devem restringir-se às suas relações com o homem em seu ecossistema. Maior ênfase deve ser dada ao conhecimento dos sistemas biológicos que intermedeiam a resposta do homem ao agressor, até mesmo ao nível molecular.

O segundo tópico é cumprido através do sincronismo de programas da anatomia patológica e disciplinas clínicas e cirúrgicas. Neste período as informações devem ser fornecidas através dos métodos utilizados em serviço para a caracterização da doença. Isto significa que a patologia deve ser ensinada, de acordo com o papel que o patologista exerce na vida hospitalar. Esta visão realista permite que se acompanhe pari passu o desenvolvimento do raciocínio diagnóstico, os pendores especulativos do patologista e o armazenamento de informações. Ao final do exercício anátomo-clínico o que se deseja é que o raciocínio básico para o diagnóstico e comportamento da doença parta da antevisão do dano estrutural e não de presuntivo sintoma clínico.

O ensino da Patologia na Faculdade de Medicina da UFRJ, com a reforma curricular introduzida a partir de 1980, ficou ao encargo de duas amplas disciplinas:

  1. Mecanismos básicos de saúde e doença, ensinada no 4o período, engloba as informações da Patologia dos processos gerais, e ainda, de Imunologia, Genética, Psicologia Médica, Medicina Preventiva. De início, estavam incorporados os programas de Microbiologia e Parasitologia. A extensão de tais programas e a impossibilidade de limitá-los sem o risco de deformar o ensino das duas disciplinas, excluiu-as até encontrar-se solução mais racional. Por ora, as informações sobre agressores animados limitam-se ao que o patologista considera fundamental para estabelecer a interação agressão-hospedeiro.

  2. Medicina Clínica I, II e III, ensinada a partir do 5o período, compreende o programa de Patologia Especial ministrado sincronicamente com os temas das especialidades clínicas e cirúrgicas. Os temas são ensinados sob a forma de aulas expositivas, sessões anátomo-clínicas, demonstrações macro e microscópicas, painéis. Cabe a cada disciplina a forma de atuação no ensino integrado, de acordo com a relevância de sua participação.

Em relação à Patologia, o método básico de ensino variará de acordo com o tema e o papel exercido pelo patologista no seu esclarecimento.

A exposição dialogada será fundamental para o entendimento das classificações e ordenações nosográficas e suas implicações. Um exemplo é a classificação dos linfomas e suas implicações terapêuticas.

A demonstração de peças anatômicas é utilizada, fundamentalmente, para a correlação anátomo-cirúrgica. Mas é a única forma, também, de ensino racional - por exemplo, das cardiopatias congênitas.

A microscopia ótica far-se-á acompanhar de informes de microscopia eletrônica, imunofluorescência para a compreensão de glomerulopatias, por exemplo.

O que é importante reconhecer é que os diferentes métodos, sofisticados ou não, utilizados pelo patologista para o discernimento da doença, devem ser os mesmos utilizados no ensino da Patologia.

A autópsia de rotina, que reflete nossa nosologia regional, não deve ser limitada à dissecação anatômica, mas complementada posteriormente com a microscopia ótica, dados bioquímicos completos. É fundamental não só para a correlação de sintomas e lesões, mas, basicamente, para projetar a doença em todos os níveis, desde o molecular, bioquímico até ao clínico, e, se possível, no plano familiar e social.

A patologia é a ciência da doença, a doença é multifacetada; seu ensino é, portanto, multintegrado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    BICHAT, X. - Traíté des membranes Paris, 1827.
  • 2
    CARTER, J. R. - A renascence role of anatomic pathology in modem medicine. Human Patology, 8: 237, 1977.
  • 3
    DE PAOLA, D. - Raciocínio médico (ed.). Ars. Curandi, 14: 3, 1981.
  • 4
    GARDER, D. L. - The diagnosis of histopathology: senility, apathy or disease? Human Pathology, 3: 445, 1972.
  • 5
    KLEMPERER, P., POLLACK, A. D. & BAEHR, G. - Diffuse collagen diseases. J.A.M.A, 119: 331, 1942.
  • 6
    PETIT, M. A. - Traíté de la fièvre entéro-mésentérique Paris, 1813.
  • 7
    RAYER, P. - Sommaire d'une histoire abrégée de I´anatomie pathologique Paris, 1818.
  • 8
    STOWELL, R. E. - Training in pathology as a basis for a career in research. The new Physician, 13: 215, 1964.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1982
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com