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DESINFORMAÇÃO E DEFORMAÇÃO NO ENSINO MÉDICO: A HOMEOPATIA NO CONTEXTO DA FARMACOLOGIA MÉDICA

Resumo:

Na tentativa de identificar passiveis causas relacionadas à difusão de atitudes preconceituosas e distorcidas a respeito da Homeopatia entre docentes, profissionais e estudantes de Medicina, realizou-se ampla consulta a diversos livros-textos de Farmacologia médica. Verificou-se que estes assumem duas posições básicas em relação à Homeopatia: omiti-la, ou afirmar que se trata de prática sem ação curativa, por tanto agindo simplesmente através de efeito placebo. Entretanto, nenhum dos autores menciona referência bibliográfica que confirme a veracidade da conclusão. A realização de pesquisas bem planejadas e controladas sobre a eficácia da terapêutica homeopática, de preferência em instituições de ensino médico, necessita ser estimulada e efetivada na busca de opções terapêuticas mais eficazes, menos dispendiosas e destituídos de efeitos colaterais.

Summary:

In order to identify the possible causes of broad/y spread preconceived and distorted beliefs about Homeopathy among teachers, professionals and students of Medicine, it was carried out a comprehensive review of several Medical Pharmacology textbooks. It was noticed that these take two basic positions about Homeopathy: they either ignore it altogether or state that it is a practice with no real therapeutic effects, therefore working simply through a placebo effect. However, none of the authors quote bibliographical references that confirm such conclusion. The taking place of well planned and well controlled research on the possible effects of homeopathic treatment in distinct pathological processes, preferably by medical schools, needs to be stimulated and effected in search of better, cheaper and side effects-free therapeutic alternatives.

Introdução

A Homeopatia é uma especialidade metodológica no ramo da terapêutica médica e reconhecida pela Resolução 1000/80 do Conselho Federal de Medicina. Tal regulamentação, entretanto, não condiz com a percepção de muitos estudantes, profissionais e docentes médicos, que ainda hoje a relacionam com charlatanismo, empirismo, plantas, chás e até mesmo passes espíritas.

Qual a origem destas distorções perceptivas no meio médico a respeito da Homeopatia? Analisando-se a questão, torna-se obrigatória uma reflexão exploratória sobre a ideologia que permeia o ensino e a prática médica atual, desvelada nos conceitos emitidos em classe pelos professores, definitivamente registrados nos livros-textos médicos, e consolidados nos exemplos de conduta médica diante do paciente.

O ensino médico no Brasil, de inspiração fortemente norte-americana, através do Relatório Flexner, tem enfatizado a segmentação do corpo humano; a compartimentação dos conteúdos de ensino e, conseqüentemente, da prática médica em termos de ações terapêuticas, facilitando a multiplicação de especialidades médicas; a ênfase em tecnologias diagnósticas freqüentemente inacessíveis em comunidades menores pelo seu elevado custo financeiro, e que devem ser importadas dos países tecnologicamente mais evoluídos; e, o que é pior, a ênfase na doença e não no doente, idealmente o alvo de toda a atenção do médico. O questionamento da prática médica atual é uma constante na sociedade, levando os próprios alunos dos cursos de graduação a relacioná-la com palavras como nociva, desumana, desacreditada, incoerente, sofisticada, alto custo, triste, inadequada, comércio, falida, numa angustiante sensação de pessimismo.1 1 ( *)Pesquisa realizada com alunos do 7.o período do curso de Medicina da UFU, 1984.

O comportamento do profissional médico é resultante de suas percepções e concepções, advindas, quer da experiência continuada, quer do conhecimento teórico, calcados firmemente nos seus valores pessoais, necessidades afetivas e objetivos de vida. O exemplo dos mestres e as informações por eles veiculadas constituem fontes importantes na modelagem do futuro profissional. Desta forma, adquirem particular relevo as informações transmitidas aos estudantes de Medicina durante o curso de graduação, notadamente durante o ciclo básico, ocasião em que ainda não têm condições de efetuar um confronto com a prática e uma análise crítica mais profunda das idéias veiculadas pelos professores. E é principalmente neste período que os acadêmicos são informados sobre a Homeopatia, especialmente ao estudarem a disciplina de Farmacologia. Desde que é impossível o registro de dados objetivos referentes às opiniões dos professores a respeito da Homeopatia em salas de aula, decidimos concentrar o foco de nossa análise nos livros-textos de Farmacologia, recomendados atualmente, ou num passado próximo, nas escolas médicas brasileiras, incluindo, portanto, apenas edições em língua portuguesa, ou espanhola.

A Conceituação da Homeopatia nos Livros-Textos de Farmacologia

A maioria dos livros-textos de Farmacologia médica, entre os quais a conhecida obra de Goodman e Gilman, não fornece qualquer informação, ou citação, referente à Homeopatia. Entretanto, em alguns outros livros-textos ela tem sido abordada, de uma forma bastante superficial, integrando geralmente o capítulo dedicado ao histórico da Farmacologia. Nestes autores, como será possível perceber nas transcrições que se seguem, é evidente a posição contrária a qualquer possível ação terapêutica (não-placebo) do medicamento homeopático.

Literalmente, estas são as opiniões destes autores em relação à homeopatia:

In KUSCHINSKY, G. & LUILMANN, H. Manual de Farmacologia, edição de 1969.

- “Placebo - A administração de placebos pode provocar uma melhoria, ou uma cura. A porcentagem de êxitos depende do tipo de doença, da personalidade do paciente e da capacidade de sugestão do médico. Os placebos possuem na prática médica uma missão importante, porém só devem ser utilizados sob duas condições: 1) quando não é possível uma farmacoterapia autêntica, e 2) quando existe a convicção de que mediante este falso medicamento se efetua uma psicoterapia. Muitos dos fármacos que se acham à disposição do médico são de fato medicamentos falsos, porém apesar disto (ou quiçá por causa disto) se utilizam freqüentemente. Observando as limitações indicadas anteriormente, não existe em princípio objeção alguma frente ao uso de placebos, porém deve se fazer uso de substâncias completamente indiferentes, que não tenham ações colaterais farmacodinâmicas. Desde este ponto de vista podem ser recomendados os medicamentos homeopáticos, visto que não possuem nem ações principais nem efeitos colaterais, sendo prescritos de forma intensamente sugestiva e ingeridos com grandes esperanças”99. KUSCHINSKY, G. & LUILMANN, H. Manual de farmacologia. Barcelona, Marin, 1969. 374 p. (p. 301) (Este era um dos livros-textos recomendados pela Organização Pan-Americana de Saúde para o ensino de Farmacologia na América Latina).

In ROCHA E SILVA, M. Fundamentos da Farmacologia e suas aplicações à terapêutica, edição de 1973.

- “Alopatia e Homeopatia: Nas suas origens, a Farmacologia se confunde com a terapêutica e, ainda no começo do século passado, o estudo da ação das drogas era uma ciência altamente empírica, dominada por aventureiros e charlatães. Hoje, tem-se o hábito de chamar alopatas aos médicos que fazem Medicina no sentido exato, científico, em oposição aos homeopatas que seguem as doutrinas duvidosas formuladas por Hahnemann, em fins do século XVIII. No entanto, quando foi criado o termo alopatia, tinha ele uma significação radicalmente diferente da que se lhe atribui hoje. O campeão da doutrina alopática foi o médico inglês Gregory, falecido em 1821. Preconizava ele tratamentos tão drásticos, por meio de sangrias e purgativos que os sintomas eram, por assim dizer, abafados pela violência do tratamento. Geralmente, era o colapso, a forma final de abafar os sintomas e era freqüente a expressão: “Il est mort guéri”.

A Homeopatia, embora sem fundamento científico aceitável, desenvolveu-se, rapidamente como uma tendência natural para corrigir os excessos dos alopatas. Compreende-se que, se em vez dos métodos violentos usados pelos alopatas, o paciente recebia apenas água pura, a natureza tinha melhores oportunidades para exercer, a sua vis medicatrix e o doente de escapar à sanha dos seus curadores. A idéia fundamental de Hahnemann era a de utilizar contra a doença, medicamentos que produzissem no indivíduo normal sintomas semelhantes aos da doença a ser tratada: similia similibus curantur. As drogas deveriam ser administradas em extrema diluição. Na chamada 13a dinamização, quando a diluição seria 1060, de acordo com um cálculo de Clark, a solução não conteria mais do que uma única molécula em volume equivalente ao de uma esfera, com o raio da órbita de Netuno!”1313. ROCHA E SILVA, M. Fundamentos da farmacologia e suas aplicações à terapêutica. 3. ed. São Paulo, EDART-INL, 1973. v. 1. (p. 6). (Na 8a edição da obra de Clark, farmacologista também citado por Litter, o autor faz referência à 30a dinamização, e não à 13a, como correspondendo à diluição de 1 para 1060).

In BAZEROUE, P. Farmacologia odontológica, edição de 1978.

- “Toda a experiência de séculos acumulados pela humanidade cristalizou em distintos sistemas como o hipocrático, ou em formas mais recentes que alcançam até nosso século. Por exemplo a ALOPATIA, proposta por GREGORY (1753-1821), médico inglês, que consistia em uma medicina enérgica destinada a combater a sintomatologia do paciente. Esta terapêutica excessiva, bem como a imprecisão das indicações dos medicamentos e seu freqüente abuso, trouxe como reação o NIILISMO TERAPEUTICO, criado na Escola de Viena por G. Van SNITTEN em 1745 e impulsionado por J. SKODA (1805-1881) que diretamente não usa medicamentos; ou a HOMEOPATIA, criada por Samuel HAHNEMANN (1755-1843), de Leipzig, em 1796, que tem seu fundamento na crença de que os medicamentos têm o poder de curar aquelas doenças cuja sintomatologia se parece aos efeitos do mesmo (similia similibus curantur) e que para tanto devem ser administrados sumamente diluídos às vezes a tal ponto que resulta bastante improvável que uma só molécula da droga esteja incluída na dose administrada do medicamento”11. BAZERQUE, P. Farmacologia odontológica. 2. ed. Buenos Aires, Mundi, 1978. 885 p. (p. 6).

In LITTER, M. Farmacologia experimental y clinica, edição de 1978.

- “Sistemas de Medicina - Homeopatia. Contra o absurdo sistema acima mencionado (alopatia) se levantou Samuel G. F. Hahnemann (1755-1843), médico alemão que em fins do século XVIII fundou a homeopatia, baseada em dois princípios errôneos, o primeiro, que os sintomas da doença devem ser tratados com drogas que produzam os mesmos efeitos que aqueles - similia similibus curantur; o segundo princípio afirma que a ação das drogras se potencializa por diluição - doutrina da potência. Este sistema, cuja vantagem óbvia é não intoxicar o paciente com drogas violentas e permitir que as defesas naturais do doente vençam a enfermidade, caiu logo no absurdo, que persiste até nossos dias, de recomendar a administração de drogas a uma concentração de 1:1060 ou seja, uma molécula da substância em uma esfera com uma circunferência igual à órbita de Netuno2 2 Clark, A.S. Applied Pharmacology. 7. Ed., Londres, J & S. Churchill, 1942. , sendo a quantidade indicada extremamente menor que a de um átomo de substância”1010. LITTER, M. Farmacologia experimental y clínica. 5. ed. Buenos Aires, El Ateneo, 1978. 1991 p. (p. 7).

In SILVA, P. Farmacologia, edição de 1980.

- “Alopatia e Homeopatia - Estes dois sistemas terapêuticos, divergentes, se definem do seguinte modo. A palavra homeopatia vem do grego, de homeo = semelhante, sempre o mesmo e páthos = doença. O sistema homeopático, criado por Samuel Hahnemann (1755-1843), se baseia nos seguintes princípios: 1) experimentação da droga em pessoas sadias para se descobrir seus efeitos a fim de que possa ser empregada contra os mesmos sintomas de pessoas doentes; 2) emprego de somente doses diminutas da droga; 3) administração de uma única droga de cada vez; 4) o tratamento deve visar todo o complexo sintomático do paciente e não apenas um único sintoma. A homeopatia é uma forma elegante de placebo terapia”1414. SILVA, P. Farmacologia. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan , 1980. 1384 p. (p. 11). Dos cinco autores citados, dois deles fazem referência explícita ao farmacologista A.G. Clark, que em seu livro Applied pharmacology, 8a edição, 1933, citado por Carlini44. CARLINI, E.A. Homeopatia: ontem, hoje e amanhã. R. Assoc. Med. bras., 29 (11/ 12) : 210-4, nov./ dez., 1983., assim se refere à homeopatia: “De 1829 em diante, Hahnemann recomendava que a administração de todas as drogas fosse feita empregando-se a 30a potência, isto é, na concentração de 1 para 1060. Tal diluição corresponde à presença de uma molécula da droga ativa numa circunferência igual à órbita de Neptuno”.

Como se pode perceber claramente da análise dos diversos trechos reproduzidos anteriormente, constata-se em todos eles uma deficiência primária em qualquer publicação voltada para a difusão do pensamento científico, de forma isenta: a ausência, em todos os compêndios que se propuseram a emitir parecer conclusivo sobre a Homeopatia, de qualquer citação referente a trabalhos experimentais controlados que tenham verificado a ineficácia terapêutica ou o efeito placebo do medicamento homeopático.

Discussão

Litter define a Farmacologia, em seu sentido mais amplo, como a ciência que estuda as drogas, entendendo-se por droga ou fármaco em sua acepção mais geral todo agente químico que tem ação sobre seres vivos (p. 1)1010. LITTER, M. Farmacologia experimental y clínica. 5. ed. Buenos Aires, El Ateneo, 1978. 1991 p.. Goodman e Gilman77. GOODMANN, L.S. et alii. As bases farmacológicas da terapêutica. 6. ed. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1983. v. 1., numa conceituação mais completa e abrangente, entendem que “em sua totalidade, a Farmacologia compreende o conhecimento da história, origem, propriedades físicas e químicas, composição, efeitos bioquímicos e fisiológicos, mecanismos de ação, absorção, distribuição, biotransformação e eliminação, usos terapêuticos e não terapêuticos das drogas. Como uma substância, em sentido lato, é definida como qualquer agente químico que afeta o protoplasma vivo, o campo da farmacologia é, obviamente, bastante extenso” (p. 1).

Fica claro, pelas definições acima, que o campo de estudo da Farmacologia envolve necessariamente a interação de agentes químicos com os seres vivos, ou seja, ela constitui a ponte entre a química e a biologia, no plano da saúde. Ocorre, entretanto, que o medicamento homeopático é preparado a partir de diluições e dinamizações sucessivas de substâncias minerais, animais e vegetais, atingindo níveis de diluição considerados infinitesimais, o que o desqualifica e descaracteriza como um agente puramente químico, por definição.

A substância de base para a preparação do medicamento homeopático é comumente diluída numa mistura de água e etanol (quando solúvel), numa porcentagem de 70%. Estudos espectroscópicos Raman-Laser das diluições homeopáticas sugerem uma diferença de intensidade entre o espectro do medicamento e o do veículo usado nas diluições33. BOIRON, J. Contribution a l'étude de la structure des dilutions homeopathiques; état d'association du véhicle dans les basses dilutions. Ann. Homeopath. Fr., 21 (4): 25-46, jul./ago., 1979.. A especificidade de cada diluição, preliminarmente explicada pela infinidade de possibilidades de combinação das moléculas de água, de álcool e água e de álcool no veículo, bem como o problema de passagem às diluições homeopáticas exclusivamente “energéticas” (teoricamente acima da 12 diluição centesimal), sem “princípio ativo”, têm sido objeto de estudo e investigação22. BOIRON, J. & LUU-DANG-VINH, C. Estructuras fisico-quimicas de las diluciones homepaticas. Homeopatia, 47(2): 13-39, abr./jun., 1981.)-(1111. NETIEN, G. et alii. Medicaments homéopathiques. Paris, Techniques et documentation, 1980. (Galenica, 16)..

Assim, se o medicamento homeopático é preparado através de diluições sucessivas, constituindo-se em entidades físicas específicas caracterizadas por uma estrutura de associação particular das moléculas3, então a Farmacologia médica deve ampliar seu campo de estudo se pretende ser a área do conhecimento médico mais adequada para se pronunciar cientificamente a respeito da terapêutica homeopática. Evitando perpetrar a falácia conhecida como argumentum ad verecundiam, concretizada nas opiniões sobre a homeopatia, freqüentemente expressas nas escolas médicas brasileiras, em que se aceita acriticamente a conclusão de uma argumentação quando emitida por uma reconhecida autoridade... em questões que estão fora de sua especialidade e área de conhecimento.

Inúmeros trabalhos experimentais em laboratórios, notadamente na França, com utilização de animais e vegetais, atestam a ação das diluições homeopáticas e do princípio da semelhança88. JOLY, P. Recherche fondamentale en homéopathie; expérimentation de laboratoire sur l´animal et le vegetal. In: ENCYCLOPÉDIE Médico Chirurgicale; homéopathie. Paris, Techniques, 1981.)-(1212. PLAZY, M. Pesquisa experimental moderna em homeopatia. Rio de Janeiro, Homeopática brasileira, 1969. 138 p.. O mesmo não se pode dizer; entretanto, em relação a ensaios terapêuticos controlados, por razões de ordem predominantemente estrutural (falta de pesquisadores competentes e interessados, escassez de recursos financeiros e desinteresse dos órgãos governamentais por pesquisas sérias no campo, especialmente das escolas médicas). Do ponto de vista clínico, ainda são bastante insuficientes os trabalhos metodologicamente válidos que evidenciam a eficácia da terapêutica homeopática.

Entre estes, destaca-se um ensaio clínico duplo-cego sobre avaliação da eficácia terapêutica da homeopatia no tratamento de pacientes com artrite reumatóide, realizado na Inglaterra e publicado no British Journal of Clinical Pharmacology66. GIBSON, R.G. et alii. Homeopathic therapy in rheumatoid arthrites; evaluation by double blind clinical therapeutical trial. Br. J. Clin. Pharmacol.: 453-9, 1980.. Este estudo evidencia melhoras clínicas subjetivas e melhoras objetivas estatisticamente significantes no grupo tratado homeopaticamente, o qual não apresentou qualquer manifestação de efeitos colaterais, com um índice de desistência extremamente baixo. Conclui o trabalho que o efeito benéfico foi conseqüência direta da terapêutica homeopática e não do componente psicológico da relação médico-paciente ou devido a uma resposta placebo do medicamento homeopático.

A Homeopatia é uma terapêutica médica baseada no princípio dos semelhantes, que faz uso de medicamentos diluídos e dinamizados para o tratamento de muitas doenças (especialmente processos alérgicos e quadros funcionais), e ao mesmo tempo incorpora uma concepção humanística e global para a compreensão dos processos de doença e cura. Para a homeopatia, a terapêutica deve ser orientada para o tratamento do doente com sua doença, e não só da doença do doente. A individualização do doente é uma etapa fundamental para que se possa prescrever com consciência e ciência um medicamento homeopático. Para o médico homeopata, o ser humano reage como uma totalidade, e também como uma individualidade, revelando sintomas idiossincrásicos que lhe dão a chave para a prescrição terapêutica. Diante de qualquer paciente, a obrigação do homeopata, como deveria ser a de qualquer médico, é explicar a doença e compreender o doente. O paciente é um todo indissociável, um ser biopsicossocial, e assim deve ser abordado e tratado.

Em função de características próprias, a avaliação da eficácia terapêutica da Homeopatia remete à análise de alguns aspectos diferenciais em relação aos ensaios clínicos clássicos. De maneira resumida, estes podem ser assim sumariados:

  • necessidade de individualizar a terapêutica para cada paciente, requerendo ensaios clínicos com controle terapêutico aberto.

  • necessidade de médicos com suficiente competência técnica em prescrever homeopaticamente para o tratamento de cada paciente.

  • necessidade de avaliar a evolução do caso (especialmente em doenças crônicas) tanto sob a ótica do psiquismo e condições gerais como da patologia focai, localizada55. DANTAS, F. A pesquisa clínica em homeopatia; considerações metodológicas. Trabalho apresentado no CONGRESSO BRASILEIRO DE HOMEOPATIA, 17., Salvador; 4-8, set. 1984..

Infelizmente, ainda persiste nos dias atuais a deplorável e retrógrada animosidade e intolerância entre alguns médicos homeopatas e alopatas, radicalizando posições que, antes de beneficiar o doente, estão sedimentadas em bases movediças e sem a desejada consistência teórica. Assim se expressou, respondendo a uma pesquisa perceptual sobre a homeopatia, distribuída durante a realização do XX Congresso Brasileiro de Educação Médica, um graduado professor de farmacologia: “A minha visão do assunto é objetiva, porque desmascara; verdadeira, porque sei distinguir entre ciência real e mistificação; embora esta mantida através de decênios; clara porque sei das enormes somas que estão sendo carreadas aos bolsos dos fabricantes de “medicamentos” homeopáticos assim como dos profissionais “médicos homeopatas”; descrente pelas evidências absurdas, supostamente experimentais que me foram fornecidas até hoje, toda vez em que tive a ingenuidade de inquirir a quem faz da má fé e do embuste uma regra de vida profissional = o médico homeopata”.

Alguns farmacologistas, por outro lado, estão repensando a questão da validade terapêutica da Homeopatia. Admite um deles, em recente artigo, que “minha visão sobre o assunto é aceitar que a Homeopatia pode ter efeito benéfico em certas eventualidades, efeito este que não se consegue interpretar por ação tipo placebo, embora também a explicação dada pelos homeopatas não convença”, adiantando que “quando uma terapêutica resiste por 2 séculos a todas as formas de críticas e ataques, com milhões de pessoas absolutamente convictas de que foram curadas, e é exercida por médicos de honestidade absolutamente inatacável, é muito difícil dizer-se que ela é uma quimera ou fantasia”. E conclui: “não podendo ignorar a realidade, devemos aceitar o fato da eficácia terapêutica da Homeopatia, pelo menos para uma série de moléstias crônicas”.44. CARLINI, E.A. Homeopatia: ontem, hoje e amanhã. R. Assoc. Med. bras., 29 (11/ 12) : 210-4, nov./ dez., 1983.

Este é o atual “estado da arte”. No Brasil, apenas duas escolas ensinam a Homeopatia no ciclo profissionalizante do Curso Médico da UNI-RIO (inicialmente Faculdade Hahnemanniana) e da Universidade Federal de Uberlândia que, de forma institucional, vem procurando desenvolver uma linha de pesquisas sobre avaliação da eficácia terapêutica da homeopatia.

A busca de terapêuticas socialmente apropriadas à realidade brasileira, dentro dos parâmetros de menor custo, maior rendimento, eficácia, viabilidade, aceitabilidade e factibilidade, sem efeitos colaterais, impõe-se no momento atual. Faz-se essencial, portanto, a realização de pesquisas metodologicamente confiáveis sobre a avaliação da eficácia terapêutica da homeopatia, para que, em bases sólidas, possamos adotá-la definitivamente, complementando os recursos terapêuticos tradicionalmente utilizados, ou desligá-la conscientemente do contexto médico atual, como uma terapêutica do passado.

Referências bibliográficas

  • 1
    BAZERQUE, P. Farmacologia odontológica 2. ed. Buenos Aires, Mundi, 1978. 885 p.
  • 2
    BOIRON, J. & LUU-DANG-VINH, C. Estructuras fisico-quimicas de las diluciones homepaticas. Homeopatia, 47(2): 13-39, abr./jun., 1981.
  • 3
    BOIRON, J. Contribution a l'étude de la structure des dilutions homeopathiques; état d'association du véhicle dans les basses dilutions. Ann. Homeopath. Fr, 21 (4): 25-46, jul./ago., 1979.
  • 4
    CARLINI, E.A. Homeopatia: ontem, hoje e amanhã. R. Assoc. Med. bras, 29 (11/ 12) : 210-4, nov./ dez., 1983.
  • 5
    DANTAS, F. A pesquisa clínica em homeopatia; considerações metodológicas Trabalho apresentado no CONGRESSO BRASILEIRO DE HOMEOPATIA, 17., Salvador; 4-8, set. 1984.
  • 6
    GIBSON, R.G. et alii. Homeopathic therapy in rheumatoid arthrites; evaluation by double blind clinical therapeutical trial. Br. J. Clin. Pharmacol: 453-9, 1980.
  • 7
    GOODMANN, L.S. et alii. As bases farmacológicas da terapêutica 6. ed. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1983. v. 1.
  • 8
    JOLY, P. Recherche fondamentale en homéopathie; expérimentation de laboratoire sur l´animal et le vegetal. In: ENCYCLOPÉDIE Médico Chirurgicale; homéopathie. Paris, Techniques, 1981.
  • 9
    KUSCHINSKY, G. & LUILMANN, H. Manual de farmacologia Barcelona, Marin, 1969. 374 p.
  • 10
    LITTER, M. Farmacologia experimental y clínica 5. ed. Buenos Aires, El Ateneo, 1978. 1991 p.
  • 11
    NETIEN, G. et alii. Medicaments homéopathiques Paris, Techniques et documentation, 1980. (Galenica, 16).
  • 12
    PLAZY, M. Pesquisa experimental moderna em homeopatia Rio de Janeiro, Homeopática brasileira, 1969. 138 p.
  • 13
    ROCHA E SILVA, M. Fundamentos da farmacologia e suas aplicações à terapêutica 3. ed. São Paulo, EDART-INL, 1973. v. 1.
  • 14
    SILVA, P. Farmacologia Rio de Janeiro, Guanabara Koogan , 1980. 1384 p.
  • 1
    ( *)Pesquisa realizada com alunos do 7.o período do curso de Medicina da UFU, 1984.
  • 2
    Clark, A.S. Applied Pharmacology. 7. Ed., Londres, J & S. Churchill, 1942.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1985
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