Acessibilidade / Reportar erro

ASPECTOS ÉTICOS DOS CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE

Introdução

O reconhecimento da saúde como um direito humano fundamental constitui etapa inicial para o estabelecimento de um sistema nacional de saúde capaz de atender às necessidades da população. As nações mais evoluídas economicamente apresentam variações no grau de reconhecimento deste direito, com reflexos nos seus respectivos sistemas de saúde.

Por outro lado, o crescimento da consciência sanitária da população, materializado nos movimentos populares de saúde, nas crescentes reivindicações de trabalhadores rurais e urbanos por melhores serviços de assistência médica, bem como a introjeção do princípio do direito à saúde, destacam ainda mais a necessidade de uma política social conseqüente.

É conhecida a interdependência da saúde com o desenvolvimento sócio-econômico, sendo a primeira, ao mesmo tempo, causa e efeito da melhoria da qualidade de vida. Assim, as atividades do setor da saúde devem estar articuladas com outros setores tais como a educação, a agropecuária, o saneamento básico, as comunicações, a habitação, o transporte e o lazer. Devem as atividades de saúde ser desenvolvidas juntamente com medidas objetivando a melhoria da nutrição, o aumento da produção, a elevação do nível de emprego, a distribuição mais justa da riqueza e a proteção e melhoria do meio-ambiente.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de quatro quintos da população não possui qualquer forma de serviços permanentes de saúde. Esses grupos marginalizados vivem principalmente em zonas rurais e favelas urbanas em países do terceiro mundo.

A longa preocupação da OMS com essa grande massa de desassistidos e a convicção de que a assistência médica convencional, centrada no modelo hospitalar, seria incapaz de equacionar o problema, levou-a ao conceito da “atenção médica primária” em 19741515. TORNERO, N. L. et alii. Uma experiência de assistência sanitária primária. Saúde em Debate , (6): 21-6, 1978., culminando com a realização da Conferência Internacional de Alma-Ata, em 1978303. CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE, Alma-Ata, 6-12 set. 1978. Cuidados primários de saúde. Brasília, OMS/UNICEF, 1979. 64p., que contou com a participação de delegações de 134 países e 67 agências das Nações Unidas e entidades não governamentais. O relatório final da referida conferência recebeu ampla acolhida internacional, passando a ser o documento básico sobre cuidados primários de saúde e conseguindo o compromisso da grande maioria dos governos para com as propostas ali contidas, objetivando atingir a ambiciosa meta de “saúde para todos no ano 2000”.

Conceitos

De acordo com o artigo VI da Declaração de Alma-Ata, “os cuidados primários de saúde são cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e autodeterminação. Fazem parte integrante do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. Representam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde as pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde”303. CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE, Alma-Ata, 6-12 set. 1978. Cuidados primários de saúde. Brasília, OMS/UNICEF, 1979. 64p.

Os cuidados primários de saúde devem representar a porta de entrada para um sistema único de saúde regionalizado e hierarquizado em níveis crescentes de complexidade.

Parafraseando MAHLER, Diretor Geral da OMS, a atenção médica primária não é uma medicina primitiva para pessoas primitivas, e sim a ferramenta imprescindível para atingir os elevados objetivos contidos na Declaração de Alma­Ata808. MAHLER, H. Hospital sem paredes. Contact , (37): 5-6, 1984..

Aspectos Operacionais

A assistência primária à saúde pressupõe, além da utilização de tecnologia simplificada e adaptada às condições sócio-econômicas locais, recursos humanos não especializados., participação da comunidade, sem a qual corre-se o risco de cair em simples assistencialismo induzindo a medicalização e criando dependência606. JAMES, H. H. & ACKERMAN . Patterns of primary care that dependency. Am. J. Dis. Child., 138: 530-5, 1984.. A saúde vem da própria consciência que as pessoas têm de seus problemas. Isto representa 90% da assistência primárias808. MAHLER, H. Hospital sem paredes. Contact , (37): 5-6, 1984..

As necessidades de saúde da população esquematicamente podem ser representadas por uma pirâmide em que sua base, constituindo cerca de 80% da demanda, é resolvida em nível de cuidados primários. Os 20% restantes necessitam ser referidos a níveis mais complexos de atendimento (secundário, terciário, etc) que necessariamente fazem parte do todo comum que é o sistema de saúde.404. FRY, J. Primary care. In: ____. Primary care. London, William Heinemann Medical Books, 1980, p. 45-59.

É ilusório supor que as comunidades mais carentes não necessitam de cuidados médicos ditos "sofisticados" ou de alta tecnologia. Convivendo com os mais adversos fatores mórbidos, as referi­ das comunidades, além do grande número de doenças infecto-contagiosas e carenciais condicionadas pelas precárias condições de vida, apresentam também elevada prevalência de enfermidades crônico-degenerativas, exigindo redobrado esforço das autoridades sanitárias.

Admite-se, embora não pacificamente, que os cuidados primários de saúde possam ser realiza­ dos sem a presença do médico. Segundo o objetivo de máximo engajamento comunitário, acredita-se que os chamados agentes de saúde, recruta­ dos na própria comunidade e recebendo treina­ mento específico, bem como outros profissionais de saúde, tais como auxiliares e atendentes de enfermagem, técnicos, enfermeiras etc, possam ministrar com eficiência o atendimento primário.505. HOLLANDA, H.H. Capacitação de agentes de saúde. Contact , (40): 3-15, 1985.

A presença do médico é vista por muitos como um obstáculo à implantação de uma política de cuidados primários de saúde202. CARRICONDE, C. Concepção e método de trabalho em medicina comunitária. Contact, (34): 14-6, 1984.),(909. MAHLER, H. Obstáculos frente a la asistencia primária de salud. Saúde em Debate, (6): 27-31, 1978.),(1010. PROVÊ, G. O médico ajuda ou atrapalha. Contact , (37): 7-9, 1984),(1414. TAYLOR, D. A medicina moderna: uma ilusão? Contact , (37): 3-5, 1984.. Argumentam que o ensino médico compartimentado e calcado na assistência hospitalar, com ênfase excessiva na especialização e ideologicamente identificado com o modelo da Medicina como profissão liberal, faz com que seja quase impossível para o médico formado nas condições acima, lidar com os problemas de saúde fora do ambiente clínico a que está habituado.1010. PROVÊ, G. O médico ajuda ou atrapalha. Contact , (37): 7-9, 1984.

Em contrapartida, os críticos da assistência primária assinalam que a atuação hegemônica dos profissionais para-médicos leva à prática de uma medicina simplificada, um arremedo de medicina que apenas ilude a população e impede o acesso aos outros níveis de atendimento.101. ATENÇÃO primária a saúde. SAÚDE em Debate, (9): 14-20, 1980.

A má distribuição territorial de médicos com excessiva concentração nos grandes centros urbanos e nas regiões mais desenvolvidas do país torna estéril a discussão a respeito da primazia nos cuidados primários de saúde uma vez que cerca de 50% dos municípios brasileiros ainda não possuem médicos e não se conseguiu até o presente momento mecanismo eficaz para reverter esta situação.1313. SERRA, J. C. & PALMEIRA, G. O médico e os serviços básicos de saúde In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 7. Brasília, 24-28 mar. 1980. Anais. Brasília, Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1980. p. 135-44.

Assim, diferentes programas de atenção primária de saúde, à margem de toda essa discussão, vêm empregando pessoas da comunidade treinadas ad hoc, profissionais para-médicos, clínicos gerais e até mesmo médicos especialistas, sedimentando uma experiência que será futuramente de grande utilidade.1212. SANTOS, N. R. Novo profissional de saúde: aspectos da perspectiva em atenção primária e regionalização. R. bras. Educ. Méd. , 4 (1): 21-7, 1980.),(1515. TORNERO, N. L. et alii. Uma experiência de assistência sanitária primária. Saúde em Debate , (6): 21-6, 1978.

Aspectos éticos e políticos

Segundo FRY404. FRY, J. Primary care. In: ____. Primary care. London, William Heinemann Medical Books, 1980, p. 45-59., o sistema de saúde desenvolve suas características através de um processo contínuo de evolução e não por uma revolução radical. Não existe em um dado momento e lugar um sistema capaz de preencher todas as necessidades em nível nacional, regional e local. No planejamento das ações de saúde devem ser levadas em consideração as diferenças culturais, políticas, geográficas, religiosas, sociais, econômicas e filosóficas da população.

A equipe de saúde é um instrumento essencial para a consecução dos objetivos programáticos dos cuidados primários de saúde e deve estar sob a direção e liderança de alguém. Embora este papel tradicionalmente venha sendo desempenhado pelo médico, não significa que somente ele reúna as qualidades exigidas para tal.

Pelo anteriormente exposto, infere-se que haverá delegação de funções ao pessoal para-médico, no sentido de atender às pessoas, diagnosticar e tratar as patologias mais freqüentes, bem como desenvolver práticas de educação para a saúde junto à comunidade.

Esta delegação de competência, embora colidindo com a legislação do país e com os interesses das categorias profissionais que vêem invadidas suas respectivas áreas de atuação, é aceita e incentivada consoante os objetivos maiores dos cuidados primários de saúde.303. CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE, Alma-Ata, 6-12 set. 1978. Cuidados primários de saúde. Brasília, OMS/UNICEF, 1979. 64p.),(404. FRY, J. Primary care. In: ____. Primary care. London, William Heinemann Medical Books, 1980, p. 45-59.),(909. MAHLER, H. Obstáculos frente a la asistencia primária de salud. Saúde em Debate, (6): 27-31, 1978.

Os aspectos legais, políticos e filosóficos envolvidos nesta questão ainda não foram discutidos com os interessados e nem analisados com a devida profundidade.

Do ponto de vista ético - sendo a ética aqui atendida como a ciência que estuda a moralidade dos atos humanos, e, a ética médica, uma forma particular de ética que se preocupa com os problemas morais da profissão médica707. LOPES, J. L. A ética médica na formação do profissional de medicina R. bras. Educ. Méd., 4 (2): 45-52, 1980. - o médico enquanto envolvido na execução dos cuidados primários de saúde está sob a égide dos princípios maiores que norteiam o exercício da Medicina.

Não há que se falar em uma ética aplicada aos cuidados primários de saúde uma vez que nas mais diversas situações em que ocorre a relação médico-paciente, onde se ministra o ato médico, o que está em jogo é a vida humana, cuja dignidade é a mesma no consultório privado do bairro elegante, no ambulatório da previdência social, no hospital público, ou privado, ou no mais humilde posto de saúde da periferia.

Várias questões éticas certamente emergirão na medida em que se instalem serviços sem a necessária preparação da equipe de saúde. É preciso estar alerta, numa verdadeira ação profilática, para evitar que os vícios e deformações profissionais que hoje atentam contra a dignidade da Medicina não sejam incorporados aos cuidados primários de saúde.

Perspectivas

Os esforços no sentido de implementar serviços de saúde capazes de atender às necessidades de toda a população esbarram sempre em uma série de problemas. Parece existir uma equação insolúvel entre a demanda da comunidade, as necessidades reais dos serviços de saúde e os recursos alocados, cujo montante é sempre menor que as duas variáveis anteriores303. CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE, Alma-Ata, 6-12 set. 1978. Cuidados primários de saúde. Brasília, OMS/UNICEF, 1979. 64p.. A essência de uma boa política de saúde consiste na ótima distribuição e no uso racional dos recursos para atender às necessidades comuns. E isto é responsabilidade de todos nós como cidadãos, profissionais, administradores, políticos e governantes.

No momento parece não existir dúvidas de que os cuidados primários de saúde constituem a melhor forma para instrumentalizar uma política capaz de superar a chocante desigualdade no estado de saúde da população. Entretanto, restam ainda muitos problemas a serem resolvidos no campo político, jurídico e institucional.

A ênfase na atenção primária exige um novo perfil para o profissional de saúde. E necessário que o médico tenha sua atenção voltada para os problemas coletivos e não se sinta frustrado ao trabalhar em regiões pobres, mas, sim, estimulado a contribuir na solução desses problemas de saúde1111. SANTOS, N. R. Assistência primária à saúde: alguns aspectos físicos funcionais técnicos e políticos. R. bras. Educ. Méd. , 5 (1): 42-52, 1981.),(1313. SERRA, J. C. & PALMEIRA, G. O médico e os serviços básicos de saúde In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 7. Brasília, 24-28 mar. 1980. Anais. Brasília, Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1980. p. 135-44.. Esse novo médico deve entender não só de doenças, mas também de planejamento, administração e organização, cabendo-lhe, além da aplicação dos conhecimentos técnicos na solução de problemas de saúde, interagir com os demais membros da equipe e participar ativamente nos programas educativos junto à comunidade.

E, por último, cabe ressaltar a grave parcela de responsabilidade que recai sobre a universidade e, em particular, sobre as faculdades de Medicina, frente às exigências na formação desse novo profissional de saúde.

Referências bibliográficas

  • 01
    ATENÇÃO primária a saúde. SAÚDE em Debate, (9): 14-20, 1980.
  • 02
    CARRICONDE, C. Concepção e método de trabalho em medicina comunitária. Contact, (34): 14-6, 1984.
  • 03
    CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE, Alma-Ata, 6-12 set. 1978. Cuidados primários de saúde Brasília, OMS/UNICEF, 1979. 64p.
  • 04
    FRY, J. Primary care. In: ____. Primary care. London, William Heinemann Medical Books, 1980, p. 45-59.
  • 05
    HOLLANDA, H.H. Capacitação de agentes de saúde. Contact , (40): 3-15, 1985.
  • 06
    JAMES, H. H. & ACKERMAN . Patterns of primary care that dependency. Am. J. Dis. Child, 138: 530-5, 1984.
  • 07
    LOPES, J. L. A ética médica na formação do profissional de medicina R. bras. Educ. Méd, 4 (2): 45-52, 1980.
  • 08
    MAHLER, H. Hospital sem paredes. Contact , (37): 5-6, 1984.
  • 09
    MAHLER, H. Obstáculos frente a la asistencia primária de salud. Saúde em Debate, (6): 27-31, 1978.
  • 10
    PROVÊ, G. O médico ajuda ou atrapalha. Contact , (37): 7-9, 1984
  • 11
    SANTOS, N. R. Assistência primária à saúde: alguns aspectos físicos funcionais técnicos e políticos. R. bras. Educ. Méd , 5 (1): 42-52, 1981.
  • 12
    SANTOS, N. R. Novo profissional de saúde: aspectos da perspectiva em atenção primária e regionalização. R. bras. Educ. Méd , 4 (1): 21-7, 1980.
  • 13
    SERRA, J. C. & PALMEIRA, G. O médico e os serviços básicos de saúde In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 7. Brasília, 24-28 mar. 1980. Anais. Brasília, Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1980. p. 135-44.
  • 14
    TAYLOR, D. A medicina moderna: uma ilusão? Contact , (37): 3-5, 1984.
  • 15
    TORNERO, N. L. et alii. Uma experiência de assistência sanitária primária. Saúde em Debate , (6): 21-6, 1978.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1985
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com