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Implicações Éticas do Uso de Animais no Processo de Ensino-Aprendizagem nas Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Niterói

Ethical Issues in the Use of Animals in the Teaching-Learning Process at schools of Medicine in Rio de Janeiro and Niterói, Brazil.

Resumo:

O principal objetivo deste trabalho foi identificar e analisar o uso de animais e dos chamados “métodos alternativos” a este uso no ensino médico, assim como caracterizar a penetração do atual debate acerca da ética no uso de animais entre os professores envolvidos em disciplinas que utilizam animais. Foram identificados sete instituições que possuem disciplinas cujos professores utilizam animais em aulas práticas e/ou demonstrativas. Foram entrevistados os docentes que ministram aulas nessas disciplinas através de um questionário semi-aberto. Os resultados indicaram que quatro das sete instituições utilizam animais em aulas, não havendo, necessariamente, coincidência em relação às disciplinas que fazem esse uso nas diferentes escolas. O animal mais utilizado em aulas é o camundongo e, dentre os métodos alternativos, os recursos audiovisuais. A maioria dos entrevistados não conhece leis brasileiras sobre o uso de animais e considera impossível abolir o uso de animais no ensino. Este estudo demonstra a necessidade de ampliar a discussão da ética aplicada à saúde, incluindo a discussão sobre o uso de animais no âmbito da formação profissional na área biomédica/biologia em nosso país.

Palavras-chaves:
Ética; Bioética; Educação Médica; Bem-estar do animal; Alternativas ao uso de animais

Abstract:

The aim of the present study was to investigate the use of animals and alternatives in medical education, as well as teachers´ attitudes towards use of animals for teaching purposes. Sean medical schools in Rio de Janeiro and Niterói were identified to survey use of animals in teaching activities. A standardized interview on the subject was used as the research instrument. Results indicated that four of the seven institutions used animals in courses, and the data also showed variations from one course to another. The animals most frequently used were mice, and videotapes were frequently mentioned as alternatives. Most respondents were unaware of legislation related to use of animals and reported not believing in the discontinuation of such practice. Conclusions indicated the need to broaden the discussion on applied ethics in the use of animals during medical training.

Key-words:
Ethics; Bioethics; Education, Medical; Animal welfare; Alternatives to animal use

INTRODUÇÃO

A experimentação animal apresenta-se como um aspecto característico do campo biomédico, acarretando grande utilização de animais, com diversas finalidades. Uma das principais categorias de utilização de animais no campo da “experimentação animal” ocorre na área do ensino, isto é, o “uso de animais para fins educacionais”. Em instituições educacionais, os animais são utilizados para demonstrações, dissecção, treinamento cirúrgico, indução de distúrbios com finalidades demonstrativas e projetos científicos relacionados ao ensino11. Rollin BE. The moral status of animals and their use as experimental subjects. In: Kuhse, Singer P. editors. A companion to Bioethics. Oxford (UK): Blackwell Publishers, 1998. p. 41l-422..

De acordo com os defensores desse método de ensino, os objetivos da utilização de animais estão vinculados ao processo de aprendizagem de diversas formas: transmitir conhecimentos, demonstrar processos dinâmicos da vida, bem como a integração dos sistemas, ensinar métodos da pesquisa científica e treinar habilidades manuais e técnicas, entre outros22. Nab J. Reduction of animal experiments in education in the Netherlands. Altern Lab Anim 1990; 18: 57-63.),(33. O´donoghue PN. Animals in education: the hume memorial lecture. 1990; England: UFAW, 29th Nov, 1990.. No entanto, nos últimos 30 anos observa-se um crescente debate sobre o uso de animais em experimentos científicos do ponto de vista de sua legitimidade tanto ética quanto científica.

Tal debate tem sido especialmente motivado pelo crescimento da abordagem ética em relação aos seres sencientes (capazes de sentir dor e prazer), pelo movimento social e científico em prol do bem­estar animal e pelo surgimento das chamadas “alternativas” ao uso de animais. Estas últimas podem ser vistas concomitantemente como resultantes e alimentadoras desse debate44. Roush W. Hunting for animal alternatives. Science 1996; 274: 168-171., pois, à medida que surgem os métodos alternativos1 1 Refere-se a métodos que substituam o animal vivo nas práticas científicas e educacionais. , certas áreas de aplicação do uso de animais tornam-se mais questionáveis. Nesse contexto é que se observa uma incorporação obrigatória desse debate na agenda científica. Isso pode ser observado a partir do controle cada vez maior acerca do uso de animais, através dos movimentos sociais, das legislações e das comissões de ética que atuam nos âmbitos nacional e internacional. Embora existam diversas vertentes de abordagem, assim como uma ampla variação de posicionamentos em relação à questão do uso de animais em atividades científicas e educacionais, um princípio que tem norteado essas formas de controle (leis e atuação das comissões) sobre a utilização de animais é o chamado "3Rs". Esses “3Rs” - replace, reduce, refline - foram propostos em 1959 por Russel & Burch55. Russel WMS, Burch RL. The principles of humane experimental techinique. England, Universities Federation for Animal Welfare,1992. e propõem como metas a serem buscadas pelo pesquisador a “substituição” do animal, a “redução” do número de animais e o “refinamento”, isto é, minimizar a dor e o sofrimento e buscar o bem-estar do animal. No cenário educacional internacional, a adesão aos “3Rs” é cada vez maior66. Balls M. Replacement of animal procedures: alternatives in research, education and testing. Lab Anim 1994, 28: 193-211 .),(77. Shapiro L. Applied animal ethics. New York: Delmar-Thomson Learning. 2000..

Observa-se uma diminuição da utilização de animais na área do ensino biomédico/biológico, motivada pelos seguintes fatores principais: 1 - desenvolvimento de várias opções que se revelam vantajosas88. Eistein R. Can I teach biology wtihout using animals? In: Baker RM, Eisten R, Mellor DJ, Rose MA editors. Animals and science in the twenty-first century: new technologies and challenges. Australia: ANZCCART. 1995. p.59-64.),(99. Milburn C. Introducing animal welfare into the educational system In: Paterson D., palmer M. (org.) The status of animals. Wallingford: CAB International, 1991. p. 73-78; 2 - maior mobilização de alunos baseados no direito à liberdade1010. Orlans FB. In the name of Science: Issues In responsible animal experimentation New York: Oxford University Press, 1996. p. 191- 208.; 3 - maior questionamento acerca do paradoxo em que se coloca o educador ao procurar desenvolver conhecimentos, valores, posturas éticas e agir num contexto cultural de exploração1111. Bowd AD. The educational dilemma. In: Paterson D, Palmer M (org). The status of animals . Wallingford: CAB International , 1991. 52-7.),(1212. Orlans FB, Beauchamp TL, Dresser R, Morton DB, Gluck JP. The human use of animals: cases studies in ethical choice. Oxford: Oxford University Press, 1998.),(1313. Petto AJ. Education and the Use of Animals. In: Bekoff M, Meaney CA. editors. Encyclopedia of Animal Rights and Animal Welfare. Westport: Greenwood Press, 1998. 141-2.; 4 - legislações restritivas, que se pronunciam especificamente a respeito do uso de animais com finalidades de ensino1414. Balcombe J. Dissection and vivisection laws. In: Bekoff M, Mcaney CA editors. Encyclopedia of Animal Rights and Animal Welfare . Westport: Greenwood Press , 1998. p. 144-6.),(1515. Balcombe J. A global overview of law and policy concerning animal use in education. Altern Lab Anim 1999; 27:169..

Quanto às leis voltadas para o controle da vivissecção e dissecção no ensino, pode-se dizer que, principalmente na última década, ocorreram importantes inovações, que resultaram em modificações curriculares. Nos Estados Unidos, por exemplo, de acordo com a última publicação de 1o de abril de 2002 do Physicians Committee for Responsible Medicine1616. Physicians Committee for Responsible Medicine. Medical Schools with no Live Animal Laboratories. [serial on line] 2002. Available from: URL <http://www.pcrm.org>
http://www.pcrm.org...
, 94 faculdades de Medicina não utilizam mais animais em seus currículos, o que corresponde a dois terços do total das escolas médicas daquele país. Na Argentina, todos os estabelecimentos de ensino não podem mais praticar a vivissecção e a dissecção desde 1987, e na Itália, em 1993, foi aprovada a lei que reconhece o direito de qualquer pessoa de se recusar a participar de uma experimentação ou dissecção animal. Também em 1993, a American Medical Student Association1717. American Medical Student Association. Principles regarding animal laboratories in medical education, [serial on line] 1993. Available from : URL: <http://www.pcrm.org>
http://www.pcrm.org> ...
estabeleceu entre seus principais a necessidade de que os cursos que envolvem o uso de animais vivos sejam opcionais quanto ao uso do animal.

A partir dessas observações e das diversas questões que emergem com esse debate, verificadas principalmente em nível internacional, é que surgiu a proposta deste estudo: investigar a questão do uso de animais e das alternativas no ensino, especialmente na área da Educação Médica, levando-se em conta o ponto de vista do professor, em nosso país. Na literatura internacional encontram-se alguns diagnósticos desse tipo1818. Ammons SW. Use of live animals in the curricula of U.S. Medical Schools in 1994. Acad Med 1995, 70: 740-3.)-(2121. Jakobson ME. The use of animals in education. Acta Physiol Scand 1986; 554: 198-207., o que permite, inclusive, acompanhar a evolução dessa questão enquanto em nosso país, tais estudos não forem realizados. Um diagnóstico atual sobre o uso de animais no ensino médico em nosso país, assim como o conhecimento do ponto de vista dos profissionais da área educacional sobre esse debate são fundamentais para incrementar o debate ético, nortear políticas educacionais, especialmente aquelas preocupadas com a questão da “humanização” do futuro profissional, promover o desenvolvimento de novos métodos eficientes de ensino-aprendizagem e assegurar o bem-estar animal.

MÉTODOS

Foram identificadas as instituições de ensino médico, públicas e privadas, localizadas nos municípios do Rio de Janeiro e de Niterói, a partir de informações obtidas no Conselho Federal de Medicina (CFM), sendo uma em Niterói e seis no Rio de Janeiro. Essas instituições foram visitadas pessoalmente, e, por intermédio das coordenações do curso médico ou dos centros acadêmicos, foram selecionadas as disciplinas que envolviam o uso de animais em aulas práticas e/ou demonstrativas no momento desta investigação

A fim de compor a amostra deste estudo, identificaram-se os professores relacionados a essas disciplinas, e o critério de inclusão desses sujeitos na pesquisa foi ministrar aulas nessas disciplinas, independentemente do fato de eles próprios ministrarem aulas práticas e/ou demonstrativas, desde que na mesma disciplina alguém o fizesse.

O instrumento de investigação utilizado foi um questionário semi­aberto com várias perguntas sobre: a disciplina, os animais utilizados e procedimentos referentes aos mesmos, os métodos alternativos, a postura dos estudantes em aulas com animais e a opinião do professor. No momento da entrevista, realizada pessoalmente pela equipe, foi obtido um “consentimento livre e esclarecido” desses professores, cujo teor havia sido aprovado previamente pelo comitê de ética em pesquisa (CEP) da instituição de origem. Os participantes da pesquisa foram informados de que os resultados seriam divulgados de forma que não revelasse os indivíduos, nem as instituições.

Os dados obtidos a partir desses questionários serão apresentados e discutidos de acordo com os tópicos presentes no questionário, destacando-se especialmente as questões que apresentam repercussão sob o ponto de vista da ética aplicada ao uso de animais, em duas formas de abordagem: quantitativa e qualitativa.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As Instituições e as Disciplinas que Utilizam Animais

Das sete instituições de ensino médico identificadas nos municípios trabalhados, três informaram que não estavam mais utilizando animais no curso médico no momento desta investigação. A principal explicação fornecida pela coordenação de curso e/ou direção foi o fato de a instituição ainda não apresentar um comitê de ética no uso de animais. Além desta, outras informações obtidas no ambiente acadêmico revelaram que tais instituições tinham tido problemas recentemente com denúncias sobre o uso indevido de animais, foto que possivelmente acarretou a suspensão do uso de animais em aulas, pelo menos temporariamente. Tais achados confirmam certas características já apontadas em outros estudos relacionados ao contexto atual do uso de animais nas instituições de ensino e pesquisa no país: se, por um lado, há maior preocupação e um estabelecimento crescente de comissões de ética no uso de animais por todo o país2222. Chaves CC, Labarthe N, Paixão RL. Situação atual das comissões de ética no uso de animais em atividade no Brasil. In Anais do 28o Congresso Brasileiro de Medicina Veterinária; 2001 nov 11 - 15: Salvador, SBMV/SMVBA, 2001. p. 33., por outro lado, ainda são poucas as instituições que apresentam tais comissões, e ainda é grande o número de trabalhos científicos sobre o uso de animais em instituições de ensino e pesquisa, sem qualquer controle do ponto de vista ético2222. Chaves CC, Labarthe N, Paixão RL. Situação atual das comissões de ética no uso de animais em atividade no Brasil. In Anais do 28o Congresso Brasileiro de Medicina Veterinária; 2001 nov 11 - 15: Salvador, SBMV/SMVBA, 2001. p. 33.),(2323. Paixão RL, Labarthe N. Reflexões sobre a ética nas pesquisas envolvendo o uso de animais em cirurgia e anestesiologia veterinárias. Rev Bras Ciênc Vet 2002, 9; 41-7.. Tal fato sugere ainda que, de alguma forma, deve estar ocorrendo algum tipo de contestação dessa prática de utilização de animais no âmbito acadêmico, de origem interna e/ou externa à instituição, de tal forma que pareceu mais prudente a esta suspender o uso de animais, já que as instituições citadas aqui não apresentaram uma explicação de que o uso de animais não é mais um “método necessário ao ensino”, nem apresentaram uma justificativa de que agora são utilizados “métodos alternativos”.

A partir das quatro instituições restantes foi obtido um total de 21 entrevistas, a partir de um total de 17 professores, dentre os quais quatro ministram aulas em mais de uma disciplina oferecida ao curso de Medicina e que envolvem o uso de animais. A Tabela 1 ilustra as disciplinas que envolvem o uso de animais em aulas práticas e/ou demonstrativas em relação às instituições em que ocorrem, ao número médio de animais utilizados por período e ao percentual que utilizam do número total de animais envolvidos. Foram identificadas seis disciplinas diferentes segundo a nomenclatura fornecida pelos professores. No entanto, a tabela utiliza a nomenclatura tradicional, a fim de não permitir a identificação institucional. As disciplinas apontadas são as denominadas “disciplinas do ciclo básico”, como biologia celular/bioquímica, fisiologia, farmacologia, imunologia e disciplinas do “ciclo profissional”, como cirurgia geral, além da “iniciação científica”, conforme a denominação fornecida pelos entrevistados.

TABELA 1
Disciplinas que envolvem o uso de animais em aulas práticas e/ou demonstrativas em relação às instituições em que ocorrem, ao número médio de animais utilizados por período e ao percentual que utilizam do número total de animais envolvidos

O maior número de animais é utilizado pela disciplina de iniciação científica, responsável pelo uso de 55% do total de animais envolvidos nessa amostra, o que correspondeu a cerca de 270 animais. Esse número refletiu o uso de animais em projetos de pesquisa dos quais os alunos participavam e, conforme foi revelado, esse número varia muito de acordo com o projeto desenvolvido e, portanto, de período para período. A disciplina de fisiologia utiliza por período cerca de 115 animais. A disciplina de cirurgia revelou utilizar cerca de 17 animais. Além dessas, a biologia celular/bioquímica utilizou 16 animais, a imunologia 37 e a farmacologia 41 animais em aulas práticas e/ou demonstrativas. Estudos similares não citam os números de animais envolvidos em cada uma das disciplinas, o que impossibilitou uma comparação. No entanto, é curioso que uma disciplina como a fisiologia - na qual tradicionalmente os procedimentos são mais demonstrativos do que práticos - utilize um número bem maior de animais (quase sete vezes mais) do que a disciplina de cirurgia, que tradicionalmente invoca a necessidade de “aulas práticas” com a finalidade de treinamento de habilidades manuais.

Utiliza-se aqui o termo “aulas práticas” para aquelas em que os alunos efetivamente realizam procedimentos nos animais, e “aulas demonstrativas” para as demonstrações realizadas geralmente pelo professor (pode ser também por um aluno escolhido no momento ou pelo monitor da disciplina, sob a supervisão do professor), das quais os alunos participam apenas como observadores. Em relação a essa questão, observou-se que, excluindo-se os questionários referentes à disciplina de iniciação científica (n = 6), nos quais todos os professores responderam que os alunos têm a oportunidade de realizar efetivamente os procedimentos nos animais, apenas mais cinco do total de 17 professores responderam afirmativamente a essa questão. Isso caracterizou a ocorrência de “aulas práticas”, embora não tenha sido devidamente esclarecido se todos os alunos participam efetivamente ou apenas alguns. Uma das respostas indicou que nem todos participavam: “há parte que necessita ser feita por pessoas com habilidade técnica”. Seis professores revelaram que as aulas são apenas demonstrativas, enquanto quatro professores relataram não usar animais em suas aulas, embora estejam inseridos em disciplinas que envolvem o uso de animais.

Essa distinção entre aulas práticas e demonstrativas assume maior importância quando se utiliza o argumento da necessidade do uso de animais para desenvolver habilidades técnicas. Esta amostra evidenciou que apenas em três diferentes disciplinas ocorrem as chamadas “aulas práticas”, enquanto para as mesmas disciplinas em outras instituições não ocorrem nem práticas, nem demonstrações (conforme aparecem na tabela as instituições nas quais ocorrem as disciplinas). Isso revela que houve variação entre as instituições quanto às disciplinas que utilizam animais, isto é, pode-se dizer que uma disciplina diferente em cada instituição utiliza animais, com apenas a “iniciação científica” aparecendo em mais de uma instituição. Esse achado é bastante interessante, pois revela que, em conjunto, as disciplinas citadas continuam sendo aquelas que tradicionalmente os utilizam, como, por exemplo, a “fisiologia” e a “cirurgia”2020. Council on Scientific Affairs/American Medical Association. Use of animals in medical education. JAMA. 1991; 266: 836-7.. No entanto, revela também que nem todas as “fisiologias” e “cirurgias” envolvem o uso de animais, o que acarreta uma variação de instituição para instituição. Essa questão já foi apontada por Ammons1818. Ammons SW. Use of live animals in the curricula of U.S. Medical Schools in 1994. Acad Med 1995, 70: 740-3., em 1994, em investigação similar realizada nos Estados Unidos, quando seus resultados revelaram que, embora a maioria das faculdades utilizasse animais vivos, não havia qualquer especificidade em relação ao uso de animais associado a determinado curso ou a uma disciplina em particular. Ou seja, se houvesse de fato necessidade absoluta de utilizar animais em determinados cursos ou disciplinas para melhor formação do aluno, seria lógico que houvesse alguma equivalência em relação às disciplinas que os utilizassem. Além dessa questão, o fato de as mesmas disciplinas apresentarem diferenças de instituição para instituição quanto a usar ou não animais pode também estar de acordo com as recentes conclusões de workshops internacionais sobre o ensino da fisiologia2424. Sefton A, International workshop: modem approaches to teaching and learning physiology. Adv Physiol Educ 2001, 25: 64-6.),(2525. Sefton A, Hansen P. International union of physiological sciences teaching workshop; 2001 Aug 21-24; Lincoln, New Zealand. Lincoln University. Adv Phisiol Educ 2002; 26: 59-65.: o uso de animais em sala de aula está em declínio e o uso de computador é crescente e, cada vez mais, importante para o processo de aprendizagem.

Os Animais e os Procedimentos Realizados

O Gráfico 1 mostra os diferentes animais utilizados nas aulas práticas e/ou demonstrativas.de acordo com o número de citações. Dentre eles, o mais citado foi o camundongo. O cão foi citado em apenas uma disciplina. Tais achados não estão de acordo com o estudo de Ammons1818. Ammons SW. Use of live animals in the curricula of U.S. Medical Schools in 1994. Acad Med 1995, 70: 740-3., que indicou o cão como a espécie mais utilizada (70%) em tais aulas e nas diferentes disciplinas (fisiologia, farmacologia, cirurgia e outras), seguido pelo porco, que não foi citado em nenhuma das entrevistas.

Gráfico 1
Animais utilizados nas aulas práticas e/ou demonstrativas nas faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e de Niterói.

Possíveis explicações para a diferença observada nesses dados seriam maior custo quando espécies maiores são envolvidas e um reflexo do debate ético, que acarreta a alteração no padrão do uso de animais. De fato, a mobilização em torno da questão da ética no uso de animais possibilitou o aparecimento, na mídia, de denúncias de abusos que envolviam principalmente cães e levou à publicação do Decreto no 19.432 de 1o de janeiro de 2001, no município do Rio de Janeiro, que “proíbe a vivissecção e as práticas cirúrgicas experimentais em estabelecimentos municipais”. Os animais envolvidos nesses procedimentos eram, principalmente, cães de rua quem haviam sido capturados. É possível acreditar que tal fato tenha apresentado reflexos nas instituições de ensino, que, em outros tempos, obtinham cães dessas instituições para suas disciplinas.

Em relação à procedência dos animais, do total das 21 entrevistas, excluindo-se os quatro professores que não utilizam animais em suas aulas, apenas três obtêm os animais exclusivamente fora da instituição, sendo citados biotérios de outras instituições e também criadores (por exemplo, de coelhos). A maioria (82%) utiliza animais da própria instituição, ocorrendo também a obtenção de alguns deles, como sapo e rã, através de empresas, paralelamente à aquisição institucional.

Foi identificada a ocorrência de reutilização de animais, na mesma prática ou em práticas diferentes, citadas em duas das 17 entrevistas. Os animais reutilizados o ratos, camundongos, coelhos e sapos. Tal fato constitui uma questão ética de grande importância, pois a reutilização do mesmo animal acarreta acúmulo de estresse e desconforto nesses animais. Dependendo do procedimento realizado, o acúmulo de danos ao mesmo animal pode se tornar cada vez maior, ocasionando intenso grau de sofrimento. Tais achados indicam que motivações econômicas e práticas podem estar prevalecendo sobre considerações éticas, as quais implicam a considerações de um “ponto final humanitário”2626. Van Vlissingen JMF. The re-use of animals for research - a humane endpoint? In: Hendriksen CFM, Morton DB editors. Humane endpoints in animal experiments for biomedical research. In. Proceedings of the International Conference, 1998 nov 22-25; Zeist (NL). London: The Royal Society of Medicine Press. 1999. p.145-7..

Em relação ao método utilizado para “sacrificar o animal”, o mais citado foi o éter (88,2% das citações dos 17 que utilizam animais), usado como método de eutanásia para camundongos, ratos, cobaias e coelhos. Tais achados contrariam as principais diretrizes internacionais relacionadas ao uso de animais e suas recomendações quanto ao método de eutanásia, já que o éter não é indicado como método humanitário de eutanásia para essas espécies2727. Canadian Council on Animal Care (CCAC). Guide to the care and use of experimental animals [serial on line] 1993. 1, 2nd ed., 1993. Available from: URL: <http://www.ccac.ca/>
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. Apenas um dos entrevistados citou o uso de gás carbónico para ratos, camundongos e coelhos. A utilização de gás carbônico é recomendável atualmente para ratos e camundongos, desde que se observe a adequada utilização, mas não é aceitável para coelhos2828. American Veterinary Medical Association (AVMA). Report of the AVMA panel on euthanasia [serial on line] 2000. Available from: URL: <http://www.avma.org >
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. Houve ainda uma citação de “injeção de ar para coelhos, sapos e rã, não ficando claro se o animal estava sob anestesia profunda, o que revela desconhecimento dos chamados métodos humanitários de eutanásia, preconizados no Report of the AVMA Panel on Euthanasia2828. American Veterinary Medical Association (AVMA). Report of the AVMA panel on euthanasia [serial on line] 2000. Available from: URL: <http://www.avma.org >
http://www.avma.org...
) e em outras diretrizes para cuidados dos animais de laboratório2727. Canadian Council on Animal Care (CCAC). Guide to the care and use of experimental animals [serial on line] 1993. 1, 2nd ed., 1993. Available from: URL: <http://www.ccac.ca/>
http://www.ccac.ca/...
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Os Métodos Alternativos

Das 21 entrevistas, 12 (70,5%) citam o uso de métodos alternativos em suas aulas. Dentre as entrevistas que não utilizam nenhum método alternativo, encontram-se as seis relacionadas à disciplina de “iniciação científica”. O Gráfico 2 mostra os principais “métodos alternativos” citados. Dentre eles, os mais citados foram os recursos audiovisuais. Métodos mais recentes e mais sofisticados, como a “simulação computadorizada”, foram menos citados. É interessante observar que as categorias de “métodos alternativos” não constavam do instrumento de entrevista utilizado, cabendo ao entrevistado citar os métodos empregados. Conforme indicado no Gráfico 2, ocorreram citações de “slides” e “aulas expositivas”, o que evidencia um conceito equivocado de “alternativas”.

Gráfico 2
Métodos alternativos utilizados nas faculdades de Medicina dos municípios do Rio de Janeiro e de Niterói.

Em termos de definição, as alternativas que visam substituir o uso de animais são: técnicas físicas e químicas, uso de modelos matemáticos e computadores, uso de organismos “inferiores” não protegidos pela legislação, incluindo invertebrados, plantas e microorganismos, uso de estádios de desenvolvimento embrionário e fetal de vertebrados (até certas fases, dependendo da espécie animal), uso de métodos in vitro e estudos em humanos, seja em voluntários ou estudos epidemiológicos2929. Balls M. Alternatives to animal experimentation Altern Lab Anim . 1983; 11: 56-62.. Essa definição, originária na década de 5066. Balls M. Replacement of animal procedures: alternatives in research, education and testing. Lab Anim 1994, 28: 193-211 ., tornou-se possível especialmente com o desenvolvimento das chamadas biotecnologias de segunda geração e da ciência da computação. Logo, “aulas expositivas’ e “slides” não representam nenhuma abordagem inovadora na proposta de substituir o uso do animal. Ainda assim, o termo “alternativas” tem gerado controvérsias, já que alguns o entendem como “qualquer técnica que reduza a dor e o sofrimento do animal”, enquanto para outros somente os métodos que conduzem à total substituição do animal devem ser chamados de métodos alternativos ou substitutivos3030. Rowan NA, Andrutis KA. Alternatives: a social-political commentary from the USA. Altern Lab Anim 1990; 18: 3-10.. Rowan & Andrutis3030. Rowan NA, Andrutis KA. Alternatives: a social-political commentary from the USA. Altern Lab Anim 1990; 18: 3-10. apontam uma dificuldade da comunidade científica em aceitar o termo “métodos substitutivos” e uma preferência pelo termo “métodos complementares”. De fato, quando os entrevistados foram questionados se as alternativas substituem satisfatoriamente o uso de animais em aulas práticas, l4,2% responderam que sim, 47,6% que não e 38.2% responderam que sim e não. A categoria “sim e não” foi utilizada por alguns professores segundo os quais para algumas aulas pode ser usada alternativa, para outras não. Tais achados sugerem que a maioria dos entrevistados parece ver a, alternativas mais como métodos complementares do que como substitutivos, segundo Rowan & Andrutis3030. Rowan NA, Andrutis KA. Alternatives: a social-political commentary from the USA. Altern Lab Anim 1990; 18: 3-10.. Dentre os que responderam “sim”, houve diferentes justificativas: 1 - a questão ética, isto é, a relação custo-benefício não é compensadora com o uso de animais: 2 - as alternativas se mostraram muito melhores com o uso de bactérias); 3 - as simulações são suficiente, para o aluno de Medicina, para quem “a melhor prática deve ser o acompanhamento de paciente, e não a observação de cobaias”. Essas justificativas, que expressam a opinião dos professores, coincidem com vários trabalhos encontrados na literatura que apontam vantagens dos métodos alternativos sobre os métodos tradicionais com o uso de animais88. Eistein R. Can I teach biology wtihout using animals? In: Baker RM, Eisten R, Mellor DJ, Rose MA editors. Animals and science in the twenty-first century: new technologies and challenges. Australia: ANZCCART. 1995. p.59-64.),(3131. Kramer TAM, Polan HJ. Uses and advantage; of interactive, video in medical training. J Med Educ 1988; 63: 643-4.),(3232. Michael JA. Computers in the physiology classroom: using technology to foster learning with understanding. Adv Phisiol Educ 2001; 25: 69),(3333. Physicians Committee for Responsible Medicine. Emergency care of the trauma patient - human cadavers and simulators offers advantages over animal laboratories. [serial on line] 2002. Available from: URL: < http://www.pcrm.org >
http://www.pcrm.org ...
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Quanto no tempo de implantação dos métodos alternativos, dentre os 12 que os utilizam, 50% deram respostas de intervalos de tempo iguais ou menores que cinco anos. Entre esses 50% estão todos os que empregam métodos propriamente substitutivos, como as simulações computadorizadas e o uso de organismos inferiores, como bactérias, além de vídeos. Os outros 50% incluem os que não responderam ou responderam que tais métodos sempre foram utilizados. Nesse caso, os métodos antes citados por eles como alternativas foram “slides” e “aulas expositivas”, além de técnicas in vitro. Tais achados indicam que a introdução de método, que realmente visam à substituição do animal é recente, tendo ocorrido na segunda metade da década de 90, o que difere de outros achados internacionais99. Milburn C. Introducing animal welfare into the educational system In: Paterson D., palmer M. (org.) The status of animals. Wallingford: CAB International, 1991. p. 73-78, segundo os quais os métodos alternativos já eram amplamente utilizados na década de 80.

A Postura do Estudante em Aulas com os Animais

Em relação à obrigatoriedade da presença dos alunos em aulas práticas/demonstrativas, 16 dos 21 questionários revelaram que “sim”. Nesse total de 21 questionários, estão incluídos os professores de iniciação científica, disciplina na qual era esperada essa obrigatoriedade na participação, por já ser uma disciplina optativa. Dos cinco que responderam não”, dois não utilizavam animais em suas aulas, e os outros três justificaram sua resposta alegando que “deve partir do próprio aluno” ou “há a escolha de religião, escolha individual”. Um dos professores revelou que passou a adotar tal conduta após contato acadêmico com professores da Alemanha. Esses dados sugerem que não é facultada ao estudante, nessas instituições, a escolha de usar ou não o animal. Tais números também indicam que apenas uma minoria dos professores parece estar ciente do debate acerca da questão da “objeção de consciência”, ou apenas a minoria demonstrou disposição em concordar com os “direitos dos estudantes”. Esses achados contrariam uma tendência internacional das políticas relacionadas ao uso de animais no ensino, que protegem aqueles que se recusam a participar de tais aulas em nome da “objeção de consciência”1414. Balcombe J. Dissection and vivisection laws. In: Bekoff M, Mcaney CA editors. Encyclopedia of Animal Rights and Animal Welfare . Westport: Greenwood Press , 1998. p. 144-6.),(1515. Balcombe J. A global overview of law and policy concerning animal use in education. Altern Lab Anim 1999; 27:169.. Vários cursos médicos, em âmbito Internacional, têm optado por oferecer um curso tradicional com animais e um curso sem o uso de animais, para aqueles alunos que se recusam a utilizar animais. No entanto, essa questão da “recusa do aluno” parece ainda não ter alcançado expressividade em nosso país, pelo menos segundo a percepção do professor. Quando perguntado se “algum aluno já se recusou a participar de alguma dessas aulas” (referindo-se a aulas com animais), das 21 entrevistas, apenas três (14%) responderam que “sim”. Um não respondeu, e a maioria (81%) disse que “não”. Em um dos casos em que foi relatada a “recusa do aluno”, a justificativa dada pelo aluno, apontada pelo professor, foi “pena do animal”. Os outros dois revelaram que não havia justificativa explícita, apenas “falavam que não queriam assistir” ou “na hora da prática não fazem”. Diante dessas duas últimas revelações, é possível supor que, se o aluno não se dirigiu ao professor e disse explicitamente que não participaria, o professor não registrou o fato como recusa. Daí, um alto percentual “não recusa” observado na fala dos professores, pois a “recusa silenciosa” traduzida por uma “saída estratégico” não foi registrada.

Ainda em relação à percepção do professor, quanto à reação do aluno frente às aulas práticas e/ou demonstrativas, embora grande parte (43%) tinha respondido que “gostam muito”, “ficam interessados”, “ficam motivados”, 38% não responderam essa questão e 19% demonstraram em suas respostas perceber uma reação diferenciada da parte do alunos, entre os quais alguns gostavam e outros não. Tais resultados devem ser interpretados cuidadosamente, pois, como respondeu um dos professores, “quem faz se empolga”; logo, se uma “recusa silenciosa” não é percebida, também é de esperar que a maior parte dos alunos presente, ou seja aquela que concordou em participar, “aceite bem” as práticas. Uma investigação realizada por Lima3434. Lima JER. Vozes do silêncio Cultura cientifica ideologia e alienação no discurso sobre vivissecção. [dissertação] São Paulo: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. 1995. no Brasil, com estudantes de diferentes níveis, revelou que a prática vivisseccionista é desagradável para a maioria, com 68% dos estudantes universitários referindo-se a ela como um “mal necessário”, e 72,4% dos mesmos estudantes confessando explicitamente seu desagrado. Glick3535. Glick S. Medical student's attitudes about the use of animals for teaching purposes Acad Med 1994; 69: 736-7.) (1994), que investigou especificamente a atitude dos estudantes de Medicina em relação ao uso de animais no ensino em Israel. concluiu que “um percentual surpreendentemente elevado dos estudantes de medicina entrevistados fizeram objeções à dissecção animal e à prioridade da vida humana sobre a dos animais”. Diversos outros estudos, em diferentes níveis do ensino (especialmente no ensino secundário), apontam a experiência da dissecção/vivissecção como desagradável para a maioria dos estudantes3636. Bowd AD. Dissection as an instructional technique in secondary science: choice and alternatives, Soc Anim 1993; 1: 83-9. e indicam a necessidade de que ela seja um componente opcional e não compulsório3737. Barr G, Herzog H. Fetal pig: the high school dissection experience. Soc Anim , 2000; 8: 53-69.),(3838. Cunningham PF. Animals in psychology education and student choice. Soc Anim 2000; 8:191-212..

O Perfil e a Opinião dos Professores

Do total de 17 professores entrevistados, nove são do sexo masculino (53%) e oito do sexo feminino (47%). A faixa etária dos professores variou entre 33 e 57 anos, com 53% acima de 40 anos e 47%, abaixo dessa faixa. Apenas cinco dos entrevistados tinham formação médica, sendo os outros das diferentes áreas da saúde.

Em relação ao conhecimento de leis relacionadas no uso de animais no ensino, apenas três (18%) dos 17 professores revelaram que conheciam alguma lei. Quando perguntados sobre qual era a lei, referiram-se, segundo suas próprias palavras, a: 1 - “um projeto da lei”; 2 - “a lei de 1979, que não foi regulamentada ainda”; 3 - “lei alguma coisa”. Os demais professores (82%) declararam não ter conhecimento de lei sobre isso. Tais resultados indicam que nenhum dos professores entrevistados conhece a chamada “lei de crimes ambientais” - Lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 -, regulamentada pelo Decreto no 3.179 de 21 de setembro de 1999. No que se refere ao uso de animais no ensino, essa lei estabelece que “experiências dolorosas ou cruéis em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, são considerados crimes, quando existirem recursos alternativos”. Além disso, há atualmente um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional (projeto de lei 3.964 de 1997, apensado ao projeto 1.153 de 1995), o qual foi citado por apenas um dos professores, embora tenha sido apresentado e supostamente discutido por instituições científica, do país (Fesbe, SBPC, Fiocruz, Cobea, Academia Brasileira de Ciências). A partir desses dados, que evidenciam a ausência de um debate maior sobre a questão da ética aplicada aos animais, é possível supor que os estudantes também não tenham acesso a essas informações e discussões durante o processo de Educação Médica, embora esse dado não tenha sido investigado neste estudo. Um interessante estudo de Wiebers e colaboradores3939. Wiebers DO, Barrons RA, Learning J, Ascione FR. Ethics and animal issues in US medical education. Med Educ 1994; 28:517-523. demonstrou que, na década de 90, nos Estados Unidos, já existia uma abordagem de ética aplicada aos animais em diferentes cursos relacionados a “ética em biomedicina”. Assim como Wiebers e colaboradores3939. Wiebers DO, Barrons RA, Learning J, Ascione FR. Ethics and animal issues in US medical education. Med Educ 1994; 28:517-523. sugeriram no fanal do trabalho, esse debate ético sobre o uso de animais deveria constar do currículo médico.

Porém, quando questionados sobre a importância de uma legislação, 88,2% informaram considerar importante/necessária a elaboração de uma legislação que regule o uso de animais no âmbito didático-científico. Dentre esses, a maior importância atribuída à legis lação foi pela necessidade de evitar abusos. Dos 11,8 % que não acham importante uma legislação sobre a questão, um justificou sua opinião alegando que acreditava serem mais adequadas “recomendações éticas sobre o uso de animais”, e não propriamente uma lei sobre a questão. Outra justificativa para o posicionamento contrário à legislação foi o apelo à “autoridade do professor”, isto é, o professor é quem teria a competência para saber quando utilizar ou não. Relacionada a essa questão da “autoridade do professor”, Jacobson2121. Jakobson ME. The use of animals in education. Acta Physiol Scand 1986; 554: 198-207., em 1986, afirmou que as decisões sobre a necessidade do uso de animais (e sobre que tipo de uso) se baseavam muito mais na autoridade dos educadores experientes, do que na força das evidências publicadas, que eram, até então, muito poucas. A manutenção dessa postura pode revelar um desconhecimento das evidências mais recentemente publicadas.

A maioria (76,4%) não acha possível abolir o uso de animais no ensino médico e 23,6% acredita que é possível substituir o animal. Em relação às vantagens e desvantagens apresentadas pelos entrevistados no uso de animais para a formação do estudante de Medicina, é interessante observar que apenas 35% (seis professores) citam como desvantagem o “sofrimento do animal e/ou o sacrifício do animal”, enquanto outros 35% não vêem nenhuma desvantagem com o uso de animais, e o restante (18%) - excluindo-se dois, que não responderam (12%) - cita motivos financeiros como a única desvantagem. Tais achados, especialmente o fato de não ter sido unânime a citação do ponto de vista do sofrimento do animal, indicam que, assim como apontado por Balls4040. Balls M. The biomedical sciences and the need for less-inhumane animal procedures, In: Hendriksen CFM, Morton DB. editors. Humane endpoints in animal experiments for biomedical research. Proceedings of the International Conference, 1998 nov 22-25; Zeist (NL), London: The Royal Society of Medicine Press, 1999. p.1-4., parece haver “uma falta de consciência do sofrimento animal”. Em outro estudo, Phillips4141. Phillips MT. Savages, drunks, and lab animals: the researcher's perception of pain. Soc Anim 1993, 1:1-16. afirma que muitos cientistas vêem os animais de laboratório como criaturas que existem somente para os propósitos científicos e, embora saibam que os animais são capazes de sentir dor, raramente identificam a dor e o sofrimento em seus laboratórios. Dessa forma, segundo Phillips4141. Phillips MT. Savages, drunks, and lab animals: the researcher's perception of pain. Soc Anim 1993, 1:1-16., “o que eles vêem quando olham para o animal é um objetivo científico e não a experiência subjetiva do animal, o que parece ter ocorrido com a maior parte dos entrevistados neste estudo, quando não mencionaram a experiência subjetiva do animal.

CONCLUSÕES

Este estudo permitiu concluir que a maior parte das faculdades de Medicina nos municípios estudados utiliza animais em aulas práticas e/ou demonstrativas em suas disciplinas, as quais continuam sendo as que tradicionalmente têm utilizado animais. No entanto, o uso do animal não representa especificidade em relação a nenhuma das disciplinas, já que não se observa tal uso na mesma disciplina entre diferentes instituições. Embora o estudo tenha sido realizado apenas em dois municípios do mesmo estado, é possível supor que tais aspetos ocorram também em outros estados do país na área da Educação Médica, por não existirem indícios de que a situação nesses municípios seja substancialmente diferente em outras regiões do pais.

Os dados aqui apresentados sugerem que os professores tendem a ver as alternativas como métodos complementares e não capazes de substituir o uso do animal. Tal fato pode estar associado ao pouco conhecimento em relação aos métodos alternativos, à introdução relativa mente recente de algumas alternativas e ao pouco uso de métodos alternativos mais sofisticados, que já se encontram disponíveis, como as simulações computadorizadas.

De modo geral, observou-se um distanciamento dos professores do debate ético que envolve os animais, assim como um desconhecimento em relação a aspectos técnicos relacionados aos animais de laboratório e à ciência do bem-estar animal, tal como o desconhecimento de técnicas humanitárias de eutanásia. A análise das entrevistas revelou também a presença de uma postura antropocêntrica em grande parte, o que pode ser explicado pela não percepção do sofrimento animal, uma vez que estes passam a ser vistos apenas como “objetos de estudo” necessários à ciência. Nesse caso, confirmou-se também o paradigma da biomedicina moderna, no qual a vivissecção é indispensável e, portanto, não questionável, o que se refletiu na impossibilidade de opção dos estudantes em relação a essa prática.

Apesar de os aspectos citados terem predominado, foi possível perceber também que algumas modificações nesse cenário já estão em curso, embora pareçam emergir de uma forma “silenciosa”, talvez não consentida ou não manifesta pelos educadores que ainda usam animais. Tal fato pode ser explicado pela existência de instituições que não utilizam mais animais, preocupação com o estabelecimento de comissão de ética, mudança no padrão do uso de animais, como, por exemplo, a rara utilização do cão, e a presença de métodos alternativos, ainda que não os mais modernos.

Chama-se a atenção aqui especialmente para a necessidade de utilizar métodos educacionais inovadores e de criar espaço para a discussão da ética aplicada aos animais, tanto entre os professores quanto entre os estudantes. É fundamental que, além de transmitir informações, o ambiente acadêmico seja capaz de possibilitar o desenvolvimento de um espírito crítico, reflexivo quanto aos valores a serem eleitos ao longo de suas vidas e, sobretudo, sensível ao sofrimento do “outro”, seja este o paciente de amanhã ou o animal, onde quer que eles se encontrem.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2002

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2002
  • Aceito
    12 Set 2002
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