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Conhecimento de Ética Médica e Aids entre Pacientes HIV+, Alunos de Medicina e Médicos

Knowledge of Medical Ethics and AIDS among HIV- Infected Patients, Medical Students and Physicians

Resumo

Apesar da vasta quantidade de conhecimento sobre o vírus HIV, sua transmissão, clínica e tratamento, as implicações éticas e os dilemas sociais da Aids ainda são poucos discutidos. Os objetivos deste trabalho foram avaliar o que sabem o aluno de medicina, o paciente e o médico sobre ética médica e Aids. Questionários para avaliar noções de ética médica e atendimento ao paciente HIV+ foram aplicados a 50 alunos de medicina (a)53 pacientes HIV+ (Pa), 30 professores (P) e 30 médicos (M). Pacientes referiram discriminação de médicos (20,7%) e família/amigos (32,1%). A necessidade de testar todas as gestantes para o HIV era conhecida por 100% dos PA e M, porém 1/50 A e 3/30 P desconheciam esse fato. Trinta e quatro por cento dos PA e 10% a 16,7% dos A, P e M não sabiam da necessidade de consentimento para realizar o teste HIV. A possibilidade de romper o sigilo profissional no caso de parceiros sexuais era desconhecida por 69,8% dos PA e de 16% a 40% dos A, P e M o direito do adolescente ao sigilo era ignorado por 66% a 76,7% dos alunos e profissionais. Algumas normas dizem respeito ao atendimento aos pacientes infectados pelo HIV, embora contempladas pelo código de ética médica, ainda não são totalmente conhecidas ou aplicadas.

Palavra-chave:
Sida; HIV; Ética Médica; Educação Médica

Abstract:

Despite widespread knowledge concerning HIV and its transmission, clinical characteristics, and the treatment, the ethical implications and social dilemma of AIDS are still scarcely discussed. This study aims to evaluate what medical students, patients, and physicians know about medical ethics and AIDS. Questionnaires were applied to evaluate knowledge on medical ethics and medical care for HIV- infected patients. Some 50 medical students (S), 53 HIV-infected patients (IP), 30 professors (PR) and 30 staff physicians (DR) answered the questionnaire. Patients reported discrimination by physicians (20,7%) and family and friends (32,1%). A full 100% of IP and DR were aware of the need to test pregnant women for HIV, but 1/50 S and 3/30 PR were unaware of this fact. Some 34% of IP and 10% to 16,7% of the S, PR and DR groups were unaware of the need for informed consent to perform the HIV test. The possibility of breaking professional secrecy in the case of sexual partners of HIV infected individuals was unknown to 69,8% of the IP group and 16% to 40% of the S,PR, and DR groups. The right of adolescents to secrecy was unknown to 66% and 76,7% of the students and professionals, respectively. Some norms concerning care for HIV infected patients although covered by the Code of Medical Ethics, are still not fully known or applied.

Key-words:
AIDS; HIV; Ethics, Medical; Education, medical

INTRODUÇÃO

A pandemia de Aids, com os primeiros casos notificados pelo Centro de Controle de Doenças nos Estados Unidos em 198111. Centers for Disease Control. Kaposi’s sarcoma and Pneumocystis pneumonia in homosexual men. MMWR 1981; 30: 305-8. já atinge hoje 34,3 milhões de pessoas em mais de 150 países em todo o mundo22. UNAIDS. Report on the global HIV/AIDS epidemie. 2001 (Capturado em 2001) Disponível em: <Disponível em: http://www.who.org .>.
http://www.who.org...
. No Brasil, o primeiro caso de Aids foi notificado em 1982, e, até março de 2002, 237.588 casos foram notificados ao Ministério da Saúde33. Brasil. Ministério da Saúde. Divisão Nacional de DST/ Aids. Boletim epidemiológico. 2002. [Capturado em 2003] Disponível em: <Disponível em: http://www.Aids.gov.br >.
http://www.Aids.gov.br...
.

A ocorrência (ou a descoberta inicial) da síndrome entre pessoas ou grupos com comportamentos sociais considera dos indesejáveis, como o uso de drogas injetáveis e a opção sexual por indivíduos do mesmo sexo, fez com que a população, de modo geral, inclusive os médicos, revelasse atitudes de intolerância e discriminação quanto a estes pacientes, em bora não haja qualquer evidência técnica ou científica que justifique a segregação dos doentes de Aids como forma de controlar a expansão da doença44. Discacciati JAC, Vilaça EL. Atendimento odontológico ao portador do HIV: medo, preconceito e ética profissional. Rev Panam Salud Publica 2001; 9(4): 234-239..

Assim o profissional da saúde precisa ter, além de conhecimento e atualização técnico-científica a respeito da doença, conhecimentos e conceitos muito bem fundamentados sobre ética médica. Saber até onde manter ou quando romper o sigilo profissional pode constituir um grande desafio.

O ensino de ética médica nas escolas de Medicina ainda não é realizado de forma programática e regular, o que faz com que os alunos tenham noções de ética principalmente por meio da observação do comportamento dos seus professores. Considerando-se que são necessários no mínimo 11 anos para a formação médica dos professores de Medicina (incluindo graduação, residência médica e especialização ou pós-graduação), pode-se concluir que o início do contato destes profissionais com os conhecimentos médicos ocorreu numa época em que a epidemia de Aids estava apenas se iniciando e que o preconceito em relação a estes doentes era a regra e não a exceção. Assim, muitos tiveram que aprender sobre a Aids na prática diária do seu atendimento.

A partir destes fatos, é válido inferir que os alunos de Medicina podem estar recebendo d e seus professores/educadores informações equivocadas sobre aspectos éticos do atendimento e cuidado de portadores do HIV. Por outro lado, a população em geral e os indivíduos portadores da infecção pelo HIV têm informações fragmentadas e permeadas de culpas e fantasias sobre os seus direitos e sobre o que esperar do profissional que os atende.

Considerando todos esses fatos, o objetivo deste trabalho foi avaliar, por meio da aplicação de questionários, o que sabem o aluno de Medicina, o paciente e os médicos (envolvidos ou não com o ensino) sobre ética médica e Aids.

MATERIAL E MÉTODOS

O estudo foi feito por meio da aplicação de questionários formulados para a obtenção de dados sobre o conhecimento de ética médica e Aids entre pacientes, alunos de Medicina e médicos. O questionário continha 20 questões sobre noções de ética médica, atendimento ao paciente HIV+, revelação de diagnóstico, segredo profissional, necessidade do teste anti HIV na gravidez e atestado de óbito.

Foram elaborados dois tipos de questionário: um para os pacientes e outro para médicos e alunos de Medicina. As questões, embora semelhantes e algumas vezes comuns, tiveram enfoques diferentes, dependendo do grupo de estudo.

O projeto foi aprovado pelas Comissões de Ética em Pesquisa das duas instituições envolvidas (FMABC - Faculdade de Medicina do ABC, e Unifesp/EPM - Escola Paulista de Medicina).

Este projeto faz parte do programa de Bolsa de Pesquisa para Estudante de medicina na Área de Ética Médica instituído pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, projeto número 080003, ano de 2001.

População Avaliada

Foram selecionados para o estudo quatro grupos distintos de sujeitos: pacientes soropositivos para o HIV acompanhados em serviços universitários, alunos de Medicina, professores de Medicina e médicos com atividade assistencial. A seleção dos pacientes foi feita aproveitando sua presença no serviço médico na ocasião do atendimento. A seleção dos médicos, professores e alunos foi realizada durante os intervalos de aulas e/ ou atividades assistenciais, quando o entrevistador aproveitava esses momentos para aplicar o questionário. Todos os sujeitos envolvidos foram informados das características e objetivos do estudo, sendo assegurado o sigilo sobre as suas identidades e o teor de suas opiniões individuais. O questionário só foi aplicado após consentimento para a participação no estudo. Os grupos foram assim caracterizados:

Grupo Pa - constituído por 53 pacientes com mais de 18 anos de idade, sabidamente infectadas pelo HIV, mães de crianças; atendidas nos ambulatórios de especialidade destinados ao atendimento de Aids pediátrica da FMABC e da EPM/ Unifesp - CEADIPe;

Grupo A - formado por 50 alunos de Medicina cursando regularmente o 4°, 5° ou 6° anos da FMABC;

Grupo P - constituído por 30 médicos exercendo função de ensino nas duas escolas médicas envolvidas: FMABC e EPM/ Unifesp;

Grupo M - formado por 30 médicos em plena atividade profissional nas mesmas instituições (FMABC e EPM/ Unifesp), não envolvidos diretamente com ensino médico.

METODOLOGIA

Todos os questionários para os grupos Pa e A foram aplicados pessoalmente pelo aluno, que aproveitou essa oportunidade para esclarecer e discutir aspectos polêmicos das questões, após obter e registrar as respostas. Nos grupos M e P, devido à pouca disponibilidade de tempo dos profissionais para o procedimento, foi permitido, em algumas ocasiões, que ficassem com o questionário para preenchimento e posterior devolução.

Após a coleta, os dados foram coletados em banco de dados adequado.

RESULTADOS

O grupo Pa foi formado por 53 mulheres soropositivas para o HIV, com idade média de 29,1 anos (variando de 18 a 43 anos), escolaridade predominante de 1° grau (34 mulheres) e tempo médio decorrido após o diagnóstico da infecção pelo HIV de 43,6 meses.

O grupo A foi formado por 50 alunos do curso médico da Faculdade de Medicina do ABC: 24 deles cursaram o 4º ano, 21 o 5° ano, e 5 o 6° ano. A idade média dos alunos foi de 23,3 anos (variando de 20 a 37 anos).

O grupo P foi formado por 30 professores dos cursos médicos da FMABC e EPM/Unifesp. A idade média do grupo foi de 47,5 anos (variando de 29 a 72 anos). Os profissionais desse grupo tinham, em média, 23 anos de formados, e a especialidade mais frequente foi Clínica Médica (20 profissionais).

O grupo M foi formado por 30 médicos que exerciam suas atividades profissionais na FMABC e EPM/Unifesp, mas não estavam diretamente ligados ao ensino médico. A idade média do grupo foi de 30,5 anos (variando de 24 a 62 anos), e o tempo médio de formados, 7 anos. A especialidade mais frequente foi Pediatria (15 profissionais).

Respostas do Grupo Pa

O diagnóstico da infecção pelo HIV foi revelado por médico a 41 das 53 pacientes (77,3%). Destes 41 pacientes, 19 (46,3%) consideraram inadequada a forma da revelação. Das entrevistadas, 16 (30,2%) disseram saber o que era ética médica.

A necessidade de consentimento prévio do paciente para a realização do teste anti-HIV era desconhecida por 34% das pacientes entrevistadas e 10 mulheres (18,9%) referiram não terem sido informadas previamente à realização do teste. Alguns pacientes referiram ter sofrido discriminação em consequência da doença: 11 mulheres (20,7%) foram discrimina das por médicos e 17 (32,1%) por familiares e/ ou amigos. Apesar de temer a discriminação, a maior parte das pacientes (50/53= 94,3%) revelou seu diagnóstico para familiares e/ou amigos. Cinco mulheres (9,4%) referiram que em alguma ocasião já tiveram atendimento médico recusado em virtude da infecção pelo HIV.

A maior parte das pacientes (44/53= 83,0%) tinha consciência do direito ao segredo médico, porém 35 delas (66,0%) desconheciam a possibilidade do rompimento desse sigilo pelo médico a fim de proteger o parceiro sexual. Apenas 26,4% das pacientes não foram avisadas da necessidade de informar sua situação de soropositivas aos seus parceiros sexuais e, de foto, cinco mulheres não o revelaram.

Mais da metade (51%) das entrevistadas referiu saber não ser necessário revelar o diagnóstico de HIV no trabalho. Entre as 26 entrevistadas que trabalhavam, apenas 8 (30,8%) comunicaram sua situação sorológica no ambiente de trabalho, sendo que 16 das 18 que não informaram justificaram sua atitude por vergonha, medo ou preconceito. Quatro pacientes julgavam que, mesmo sem autorização do paciente, o médico poderia romper o sigilo profissional, revelando seu diagnóstico ao patrão.

Considerando-se as crianças HIV+ frequentando escola, 22 mulheres (41,5%) esconderiam este fato da escola, principalmente por medo de preconceito ou discriminação. Entre as 23 mulheres (43,4%) que optaram por revelar esse fato, 10 (18,9%) o fariam por considerar que isto resultaria em um cuidado melhor com a criança e 13 (24,5%) por medo de que está se machucasse e pudesse contaminar os colegas. Apenas 8 pacientes consideraram correto o médico revelar o diagnóstico de infecção pelo HIV de uma criança à escola, mesmo sem autorização dos pais.

Todas as entrevistadas consideraram correta a realização de sorologia para HIV em todas as gestantes, e a maioria delas (43/ 53 = 81,1%) visava com essa medida à proteção e ao tratamento da criança. Caso a mãe recuse a realização do teste durante a gestação, a maioria das pacientes (45/53= 84,9%) considerou correta a investigação sorológica nas crianças logo após o nascimento, mesmo sem autorização dos pais ou responsáveis; 38 pacientes (71,7%) consideraram possível a realização do teste em crianças internadas sem prévio conhecimento ou autorização dos pais ou responsáveis.

Perguntadas sobre a possibilidade de atendimento por médicos infectados pelo HIV, 15 mulheres (28,3%) acharam necessário que este revelasse o fato a seus pacientes.

Respostas dos Grupos A P e M

Todos os sujeitos dos grupos A, M e P disseram saber o que é ética médica embora tenham demonstrado, no decorrer do questionário, noções equivocadas sobre o assunto. Apenas 16% dos alunos (8/50), 20% dos P (6/30) e 26,7% dos M (8/30) referiram já ter assistido a pelo menos uma aula relacionando Aids e ética médica.

Alguns entrevistados (6 alunos, 5 professores e 3 médicos) desconheciam a necessidade de consentimento prévio do paciente ou responsável para a realização do teste anti-HIV, e outros (7 alunos, 1 professor e 1 médico) achavam necessários procedimentos especiais, como uso de luvas e óculos, no atendimento ambulatorial de pacientes HIV+.

Nenhum dos sujeitos do grupo M julgava correta a revelação do diagnóstico para pessoas da família ou amigos sem o consentimento do paciente, mas 3 alunos e 1 professor julgavam correta essa atitude. Em relação aos parceiros sexuais e de drogadição, 84,0% e 76,0% dos A, 60,0% e 46,7% dos P e 76,7% e 70,0% dos M, respectivamente, acharam correta a revelação do diagnóstico ao parceiro. Em relação à possibilidade de o médico revelar o diagnóstico ao empregador de paciente soropositivo, apenas um sujeito de cada grupo (A, P e M) julgou adequado o procedimento. Um número significativo de sujeitos- 10 do grupo A (20%), 6 do grupo P (20%), e 6 do grupo M (20%) - respondeu que considerava correto o médico revelar o fato à escola, no caso de crianças HN +. Mais da metade dos sujeitos de todos os grupos (58% do grupo A,76,7% do grupo P e 53,3%do grupo M) desconheciam o direito do adolescente ao sigilo profissional, que impede o médico de revelar o fato aos familiares sem consentimento do paciente; 15 dos 23 pediatras entrevistados (65,2%) desconheciam esse fato.

A exigência de teste anti-HIV no exame admissional de empregados não foi considerada atitude errada por 32% dos alunos, 13,3% dos professores e 10% dos médicos.

Dezenove alunos (38,0%), 13 professores (43,3%) e 6 médicos (20%) acreditavam ser correta a exigência de exame anti HIV antes de qualquer procedimento invasivo, admitindo, inclusive, a recusa ao atendimento dos pacientes no caso da não realização do exame.

Apenas 3 sujeitos do grupo P ignoravam a necessidade de realização do teste anti-HIV em todas as gestantes; todos os alunos e médicos reconheciam a importância desta recomendação. Caso a gestante se recuse a fazer o exame, apenas 25 alunos, 14 professores e 16 médicos sabiam que o médico não poderia testar a criança após o nascimento sem o consentimento do responsável.

Para os pacientes hospitalizados, a realização do exame anti-HIV sem prévio conhecimento do paciente ou de seu responsável foi considerada correta por 14% dos A, 13,3% dos P e 10% dos M.

Atitudes e conhecimentos sobre a atividade profissional de médicos soropositivos foram divergentes. Quatro alunos, 5 professores e 2 médicos acharam que o médico não deveria continuar exercendo a profissão, principalmente.se realizasse procedimentos invasivos, mas consideraram desnecessária a revelação do diagnóstico a seus pacientes (72% dos A, 83,3% dos P e 86,7% dos M).

A obrigatoriedade de registro do diagnóstico no atestado de óbito em caso de morte de pacientes HIV + era conhecida por 88% dos alunos, 93,3% dos professores e 90% dos médicos, mas 6 alunos, 2 professores e 3 médicos não estavam informados sobre este assunto.

DISCUSSÃO

Muitos estuda e publica, tanto em literatura médica como na mídia, a respeito do vírus HIV: aspectos genéticos, formas de transmissão, aspectos clínicos da doença e formas de tratamento. As implicações éticas e os dilemas sociais dessa doença, entretanto, têm sido pouco divulgados e discutidos.

Conhecer atitudes, valores e preconceitos de pacientes, alunos e médicos em relação ao HIV/Aids é fundamental para que se possa refletir sobre a questão e aprimorar o treinamento e a capacitação dos profissionais, buscando a excelência do atendimento em seu aspecto humano.

A maioria das pacientes entrevistadas desconhece seus direitos de cidadania. Embora 16 pacientes julgassem saber o que é ética médica, apenas 50% destas souberam esboçar de forma clara e coerente o seu significado. A maioria das pacientes (66,0%) referiu saber a necessidade de consentimento prévio para realizar o exame diagnóstico para HIV, mas, para 10 delas, o consentimento não foi solicitado, e aparentemente essa violação do código de ética médica foi aceito de forma passiva: nenhuma delas referiu ter questionado o médico a esse respeito.

Em relação aos grupos A P e M, embora todos tenham dito saber o que era ética médica, boa parte deles tinha conceitos errados sobre o assunto. Realizar teste para diagnóstico do HIV sem prévio conhecimento do paciente foi considerado conduta correta em 10% a 16,7% dos sujeitos desses grupos. A necessidade de ouvir a opinião dos pacientes sobre qualquer procedimento médico que lhes seja proposto parece ainda não fazer parte da rotina do exercido profissional do médico; por essa razão, sua importância talvez não tenha sido explicada e ensinada ao aluno de Medicina. O problema parece não ser só brasileiro, visto que um estudo realizado no Caribe em 1995, com 165 alunos de Medicina, mostrou que apenas 47,7% dos estudantes concordavam em que o teste anti-HIV devia ser feito somente com o consentimento do paciente (55. Wickramasuriya TV. Attitudes of medical students toward the acquired immune deficiency syndrome (Aids). West indian Med J 1995; 44(7): 7-10..

O aconselhamento pré e pós-teste é um dos procedimentos mais importantes quando se quer assegurar a adesão do paciente ao acompanhamento e tratamento médicos. É também um direito de cidadania ser corretamente informado sobre qualquer procedimento médico, sobretudo para a realização de um exame cujo resultado positivo pode acarretar mudanças radicais na qualidade de vida do paciente. A forma como o médico forneceu a notícia de infecção pelo HIV foi considerada inadequada por 19 mulheres, o que pode ter modificado negativamente o real dimensionamento da doença para essas pacientes. Alguns pacientes relataram recusa de atendimento médico em virtude de serem soro positivas, e outras referiram ter sido vítimas de discriminação por parte de familiares/amigos. É possível que a "recusa" do médico ou a discriminação referida pelas pacientes não tenham ocorrido de fato, sendo apenas uma das fantasias que as próprias pacientes fazem sobre a doença, mas a simples possibilidade de esses fatos terem ocorrido após 20 anos de conhecimento da doença coloca em risco todo o progresso que se tem obtido na luta contra o preconceito, que é a pior forma de lidar com a doença. O fato de que 7 alunos e 2 médicos (1 do grupo Me 1 do grupo P) acreditavam ser necessários procedimentos especiais, como uso de luvas e óculos, no atendimento ambulatorial de pacientes HIV +, além de revelar conhecimentos tecnicamente incorretos, mostra a presença de preconceito. O Código de Ética Médica (CEM) do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, em seu artigo l, ressalta que “a Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza” e no seu artigo 47 reafirma que “é vedado ao médico discriminar o ser humano de qualquer forma ou sob qualquer pretexto”66. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Código de ética médica e textos sobre ética, direitos e deveres dos médicos e pacientes. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; 2001..

Muitas pacientes tinham noções corretas sobre sigilo profissional, como o dever do médico de guardar sigilo quanto à sua situação de soropositividade para o HIV, inclusive para pessoas da família ou amigos, para o empregador e para a escola de seus filhos (a não ser que houvesse autorização da paciente). O CEM, em seu artigo 102, afirma que “é vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício da sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente”66. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Código de ética médica e textos sobre ética, direitos e deveres dos médicos e pacientes. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; 2001.. Nossos dados, entretendo, mostraram que os 3 alunos e 1 professor julgaram correto revelar o diagnóstico a pessoas da família ou amigos sem o consentimento do paciente. Esse fato indica desconhecimento das necessidades de sigilo nas relações médico-paciente não só para Aids, mas para qualquer doença.

Grande parte das pacientes (66%) desconhecia o dever do médico de informar o parceiro sexual no caso de elas próprias se recusarem a informá-lo. Entre alunos, professores e médicos, o conhecimento dessa possibilidade era maior do que entre as pacientes, sendo de 84%, 60% e 76,7% nesta ordem, embora se deva considerar que um terço dos professores não julgava que essa atitude faça parte da responsabilidade do atendimento médico. Quando se perguntou sobre a possibilidade de quebra de sigilo para comunicar os parceiros de drogadição, 76% dos alunos, 46,7% dos professores e 70% dos médicos conheciam esse fato, revelando novamente um conhecimento insuficiente dos professores comparado aos dos alunos e médicos. É possível que o abuso de drogas seja um problema mais próximo da realidade dos indivíduos mais jovens (alunos e médicos) do que dos mais velhos (professores), e, por essa razão, a preocupação com indivíduos que partilham seringas e agulhas com o paciente HIV+ tenha originado essas respostas tão diferentes entre os grupos. Na verdade, o médico está ética e moralmente obrigado a comunicar ao parceiro sexual e de drogadição de um indivíduo infectado pelo HIV este fato (desde que tenha acesso a essas pessoas). Mas o procedimento só poderá ser licitam ente realizado pelo médico se: o paciente tiver sido exaustivamente comunicado das prováveis consequências para o parceiro do estabelecimento de relações sexuais inseguras ou não protegidas; o médico tiver evidências de que o paciente expõe o parceiro a risco; e o paciente for adequadamente informado pelo médico da intenção de convocar o parceiro. Haverá aqui, nessas condições, possibilidade de ruptura de sigilo plenamente justificada, posto que se está a proteger de maior relevância que o bem-estar individual: o bem-estar social e a saúde (e mesmo a vida) de outras pessoas. Tem-se aqui em vista o conceito da legítima defesa77. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Aids e ética médica. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo ; 2001..

Quanto à proibição de o médico revelar o diagnóstico ao empregador sem autorização do paciente soropositivo, apenas sete entrevistados desconheciam esse fato. O respeito ao sigilo profissional deve ser rigorosamente mantido em relação aos pacientes com Aids, aplicando-se inclusive aos casos em que o paciente desejar que a condição não seja revelada sequer aos familiares, empregador ou outros grupos sociais ou profissionais em que esteja inserido, persistindo a proibição de quebra de sigilo mesmo após a morte do paciente. Não cabe ao médico revelar informações confidenciais a que tiver acesso no desempenho de suas funções, mesmo quando trabalhar em empresas, exceto nos casos em que seu silêncio prejudique ou ponha em risco a saúde do trabalhador ou da comunidade44. Discacciati JAC, Vilaça EL. Atendimento odontológico ao portador do HIV: medo, preconceito e ética profissional. Rev Panam Salud Publica 2001; 9(4): 234-239..

Um número significante de sujeitos - 8 do grupo Pa (15%), 10 do grupo A (20%), 6 do grupo P(20%) e 6 do grupo M (20%) - respondeu que considerava correto revelar o fato à escola, no caso de crianças HIV +. Conforme portaria interministerial de 1992, é vedada a realização de teste sorológico compulsório, prévio à admissão ou matrícula de aluno em escolas públicas ou privadas. Segundo o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), os alunos sorologicamente positivos não estão obrigados a informar tal condição à direção, a funcionários ou a qualquer membro da comunidade escolar77. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Aids e ética médica. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo ; 2001. Os pais de crianças HIV+ devem conhecer esse fato e ser orientados a fornecer esta informação à escola apenasse considerarem tal revelação justificável e estiverem seguros de que seus filhos não serão vítimas de discriminação.

Além da conduta em relação à escola, outros conceitos errados em relação aos cuidados da criança foram identificados no grupo das pacientes: 84,9% das pacientes acreditavam ser desnecessário obter autorização dos pais ou responsáveis para testar a criança após o nascimento no caso de recusa da mãe durante a gestação, e 71,7% delas acharam aceitável esse fato no caso de crianças internadas. É possível que essas pacientes acreditem que, quando a criança está temporariamente sob os cuidados de médicos, estes têm o direito de exercer tais condutas sem o seu consentimento, obrigando os pais a aceitarem esses fatos com naturalidade, mesmo discordando deles.

Ainda sobre o sigilo médico, foi alarmante a taxa de alunos (58%), professores (76,7%) e médicos (53,3%) que desconheciam o direito ao sigilo do paciente adolescente, ainda mais se considerarmos que, dos 23 pediatras entrevistados, 15 (65,2%) ignoravam essa norma. O Cremesp, por intermédio do CEM, em seu artigo 103, declara que "é vedado ao médico revelar segredo profissional referente a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou responsáveis legais, desde que o menor tenha capacidade de avaliar seu problema e de conduzir-se por seus próprios meios para solucioná-lo, salvo quando a não revelação possa acarretar danos ao paciente"77. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Aids e ética médica. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo ; 2001.. Em situações consideradas de risco - por exemplo, gravidez, abuso de drogas, não adesão a tratamentos recomendados, doenças graves, risco à vida ou à saúde de terceiros -e frente à realização de procedimentos de maior complexidade, como, por exemplo, biópsias e intervenções cirúrgicas, torna se necessária a participação e o consentimento dos pais ou responsáveis, Em todas as situações em que se caracterizar a necessidade de quebra do sigilo médico, o adolescente deve ser informado, justificando-se os motivos para essa atitude.

A importância do diagnóstico da infecção pelo HIV na gestação felizmente já não apresenta dúvidas entre as pacientes soropositivas, alunos e médicos entrevistados. O Cremesp, por meio da Resolução 95/2000, de 14 de novembro de 2000, tomou obrigatório o oferecimento, pelos médicos, do teste anti HIV às gestantes: “é dever do médico solicitar à mulher, durante o acompanhamento pré-natal, a realização do exame para detecção do HIV, com aconselhamento pré e pós-teste, resguardado o sigilo profissional”. A informação de que o exame anti-HIV foi solicitado, bem como o consentimento ou a negativa da mulher em realizar o exame devem constar no prontuário médico77. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Aids e ética médica. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo ; 2001.. Esta medida, além de ser um dever médico, é também um direito da mulher.

O médico infectado pelo HIV tem o mesmo direito ao sigilo que o paciente. Enquanto assintomático ou sem limitações capazes de prejudicar-lhe a competência profissional, pode continuar trabalhando, e considera-se não obrigatório de sua parte informar o paciente sobre a infecção (77. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Aids e ética médica. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo ; 2001.),(88. Conselho Federal de Medicina. Simpósio de Aids e ética médica. Bioética 1993; 1(1): 27-31.. Apenas 11 dos A, Pe M acharam que o médico não deveria continuar exercendo a profissão, principalmente se realizasse procedimentos invasivos, mas, em sua maioria, discordaram da necessidade de revelar este fato aos pacientes. Entre as pacientes, 15 mulheres (28,3%) acharam necessário que o médico revelasse o fato a seus pacientes. As opiniões a esse respeito são discordantes, e, como o risco de transmissão do HIV é muito baixo nos procedimentos médicos, exigir que o profissional médico informe seus pacientes ou proibí-lo de exercer suas atividades muito provavelmente só aumentaria o preconceito contra os doentes.

Por último, na análise do preenchimento do atestado de óbito, 6 alunos, 2 professores e 3 médicos mostraram desinformação sobre o assunto, pois consideraram correto omitir o diagnóstico de HIV no atestado de óbito quando isto fosse solicitado pela família do paciente. O CEM, em seus artigos 116 e 44, estabelece que "é vedado ao médico expedir boletim médico falso ou tendencioso ou deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infringir a legislação pertinente"66. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Código de ética médica e textos sobre ética, direitos e deveres dos médicos e pacientes. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; 2001..

As diferenças entre as taxas de acertos dos profissionais permitem considerar que médicos com menos tempo de formados tiveram maior chance de ter recebido informações a respeito da Aids em sua formação acadêmica. Já os médicos com mais tempo de exercício profissional adquiriram o hábito de analisar os fatos médicos com mais bom senso, o que os faz tomar atitudes mais sensatas, que na maioria das vezes estão de acordo com o código de ética médica.

A inclusão do tema ética médica na formação dos médicos poderá minimizar os sentimentos de impotência, angústia e ansiedade que permeiam a relação médico-paciente quando se cuida de um portador de uma doença acompanhada de tantas dúvidas e medos por parte não só dos pacientes, mas de toda a sociedade.

CONCLUSÕES

Apesar de todos os indivíduos dos grupos A P e Me 16 pacientes (grupo Pa) considerarem que sabiam o conceito de ética médica, o conhecimento efetivo deste assunto entre os entrevistados foi insuficiente.

Este estudo revelou que as seguintes normas, que dizem respeito ao atendimento de pacientes infectados pelo HIV, embora contempladas pelo Código de ética Médica, ainda não são totalmente conhecidas ou aplicadas:

  • A necessidade de consentimento prévio do paciente para a realização do teste anti-HIV era desconhecida por 18 pacientes, 6 alunos, 5 professores e 3 médicos;

  • A necessidade de manter o sigilo médico, não declarando à família ou amigos a situação de infecção pelo HIV, era desconhecida por 1 paciente, 3 alunos e 1 professor;

  • O dever de o médico revelar o diagnóstico de infecção pelo HIV de um paciente para seu parceiro sexual, com a finalidade de proteger o parceiro, era desconhecido por 35 pacientes, 8 alunos, 12 professores e 7 médicos;

  • A necessidade de manter o sigilo médico, não revelando ao patrão o diagnóstico de infecção pelo HIV de um paciente, era desconhecida por 4 pacientes, 1 aluno, 1 professor e 1 médico;

  • A necessidade de manter o sigilo médico, não revelando à escola o diagnóstico de infecção pelo HIV de uma criança sem a autorização dos pais, era desconhecida por 8 pacientes, 10 alunos, 6 professores e 6 médicos;

  • A necessidade de realização de teste diagnóstico para o HIV em todas as gestantes era desconhecida apenas por 3 professores;

  • O direito do adolescente HIV+ ao sigilo profissional era desconhecido por 29 alunos, 23 professores e 16 médicos (incluindo 15 pediatras);

  • O dever do médico de revelar o diagnóstico de infecção pelo HIV de um paciente para seu parceiro de drogadição, com a finalidade de proteger o parceiro, era desconhecido por 12 alunos, 16 professores e 9 médicos;

  • A obrigatoriedade de registro do diagnóstico no atestado de óbito em caso de morte de pacientes HIV + era desconhecida por 6 alunos, 2 professores e 3 médicos.

Agradecimentos

Este trabalho foi realizado com bolsa concedida pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.

Agradecemos ao Prof. Dr. Valter Pinho dos Santos (FMABC), pela colaboração e sugestões.

Agradecemos à equipe do CEAD Pre/Unifesp/EPM pela colaboração.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2003

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2003
  • Aceito
    06 Jun 2003
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