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Carta ao Editor

Letter to Editor

Sr. Editor,

Sou bióloga, Mestre em Genética de Microorganismos e leciono Genética Médica há oito anos em uma Faculdade de Medicina do interior. Durante os cursos de graduação e pós­graduação estive sempre em contato com profissionais de outras áreas, além de biólogos, como médicos, veterinários, agrônomos, pedagogos, odontólogos e psicólogos. Em conjun­to, eles foram professores valiosos, tanto pela riqueza de conteúdos, como pela multiplicidade de abordagens, técnicas de ensino e histórias de vida. Na época, entre 17 e sete anos atrás, essa convivência com profissionais de áreas diferentes era vista como salutar e enriquecedora, apesar das divergências que naturalmente surgiam.

Cursei as aulas de Histologia com estudantes de Medicina, as de Anatomia Humana com os de Farmácia e Bioquímica, as de Anatomia Comparada com os de Veterinária, as de Edafologia com os de Agronomia e assim por diante. Um dos professores de Histologia era veterinário, o outro médico, o de Anatomia era biólogo, assim como a professora de Biogeografia, que ainda acumulava a carreira de “hippie”. No mestrado, tive professores biólogos, médicos, odontólogos e veterinários, todos responsáveis por tópicos de Biologia Molecular. Alguns eram considerados excelentes mestres, outros nem tanto, mas essa valoração tinha mais a ver com nosso estado de espírito e interesse na matéria do que propriamente com a competência de cada um. O certo é que nunca comparávamos competência com profissão e titulação e sim com substância e dinamismo, valores bem mais sólidos e difíceis de atingir do que diplomas de cursos.

Hoje, na Faculdade de Medicina, continuo a conviver com alguns profissionais de diferentes áreas, principalmente no chamado ciclo básico, pois é óbvio que o ciclo profissionalizante, salvo raríssimas exceções, só congrega médicos. No ciclo básico temos biólogos, veterinários e médicos. No geral, a convivência continua sendo muito boa, com respeito e admiração onde há competência.

No entanto, sempre tive a sensação de estar "invadindo" terreno alheio, às vezes "sobrando", às vezes "voando", quase sempre "passando", como se essa fosse uma situação incômoda, mas temporária, um mal necessário, mas com os dias contados. Mais precisamente, não me sinto bióloga nem sou médica; não sou admirada por meus conhecimentos "não­médicos" nem sou aplaudida por querer aprender a dominar conhecimentos "médicos"; não sou estimulada a fazer um doutorado em área "não-médica" nem incentivada a fazê-lo em área "médica"; os alunos reconhecem que sou "não-médica", mas estão ávidos por conhecimentos e práticas "médicas"; os administradores sonham com um quadro docente essencialmente "médico", mas se rendem à (ainda) necessidade dos "não-médicos".

Não quero me estender na análise dessa situação, pois ela teria necessariamente que incluir a complexa reformulação dos currículos médicos, onde a dicotomia ciclo básico-ciclo profissionalizante parece ter seus dias contados, em nome de um curso mais integrado e voltado essencialmente para a prática médica em sintonia com o Sistema Único de Saúde (seja lá como isto será atingido). Na prática, não sei onde me situar nesse novo contexto; não entendo onde fica a multiplicidade e a interdisciplinaridade tão decantadas pelos teóricos; sinto falta desse tipo de debate em revistas especializadas, como a que V.S. edita. (Aqui cabe um parêntese, pois o debate sobre o ensino médico feito por profissionais não-médicos é bem documentado, mas sempre por aqueles que congregam universidades públicas ou grandes universidades privadas, cuja realidade é bem diferente daquela das faculdades isoladas).

Até o momento, só consigo vislumbrar um caminho: ser educadora; fazer doutorado na área de Educação Médica ou assumir que Mestres também têm valor; incorporar a inter­disciplinaridade no meu próprio ser, e ser um exemplo vivo de que estar no limbo entre duas ou mais áreas do conhecimento não é tarefo fácil, mas digna dos que ousam se arriscar em terreno desconhecido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2003
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