RESUMO
Objetivo
Avaliar a atitude frente ao paciente alcoolista e o conhecimento sobre uso do álcool do estudante de Medicina em função do seu padrão de beber.
Métodos
Estudo transversal realizado com estudantes matriculados no terceiro, sexto e décimo primeiro período dos cursos de Medicina de três universidades federais da Região Sudeste do Brasil (UFF, UFJF e Unifesp). Foram coletados dados sociodemográficos e aplicadas escalas de avaliação da atitude médica diante do paciente alcoolista. Os dados foram complementados por uma avaliação do conteúdo científico sobre alcoolismo e pelo Audit para avaliar o padrão de ingestão de álcool dos alunos.
Resultados
Participaram do estudo 371 estudantes. Os consumidores de bebidas alcoólicas no padrão binge representaram 60,4% (n = 223), e 113 estudantes (30,7%) apresentaram comportamento de risco para o consumo de álcool (Audit ≥ 8). O padrão de consumo alcoólico não diferiu entre as universidades e nem entre os períodos avaliados (Kruskal Wallis, p > 0,05). Os alunos das três universidades aumentaram a pontuação na escala de conhecimentos com o progredir do curso. Entretanto, não houve correlação significativa entre conhecimento e padrão de beber (Spearman > 0,05). Quanto à atitude, foi observado que já é satisfatória no terceiro período e melhora no sexto período. Exceção foi observada entre os alunos da Unifesp, que já apresentaram atitude positiva quase máxima no terceiro período e que foi mantida até o final do curso.
Conclusão
Embora a atitude dos alunos melhore ao longo do curso, assim como seu conhecimento sobre adição a substâncias, o comportamento de beber permanece o mesmo, sem correlação com os conhecimentos transmitidos a respeito dos riscos de beber.
Educação; Medicina; Álcool; Alcoolismo; Atitude
ABSTRACT
Objective
To evaluate the attitude toward the alcoholic patient and the knowledge about the use of alcohol by the medical student according to his drinking pattern.
Method
It was a cross-sectional study involving at random selected students enrolled on the third, sixth and eleventh semester in three federal universities of southeastern Brazil (UFF, UFJF and Unifesp).
Method
Sociodemographic data were collected and the following instruments were applied: attitude evaluation scale, knowledge of scientific information scale on alcohol and management of the alcoholic patient and Audit for evaluation of alcohol problems.
Results
The study included 371 students. Alcohol users in the binge pattern accounted for 60.4% (n = 223) and 113 students (30.7%) presented a risk behavior for alcohol consumption (Audit ≥ 8). The alcohol consumption pattern did not differ between the universities nor between the evaluated periods (Kruskal Wallis, p > 0.05). Students from the three universities increased the score on the knowledge scale as the course progressed. However, there was no significant correlation between knowledge and drinking pattern (Spearman > 0.05). As for the attitude, it was observed that it is already satisfactory in the third period and improvement in the sixth period. Exception was observed among the students of Unifesp, who already presented near positive attitude in the third period that was maintained until the end of the course.
Conclusion
Although the university increases knowledge of risk problems of drinking this does not protect students of binge drinking. On the other hand, student’s positive attitude towards alcoholic patients improves over the course, regardless of drinking and the acquired scientific knowledge.
Education; Medicine; Alcohol; Alcoholism; Attitude
INTRODUÇÃO
É amplamente reconhecida a associação entre a quantidade e padrão do consumo de bebidas alcoólicas e a extensão de problemas a eles relacionados, tanto para o indivíduo quanto para a população. Muitas vezes, o consumo de álcool está implicado em problemas facilmente identificados como ocupacionais, sociais, familiares e de saúde, como gastrite, insônia e hipertensão11. Boca FKD, Darkes J, Greenbaum PE, Goldman MS. Up Close and Personal: Temporal Variability in the Drinking of Individual College Students During Their First Year. J Consult Clin Psychol. 2004;72(2):155-164..
Algumas pesquisas têm demonstrado que a entrada na universidade é um período crítico de vulnerabilidade para o início e a manutenção do uso de álcool e outras drogas. No Brasil, grandes levantamentos domiciliares e entre estudantes universitários referentes ao consumo de drogas indicam a necessidade de criar linhas preventivas para o consumo de drogas de abuso nessa população. Gênero, raça/etnia, expectativa sobre o uso de álcool, busca de sensações e tipo de residência são fatores que contribuem fortemente para o aumento do consumo de álcool no início da graduação11. Boca FKD, Darkes J, Greenbaum PE, Goldman MS. Up Close and Personal: Temporal Variability in the Drinking of Individual College Students During Their First Year. J Consult Clin Psychol. 2004;72(2):155-164.,22. Wagner GA, Andrade AG. Uso de álcool, tabaco e outras drogas entre estudantes universitários brasileiros. Rev de Psiquiatr Clín. 2008;35(S1)..
O diagnóstico precoce das consequências negativas do uso do álcool tem sido recomendado pela OMS e, quando realizado, aumenta a possibilidade de remissão desta condição22. Wagner GA, Andrade AG. Uso de álcool, tabaco e outras drogas entre estudantes universitários brasileiros. Rev de Psiquiatr Clín. 2008;35(S1).. Apesar de afetarem 20% dos homens e 10% das mulheres11. Boca FKD, Darkes J, Greenbaum PE, Goldman MS. Up Close and Personal: Temporal Variability in the Drinking of Individual College Students During Their First Year. J Consult Clin Psychol. 2004;72(2):155-164., o uso de alto risco, o uso nocivo ou a dependência do álcool são raramente diagnosticados pelos médicos22. Wagner GA, Andrade AG. Uso de álcool, tabaco e outras drogas entre estudantes universitários brasileiros. Rev de Psiquiatr Clín. 2008;35(S1).. O tratamento desta condição não é feito com a mesma frequência e precisão com que o fazem para outras doenças crônicas22. Wagner GA, Andrade AG. Uso de álcool, tabaco e outras drogas entre estudantes universitários brasileiros. Rev de Psiquiatr Clín. 2008;35(S1)., sendo necessário adequado acolhimento no serviço e habilidade técnica específica do profissional de saúde na abordagem com paciente alcoolista33. Abou-Saleh MT. Substance use disorders: recent advances in treatment and models of care. J Psychosom Res. 2006;61(3):305-310.. Como consequência, o diagnóstico do alcoolismo é realizado tardiamente. A demora em iniciar o tratamento e o exercício inadequado deste pioram o prognóstico do paciente e reforçam a ideia equivocada de que não há possibilidade de melhora22. Wagner GA, Andrade AG. Uso de álcool, tabaco e outras drogas entre estudantes universitários brasileiros. Rev de Psiquiatr Clín. 2008;35(S1)..
Este panorama possivelmente está relacionado à falta de treinamento adequado na área de dependência química destinada aos profissionais de saúde, em especial aos médicos que participam da rede primária. Tal descaso é observado nas escolas de graduação não só do Brasil, mas também de todo o mundo. Nos EUA, há relatos de que, na formação médica realizada em quatro anos, apenas 12 horas eram destinadas ao ensino na área de álcool e drogas44. Miller NS, Sheppard LM, Colenda CC, Magen J. Why physicians are unprepared to treat patients who have alcohol and drug related disorders. Acad. Med. 2001;7:410-418.. Um estudo realizado na Inglaterra em 28 escolas médicas mostrou que apenas 14 horas eram destinadas ao ensino na área de álcool e drogas44. Miller NS, Sheppard LM, Colenda CC, Magen J. Why physicians are unprepared to treat patients who have alcohol and drug related disorders. Acad. Med. 2001;7:410-418..
A introdução de disciplinas eletivas nos cursos de graduação em Medicina que capacitem o aluno para uma melhor compreensão sobre o processo de dependência de substâncias psicoativas e que abordem a visão que o profissional deve ter sobre esse tipo de paciente pode contribuir significativamente para um diagnóstico mais rápido e preciso, bem como auxiliar no manejo clínico e na conduta do profissional com o paciente.
Ainda não conhecemos as atitudes dos alunos de Medicina a respeito do paciente que bebe, se o conhecimento que adquiriram durante o curso foi suficiente para habilitá-los à abordagem terapêutica, nem tampouco seus hábitos em relação ao álcool. A avaliação do consumo de álcool entre os estudantes de Medicina poderá nortear estratégias para sua formação em dependência química. É necessário considerar que os alunos de Medicina participam de festas e ambientes onde o álcool se faz presente. No trabalho realizado por Davoren et al.55. Daroven MP, Demant J, Shiely F, Perry IJ. Alcohol consumption among university students in Ireland and the United Kingdom from 2002 to 2014: a systematic review. BMC Public Helath. 2016;16:173-186., os autores sumarizaram o consumo atual de álcool em binge (consumo excessivo de álcool em curto espaço de tempo) entre estudantes universitários da República da Irlanda e no Reino Unido. Os dados mostram que quase dois terços dos estudantes relataram uma perigosa pontuação do consumo de álcool na escala Audit (The Alcohol Use Disorders Identification Test). Além disso, mais de 20% relataram problemas de álcool durante a vida e mostraram exceder os limites de consumo. Em relação aos estudantes de graduação do curso de Medicina, a revisão sistemática mostrou, em um dos trabalhos, que, dos 216 estudantes de todos os períodos do curso, 21,6% apresentavam o consumo de 15 doses ou mais de álcool por semana55. Daroven MP, Demant J, Shiely F, Perry IJ. Alcohol consumption among university students in Ireland and the United Kingdom from 2002 to 2014: a systematic review. BMC Public Helath. 2016;16:173-186..
Em relação à atitude do médico diante do paciente que bebe, Silva66. Silva C J. Impacto de um curso em diagnóstico e tratamento do uso nocivo e dependência do álcool sobre a atitude e conhecimento de profissionais da rede de atenção primaria à saúde; 2005. Doutorado [Tese] – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo. p 67. mostrou, por meio de escala criada e validada para este fim, que a atitude melhora após um curso sobre os efeitos do álcool e abordagem do alcoolista. É importante lembrar que uma visão de etiologia moral é prejudicial ao tratamento, já que dificulta a formação de vínculo entre médico e paciente. Diante disso, o objetivo do presente trabalho foi avaliar a atitude frente ao paciente alcoolista e o conhecimento sobre uso do álcool do estudante de Medicina em função do seu padrão de beber.
MÉTODOS
Tipo de estudo e participantes
Trata-se de estudo transversal com universitários do curso de Medicina matriculados no terceiro, sexto e décimo primeiro período da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, Juiz de Fora- MG), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp, São Paulo-SP) e Universidade Federal Fluminense (UFF, Niterói-RJ). O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFF.
O estudo foi desenvolvido em três grandes universidades do Brasil, por receberem alunos dos vários estados por meio de vestibular unificado (Enem) e por serem representativas de três importantes estados da Região Sudeste. O curso de graduação em Medicina oferece integração entre módulos teóricos específicos sobre adição que são oferecidos nas três universidades, assim como vivência em trabalhos de campo supervisionados.
Procedimentos
Após contato com as respectivas coordenações, os professores foram convidados a ceder parte do tempo de aula para a aplicação dos instrumentos em sala. A aula e o professor para contato foram escolhidos aleatoriamente, desde que ministrasse disciplina para turma de Medicina no terceiro, sexto ou décimo primeiro período. Todos os alunos maiores de 18 anos, presentes na sala de aula, foram convidados a participar do estudo. Os universitários que aceitaram participar do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foram excluídos apenas os alunos que não estavam presentes no dia da coleta e os que devolveram o envelope com questionários em branco ou incompletos.
Instrumentos
Os participantes receberam um envelope sem identificação com um questionário confeccionado pela equipe com informações sociodemográficas (religião, orientação sexual, características de moradia, recebimento de bolsas de estudo, entre outras), além dos seguintes instrumentos:
− Escala adaptada para avaliação e atitudes: constituída por afirmações que possibilitam respostas contínuas que variam de “discordo totalmente” a “concordo totalmente”. Composta por 24 afirmações que permitem avaliar a atitude do profissional perante a sua própria confiança e responsabilidade em tratar usuários de álcool, a natureza da dependência química em face do prognóstico da dependência e com relação à pessoa, ao caráter e integridade moral do dependente66. Silva C J. Impacto de um curso em diagnóstico e tratamento do uso nocivo e dependência do álcool sobre a atitude e conhecimento de profissionais da rede de atenção primaria à saúde; 2005. Doutorado [Tese] – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo. p 67.. A melhor atitude possível nesta escala é de 100 pontos66. Silva C J. Impacto de um curso em diagnóstico e tratamento do uso nocivo e dependência do álcool sobre a atitude e conhecimento de profissionais da rede de atenção primaria à saúde; 2005. Doutorado [Tese] – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo. p 67..
− Escala de conhecimento: a escala de conhecimento avalia mediante perguntas de múltipla escolha, baseadas em caso-problema e em questões de verdadeiro ou falso. São perguntas baseadas no Diagnóstico de Uso Nocivo e Dependência, quantidade de uso de baixo risco, diagnóstico das doenças mentais ou complicações comumente associadas ao uso de álcool, tratamento farmacológico da dependência e das complicações e intervenção breve66. Silva C J. Impacto de um curso em diagnóstico e tratamento do uso nocivo e dependência do álcool sobre a atitude e conhecimento de profissionais da rede de atenção primaria à saúde; 2005. Doutorado [Tese] – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo. p 67..
− Audit (The Alcohol Use Disorders Identification Test): desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde77. Mendoza-Sassi RA, Béria JU. Prevalence of alcohol use disorders and associated factors: a population-based study using AUDIT in southern Brazilian. Addiction. 2003;98:799-804. e validado para a população brasileira88. Lima CT, Freire ACC, Silva APB, Teixeira RM, Farrel M, Prince M. Concurrent and construct validity of the audit in an urban brazilian sample. Alcohol. 2005;40(6):584-9., o questionário é composto de dez perguntas que avaliam o padrão do consumo individual do álcool no último ano. Consideramos o valor igual ou superior a 8 pontos como risco de consumo prejudicial de bebida alcoólica88. Lima CT, Freire ACC, Silva APB, Teixeira RM, Farrel M, Prince M. Concurrent and construct validity of the audit in an urban brazilian sample. Alcohol. 2005;40(6):584-9.. Para identificar os consumidores de bebidas alcoólicas em padrão binge, analisamos a questão 2 do questionário Audit (Quantas doses contendo álcool você consome num dia típico quando você está bebendo?)99. Naimi TS, Brewer RD, Mokdad A, Denny C, Serdula MK, Marks JS. Binge drinking among US adults. JAMA. 2003;289(1):70-5.. O binge é caracterizado pelo consumo de quatro ou mais doses de álcool para as mulheres e cinco ou mais doses de álcool para os homens em uma única ocasião (em até 2 horas), na qual a alcoolemia atinge 0,08 g/dL1010. Oliveira DG, Almas SP, Duarte LC, Dutra SCPL, Oliveira RMS, Nunes RM, Aguiar-Nemer AS. Consumo de álcool por frequentadores de academia de ginástica. J Bras Psiquiatr. 2014;63(2):127-32..
Análise estatística
Os dados do presente estudo foram analisados por meio do programa SPSS 23.0. Após análise da normalidade dos dados pelo teste de Kolmogorov-Smirnov, utilizou-se o teste do Qui-Quadrado para comparação entre variáveis categóricas, e o teste não paramétrico Kruskall-Wallis para analisar diferenças entre períodos avaliados e suas universidades. Correlação de Spearmann foi utilizada para avaliar associação entre conhecimento e padrão de beber. O nível de significância estabelecido foi de 5%.
RESULTADOS
Os cursos de Medicina da UFF, UFJF e Unifesp oferecem 90, 90 e 121 vagas por semestre, respectivamente. Participaram do estudo 371 estudantes dos cursos de Medicina (176 mulheres e 165 homens), sendo 148 alunos da UFF (3º período – n = 49 / 6º período – n = 58 / 11º período – n = 41), 80 alunos da UFJF (3º período – n = 44 / 6º período – n= 13 / 11º período – n = 23) e 143 alunos da Unifesp (3º período – n = 78 / 6º período – n = 19 / 11º período – n = 46).
A maioria dos estudantes relatou ser heterossexual (n = 300 / 92%), sendo que 6,2% de homossexuais entre os participantes apresentaram algum sofrimento ou preocupação com sua orientação sexual. Os estudantes relataram morar sozinhos ou em repúblicas (n = 174 / 53,5%) ou com familiares (n = 148 / 45,5%), com renda mensal de mais de R$ 1.300,00 (n = 160 / 49,2%), que pode estar sendo complementada com atividades extracurriculares realizadas por 58,2% dos estudantes (n =189), podendo ser projetos de extensão ou pesquisa. Do total dos participantes, 20,6% (n = 67) relataram fazer plantões, porém é preocupante o número de plantonistas no terceiro período (n= 6/3,5%), sexto período (n = 27/30%) e décimo primeiro período (n = 34/53,1%).
Os universitários relataram conviver com alguma pessoa que teve problemas por conta do consumo alcoólico (n = 133/40,9%). Os consumidores de bebidas alcoólicas no padrão binge representaram 60,4% (n = 223), e 113 estudantes (30,7%) apresentaram comportamento de risco para o consumo de álcool (Audit ≥ 8), não havendo diferença entre as universidades (p = 0,283) e nem entre os períodos avaliados (p = 0,434, Teste Kruskall Wallis).
A Tabela 1 apresenta a relação da escala de atitudes entre os períodos e os cursos de Medicina das três universidades. Há diferença na pontuação da escala de atitudes entre os períodos da UFF e UFJF, com melhora da atitude entre o terceiro e o sexto período. A atitude dos alunos da Unifesp permanece positiva do terceiro ao último período, que corresponde ao último ano de universidade.
Como esperado, os alunos de Medicina das três universidades federais aumentaram a pontuação na escala de conhecimentos com o passar do tempo e a aquisição de novos conteúdos e vivências ao longo dos períodos (Tabela 2). Os alunos de Medicina da Unifesp apresentaram maior conhecimento sobre o alcoolismo no terceiro e no sexto período. O conhecimento foi similar entre todas as universidades no final do curso. Entretanto, estudantes que não fazem consumo de bebidas alcoólicas no padrão binge apresentaram maior pontuação na escala de atitudes em comparação aos estudantes que fazem consumo de álcool em binge. (Tabela 3). Porém, apresentar ou não conhecimentos suficientes para tratar um alcoolista não influenciou o consumo alcoólico, conforme pontuação do Audit (Tabela 4). Maiores pontuações na escala de conhecimento implicaram maior atitude perante o paciente alcoolista (Tabela 4), havendo também correlação positiva, porém fraca, entre conhecimento e atitude (r = 0,210, p = 0,0001).
DISCUSSÃO
Os resultados do presente estudo demonstraram que os alunos das três universidades já apresentam atitudes positivas em relação ao paciente alcoolista no terceiro período, sendo que na Unifesp a atitude positiva se aproxima do máximo na escala. Na UFF e na UFJF, ocorreu melhora entre o terceiro e o sexto período, mantendo-se até o final do curso. Pequenas diferenças entre universidades podem estar relacionadas a diferenças curriculares, incluindo o número de departamentos direcionados à pesquisa nessa área do conhecimento. É interessante observar que os dados do presente trabalho indicam que o conhecimento sobre alcoolismo aumenta de fato no decorrer do curso, em paralelo ao aumento da atitude positiva, embora sem associação entre as variáveis em teste de correlação. Por outro lado, o conhecimento dos riscos de beber não interferiu no padrão de beber dos estudantes.
A maioria dos estudantes de graduação dos cursos de Medicina avaliados (60,4%) apresentou padrão de consumo de bebidas alcoólicas em binge, sendo que um considerável percentual (30,7%) apresenta comportamento de risco para o consumo de álcool. Esses dados alertam para a necessidade de analisar comportamentos associados aos hábitos etilistas em estudantes da área de Medicina, que se tornarão aptos para o manejo de pacientes dependentes de substâncias psicoativas, especialmente o álcool. Atualmente, os dados sobre a frequência do consumo de bebidas alcoólicas em binge entre estudantes universitários são variáveis, não sendo fácil realizar uma estimativa da prevalência desse consumo, uma vez que os dados sofrem variações na descrição da frequência do consumo das bebidas alcoólicas. Porém, torna-se preocupante como os padrões de consumo de álcool vêm aumentando entre jovens e adultos universitários, tornando-se uma grande preocupação de saúde pública1111. Tovalacci MP, Boerg E, Richard L, Meyrignac G, Dechellote P, Ladner J. Prevalence of binge drinking and associated behaviors among 3286 college students in France. BMC Public Health. 2016;16: 178-186..
Tavolacci et al.1111. Tovalacci MP, Boerg E, Richard L, Meyrignac G, Dechellote P, Ladner J. Prevalence of binge drinking and associated behaviors among 3286 college students in France. BMC Public Health. 2016;16: 178-186., ao analisarem a prevalência do hábito de beber em binge e comportamentos associados em estudantes da França, incluindo estudantes de cursos da área de saúde e Medicina, demonstraram que a maioria dos alunos avaliados apresentava frequente consumo de álcool em binge. Esse consumo frequente foi mais comum entre os estudantes do sexo masculino (24,6%) do que entre os do sexo feminino (7,4%). Os autores destacam ainda que os fatores que mais contribuem para o aumento do consumo de álcool em binge são: sexo masculino, residir em casa alugada e uso de tabaco e maconha. Tais fatores são comumente prevalentes nas amostras de estudantes analisadas.
Bielska et al.1212. Bielska D, Kurpas D, Oltarzewska A, Piotrowska-Depta M, Gomólka E, Wojtal M, et al. Patterns of drinking alcohol tobacco smoking among 6th year students of the faculty of medicine in Biatstok. Przegl Lek. 2014;71(11):597-600., com o objetivo de avaliar o conhecimento dos estudantes do sexto ano da Faculdade de Medicina da Universidade Médica de Biatystok sobre os efeitos do abuso de álcool, bem como determinar seus padrões de consumo junto com o tabagismo, demonstraram que, dos 356 estudantes que participaram do estudo, apenas 5% mostraram alto nível de conhecimento sobre os efeitos abusivos do álcool, 63% um conhecimento médio, e 31%, baixo conhecimento. Os autores encontraram ainda uma correlação inversa entre o baixo conhecimento sobre os efeitos deletérios do álcool e a quantidade consumida em dias típicos. Nossos resultados não identificaram o conhecimento como um fator de influência no consumo alcoólico. Porém, indivíduos que não consumiam bebidas no padrão binge apresentaram pequena diferença estatística na atitude para o tratamento do paciente alcoolista.
Um recente trabalho publicado por Feeley et al.1313. Feeley R, Moore D, Wilkins K, Fuehrlein B. A Focused Addiction Curriculum and Its Impact on Student Knowledge, Attitudes, and Confidence in the Treatment of Patients with Substance Use. Acad Psychiatry. 2017. analisou o impacto da implantação de uma matriz curricular no curso de Medicina que englobava os efeitos causados pelo uso de substâncias psicoativas, percebidos durante as consultas de Psiquiatria. Nesse estudo, os estudantes eram avaliados quanto as suas atitudes em relação ao vício de pacientes alcoolistas. Os autores concluíram que a inserção de um currículo que aborde a temática sobre dependência química pode melhorar a confiança dos estudantes de Medicina no manejo de pacientes com uso de substâncias psicoativas, bem como melhorar seu conhecimento sobre as consequências das mesmas. De modo semelhante aos nossos resultados, embora as universidades estudadas não possuam um currículo bem delineado sobre a temática envolvida, o conhecimento dos alunos aumenta ao longo do curso de graduação em Medicina, porém o padrão de consumo de bebidas alcoólicas não diminui. É interessante a atualização da matriz curricular dos cursos de Medicina para a abordagem de indivíduos dependentes químicos, especificamente alcoolistas.
Outro estudo, realizado por Rose et al.1414. Rose AJ, Stein MR, Arnsten JH, Saitz, R. Teaching internal medicine resident physicians about Alcoholics Anonymous: a pilot study of an educational intervention. Subst Abus.2006;27(3):511. ao implementarem um programa de intervenção educacional breve, didática e experimental sobre pacientes alcoolistas, avaliou o efeito dessa intervenção sobre o conhecimento e as atitudes dos residentes de Medicina. Nessa intervenção, 36 médicos residentes de Medicina interna do primeiro ano receberam uma intervenção educacional que consistiu numa palestra de 45 minutos sobre alcoolismo, uma visita a uma reunião de alcoólicos anônimos e uma sessão de esclarecimento de 30 minutos no dia seguinte. O conhecimento e as atitudes dos residentes foram avaliados por uma breve pesquisa anônima escrita antes e depois da intervenção educacional. Os residentes relataram aumento no conhecimento autopercebido sobre alcoolistas e tiveram atitudes mais favoráveis em relação ao tratamento desse paciente após a intervenção. Esses achados também mostram a importância de programas de educação continuada sobre o tema de adição de substâncias após a formação médica, como um meio de melhorar a atitude do profissional perante o paciente alcoolista.
Em nosso trabalho, a aquisição de conhecimento diferiu apenas na progressão entre períodos, parecendo que o conhecimento sobre álcool é maior na Unifesp já no terceiro período, sendo igualado no final do curso de graduação. Diferenças curriculares e a presença de setores voltados ao estudo da adição a substâncias podem explicar esse dado. Vale ressaltar em nosso trabalho que houve aumento do conhecimento gradativo ao longo do curso sobre as consequências do comportamento etilista, mas houve manutenção do comportamento do consumo de álcool em binge. De acordo com Davoren et al.55. Daroven MP, Demant J, Shiely F, Perry IJ. Alcohol consumption among university students in Ireland and the United Kingdom from 2002 to 2014: a systematic review. BMC Public Helath. 2016;16:173-186., combater os efeitos nocivos do álcool entre estudantes universitários e na população em geral não requer uma única solução, mas um conjunto de iniciativas, como acesso restrito ao álcool e proibição de sua publicidade. Tais medidas têm se mostrado efetivas na redução do consumo de álcool e de seus efeitos nocivos.
Atualmente, nas universidades brasileiras, há uma escassez de projetos pedagógicos voltados à conscientização sobre a redução do consumo de álcool entre os estudantes universitários, haja vista que o período de educação superior coincide com a introdução e instalação de comportamentos etilistas. Diferentemente da realidade das universidades brasileiras, os governos da Irlanda e Escócia, recentemente, na tentativa de minimizar o consumo de álcool por universitários, propuseram a implementação de um preço mínimo de valor de venda para doses de álcool. Além disso, o governo irlandês vem se comprometendo a implementar um conjunto de medidas voltado à redução da publicidade e marketing do consumo de álcool, enfatizando esse comportamento como um fator de risco para possíveis problemas de saúde pública no futuro66. Silva C J. Impacto de um curso em diagnóstico e tratamento do uso nocivo e dependência do álcool sobre a atitude e conhecimento de profissionais da rede de atenção primaria à saúde; 2005. Doutorado [Tese] – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo. p 67..
Damme et al.1515. Damme JV, Hublet A, Clercq B, McAlaney J, Van Hal G, Rosiers J, et al. Context matters: student-perceived binge drinking norms at faculty-level relate to binge drinking behavior in higher education. Addict Behav. 2016;59:89-94. investigaram a percepção pelos estudantes sobre o consumo de álcool em binge e os possíveis fatores determinantes desse comportamento. O trabalho encontrou associação entre a percepção do estudante diante do ato de beber, mas não fornece nenhuma informação específica sobre como surgem esses comportamentos, porém os autores postulam que tais hábitos se relacionam com fatores pessoais e ambientais. Esse fato reforça que, além dos determinantes pessoais e ambientais, as universidades consistem em relevantes redes de conscientização sobre o consumo excessivo de álcool, além de atuarem no direcionamento da postura desses futuros profissionais perante o comportamento etilista.
Entre as diversas variáveis que influenciam diretamente o tratamento do dependente de álcool, está o conhecimento para promover uma atitude assertiva do profissional de saúde perante o paciente com tal diagnóstico. Uma atitude negativa, que considera que o problema não é médico, mas sim moral, pode ser consequência de ensino insuficiente ou do próprio hábito de beber de quem trata. Com isso, aumenta-se o número de atendimentos inadequados e de diagnósticos tardios, com piores prognósticos. A universidade teria idealmente o papel de transmitir informações que possibilitassem ao futuro médico atitudes diante do paciente alcoolista baseadas em evidências atuais sobre a adição a substâncias e a percepção do risco associado ao comportamento de beber. Este trabalho demonstra que a atitude positiva diante do paciente alcoolista aumenta ou se mantém, quando já elevada, ao longo do curso por meio do conhecimento adequado na abordagem de pacientes com transtorno de uso do álcool.
LIMITAÇÕES
A principal limitação deste estudo refere-se à amostra não probabilística e ao desenho transversal, que não permitem atribuir um efeito de causalidade aos fatores que poderiam contribuir para melhorar a visão do aluno diante do paciente alcoolista no decorrer dos períodos de graduação. Outra limitação é a diferença entre as matrizes curriculares nos cursos de graduação em Medicina e o enfoque dado ao longo do curso sobre o manejo e abordagem do paciente alcoolista.
CONCLUSÃO
Nosso trabalho demonstrou que o conhecimento dos estudantes de Medicina sobre os riscos de consumir bebidas alcoólicas aumentou significativamente entre os períodos. Esse conhecimento pode ter contribuído para melhorar a atitude positiva ou mantê-la ao longo do curso. Entretanto, o conhecimento não protegeu os estudantes do comportamento de beber, que permaneceu com predomínio de consumo em binge. Os estudantes que não apresentaram este tipo de padrão de consumo apresentaram maior atitude diante de paciente alcoolista. Portanto, o conhecimento oferecido durante o curso de Medicina não parece contribuir para a prevenção deste comportamento.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem aos estudantes voluntários que participaram da pesquisa e aos docentes e coordenadores das universidades federais pela colaboração e concessão da coleta de dados.
REFERÊNCIAS
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5Daroven MP, Demant J, Shiely F, Perry IJ. Alcohol consumption among university students in Ireland and the United Kingdom from 2002 to 2014: a systematic review. BMC Public Helath. 2016;16:173-186.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2018
Histórico
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Recebido
25 Fev 2018 -
Aceito
7 Maio 2018