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Intervenções terapêuticas com cavalos: uma ferramenta para o bem-estar dos estudantes?

Therapeutic interventions with horses: a tool for student well-being?

Resumo:

Introdução:

A literatura sobre educação médica vem mostrando que os alunos de Medicina vivenciam dificuldades quanto à sobrecarga de atividades e tarefas, culminando com estresse e depressão, muitas vezes associados aos desafios trazidos pelo modelo pedagógico da Aprendizagem Baseada em Problemas.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo relatar os resultados de duas intervenções terapêuticas desenvolvidas com estudantes, tendo como foco situações-problema enfrentadas no curso de Medicina e como finalidade a promoção do bem-estar.

Método:

Trata-se de pesquisa de natureza qualitativa e exploratória. Criou-se um cenário para vivências psicodramáticas com cavalos. A amostra foi composta por duas discentes de Medicina, que atenderam ao critério de inclusão “participar do Centro Acadêmico”. As alunas atuaram como protagonistas-pacientes-participantes. As intervenções com cada participante foram individuais e agiram nos níveis intrapsíquico e sistêmico, considerando aqui o sistema educação médica. Além da dramatização em si no palco-arena, ocorreram entrevistas semidirigidas abertas, à guisa de aquecimento e compartilhamento dos resultados, no dia da intervenção e seis meses após.

Resultado:

As protagonistas-pacientes-participantes, provenientes de dois cursos diferentes, ambos com currículo organizado em Aprendizagem Baseada em Problemas, cursavam o sexto e oitavo semestres do curso. Os “dramas-sofrimento em relação ao curso” escolhidos para serem trabalhados foram “competição na tutoria” e “sobrecarga”. A dramatização trouxe à tona tomada de consciência do seu protagonismo em relação ao problema e da possibilidade de aquisição de novas respostas espontâneo-criativas, o que foi verificado seis meses após, por meio do relato das protagonistas-pacientes-participantes. O trabalho terapêutico realizado proporcionou às discentes melhora no bem-estar e melhor desempenho nas atividades estudantis, pessoais e sociais, de modo a prepará-las a ser as profissionais mais humanizadas que o SUS busca.

Conclusão:

Os resultados sugerem que o uso das “intervenções terapêuticas com cavalos” pode auxiliar as escolas médicas no cumprimento das DCN, pela via da promoção da saúde dos discentes de Medicina.

Palavras-chave:
Estudantes de Medicina; Promoção da Saúde; Psicodrama; Terapia Assistida por Cavalos

Abstract:

Introduction:

The literature on medical education has been revealing that medical students experience difficulties with the overload of activities and tasks, culminating in stress and depression, often associated with the challenges brought by the Problem-Based Learning pedagogical model.

Objective:

to report the results of two therapeutic interventions developed with students, focusing on problem situations faced in the medical course and with the purpose of promoting well-being.

Method:

Qualitative and exploratory research. A scenario was created for psychodramatic experiences with horses. The convenience sample consisted of two medical students, who met the inclusion criterion ‘participate in the Academic Center’ of the course. They acted as protagonist-patient-participants. The interventions with each participant were individual, and acted at the intrapsychic and systemic levels, considering here the medical education system. Besides the dramatization itself on the stage-arena, there were open semi-structured interviews, as a warm-up and sharing of results, on the day of the intervention and six months later.

Results:

The protagonist-patient-participants are female, from two different universities which both offer a curriculum centered on Problem-Based Learning, and were in the 6th and 8th semesters of the course. The ‘suffering-dramas in relation to the course’ chosen by each protagonist-patient-participant were ‘tutoring competition’ and ‘overload’. The dramatization was effective in promoting awareness of its protagonism in relation to the problem and the possibility of acquiring new spontaneous-creative responses, which was verified six months later, in the protagonist-patient-participants’ report. The therapeutic work promoted improved student well-being and performance in academic, personal and social activities, preparing the students to be the most humanized professionals, as sought by the SUS.

Conclusion:

The results suggest that the use of “Therapeutic Intervention with Horses” can help medical schools to comply with National Curriculum Guidelines, through health promotion among medicine students.

Keywords:
Medical Students; Health Promotion; Psychodrama; Equine-Assisted Therapy

INTRODUÇÃO

Ser profissional da medicina demanda dedicação integral, busca de aprendizado constante, fundamentação das ações em conhecimentos científicos e técnicos, acompanhamento de inovações e novos recursos, e desapego de alguns momentos pessoais e sociais. Optar por esse caminho profissional é complexo, pois a pessoa vocacionada atende a um chamado e, para isso, assume uma responsabilidade imensurável, por lidar com vida e morte, cura e doença, e orientação para que o paciente busque postura e comportamentos mais saudáveis11. Schraiber LB. A profissão de ser médico. In: Canesqui AM, organizadora. Ciências sociais e saúde para o ensino médico. São Paulo: Hucitec; 2000..

Nos últimos anos, diversos estudos têm voltado sua atenção às emoções de estudantes de Medicina. Maia et al.22. Maia HAAS, Assunção ACS, Silva CS, Santos JLP, Menezes CJJ, Bessa Júnior J. Prevalência de sintomas depressivos em estudantes de Medicina com currículo de Aprendizagem Baseada em Problemas. Rev Bras Educ Med. 2020;44(3):e105. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.3-20200005.
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encontraram sintomas depressivos em 46,2% da amostra de 173 estudantes. Nesse contexto, ser do sexo feminino aumentou o risco para sintomas depressivos em 2,05 vezes, e a insatisfação com o método de Aprendizagem Baseada em Problemas, em 3,57 vezes. Em contraposição, uma ampla margem de sentimentos de natureza positiva foi identificada em estudantes quando em contato com a prática no Sistema Único de Saúde (SUS)33. Kaluf IO, Sousa SGO, Luz S, Cesario RR. Sentimentos do estudante de Medicina quando em contato com a prática. Rev Bras Educ Med . 2019;43(1):13-22. doi: https://doi.org/10.1590/1981-52712015v43n1RB20180098.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
. Ambos os estudos, desenvolvidos em duas universidades distintas do Brasil, apontaram para a necessidade de explorar formas de intervenções terapêuticas para promover melhor qualidade de vida aos alunos de Medicina, melhorar desempenhos acadêmicos e formar, futuramente, profissionais mais humanizados e adequados ao SUS.

Saúde é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não meramente ausência de doença ou enfermidade”44. Almeida-Filho N. O que é saúde? Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011.. Apesar de utópico, é precisamente o aspecto positivo da saúde que interessa a este estudo: a saúde como estado de bem-estar. Assim, promover saúde significa promover bem-estar. Este, por sua vez, é definido como “um estado positivo experimentado por indivíduos e sociedades. Semelhante à saúde, é um recurso para a vida diária e é determinado por condições sociais, econômicas e ambientais”55. World Health Organization. Glossário de termos de promoção da saúde. Genebra: WHO; 2021. 44 p..

Cuidar da própria saúde física e mental e alcançar o bem-estar como médico e cidadão foi a expectativa de 46% dos estudantes de primeiro ano de Medicina investigados em um estudo66. Meireles MAC, Fernandes CCP, Souza e Silva L. Novas Diretrizes Curriculares Nacionais e a formação médica: expectativas dos discentes do primeiro ano do curso de Medicina de uma instituição de ensino superior. Rev Bras Educ Med . 2019;43(2):67-78. doi: https://doi.org/10.1590/1981-52712015v43n2RB20180178.
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. A prática de atividade física, inclusive, foi apontada como fator de proteção para o desenvolvimento de sintomas depressivos em estudantes de Medicina22. Maia HAAS, Assunção ACS, Silva CS, Santos JLP, Menezes CJJ, Bessa Júnior J. Prevalência de sintomas depressivos em estudantes de Medicina com currículo de Aprendizagem Baseada em Problemas. Rev Bras Educ Med. 2020;44(3):e105. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.3-20200005.
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. Contudo, as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (DCN) de 2014 retrocederam em relação às DCN de 2001, ao não considerarem a saúde do discente66. Meireles MAC, Fernandes CCP, Souza e Silva L. Novas Diretrizes Curriculares Nacionais e a formação médica: expectativas dos discentes do primeiro ano do curso de Medicina de uma instituição de ensino superior. Rev Bras Educ Med . 2019;43(2):67-78. doi: https://doi.org/10.1590/1981-52712015v43n2RB20180178.
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. Afinal, para que o futuro médico, hoje discente, tenha visão biopsicossocial e humanista, é necessário que ele se conheça e que vivencie um cuidado com a própria saúde nas dimensões biológica, psicológica e social. Somente assim, poderá no futuro ter uma visão mais integral do paciente.

Por isso, considera-se relevante desenvolver estratégias para sensibilizar e orientar os discentes desse princípio de cuidar da própria saúde física, mental, emocional e psicológica.

As intervenções terapêuticas assistidas por animais são diversas e estão em emergência no mundo, com evidências de sua utilização nas áreas de saúde, educação77. Mandrá PP, Moretti TCF, Avezum LA, Kuroishi RCS. Terapia assistida por animais: revisão sistemática da literatura. CoDAS. 2019;31(3):e20180243. doi: https://doi.org/10.1590/2317-1782/20182018243.
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e desenvolvimento de liderança88. Chappel KK. Equine-facilitated life coaching for youth leadership [dissertation]. Prescott (AZ): Masters of Arts from Prescott College in Education with an emphasis on Equine-Assisted Learning; 2014. Ann Arbor (MI): ProQuest LLC, 2014 [acesso em 24 ago 2021] Disponível em: Disponível em: https://www.proquest.com/openview/af11e8cbb381b6e2c6bafb6050f18fe1/1?pq-origsite=gscholar&cbl=18750 .
https://www.proquest.com/openview/af11e8...
, mostrando-se cofacilitadoras dinâmicas que oferecem aos participantes oportunidades de engajamento e coerência interna entre o que dizem e o que fazem como líderes99. Gehrke EK. Developing coherent leadership in partnership with horses: a new approach to leadership training. J Res Innov Teach. 2009; 2(1):222-33 [acesso em 24 ago 2021]. Disponível em: Disponível em: https://assets.nu.edu/assets/resources/pageResources/7638_JournalofResearch09.pdf#page=227 .
https://assets.nu.edu/assets/resources/p...
, e para o desenvolvimento de habilidades de comunicação, de modo a melhorar a relação médico-paciente1010. Garland J. Medicine and Horsemanship: transforming the doctor-patient relationship. Indian River, Ontario: The Mane Intent; 2015 [acesso em 23 ago 2021]. Disponível em: Disponível em: https://themaneintent.ca/horses-help-medical-residents-care-intent/ .
https://themaneintent.ca/horses-help-med...
)-(1212. Steakley L. How horsemanship techniques can help doctors improve their art. Scope; 2011 [acesso em 24 ago 2021]. Disponível em: Disponível em: https://scopeblog.stanford.edu/2011/06/24/how-horsemanship-techniques-can-help-doctors-improve-their-art/ .
https://scopeblog.stanford.edu/2011/06/2...
. A utilização do cavalo em processos terapêuticos não é recente. Como na natureza os animais são presas, isso os leva a estar sempre alertas, em conexão com o meio; eles não respondem a definições analíticas de problemas ou pedidos de ajuda, mas reagem instintivamente ao que existe aqui e agora1313. Knaapen R. Coaching com cavalos: uma abordagem sistêmica. Curitiba: Arte Editora; 2016. 160 p..

Os estudantes de Medicina da Universidade de Stanford têm acesso ao curso eletivo de Medicine and Horsemanship (M&H), desenvolvido por uma médica com o objetivo de desenvolver habilidades interpessoais1212. Steakley L. How horsemanship techniques can help doctors improve their art. Scope; 2011 [acesso em 24 ago 2021]. Disponível em: Disponível em: https://scopeblog.stanford.edu/2011/06/24/how-horsemanship-techniques-can-help-doctors-improve-their-art/ .
https://scopeblog.stanford.edu/2011/06/2...
, qualidades de liderança, técnicas de autocuidado, reflexão e redução de estresse1414. Chakales PA, Locklear J, Wharton T. Medicine and Horsemanship: the effects of equine-assisted activities and therapies on stress and depression in Medical students. Cureus. 2020;12(2):e6896. doi: https://doi.org/10.7759/cureus.6896.
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. O curso parte do princípio de que a interação com os cavalos desenvolve inteligências não cognitivas, por requererem uma apreciação verbal e não verbal, o que ajuda a desenvolver habilidades necessárias ao médico1515. Kane B. Medicine & horsemanship. Woodside (CA): Horsensei; s. d. [acesso em 5 set 2022]. Disponível: Disponível: http://www.horsensei.com/programs_medicine_horsemanship.html .
http://www.horsensei.com/programs_medici...
.

Na Flórida, foi realizada uma coorte observacional com 28 estudantes de Medicina de primeiro e segundo anos1414. Chakales PA, Locklear J, Wharton T. Medicine and Horsemanship: the effects of equine-assisted activities and therapies on stress and depression in Medical students. Cureus. 2020;12(2):e6896. doi: https://doi.org/10.7759/cureus.6896.
https://doi.org/https://doi.org/10.7759/...
. Durante dois meses, os estudantes cumpriram as sete sessões do curso de H&M, que trabalha no nível comportamental. Os resultados mostraram melhoras significativas na prevalência e gravidade dos sintomas cognitivo-afetivos e depressivos somáticos, no estresse global percebido no mês anterior e na gravidade e frequência geral do estresse. Na avaliação dos fatores de estresse, aqueles considerados isolados tiveram melhora significativa na frequência e gravidade após o curso de M&H, como solidão, relação com o sexo oposto, dificuldade de dormir, exercício, dificuldade de ler livros didáticos e aspectos associados ao currículo acadêmico. Entretanto, a performance nos exames foi o fator de estresse mais fortemente pontuado e não teve melhora com o curso de M&H.

Knaapen1313. Knaapen R. Coaching com cavalos: uma abordagem sistêmica. Curitiba: Arte Editora; 2016. 160 p. distingue três diferentes níveis de atuação no seu trabalho com cavalos: comportamental, intrapsíquico e sistêmico:

  • Comportamental: sessões com contexto orientado por tarefas a serem executadas com o cavalo, pelo participante, com o objetivo de trabalhar comportamento e ações.

  • Intrapsíquico: o cavalo espelha o estado interior do indivíduo participante, informando ao terapeuta suas incongruências, conscientes ou inconscientes.

  • Sistêmico: o cavalo espelha a imagem interna de como o sistema ao qual o participante pertence é sentido por ele e influencia em suas escolhas. Parte-se do princípio de que o sistema - familiar ou organizacional - é um todo, um organismo vivo; o participante é uma parte desse todo, e o cavalo reage ao sistema, e não apenas ao participante como indivíduo.

Em uma sessão psicoterapêutica com cavalos, os níveis comportamental, intrapsíquico e sistêmico podem se mesclar. Especialmente estes dois últimos exigem uma atitude fenomenológica do terapeuta; em outras palavras, considerar somente o acontecimento, o fenômeno da intervenção dos cavalos no processo1313. Knaapen R. Coaching com cavalos: uma abordagem sistêmica. Curitiba: Arte Editora; 2016. 160 p..

Nas intervenções terapêuticas com cavalos (ITC), de modo semelhante ao que acontece nas constelações sistêmicas, os animais entram no papel de “representantes” do sistema familiar do cliente, representando sentimentos, emaranhamentos e, até mesmo, suas soluções, entendidas aqui como o impulso para uma ação de harmonização, de modo a respeitar e restaurar os “princípios sistêmicos” apontados por Hellinger1616. Hellinger B. Ordens do amor: um guia para o trabalho com constelações familiares. São Paulo: Cultrix; 2001. 282 p..

As ITC podem ser individuais ou em grupo. O que acontece durante a intervenção assemelha-se a um ato sociopsicodramático, e a hipótese explicativa do processo é que os cavalos entram no campo mórfico1717. Sheldrake R. Morphic fields. World Future. 2006;62:31-41. do cliente de uma forma genuína, livre, espontânea.

Com base na hipótese de que as ITC, objeto de trabalho cotidiano de um dos autores, poderiam contribuir positivamente para o bem-estar dos discentes de Medicina, auxiliando-os a ter maior autoconhecimento, redução de estresse e melhora nas relações interpessoais, objetiva-se neste artigo relatar o processo e os resultados de duas intervenções terapêuticas desenvolvidas com estudantes, tendo como foco situações-problema enfrentadas no curso de Medicina e como finalidade a promoção do bem-estar.

MÉTODO

Esta investigação se propôs a olhar para a subjetividade e complexidade do ser humano, tendo como pano de fundo epistemológico as noções de intervenções sistêmicas e a abordagem terapêutica de grupo proposta pelo psicodrama moreniano, relacionando sua utilidade e seus efeitos na experiência da formação em Medicina. Para alcançar tal subjetividade e complexidade, optou-se pela abordagem qualitativa e pelo relato de atividades como forma de comunicar o processo e seus resultados. A pesquisa tem natureza exploratória e aplicada, no sentido estrito das participantes da pesquisa, pois há a hipótese de que elas serão capazes de utilizar imediatamente a experiência para a solução de problemas que enfrentem no universo da educação médica, recorte da realidade escolhido para este estudo1818. Gil AC. Como elaborar projetos de pesquisa. 4a ed. São Paulo: Atlas; 2008.. Espera-se também reunir subsídios para continuidade de pesquisas e utilização das ITC de forma mais específica e direcionada.

Além de ser estudante de Medicina, arbitrou-se como critério de inclusão “ser participante do Centro Acadêmico (CA) de seu curso”. Assumiu-se, no protocolo de pesquisa, que a participação do estudante no CA poderia ser considerada um indicador de comprometimento com a educação médica, pessoal e institucional, passível de ser encontrado nas duas instituições de ensino superior (IES). Respeitando as etapas da pesquisa-ação, a coleta de dados foi feita em três diferentes momentos: 1. entrevista semidirigida aberta, minutos antes da intervenção; 2. por meio de observações sistemáticas diretas da intervenção; e 3. entrevistas individuais posteriores, realizadas seis meses após a intervenção1919. Tripp D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educ Pesq. 2005;31(3):443-66..

A ITC é uma técnica de abordagem terapêutica rápida, com efeitos prolongados, caracterizando-se como um método de diagnóstico de motivações inconscientes, ao trazer à tona padrões e informações implícitas que podem ser a chave para deflagrar harmonia no sistema trabalhado, de modo a proporcionar melhores resultados ao cliente.

Além dos participantes provenientes do sistema em pauta, o cenário se desenrolou com a presença de um terapeuta e 11 cavalos, atuando como objeto intermediário, ao representarem elementos do sistema.

As intervenções foram conduzidas pelo próprio pesquisador, que atuou como terapeuta, por ter experiência com a aplicação da técnica. Para que o trabalho estivesse apropriado com o rigor metodológico científico, foi necessário determinar o setting mental do pesquisador/terapeuta, a fim de disciplinar sua mente para captar os ruídos internos e externos na interação estabelecida entre pesquisador-pesquisado durante a intervenção2020. Turato ER. Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. 3a ed. Petrópolis: Vozes; 2008., sempre de acordo com as leis do não julgamento e da imparcialidade.

No palco-arena, a movimentação de todos os participantes - humanos e animais - é livre. Não há montaria. A intervenção transcorre com uma conversa entre pesquisador e participante, mediada pela observação que ambos fazem da movimentação dos animais. Estes movimentam-se como e para onde quiserem, dentro do palco-arena. O tempo de duração da intervenção é variável e não pode ser estabelecido com precisão antes, mas dura em média 45 minutos.

Cada vivência foi individual e aconteceu no dia e horário mais convenientes para a dupla pesquisador-participante.

Este estudo relata a atividade feita com duas pessoas. Não buscou, portanto, a saturação dos dados, não sendo possível extrapolar seus resultados para outras situações. Seu caráter exploratório, entretanto, permitirá qualificar o método a fim de estender a pesquisa para mais participantes no futuro.

A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) -Parecer nº 5.044.789 - e pela Comissão Ética no Uso de Animais (Ceua) do Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-FACEF) - Parecer Consubstanciado nº 005/2021 -, e fez parte do processo de mestrado do autor2121. Evangelista EKC. Intervenções terapêuticas com cavalos e promoção da saúde de estudantes de Medicina: um relato de atividade [dissertação]. Franca: Centro Universitário Municipal de Franca; 2022..

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participaram do estudo duas estudantes, aqui chamadas ficticiamente de Hortência e Camélia. O corpus foi constituído pelo conjunto de informações gravadas na vivência e na entrevista de partilha que aconteceu seis meses após o ato.

Na ocasião da entrevista inicial, Hortência tinha 23 anos e cursava o sexto semestre de Medicina. Filha única, será a primeira da família a ter curso superior, realizando o desejo de ser médica, que acalenta desde os 7 anos de idade. Camélia, com 25 anos e cursando o oitavo semestre de Medicina, refere ser muito calada e próxima à família. A distância de cerca de 100 quilômetros entre as cidades de origem e de estudo foi fator importante na escolha de ambas, que queriam estar próximas à família.

A literatura evidencia que o sexo feminino predomina entre os acadêmicos de Medicina33. Kaluf IO, Sousa SGO, Luz S, Cesario RR. Sentimentos do estudante de Medicina quando em contato com a prática. Rev Bras Educ Med . 2019;43(1):13-22. doi: https://doi.org/10.1590/1981-52712015v43n1RB20180098.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
),(2222. Monteaperto JVM, Vale AT, Fuentes OJ, Cesario RR. Caracterização sociodemográfica de uma turma de Medicina: é possível verificar a democratização do acesso pretendida pela Lei do Mais Médicos? In: Congressos Regionais da ABEM. 12º Congresso Paulista de Educação Médica. Inovação na formação médica: Anais do 12º Congresso Paulista de Educação Médica; 2021; virtual. Brasília: Abem; 2021. doi: https://doi.org/10.53692/Anais2021CPEM.
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. Em nosso estudo, as duas representações de liderança no CA, que aceitaram participar da pesquisa no primeiro convite, são mulheres. Estudo de sintomas de depressão em estudantes de Medicina identificou que ser do sexo feminino aumenta em duas vezes a chance de desenvolver sintomas depressivos. Outrossim, morar com os pais apareceu como fator de proteção22. Maia HAAS, Assunção ACS, Silva CS, Santos JLP, Menezes CJJ, Bessa Júnior J. Prevalência de sintomas depressivos em estudantes de Medicina com currículo de Aprendizagem Baseada em Problemas. Rev Bras Educ Med. 2020;44(3):e105. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.3-20200005.
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.

Em relação ao curso, Hortência relatou dedicação exclusiva, de 21 horas diárias, ao curso de Medicina; Camélia também mencionou dedicação exclusiva, dormindo cerca de cinco horas por noite. A dedicação ao curso inclui tarefas curriculares e extracurriculares. Tais resultados estão em acordo com outros que identificaram alta prevalência de má qualidade do sono em estudantes de Medicina2323. Araújo MFS, Lopes XFM, Azevedo CVM, Dantas DS, Souza JC. Qualidade do sono e sonolência diurna em estudantes universitários: prevalência e associação com determinantes sociais. Rev Bras Educ Med . 2021;45(2):e093. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.2-20200182.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
),(2424. Medeiros GJM, Roma PF, Matos PHMFP. Qualidade do sono dos estudantes de Medicina de uma faculdade no sul de Minas Gerais. Rev Bras Educ Med . 2021;45(4):e220. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.4-20210183.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
.

Ao serem abordadas sobre desconfortos relacionados a seus processos na formação em Medicina, Hortência relatou “competitividade na tutoria”, e Camélia, “sobrecarga e autocobrança”.

A vivência com os cavalos revelou que ambas sentem necessidade de ajudar as pessoas, o que lhes causa sobrecarga e vem relacionado ao benefício secundário de obter o reconhecimento dos pais.

Hortência considera que a competição na tutoria influencia seu relacionamento interpessoal e aprendizado. Ela trata a colaboração, um pré-requisito necessário ao aprendizado nas sessões tutoriais2525. Andrade MRS. Recontextualização do currículo integrado nos cursos de Medicina da UFSC e Unochapecó [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2012., como “competição saudável” e reproduz, em sua fala, a conserva cultural de que a competição é da natureza do estudante de Medicina. Hortência não se exime da responsabilidade sobre o processo competitivo, percebendo que, embora seja um comportamento de que não goste, ela o reproduz. Hortência apresenta uma resposta culturalmente conservada, por meio da imitação de modelos existentes, que se manifesta na tomada de um papel (role-taking) competitivo como apontado por Moreno na teoria de papéis, mediante a cristalização de um contrapapel patológico, que impede respostas espontâneo-criativas2626. Rubini CJ. O conceito de papel no psicodrama. Rev Bras Psicodrama. 1995;3:50-61..

Camélia, ao buscar conciliar suas necessidades de aperfeiçoamento pessoal e acadêmico, fez escolhas que, segundo sua visão, resultaram em algum sucesso, mas a um preço que acabou influenciando seu desempenho e levando-a ao estressor escolhido como o maior desconforto: a sobrecarga. Camélia identificou que a autocobrança em relação às suas responsabilidades gerou estresse, que teve como consequência a irritabilidade e perda de paciência, o que a levou a brigar com familiares, amigos e, finalmente, pacientes, e a afastou do ideal de médica que ela quer ser.

Bem-estar é um estado positivo experimentado por indivíduos e sociedades. É um recurso diário para a vida e demanda senso de significado e propósito para que as pessoas atendam à necessidade humana de prestar uma contribuição ao mundo5. Um ambiente competitivo e sobrecarregado como o que Hortência e Camélia espelham não permite a expressão de solidariedade, felicidade, ética, respeito à diversidade e humanização, que são valores fundantes para a efetivação promoção da saúde2727. Brasil. Portaria nº 2.446, de 11 de novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde. Brasília; 2014 [acesso em 13 mar 2022]. Disponível em: Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt2446_11_11_2014.html .
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegi...
e das DCN2828. Brasil. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 23 jun 2014. Seção 1, p. 8-11..

O movimento de transformação pelo qual a medicina passou no século XX, evoluindo de uma profissão liberal e autônoma para ser ligada a instituições, com consequente perda de autonomia, aumento no número de profissionais no mercado, perda de ganhos, exigência de especialização etc., gerou um setor ainda mais competitivo, com crise de confiança e prejuízos na humanização11. Schraiber LB. A profissão de ser médico. In: Canesqui AM, organizadora. Ciências sociais e saúde para o ensino médico. São Paulo: Hucitec; 2000.. Essa situação reflete na formação dos médicos, reforçando a conserva cultural na qual discentes e docentes estão envolvidos.

Para Rupert Sheldrake1717. Sheldrake R. Morphic fields. World Future. 2006;62:31-41., esse fenômeno pode ser explicado pela ressonância mórfica. O sistema médico, há muito estabelecido, teria um campo mórfico social muito forte, dificultando a entrada de novos hábitos no sistema. A tendência é a repetição. Entretanto, ele afirma que a repetição de novos hábitos pode gerar novos sistemas, tornando-os mais frequentes com a repetição e o tempo.

Assim como nos sistemas, a concepção moreniana parte da ideia do homem em relação, com necessidade de sentir-se pertencente a um grupo2929. Gonçalves CS, Wolff JR, Almeida WC. Lições de psicodrama: introdução ao pensamento de J. L. Moreno. São Paulo: Ágora; 1988.. Esse pode ser um estímulo para a cristalização de papéis e atitudes. Na teoria de papéis, quando se abre espaço para a criação de novos papéis, aflora um processo criativo e espontâneo que permite a descristalização cultural2626. Rubini CJ. O conceito de papel no psicodrama. Rev Bras Psicodrama. 1995;3:50-61..

Tais possibilidades devem ser consideradas porque “promover o empoderamento e a capacidade para tomada de decisão e autonomia dos sujeitos e coletividades, por meio do desenvolvimento de habilidades pessoais”, é objetivo específico da Política Nacional de Promoção da Saúde2727. Brasil. Portaria nº 2.446, de 11 de novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde. Brasília; 2014 [acesso em 13 mar 2022]. Disponível em: Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt2446_11_11_2014.html .
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegi...
(artigo 7º, inciso VII) e, portanto, um imperativo para as IES que formam médicos no Brasil, quando comprometidas com a saúde de seus integrantes e com a contribuição social que os profissionais darão ao desenvolvimento.

Do corpus analisado, depreendeu-se uma perda de si e do autocuidado durante o processo formativo. Sentimentos negativos como estresse e resignação representaram esse afastamento de si. Hortência mostra que tem consciência de que deveria dormir mais e comprometer-se menos, mas mostra-se também resignada diante de uma realidade que entende não ter governabilidade para mudar, porque é a condição para realizar seu desejo de tornar-se médica.

Uma revisão bibliográfica com 16 estudos nacionais e internacionais concluiu que “as atividades envolvidas na formação médica estão aliadas ao acometimento da saúde mental do estudante”3030. Oliveira MF, Araújo LMB. Saúde mental do estudante de Medicina. Braz J Dev. 2019;5(11):23440-52. doi: https://doi.org/10.34117/bjdv5n11-058.
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, o que parece, por ser tão comum, reforçar a resignação e a conserva cultural nesse grupo social. Inclusive, os autores usam a expressão “saúde mental” para referir-se ao adoecimento mental.

Quando abordadas sobre terapias, exercícios de respiração e/ou meditação, ambas demonstraram pouca ou nenhuma intimidade com processos terapêuticos e de autoconhecimento,

Valorização dos relacionamentos interpessoais e dos fenômenos do cotidiano, equilíbrio entre estudo e lazer, cuidados com saúde, alimentação e sono, prática de atividade física, religiosidade, trabalhar a própria personalidade e contar com assistência psicológica foram descritos por estudantes de Medicina como estratégias de enfrentamento do estresse3131. Zonta R, Robles ACC, Grosseman S. Estratégias de enfrentamento do estresse desenvolvidas por estudantes de Medicina da Universidade Federal de Santa Catarina. Rev Bras Educ Med . 2006;30(3):147-53. doi: https://doi.org/10.1590/S0100-55022006000300005.
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. Pelo conteúdo apresentado por Hortência e Camélia na vivência, tais estratégias têm sido pouco ou nada utilizadas por elas. E não estão sozinhas. Outro estudo que avaliou o nível de atividade física em estudantes de Medicina no terceiro ano, em 2001 e 2011, constatou que, nesse intervalo de dez anos, o nível de atividade física caiu e o tempo sentado permaneceu o mesmo3232. Raddi LLO, Silva Júnior JP, Ferrari GLM, Oliveira LC, Matsudo VKR. Nível de atividade física e acúmulo de tempo sentado em estudantes de Medicina. Rev Bras Med Esporte. 2014;20(2):101-4. doi: https://doi.org/10.1590/1517-86922014200201350.
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.

A mudança do comportamento em saúde também é difícil quando se fala em meditação. Hortência e Camélia relataram que a pouca experiência delas com práticas de meditação foi disponibilizada pelas suas escolas médicas. Isso reflete o movimento de preocupação que as escolas vêm dando3333. Shuh LM, Cabral FB, Hildebrandt LM, Cosentino SF, Colomé ICS. Meditação, uma estratégia de cuidado em saúde para estudantes universitários. Rev Enferm UFSM. 2021;11:1-21. doi: https://doi.org/10.5902/2179769243156.
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),(3434. Silveira LL, Fabrizzi HE, Hamilko HCC, Stefanello S, Santos DVD. Os efeitos do mindfulness na percepção dos estudantes de Medicina de uma universidade brasileira. Rev Bras Educ Med . 2021;45(2):e053. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.2-20200149.
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, cada vez mais, ao sofrimento mental e ao adoecimento psíquico do seu corpo discente. Silveira et al.3434. Silveira LL, Fabrizzi HE, Hamilko HCC, Stefanello S, Santos DVD. Os efeitos do mindfulness na percepção dos estudantes de Medicina de uma universidade brasileira. Rev Bras Educ Med . 2021;45(2):e053. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.2-20200149.
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relatam os efeitos positivos de um programa de prática de mindfulness entre os estudantes. Os discentes mencionaram maior autocuidado, aprimoramento na organização pessoal e melhor compreensão das emoções. A prática mostrou-se um método barato, de fácil reprodução e com efeitos positivos até mesmo seis meses após a intervenção. Entretanto, os alunos não incorporaram a meditação como hábito diário.

Apreende-se a necessidade de mudança de comportamento nos estudantes se quiserem melhorar sua saúde física e mental e, por conseguinte, seu bem-estar, pois o comportamento de saúde é um determinante crítico para a obtenção desse resultado. Esse comportamento é influenciado por múltiplos fatores - emocionais, cognitivos e interpessoais - e pelas habilidades individuais para a saúde. A OMS55. World Health Organization. Glossário de termos de promoção da saúde. Genebra: WHO; 2021. 44 p. alerta que tais comportamentos e habilidades são fundamentalmente formados pelos ambientes sociais, culturais, comerciais e físicos nos quais as pessoas vivem e trabalham, e que a alfabetização (letramento) em saúde não é responsabilidade exclusiva dos indivíduos, mas mediada por demandas culturais e situacionais. “Comportamentos de saúde são frequentemente relacionados em clusters e em grupos de pessoas que formam um conjunto complexo de relações interdependentes”55. World Health Organization. Glossário de termos de promoção da saúde. Genebra: WHO; 2021. 44 p., como é o caso dos estudantes de Medicina. Logo, no que concerne à saúde desse público, a promoção da mudança de comportamento deve ser apoiada em abordagens que considerem as realidades complexas que moldam a vida dos discentes.

Durante vivências terapêuticas com cavalos, o que acontece se percebe por meio de movimentos deles. Ausência de movimentos também fornece informação. Uma vez que a informação é interpretada, que um conflito ou emaranhamento no sistema é detectado, há a possibilidade de dizer palavras de solução, que representam o impulso para uma ação de harmonização, respeitando e resgatando os princípios sistêmicos16. Tais palavras devem ser ditas - verbal ou mentalmente - pelo participante, desde que ele as sinta como verdadeiras em sua emoção.

Palavras não são suficientes para explicar o processo das ITC, mas o seu efeito imediato é visível no comportamento do cavalo. Este “conta” ao terapeuta quando o emaranhamento foi desfeito, por força da solução empreendida em campo1313. Knaapen R. Coaching com cavalos: uma abordagem sistêmica. Curitiba: Arte Editora; 2016. 160 p.. Entretanto, mudanças visíveis na vida do participante podem não ser imediatas, seja porque exigem rupturas de padrão difíceis de enfrentar imediatamente, seja porque demandam escolhas e comportamento ativo do participante.

Imediatamente após a ITC, houve deslocamento no sentido da compreensão, por Hortência, da influência dos chamados “emaranhamentos sistêmicos” em suas relações e posicionamentos, o que lhe permitiu avançar no autoconhecimento e assumir compromissos com ela mesma. Seis meses após a vivência, Hortência partilhou com o terapeuta que o movimento de tomada de consciência que se deu no palco-arena a ajudou a assimilar a emoção de aceitação, isto é, de compreensão de alguns dos seus limites pessoais, sem sentimentos negativos de repreensão ou resignação. Também a ajudou a assimilar o movimento de retirada, auxiliando-a a descristalizar seu papel social adoecido e assumir uma postura espontâneo-criativa com vistas a rematrizar seu comportamento e viver uma vida com maior bem-estar.

Assim como se deu com Hortência, imediatamente após a intervenção, Camélia demonstrou deslocamento na compreensão da influência dos “emaranhamentos sistêmicos” em suas relações e posicionamentos, e também aceitou o convite para assumir compromissos com ela mesma.

Seis meses após a intervenção, Camélia diz que, em relação aos desconfortos que vinha vivenciando na faculdade, especialmente os conflitos com as amigas, houve mudanças substanciais e melhoria significativa no seu bem-estar. Ela atribui parte da melhora do seu bem-estar a um fato que aconteceu com outra pessoa, uma amiga. Sua fala corrobora o que um estudo no ensino fundamental II já havia demonstrado, de menor rendimento escolar quando os amigos de turma estão doentes3535. Raposo IPA, Gonçalves MBC. A saúde dos amigos da sala de aula interfere no desempenho escolar do aluno? Estud Econ. 2018;48(2):311-37.. Camélia ainda relatou como a tomada de consciência propiciada pelo ato psicodramático lhe permitiu vivenciar a emoção da aceitação, com consequente mudança de atitude.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As ITC correspondem a um conjunto de técnicas que podem trabalhar aspectos comportamentais, intrapsíquicos e sistêmicos, e contêm características de uma cosmologia que integra homem e natureza numa perspectiva diferente daquela da ciência ocidental moderna. Por isso, podem ser consideradas uma prática integrativa e complementar, que, stricto sensu, demanda uma visão de mundo mais facilmente adquirida pela via da experiência. Trata-se de uma modalidade recente, ainda com carência de estudos e publicações, que vem se desenvolvendo a passos largos, com atendimentos individuais e grupais em diversos pontos do Brasil e do mundo. As aproximações teóricas das ITC com Rupert Sheldrake, Bert Hellinger e Jacob Moreno são portadoras da necessidade de mais estudos, o que este relato de atividades pretende estimular.

Este relato de atividade desenvolvida com duas participantes não pretende inferir seus resultados para a população, tampouco validar a técnica das ITC. Os resultados mostram tão somente que, para as discentes expostas à intervenção ora relatada, a conscientização de alguns padrões intrapsíquicos e sistêmicos que influenciavam seu comportamento diante de situações estressoras na rotina acadêmica lhes permitiu, até o prazo de seis meses após a intervenção, tomar decisões cotidianas que propiciaram o desenvolvimento de habilidades sociais favoráveis ao seu bem-estar.

Em outras palavras, retomando a ideia de esboçar uma articulação teórica com o psicodrama, os resultados apontam para a presença do fator espontaneidade-criatividade como recurso contra as conservas culturais, o que proporcionou às participantes melhor saúde psíquica e melhor bem-estar.

Ainda como sugestão, recomenda-se a ampliação da pesquisa para mais discentes e para outros agentes do sistema educação médica, como dirigentes institucionais, docentes e pessoal técnico-administrativo. É importante observar que o recorte da educação médica escolhido aqui não impede que tais estudos se deem no âmbito da educação em geral, pois os resultados apresentados nos levam a avaliar que as ITC têm potencial para fornecer às instituições de ensino uma estratégia operacional para produzir saúde e cuidado dos seus discentes. No caso específico da formação médica, a técnica abordada neste estudo se baseia no cuidado destinado ao profissional médico ainda no estágio de formação, de modo a atuar para que ele descristalize conservas culturais há muito estabelecidas e a abrir o caminho para uma sociedade de bem-estar.

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  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Gustavo Antonio Raimondi.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2023
  • Aceito
    18 Ago 2023
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