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Sexualidade na gestação: os médicos brasileiros estão preparados para lidar com estas questões?

Sexuality in pregnancy: are Brazilian physicians prepared to conduct these questions?

EDITORIAL

Sexualidade na gestação: os médicos brasileiros estão preparados para lidar com estas questões?

Sexuality in pregnancy: are Brazilian physicians prepared to conduct these questions?

Teresa Cristina Barroso VieiraI; Eduardo de SouzaII; Mary Uschiyama NakamuraII; Rosiane MattarII

IDepartamento de Obstetrícia, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil

IIDepartamento de Obstetrícia, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Teresa Barroso Vieira Rua Napoleão de Barros, 875 - Vila Clementino CEP: 04024-002 São Paulo (SP), Brasil

Introdução

A sexualidade é uma função biológica humana que não se atém à genitalidade e sim à corporalidade total. Segundo a Neuroendocrinologia, a função sexual é um fenômeno biopsicossocial complexo no qual estímulos internos e externos são modulados pelo sistema nervoso central e periférico, resultando em uma cascata de alterações bioquímicas, hormonais e circulatórias que culminam no resultado sexual físico e cognitivo1,2. É um fenômeno que envolve aspectos biológicos, psicológicos e sociológicos3. Na atualidade, o comportamento sexual humano transcendeu o aspecto reprodutivo e passou a ser considerado parte integral da qualidade de vida4,5.

Apesar de alguns avanços ao longo dos últimos séculos, o exercício da sexualidade ainda é cercado por tabus, preconceitos e crendices em muitas culturas modernas. O conceito de disfunções sexuais surgiu somente no século XX, após os primeiros estudos sobre a resposta sexual fisiológica humana. Em 1966, Masters e Johnson6 propuseram o modelo que descrevia a resposta sexual masculina e feminina como um processo linear didaticamente subdividido em quatro fases denominadas excitação, platô, orgasmo e resolução. Embora cada fase tenha características específicas distintas, não são unidades separadas, mas partes inseparáveis de um processo unitário, sequencial, contínuo e ordenado. Em 2001, Basson propôs um novo modelo específico para a resposta sexual feminina segundo o qual a resposta sexual das mulheres seria circular e dividida em cinco fases (neutralidade, excitação, desejo responsivo, satisfação e intimidade)7. Segundo esse novo modelo, o desejo não necessariamente desencadearia toda a resposta sexual feminina, mas a intimidade física do casal poderia ser a base para a motivação sexual8. Consequentemente, muitas mulheres que seriam classificadas como disfuncionais segundo o modelo antigo deixariam de sê-lo segundo esse novo modelo9.

Sexualidade na gestação

Se a resposta sexual feminina foi esquecida durante muitos séculos, o estudo dessa função durante o ciclo gravídico-puerperal recebeu ainda menos atenção. A gravidez é caracterizada por modificações bioquímicas, funcionais e anatômicas que se iniciam logo após a implantação e que geralmente se acompanham de modificações emocionais. Todas essas alterações acabam por interferir no comportamento sexual da maioria das gestantes, em graus e formas diferentes10,11.

A cópula é considerada segura durante a gravidez normal. Além de não causar danos, a relação sexual durante a gestação pode beneficiar o casal, pois tranquiliza a mulher e o parceiro, dissipa energias acumuladas e alivia a tensão e a ansiedade por meio da satisfação5,10,11. A maioria das mulheres mantém atividade sexual durante a gestação, porém com padrão diferente em relação ao período pré-gestacional. Com o avançar da gravidez, ocorre redução na frequência da atividade sexual, no desejo sexual e no intercurso vaginal12-15. No pós-parto, muitas mulheres continuam a relatar declínio no interesse, desejo ou libido sexual, porém 80% dos casais restabelecem relações sexuais até a 12ª semana após o parto14-16. As mudanças na função sexual observadas durante o ciclo gravídico-puerperal são atribuídas a alterações hormonais e/ou metabólicas, à fadiga e a fatores psicogênicos.

O assunto da função sexual na gravidez ainda é cercado por numerosos tabus movidos por ignorância e preconceitos culturais, pessoais ou religiosos. Talvez por todos esses motivos, dificuldades sexuais são bastante frequentes durante a gravidez, afetando entre 40 e 70% das mulheres em algumas culturas13,14,17,18. A maioria dos casais se preocupa com as modificações que ocorrem durante a gestação e com possíveis repercussões negativas da atividade sexual sobre o concepto e a gravidez; no entanto, por constrangimento ou medo, frequentemente relutam em fazer perguntas espontâneas sobre sexualidade, a não ser que um profissional de saúde aborde o assunto primeiro12,15,19,20.

O médico está preparado para abordar questões de sexualidade na gestação?

Dificuldades sexuais durante a gestação podem levar a estresse, ansiedade e problemas maritais que podem afetar negativamente a qualidade de vida do casal13,14,18,19. A falta de conhecimento de médicos e pacientes a respeito da sexualidade, assim como preconceitos, reforçam as inadequações sexuais durante o período gestacional. O pré-natal é uma excelente oportunidade para que o casal expresse seus medos, esclareça suas dúvidas, receba informações corretas e descubra novas abordagens sexuais que possibilitem a manutenção de sua intimidade física, satisfação emocional e qualidade de vida durante essa fase de suas vidas. Segundo diversos estudos, a maioria das gestantes deseja discutir com seu médico suas dúvidas e preocupações relacionadas às mudanças na sua sexualidade durante essa fase, mas nem sempre se sentem confortáveis em iniciar essa conversa espontaneamente. Por outro lado, muitos médicos também se sentem despreparados e pouco à vontade para abordar esse tema com suas pacientes11. Essa conspiração silenciosa de a paciente "não contar" e de o médico "não perguntar" leva muitos casais a sofrimento desnecessário.

Para que ocorra um diálogo produtivo entre o médico e o casal grávido, é necessário que o obstetra esteja disponível e sinta-se preparado e confortável para incentivar, ouvir e responder questões ligadas à sexualidade. Todavia, muitos médicos, embora interessados, sentem-se despreparados para esse tipo de atendimento em razão de deficiências na sua formação na área da sexualidade humana em geral e em particular na gestação.

Apesar de as queixas sexuais espontâneas serem frequentes nos consultórios de todas as especialidades médicas, a maioria dos cursos de medicina não prepara adequadamente seus alunos para lidar com tais questões. De acordo com um estudo que analisou o currículo de 1.700 faculdades de Medicina em todo o mundo, apenas um número mínimo delas oferecia um programa multidisciplinar sobre sexualidade, e a duração média desse ensino era de 6 a 10 horas21.

A residência médica é outro período em que seria possível complementar o escasso conhecimento teórico sobre o tema e treinar jovens médicos no atendimento de pacientes com queixas sexuais; porém, não existe normatização quanto ao conteúdo e a carga horária mínima de treinamento em sexualidade humana nas residências de Tocoginecologia, Psiquiatria ou Clínica Geral. Dessa forma, o jovem médico é lançado no mercado pouco preparado e inseguro para lidar com essas questões.

Em estudo recente, avaliamos a atitude e a prática de 154 residentes de três programas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-EPM) sobre questões de sexualidade na gestação22. Embora 70% dos participantes tenham declarado que perguntas sobre saúde sexual deveriam fazer parte da história de todas gestantes atendidas, menos de 20% dos residentes de Ginecologia e Obstetrícia rotineiramente faziam perguntas a esse respeito. Menos de um quarto dos participantes sentia-se completamente seguro para responder a perguntas de gestantes sobre sexualidade e 71% deles declararam não ter conhecimentos específicos sobre disfunções sexuais. Ainda, segundo os entrevistados, a falta de conhecimento e de tempo durante as consultas seriam os principais obstáculos para abordar questões sexuais com gestantes.

Esta foi a primeira publicação que analisou a atitude e prática de residentes em relação a questões sexuais na gravidez. Outros estudos que avaliaram o conhecimento e preparo de diversos especialistas também evidenciam a falta de preparo de médicos que atuam em diferentes áreas e com vários anos de prática ao lidarem com queixas sexuais em pacientes adultos de ambos os gêneros e em diferentes faixas etárias23,24.

Não há quem negue a importância da sexualidade na qualidade de vida. No entanto, a dificuldade em abordar, perguntar e responder com naturalidade a questões relacionadas à sexualidade parece ser generalizada. Um médico bem preparado e seguro pode ser um importante agente educativo e terapêutico no atendimento de casais grávidos com queixas sexuais. Não obstante, esse tipo de profissional é raro em nosso meio, o que aponta para a necessidade de melhorar a qualidade da educação em saúde sexual oferecida aos alunos de Medicina e aos residentes.

Conclusão

Em razão de fatores biológicos, hormonais, psicológicos e culturais, dificuldades sexuais são bastante frequentes durante a gravidez e podem afetar negativamente a qualidade de vida de muitos casais. O pré-natal é uma excelente oportunidade para que os casais possam expor suas dúvidas, medos e queixas sexuais e obter os esclarecimentos e orientações necessários; porém, a maioria dos médicos está despreparada para lidar com questões de sexualidade durante o ciclo gravídico-puerperal. São, portanto, necessárias intervenções educativas para melhorar essa situação.

Recebido 24/09/2012

Aceito com modificações 29/10/2012

Trabalho realizado no Departamento de Obstetrícia da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil.

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  • Endereço para correspondência:

    Teresa Barroso Vieira
    Rua Napoleão de Barros, 875 - Vila Clementino
    CEP: 04024-002 São Paulo (SP), Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Nov 2012
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