Resumos
O Mobon é um movimento católico, formado sob a influência do Concílio Vaticano II (1962-1965), que teve atuação destacada em comunidades rurais da Zona da Zona da Mata Mineira. O ideal de maior corresponsabilidade entre o clero e os leigos ocupou lugar de relevo no movimento, que promoveu cursos para a organização de comunidades e lideranças leigas, com o objetivo de que essas se tornassem menos dependentes da atuação dos párocos locais. Nos cursos eram utilizadas metáforas e representações simbólicas do mundo rural com propósitos de promover uma maior compreensão, visando a maior participação leiga. O texto tem como propósito apresentar uma análise desse processo de atuação comunitária da Igreja Católico e do papel relevante adquirido pela práxis comunicativa no processo relacional entre missionários e grupos católicos leigos.
Igreja Católica; Concílio Vaticano II; leigo; comunidades; missionários
Mobon is a catholic movement established under the influence of the Second Vatican Council (1962-1965), and played an important role in rural communities in Zona da Mata, Minas Gerais. The ideal of a strong co-responsibility between the clergy and laity was a hallmark of this movement, which offered courses to community organizations and layman leaderships to become more independent from local clerics. In these courses, metaphors and symbolic representations of the rural environment were used for a better comprehension, aiming for strong laity engagement. The present text aims to analyze this process of community action of the Catholic Church, emphasizing the key role played by the communicative praxis in the relational process between missionaries and layman Catholic groups.
Catholic Church; Second Vatican Council; laity; communities; missionaries
O Concílio Vaticano II, o MOBON e as comunidades rurais: um estudo sobre a práxis comunicativa entre missionários e grupos católicos leigos
Fabrício Roberto Costa Oliveira
RESUMO
O Mobon é um movimento católico, formado sob a influência do Concílio Vaticano II (1962-1965), que teve atuação destacada em comunidades rurais da Zona da Zona da Mata Mineira. O ideal de maior corresponsabilidade entre o clero e os leigos ocupou lugar de relevo no movimento, que promoveu cursos para a organização de comunidades e lideranças leigas, com o objetivo de que essas se tornassem menos dependentes da atuação dos párocos locais. Nos cursos eram utilizadas metáforas e representações simbólicas do mundo rural com propósitos de promover uma maior compreensão, visando a maior participação leiga. O texto tem como propósito apresentar uma análise desse processo de atuação comunitária da Igreja Católico e do papel relevante adquirido pela práxis comunicativa no processo relacional entre missionários e grupos católicos leigos.
Palavras-Chave: Igreja Católica, Concílio Vaticano II, leigo, comunidades, missionários.
ABSTRACT
Mobon is a catholic movement established under the influence of the Second Vatican Council (1962-1965), and played an important role in rural communities in Zona da Mata, Minas Gerais. The ideal of a strong co-responsibility between the clergy and laity was a hallmark of this movement, which offered courses to community organizations and layman leaderships to become more independent from local clerics. In these courses, metaphors and symbolic representations of the rural environment were used for a better comprehension, aiming for strong laity engagement. The present text aims to analyze this process of community action of the Catholic Church, emphasizing the key role played by the communicative praxis in the relational process between missionaries and layman Catholic groups.
Key-words: Catholic Church, Second Vatican Council, laity, communities, missionaries.
Introdução
Esse artigo contém reflexões sobre o processo de atuação do Movimento da Boa Nova (Mobon) em comunidades rurais da Zona da Mata. Esse movimento católico foi formado e influenciado pelo Concílio Vaticano II e desenvolveu cursos com o propósito de formar comunidades e lideranças católicas para expandir os ideais do Mobon; dessa forma, os leigos tinham papel relevante no movimento. No processo de formação dos leigos e consolidação do movimento, a práxis comunicativa dos missionários, com a utilização de metáforas e representações simbólicas do mundo rural, ocupou lugar de profunda importância.
O Mobon tem sede no município de Dom Cavati/MG, circunscrito à diocese de Caratinga/MG. Esse movimento emergiu em fins da década de 1960, sua sede foi inaugurada em 1979 e continua em funcionamento, com capacidade para receber duzentos católicos leigos, que nela se hospedam por três dias para participarem dos cursos de evangelização. Esses cursos têm como títulos Preparação para Semana Santa; Curso de Natal; Religião e Política; Campanha da Fraternidade, dentre outros. Os temas dos cursos podem variar em função da demanda dos leigos, dos interesses dos missionários, de um pedido do bispo etc. Há processos sociais de negociação entre os grupos católicos, que tanto podem promover novos cursos como possibilitar que outros não sejam mais ministrados.
O Mobon foi formado com o apoio de padres e do bispo da diocese de Caratinga e desde sua fundação tem à frente dois missionários religiosos sacramentinos: Alípio Jacinto da Costa e João da Silva Resende. Os missionários vivem na casa de cursos por certo período do ano e se dedicam a viajar por localidades que demandem cursos e manifestem interesse com relação à presença dos mesmos para a evangelização. Assim, os cursos são ministrados tanto na sede do movimento como em diversas outras paróquias e dioceses.
O texto se inicia com a apresentação da influência do Concílio Vaticano II (1962-1965) para o surgimento do Mobon, onde serão ressaltados processos de transformação desencadeados pelo concílio, que repercutiram nas concepções e práticas religiosas dos missionários fundadores do movimento e trouxeram mudanças também para os grupos católicos leigos. Em seguida, abordaremos a formação de comunidades empreendida pelo Mobon e a influência desse procedimento na vivência dos grupos católicos.
No tópico posterior será ressaltado o processo de aproximação dos missionários do Mobon com o Padre Gwenael, da Zona da Mata Mineira, que possibilitou a atuação dos missionários junto aos leigos das comunidades rurais daquela região. Em seguida, serão observadas estratégias de comunicação entre os missionários do movimento e os grupos comunitários daquela localidade. Por fim, problematizaremos essa relação e serão apresentadas as considerações finais do trabalho.
O Concílio Vaticano II: contexto de emergência do Movimento da Boa Nova
O Mobon é considerado sucessor do Mape (Movimento de Apostolado dos Pioneiros do Evangelho), uma vez que nesse último atuaram os missionários Alípio Jacinto da Costa e João da Silva Resende, que mais tarde fundaram o Mobon. O Mape teve atuação destacada no período que se estende da década de 1940 até meados de 19601 1 Conforme indicam Botelho (1996) e Araújo (1996), o trabalho do Mape teve início na década de 1940, embora só tenha se formalizado em fins da década de 1950. . Obteve maior sucesso na região da cidade de Manhumirim/MG, onde havia forte rivalidade entre grupos católicos e protestantes. Numa carta endereçada ao Padre Demerval Botelho, o Padre Geraldo Silva (fundador do Mape narra um dos motivos responsáveis pela formação do movimento:
Em 1946, no meu primeiro ano de padre, fui designado para atender Presidente Soares. Ia aos sábados e ficava lá o domingo. Como os moradores daquela localidade eram em sua maioria protestantes e a época era de luta religiosa, senti a necessidade de fazer uma pastoral a partir da Bíblia a fim de esclarecer as muitas dúvidas que estavam na mente dos católicos e mostrar que nossa fé e nossa Igreja, vinham da Palavra de Deus (Botelho 1996:210).
O Mape tinha duas prioridades condizentes com as preocupações da Igreja Católica na década de 1950: (1) a instituição de uma educação religiosa contínua, em vez de se ter por alvo somente as crianças; (2) o combate ao aumento do número de protestantes, substancial entre 1940 e 1964, processo especialmente notável entre as classes populares (Mainwaring 1989:52-3). Assim, o objetivo do Mape era conter o crescimento das igrejas protestantes, fornecendo maior conhecimento da Bíblia aos católicos, já que os protestantes a manuseavam com maior liberdade e desenvoltura, o que lhes permitia "vencer" os católicos nas discussões sobre religião, demonstrando uma maior familiaridade com o texto bíblico. Dessa forma, a proposta era promover uma mediação, ou seja, intensificar no bojo desses grupos a intimidade com relação à ideologia da Igreja Católica. O Mape buscava, então, preparar a população católica leiga, em geral pouco escolarizada, para utilizar textos bíblicos e refutar os argumentos dos protestantes, evitando, assim, uma possível conversão. Nesse sentido, a presença dos missionários se dava principalmente em espaços rurais que não contavam com a presença de padres para uma assistência permanente.
A Bíblia é, obviamente, o livro em que católicos e protestantes buscam argumentos para defender seus pontos de vista. Por esse motivo, o Padre Geraldo Silva investiu na criação de pequenos cursos2 2 Veremos adiante que o mesmo modelo de curso foi adotado pelo Mobon. , chamados de Aulas Bíblicas, onde os católicos deveriam ser preparados para rebaterem os argumentos protestantes. Desse modo, "Pe. Geraldo buscou equipar seus pioneiros com alto falante, quadros bíblicos, etc. No começo iam a cavalo e mais tarde de Jeepe. Passamos a carregar um harmônio que atraía e estimulava o povo a cantar" (Costa 2009:3). Segundo Alípio, nos cursos "[...] fazia-se uma afirmação de verdade e em seguida citava o texto bíblico [sic] comprovando tal verdade. Tudo feito na má semente espalhada pelos adversários da Igreja Católica" (Costa 2009:04). Os missionários doutrinavam os leigos católicos apoiando-se nas partes do texto bíblico que eram mais utilizadas pelos protestantes: "Junto com a Bíblia ia no bolso a caderneta com as anotações, onde estava anotados textos [sic] que seriam usados em defesa dos ensinamentos da Igreja Católica" (Costa 2009:16).
Nesse contexto, as recomendações do Padre Geraldo Silva se mostram extremamente interessantes para pensarmos os debates entre católicos e protestantes:
Ele sempre recomendava a seus pioneiros que nunca aceitassem debates com protestantes em particular, evitando que o adversário mentisse para outros que o pioneiro não respondeu suas perguntas. Outra recomendação era que o pioneiro tivesse toda paciência do mundo e nada de pressa. Deixasse a impaciência para o adversário e, sobretudo, deixasse para o protestante a iniciativa de parar com a conversa. Quem parasse primeiro era considerado derrotado, então o pioneiro não podia parar e não parava mesmo.
Desde o começo o Padre Geraldo quis dar um sentido de organização ao seu trabalho. Além das aulas bíblicas ele começou a publicar folhetos populares com sua ideia de levar a palavra de Deus por toda a parte e na linguagem mais simples, ao alcance de todos (Costa 2009:08).
Essa citação revela que a paciência era primordial para que o católico pudesse vencer os debates, virtude ressaltada nos diálogos que, mais tarde, os missionários promoveram nos cursos do Mobon. Outro procedimento relevante é a publicação de folhetos populares numa linguagem simples, característica do movimento.
A emergência do Mobon se deu em fins da década de 1960, período em que a Igreja Católica viveu um momento de grande efervescência, em função da difusão de concepções advindas do Concílio Vaticano II (1962-1965), evento representativo de transformações que acentuavam a ideia de que a Igreja Católica era o povo de Deus, destacando a corresponsabilidade entre clero e leigo.
Conforme exposto, o Concílio Vaticano II foi crucial para a emergência de novas práticas católicas, sobretudo no que se refere ao papel dos leigos. No que diz respeito às transformações que se seguiram, Mainwaring (1989) destaca o seguinte: "[...] maior participação dos leigos, justiça social, maior sentido de comunidade, maior corresponsabilidade dentro da Igreja e relações de maior proximidade entre o clero e o povo exigiam na América Latina mudança maior do que na Europa" (:63). Assim sendo, a influência do Concílio Vaticano II na formação dos missionários fundadores do Mobon foi bastante relevante. João Resende destaca essa marca quando de sua formação no seminário, em fins da década de 1960: "Frei André Resende, meu xará, esse cara era muito entusiasmado e começou a trazer a reflexão baseada no Concílio Vaticano II, a eclesiologia toda baseada na carta aos Efésios, era uma maravilha"3 3 Entrevista concedida por João Resende em novembro de 2009. . Alípio Jacinto, em escrito recente, também relatou sua experiência em um curso no Chile: "Em 1966, participei de um curso de renovação dos ensinamentos da Igreja durante sete meses. A partir daí foi possível dar continuidade ao sistema Mape dentro do espírito do Concílio Vaticano II, sob orientação do Papa João XXIII" (Costa 2009:3).
Os trabalhos de evangelização do Mobon na diocese de Caratinga/MG foram ressaltados pelo Bispo Dom Eugênio Corrêa, no jornal oficial da Diocese em 1971:
[Trata-se de] Um trabalho gigantesco, em extensão e profundidade. É o trabalho por excelência da Igreja pós-conciliar. Padres somos tão poucos! Os padres devem ser mais supervisores e animadores das comunidades. Devemos deixar para os leigos tudo o que os leigos podem fazer. Caminhamos decididamente para a diversificação dos ministérios: foi-se o tempo em que só o Padre sabia, mandava e fazia de tudo. Ninguém pode ser universal, hoje sobretudo. (Corrêa 1971 apud Araújo 1996:67)
Evidenciando o caráter "pós-conciliar" do trabalho, o religioso mostra seu apoio à ação evangelizadora dos missionários do Mobon e sua adesão à ideia de que os leigos podem ter maior espaço de atuação, sendo os padres mais "supervisores e animadores". Ainda enfatiza o fato de que "foi-se o tempo em que só o Padre sabia, mandava e fazia de tudo".
No curso Boa Nova ao Evangelho4 4 Curso Boa Nova ao Evangelho, ministrado por Alípio e João Resende em Iapu/MG, 29/8/1970 (material de Dona ora Furtado de Melo). , ministrado em 1970 pelos missionários do Mobon, uma pergunta a respeito do papel do pároco apontou para essa direção: "Com o trabalho dos leigos precisamos do padre como antigamente? Por quê?", a resposta5 5 Quando peguei o material de Dona Cora, ela afirmou que as respostas dadas por seu grupo em geral eram exatamente as esperadas pelos missionários e também relatou que elas já poderiam mesmo ser inferidas das declarações que tomaram lugar durante o curso. anotada foi a seguinte: "Não, porque os leigos tomarão parte ativa na Igreja". No mesmo curso foi lançada, ainda, outra pergunta: "O povo não conhece o Evangelho por má vontade ou por falta de ensino? Por quê?", ao que se respondeu: "Por falta de ensino; não havia quem ensinasse"6 6 O conteúdo desse curso foi copiado do caderno de anotações de Dona Cora Furtado de Melo, da cidade de Iapu/MG. Ela é uma liderança religiosa conhecida na cidade; historiadora e pedagoga, considerava importante registrar o conteúdo dos cursos de que participava. Participou de quase todos os cursos do Mobon e deixou registros dos mesmos em cadernos e pastas. . A questão colocada aborda a valorização da educação religiosa e das reflexões bíblicas; há também, nesse sentido, um investimento a fim de que sejam ressaltadas as diferenças entre o "catolicismo anterior" e aquele fundamentado na perspectiva do Concílio Vaticano II.
Segundo Alípio, mostrou-se marcante o momento em que foram exibidas fotos de pessoas com Bíblias na mão, que trabalhariam em defesa da Igreja Católica, e um diácono chileno que participava das atividades de atualização do pensamento religioso lhe afirmou que "O importante era a comunidade" (Costa 2009:23). Para Alípio, "O que o diácono queria dizer é que nada valia se não levasse para a participação comunitária. Não sei como ele entendeu que nosso trabalho era bíblico e não era comunitário" (Costa 2009:23). Tal episódio aconteceu em Santiago, no Chile, quando lhe foi confiada uma bolsa de estudos no ICLA (Instituto Catequético Latino-Americano), sob patrocino do Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano). Nesse período, o objetivo era difundir as novidades promovidas pelo Concílio Vaticano II, que consolidou a ênfase na formação católica, a despeito do conflito com outras religiões.
O Papa João XXIII, que convocou o concílio, ficou conhecido como o papa do ecumenismo a idéia era promover a cooperação entre as igrejas cristãs. Desse modo, a partir da década de 1960, a ênfase no ecumenismo, por parte da hierarquia católica latino-americana, favoreceu a aproximação de católicos e grupos protestantes, quando havia interesses comuns (Mariz & Machado 2006).
Apesar de ter sido um evento europeu, dominado por bispos e teólogos desse continente, o concílio conduziu a mudanças mais significativas em alguns países da América Latina do que na própria Europa. Tanto para críticos como para partidários, a relevância do evento era clara, assim como eram conhecidas suas ideias-chave enfatizar a missão social da Igreja Católica; declarar a importância dos leigos; motivar maior corresponsabilidade entre o papa e os bispos e entre padres e leigos; propagar a ideia a da Igreja Católica como "o povo de Deus"; valorizar o diálogo ecumênico; modificar a liturgia de modo a torná-la mais acessível (Mainwaring 1989:62).
Em suma, o Concílio Vaticano II sancionou oficialmente uma atmosfera de abertura e participação na Igreja Católica, o que acarretou também uma intensificação do trabalho dos leigos na América Latina, incentivando a criação de pequenos grupos para o estudo da Bíblia e dos ensinamentos religiosos. Nesse contexto, Alípio e João Resende investiram no projeto de realização de cursos para os leigos, de modo a instruí-los sobre as novidades católicas e estimulá-los a fazer reflexões e assumir compromissos na vida da comunidade. Nessa direção, Denílson Souza, um missionário sacramentino, declara acreditar que "A proposta maior do movimento é dar importância ao leigo; é fazer com que o leigo assuma o seu lugar, o seu papel na comunidade. Esse é o grande achado do Boa Nova" (Araújo 1996:25).
A formação de comunidades
O trabalho de Paiva (1985) aponta para o fato de que no pós-segunda guerra setores da Igreja Católica se identificaram com a ideia de uma "democratização fundamental", "de base", que seria resultante de um trabalho educativo, que "conecta-se ao ideal de formação de comunidades cristãs que se apresentam como pequenos 'grupos primários' no sentido de análogos ao grupo familiar, porque apoiados sobre valores como a amizade, a cooperação, a família, a fé" (:13). De forma semelhante, o texto de Neves (2008a) sobre a organização comunitária na região amazônica apontou para o fato de que entre fins da década de 1960 e início da década de 1970, o Movimento de Educação de Base (MEB) contribui para a promoção de projetos pedagógicos emancipatórios e ajudou a agregar "aquelas unidades sociais e políticas em fluxos horizontais e verticais, agrupando e interconectando ribeirinhos para viverem entre comunidades"7 7 Grifos do autor. (:75). As ações do MEB podem ser relacionadas ao Mobon , já que esse investiu muito na formação de comunidades. No curso Boa Nova ao Evangelho, ministrado em 1970 e que deu nome ao movimento, trabalhou-se com o seguinte conteúdo a respeito de comunidade:
- A vida comunitária é de importância capital;
- O homem não vive isolado;
- O cristianismo exige vida comunitária;
- Os convertidos precisam do apoio da comunidade;
- A fé necessita de ambiente: de vida, de diálogo, de comunidade8 8 O conteúdo deste curso foi copiado material de Dona Cora Furtado de Melo. .
Assim, alude-se à concepção de que a comunidade é um elemento fundamental para a vivência do cristianismo, um espaço de apoio para aqueles que se convertem. Já no curso Preparação para Semana Santa9 9 Anotações do material de Dona Cora Preparação para Semana Santa 08/03/1975. , ressaltam-se características que deveriam ser evitadas pelas lideranças comunitárias. Para se enfatizar as expectativas do Mobon em relação a tais lideranças, utiliza-se de uma linguagem contendo elementos simbólicos do universo rural, espaço onde o movimento mostrou-se bem sucedido. Nesse sentido apresenta-se uma metáfora envolvendo uma "galinha choca" para se passar certas instruções aos leigos:
- não serve para comer (não desenvolve)
- magra (não alimenta ninguém)
- piolho (solta problemas nos outros)
- bica (agressiva reage)
- choca as pernas (não produz nada)
- estraga o ovo (não valoriza nada)
- rebenta o balaio (estraga a comunidade)
- põe a outra pra correr (perde os ovos)
- anda pouco (não trabalha)
- suja o terreiro (é dominador)
- não põe ovos (comunidade pifa)
- febre (tudo está ruim)
Reflexão
Em 75, vamos desempirrilhar a galinha choca?
A designação "galinha choca" é uma forma pejorativa de se referir às pessoas de comunidades rurais, supostamente de difícil convivência. Na fase de chocar, as galinhas bicam as pessoas, não engordam, não botam ovos, enfim, elas podem ser associadas a todos os adjetivos propostos acima, que foram apresentados para as pessoas com objetivo de facilitar a assimilação da mensagem. Dessa forma, preza-se uma linguagem didática e bastante acessível para esses grupos rurais (por se aproximar de elementos do seu universo cotidiano). Por fim, foi colocada uma reflexão convocando as lideranças a "desempirrilhar a galinha choca", ou seja, levá-la a uma vida mais produtiva, o que pode ser interpretado como um estímulo ao trabalho das lideranças religiosas.
No Curso de Coordenador de Comunidade de 1982, buscou-se passar instruções para as lideranças religiosas comunitárias e, assim, foram listadas as atitudes esperadas de um líder do Mobon, conforme transcritas a seguir:
1. Seja você mesmo;
2. Não seja covarde;
3. Não atrapalhe a comunidade;
4. Vendo que não dá, peça para sair;
5. Não esconda seu dom;
6. Não seja comodista;
7. Procure não cansar a comunidade;
8. Seja prudente ao falar;
9. Não dê ouvidos à fofoca.
Pode-se notar que as características apontadas como importantes para as lideranças comunitárias são também fundamentais para uma vivência mais harmônica para além da vida religiosa. Assim, as atitudes listadas, como ser "prudente na fala" ou "não dar ouvidos a fofocas", são ainda válidas para uma série de cargos públicos, e mesmo para a vivência comunitária, seja ela qual for.
Ricci (2002) entrevistou José Maria Pinto da Silva, que ele considerava uma das maiores lideranças rurais da Zona da Mata Mineira. José Maria relatou que:
Esse processo teve uma grande transformação cultural com a formação das comunidades. Até nesse momento, existiam as comunidades de uma outra maneira. Nesse trabalho das CEBs com o Mobon, cada vizinhança do meio rural construiu sua capelinha, fundando uma comunidade. Foi a época que saiu do terço, da reza tradicional que era o terço, ladainha, fazia promessa ao pé do Cruzeiro para carregar a pedra, molhar o pé do Cruzeiro para chover. Era esse tipo de religiosidade que tinha: Folia de Reis, Congado. [...] Uma grande novidade foi a leitura da Bíblia.
A Zona da Mata Mineira passou, dessa forma, por um processo de formação de lideranças e comunidades referenciadas pelas capelas, onde as pessoas se reuniam por motivos religiosos, mas também por conta de seus problemas comunitários. O depoimento de José Maira aponta para uma mudança na vivência religiosa, ressaltando o fato de que a leitura da Bíblia pelos leigos era uma novidade importante para os grupos religiosos daquela região. José Maria afirmou também que, então, as "comunidades existiam de outra forma".
Nesse sentido, o trabalho de Comerford (2003) apontou para a distinção que se formou entre comunidade e córrego. As comunidades possuem dirigentes reconhecidos, tem espaços de reunião, que possibilitam a tomada de decisões coletivas, e contam com material escrito fornecido seja pela paróquia, pela diocese ou mesmo pelo Mobon. Há, ainda, as reuniões em plenária, momento em que divergências de opinião emergem e podem ser conduzidas de forma mais amena pelos coordenadores (não que essas situações ocorram com frequência, mas procura-se a construção do consenso, a despeito de quaisquer disputas entre os grupos). Já o córrego, sem tamanha hierarquia ou uma configuração perfeitamente organizada, possui uma dinâmica própria, que envolve hierarquias de famílias e seus limites. O autor percebeu que na Zona da Mata Mineira o termo comunidade passou a ser utilizado de forma ampla, tanto por moradores como por agências eclesiais, sindicatos, prefeituras e órgãos estatais. Os contatos com esses grupos eram mediados pelos "líderes da comunidade", pessoas reconhecidas pela "inserção nos trabalhos de base10 10 Grifos de Comerford (2003). da Igreja" (:194). Algumas lideranças extrapolaram a esfera religiosa e atuaram de forma ativa na vida política e sindical de suas localidades. Desse modo, muitos sindicatos de trabalhadores rurais foram formados por lideranças religiosas do Mobon na Zona da Mata Mineira, que mais tarde se engajaram na militância política partidária no Partido dos Trabalhadores (Comerford 2003). Adiante, iremos explorar as formas de comunicação entre os missionários e as lideranças religiosas nas comunidades rurais.
Os cursos do Mobon e as comunidades rurais da Zona da Mata Mineira
Em fins da década de 1960, os missionários Alípio Jacinto e João Resende tinham como foco principal de seu trabalho a divulgação de inovações advindas do Concílio Vaticano II, sobretudo na diocese de Caratinga/MG. Padre Gwenael11 11 O Padre Gwenael é muito conhecido na Zona da Mata Mineira. Seu nome é Jean Kerandel. Num trabalho monográfico escrito junto com Luis Mario Del Canto, apresentado ao Celam, escreve sobre a presença do Mobon na região, presença essa que foi muito estimulada e apoiada por ele, conforme veremos ao longo do texto. , um francês que trabalhava na circunscrição eclesiástica da diocese de Leopolinda/MG, se interessou pelo trabalho dos missionários. Num trabalho monográfico, Gwenael descreve suas impressões ao ver o funcionamento de um curso do Mobon :
Uma chegada inesperada durante um destes cursos permitiu dar conta de que se tratava de algo diferente: uns trinta camponeses, todos gente humilde, estavam reunidos, haviam deixado seus trabalhos por seis dias e num clima de alegria e confiança discutiam animadamente e francamente sobre problemas de Evangelização (impressionavam as críticas aos sacerdotes e pastores). O tema do curso era: "a Boa Nova do Evangelho": boa nova que é a chegada do Reino, Reino de Libertação e de Esperança. (Kerandel & Del Canto 1977:25)
A atenção de figuras como o padre Gwenael se revelou fundamental para o crescimento do Mobon, já que o trabalho missionário se fundamenta numa relação de interdependência: os missionários precisam dos padres para que possam trabalhar nas paróquias, ambos precisam do reconhecimento de sua legitimidade por parte dos bispos, e também do interesse dos grupos leigos. Há, assim, um emaranhado de negociações intrínsecas ao trabalho missionário.
Na descrição do padre Gwenael, é interessante notar o destaque dado ao fato de que os camponeses teciam críticas francas aos sacerdotes. Certamente os padres não estão isentos de críticas por parte dos grupos católicos leigos; podemos crer, entretanto, que tais críticas raramente eram feitas em público, com a presença de um grande número de leigos, ou mesmo de um padre (sobretudo na década de 1960, quando ainda se fazia a transição das missas em latim para a língua dos respectivos países). Mais fora de lugar ainda seria a ocasião em que um padre daquele período pudesse considerar as críticas aos sacerdotes como produtivas à Igreja Católica.
O padre Gwenael era responsável pela paróquia de Eugenópolis/MG, localidade em que treze dos quinze mil habitantes viviam na zona rural. No relato, o padre afirma que "[...] esta equipe [do Mobon] atuava exclusivamente12 12 Grifos de Kerandel & Del Canto (1977). no campo da pastoral rural e se percebia claramente que conhecia a mensagem e a linguagem camponesa: acreditava no povo. Estava na linha do Vaticano II e Medellín" (Kerandel & Del Canto 1977:26). O padre convidou os missionários para realizarem os cursos nas comunidades de sua paróquia. Para Alípio, não haveria tempo hábil para realizá-los, mas ele "[...] não tinha como dizer 'não' àquele padre de sotaque francês e tão cheio de entusiasmo" (Costa 2009:3). Alípio narra:
Tive uma ideia rápida e hoje entendo que foi a luz do Espírito Santo. O nosso grupo dos antigos pioneiros já estava caminhando à luz do Vaticano II, já usando a linguagem do Boa Nova à busca de formação de comunidades. Pela primeira vez, enviamos este grupo para Eugenópolis e Vieiras a fim de que percorresse as comunidades e desse início ao trabalho de formação comunitária. Desse trabalho sairia a seleção da liderança que seria trabalhada na casa de formação e assim se fez (Costa 2009:3).
Um grupo de leigos engajados nos cursos foi enviado para o trabalho missionário de organização das comunidades. Formava-se um novo público para ingressar nos cursos e na doutrina do Movimento da Boa Nova. Segundo Padre Gwenael:
No dia 15 de agosto de 1969 chegaram a Eugenópolis os dez líderes que um sacerdote foi buscar em Caratinga; já estavam divididos em grupos de 2. Antes de sair para suas respectivas comunidades, lhes foi explicada a situação e também os principais problemas dos lugares onde iam trabalhar (alguns manifestaram preferência por algum lugar). Logo, levados por um representante de cada comunidade, foram iniciados os 5 primeiros cursos (três dias depois trocariam de lugar). Depois, na tarde de festa da Assunção de Maria se iniciou em Eugenópolis a formação das primeiras comunidades de base (Kerandel & Del Canto 1977:27-28).
Esses trabalhos foram vistos por Alípio como um sucesso, e a metodologia de se enviar lideranças leigas às comunidades se repete desde então. Para os missionários, essa é uma forma de levar o evangelho para o maior número possível de pessoas. Era também um meio de fazer com que as concepções e perspectivas do Mobon se popularizassem. Nesse sentido, Comerford (2003) percebeu que:
O Mobon disseminou-se na região principalmente de fins da década de sessenta em diante (sobretudo na área rural), multiplicando uma estrutura de cursos, grupos de reflexão, comunidades, plenárias, e coordenações que formou uma considerável camada de lideranças camponesas católicas. Foi sobre a base dessa estrutura e dessas lideranças que se construiu a parcela atualmente dominante hegemônica dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais da região (:141).
A formação das lideranças se dava, dessa forma, com o intuito de que essas pudessem atuar como agentes na organização comunitária e na coordenação de trabalhos religiosos e sociais nas comunidades. Além disso, objetivava-se que as lideranças aprendessem a ministrar cursos e reproduzi-los em outras comunidades e dioceses. Algumas dessas figuras de destaque extrapolaram a esfera religiosa e atuaram destacadamente na vida política e sindical de suas localidades.
Muitas lideranças aprimoraram a fala e a habilidade verbal durante os cursos, pois acabavam tendo que ler ou falar em algum momento. Nesse sentido, o missionário Alípio afirma que
Uma coisa que melhorou, prático, gente usar a palavra na comunidade, expressão, fazer debates, gente do povo sempre dirigindo curso religioso, falando pros outros, isso foi desenvolvendo muito, estudar, pesquisar e sobre estudar, estudar a Bíblia, estudar os livrinhos etc.13 13 Entrevista concedida por Alípio Jacinto da Costa, em outubro de 2004.
Enfim, os cursos eram um estímulo ao estudo e ao aprimoramento de habilidades individuais nas relações sociais, constituindo-se num processo contínuo, em que quanto mais se aprende, mais se destaca e mais se conta com o aval dos padres e missionários, bem como com o respeito dos colegas leigos. Ou seja, a liderança vai se construindo nos processos relacionais (Melucci 1996).
Tais processos se dão entre os leigos em suas comunidades rurais, mas também entre esses e os missionários, contexto em que há diferenças de vivência e de formação escolar bastante acentuadas. Assim sendo, "[...] considerar o pluralismo cultural é sobretudo lidar com o problema das mediações ou meios de interconexão de universos distintos em que graus de correspondências são desejados" (Neves 2008b:26).
Os universos aqui podem ser demarcados como o universo clerical e o comunitário, espaços em que as configurações dos grupos e as relações de interdependências são bastante diferentes. Há, dessa forma, a necessidade de se considerar o universo cultural das comunidades rurais para a promoção do processo comunicativo.
As metáforas e o mundo rural: apresentando estratégias de comunicação
Para se comunicar com os diversos núcleos comunitários que se formavam, João Resende, que havia se graduado em Filosofia e Teologia, buscava modificar os termos mais "técnicos" que havia aprendido no seminário:
O que eu tinha visto na teologia, eu coloquei num moinho e fui triturando num jeito mais popular e no começo eu ficava pensando: "E quando as comparações acabarem, o que eu vou arrumar?", porque o forte eram as comparações, mas agora a gente percebe que isso num acaba, porque uma mesma comparação você pode usar diversos ângulos é uma mina tão grande que a gente vê que não acaba e no contato com o pessoal a gente vai descobrindo coisas novas14 14 Entrevista concedida em novembro de 2009. .
Essas comparações tinham o meio rural como foco principal de análise. Para João Resende, "A linguagem rural é mais simbólica, ao passo que a linguagem chamada urbana ou cibernética é muito abstrata, sem símbolo. 'Quem vai entender de placa-mãe? Uma minoria.'"15 15 Entrevista concedida em novembro de 2009. . João colocou que, na fase inicial, "[...] ia pra beira da lavoura, ajudava o pessoal apanhar café e a gente pegava o ritmo, pegava o jeito"16 16 Entrevista concedida em novembro de 2009. .
A investigação da distância entre a linguagem rural e a urbana, domínio do missionário, é interessante. Nessa direção, Bosi (2003) afirma que vivemos num tempo vazio, morto de significação, no qual nossa possibilidade de lembrar está enfraquecendo, pois a sociedade industrial é burocrática, impessoal e vazia: "A sociedade industrial multiplica horas mortas que apenas suportamos: são os tempos vazios das filas, dos bancos, dos preenchimentos dos formulários" (Bosi 2003:24). Jeudi (1995) também enfatiza essa ideia, ao afirmar que perdemos elementos culturais autênticos em função do processo de industrialização.
Provavelmente, também no meio rural pode-se viver "tempo vazio", "horas mortas" e enfrentar burocracias e, por outro lado, ainda é possível construir, no meio urbano-industrial, novos elementos culturais. Mas é fato que a popularização de alguns termos tipicamente rurais, como colocar "num moinho" e "triturar", já remete ao interesse de democratizar as informações e torná-las mais palatáveis. A ida ao cafezal e a busca de símbolos que pudessem viabilizar a aproximação da linguagem teológica às experiências de vida e trabalho dos atores sociais do meio rural marcam uma ruptura com as práticas católicas mais tradicionais, em que se nota um distanciamento grande entre padres e leigos.
Comerford (2003) colheu informações de que na Zona da Mata Mineira os padres não falavam com o povo, diferentemente dos missionários. Nesse sentido, Alípio ressalta que a marca do Mobon é "[...] uma conversa, a gente não fazer palestra, nós nunca fomos de fazer palestra, sempre trabalho explicando e conversando com o povo e pedindo a opinião do povo"17 17 Entrevista concedida em outubro de 2004. . Essa ideia acaba sendo fortalecida pelo argumento de João Resende de que "no contato com o pessoal a gente vai descobrindo coisas novas", ou seja, há um processo relacional, em que o missionário acaba também aprendendo novos "ângulos", outras possibilidades, e mesmo novos argumentos construídos pelos leigos em conformidade com a doutrina. Há, assim, um processo de troca e de reprodução da linguagem e da argumentação dos missionários por pessoas que a priori seriam receptores das mensagens, mas que acabam por reivindicar uma relação de interlocução.
Nessa perspectiva, vale a assertiva defendida por Moscovici & Doise (1991) de que as pessoas pensam por novos canais de interpretação, percebendo o que os une. Assim, o envolvimento dos indivíduos nas decisões do grupo leva as pessoas a incorporarem as decisões como sendo suas. Segundo esses autores, quanto mais a discussão for pública e ativa, mais ela caminhará no sentido de engajar esses indivíduos. Além disso, a forma como se organiza a discussão também influencia. As cerimônias e formalidades inibem a discussão (limites como o tempo, os assuntos abordados etc). A interferência de um chefe do grupo, mesmo que apenas para estabelecer algum tipo de ordem, tornaria o debate mais "frio".
Por mais que as relações dos missionários e leigos tenham um caráter de democratização e os debates ganhem circularidade, uma vez que os missionários também internalizam discursos, essas relações não se dão sem o estabelecimento e a consolidação de certas relações de poder. Indicativo disso é o fato de João Resende procurar elementos do meio rural para as falas nos cursos, assim como as diferenças de abordagem textual por parte de missionários ou católicos leigos. Em entrevista, Resende afirma acreditar que "O grande desafio é o seguinte: o difícil é falar fácil e o fácil é falar difícil"18 18 Entrevista concedida em novembro de 2009. . Ele se refere à dificuldade de transformar textos teológicos em discussão palatável para os grupos das comunidades, e apresenta sua preocupação em popularizar, "sem ser vulgar", ressaltando o fato de que as pessoas merecem dignidade. Demonstra, assim, o desejo de manter fidelidade às mensagens, buscando evitar distorções ou subestimar os grupos católicos leigos. O autor relata já ter ouvido de leigos a informação de que "A gente entende melhor porque você fala dentro de uma comparação"19 19 Entrevista concedida em novembro de 2009. . Durante a entrevista foi possível, ainda, ouvir algumas das metáforas do missionário empregadas na evangelização:
O missionário não é o que despeja. A gente usava a comparação, que a gente não podia ser caminhão basculante, que ao chegar no monte de terra, dar as costas ou de banda e a cara fica pra lá e depois que encheu tan, tan, tan e vai embora. E chega lá no buraco, ele chega de ré, entorna. A gente foi percebendo que a pedagogia de Jesus não é a pedagogia do despejo, mas chegar de frente e tocar o coração da pessoa, quando toca o coração a cabeça abre20 20 Entrevista concedida em novembro de 2009. .
O autor enfatiza, assim, a necessidade da vivência conjunta e da proximidade com a realidade social dos atores. Deve-se adotar a postura de "chegar de frente", "tocar o coração das pessoas". Resende faz, ainda, outra analogia, dessa vez com o mundo rural, ao afirmar que "[...] trabalho de comunidade não é plantar lavoura de morro acima, senão vem a erosão e puxa"21 21 Entrevista concedida em novembro de 2009. .
Conforme exposto, as metáforas e os símbolos do meio rural não são utilizados apenas num sentido bíblico, mas também para explicar as relações com as comunidades de grupos religiosos. "Tocar no coração", "não despejar e ir embora" são características de uma relação que requer uma interação mais íntima, facilitando o contato com os problemas cotidianos e as perspectivas culturais dos atores.
Problematizando a comunicação entre missionários e leigos
Em trabalho de Doutorado, Rudá Ricci (2002) estudou a emergência de movimentos sociais rurais em fins do século XX. Realizou trabalho de campo na Zona da Mata Mineira, analisando o movimento de agricultura familiar da região, que foi responsável pela formação de sindicatos de trabalhadores rurais, associações e fóruns de participação. O autor percebeu que "A organização mais citada e eficaz que se instalou na Zona da Mata Mineira, em meados dos anos setenta, foi o Movimento da Boa Nova (Mobon), criado por dois religiosos da região, que reunia pessoas de diversas comunidades para realizar um trabalho de formação religiosa e política" (:116). A partir desse cenário, notou ainda que a linguagem é um elemento importante para a mobilização de lideranças religiosas e sociais da Zona da Mata mineira. Uma liderança comunitária, Tereza Gomes, lhe citou alguns exemplos:
Para poder discutir com a gente política partidária, por exemplo, ele22 22 Aqui ela se refere a João Resende. desenhava no quadro. Pegava uma árvore e falava do poleiro da galinha. Então, assim, por exemplo, ele pegava galinha caipira, galinha d'Angola e um pato. Então, dizia: qual o discurso que os políticos fazem da dificuldade e de sofrimento? Na realidade ele dizia eles estão na parte mais alta do poleiro, como a galinha d'Angola, que está lá por cima... e desenhava a galinha no alto. A galinha caipira fica um pouco abaixo. E o pato fica na parte mais baixa. E aí ele fazia uma discussão conosco. E acabávamos nos identificando com os patos, porque nós somos pobres e nós não temos poleiro. Só as galinhas d'Angola e caipira têm. E ele perguntava: e onde ficam as galinhas? E o pato? Então, quer dizer, entendíamos que o pato fica embaixo do poleiro e o que sobra para ele? Aí a gente começava a refletir e percebi que o lugar do pato não é poleiro, mas a lagoa. Então ele fazia essa discussão de classe social por aí (Depoimento ao autor da tese, set.1999/ Ricci 2002:123-124).
A narrativa é perpassada por símbolos do meio rural, certamente conhecidos pelo público dos cursos. O lugar mais alto do poleiro simboliza o espaço "das classes mais abastadas", existe ainda o poleiro mais baixo da galinha caipira e o espaço do pato, o menos prestigiado, com o qual o grupo deveria se identificar. Das metáforas, a proposta era partir para a discussão sobre a vida social e, assim, a ideia de que o pato não estaria no lugar certo deveria levar à concepção de que o pobre não ocupa o lugar merecido (aqui há um claro estímulo à mobilização social, que passa pela convicção da necessidade de transformações). Observemos um outro exemplo:
Tinha também a história do trairão que come lambari. Todo lambarizinho que tentava nascer na correnteza era atacado pelo trairão. Ele queria dizer para termos cautela. Não era para chegarmos e falarmos o que a gente era. Então o trabalhador tinha que mostrar o seu poder. E se quiser desmoronar um prédio como tinha que fazer? Começa por baixo ou por cima? Então, aprendíamos que tínhamos que fazer como tatu. Nós somos conhecidos como tatu, e todo mundo sabe. (Depoimento ao autor da tese, set.1999/ Ricci 2002:123-124)
Esse trecho nos remete a Thompson (1987), mais especificamente ao conceito de experiência, cujo postulado é o de que a experiência histórica e cultural desencadeia reflexões pessoais e culturais, que não são assimiladas, mas construídas no processo de luta social e transmitidas no interior do grupo através de memórias, tradições, rituais etc. Há em todo o processo comunicativo uma reunião de vivências coletivas que perpassam o universo cultural compartilhado pelas pessoas, sendo esse um elemento significativo na construção de uma identidade e de um compartilhamento de uma situação comum que leva os atores a se verem como copartícipes de uma mesma situação, no caso a de opressão.
Na metáfora que envolve o trairão e o lambari, a mensagem a ser passada se refere mais às estratégias. Na questão explicita-se as formas possíveis de fuga do trairão, o que deveria refletir a maneira como o trabalhador deveria agir, a fim de mostrar suas forças, seu poder. O mesmo se refere à questão de como se pode destruir um prédio: deve-se começar na articulação mais baixa, ou seja, no espaço da vida social dos pobres. Tal problemática nos faz lembrar a assertiva de Bourdieu (1983) de que, em se tratando de comunicação, o problema não é a construção de frases gramaticalmente corretas, mas a possibilidade de se utilizar, de maneira coerente e adaptada, uma infinidade de frases num número infinito de situações (:158). Dessa forma, o domínio prático da língua não representa nada se não vier acompanhado de um perfeito manejo das condições de utilização adequada das possibilidades infinitas oferecidas por ela. Pois a produção do discurso apropriado precisa levar em consideração "[...] o contexto social no qual ela se instaura e, em particular, a estrutura do grupo no qual se realiza" (:162-163). Assim, a situação de comunicação precisa atender aos pressupostos tácitos colocados por Bourdieu, que afirmam que o discurso encontra sua eficácia ao ser enunciado por um locutor legítimo, numa situação legítima e dirigida a destinatários legítimos. Essas ideias nos ajudam a fortalecer o argumento de que a linguagem das lideranças religiosas locais pode ter sido um dos fatores que contribuíram para que fosse bem sucedida a mediação religiosa. Tal concepção é sublinhada por Melucci (2001), para quem a "[...] agregação tem caráter cultural e se situa no terreno da produção simbólica na vida cotidiana", assim "[...] a solidariedade do grupo não está separada da busca pessoal e das necessidades afetivas e comunicacionais dos membros na sua existência cotidiana" (:97).
Num livro de formação política, João Resende (1997) defendeu que a linguagem popular (com a utilização de símbolos e comparações) atinge o coração das pessoas e que "[...] o que atinge o coração tem força educativa, tem poder de transformação. O que atinge a cabeça fica no mundo do discurso, criando a elite dos 'entendidos' que não atinge a massa popular. É o 'cavalo desligado da carreta'" (:35). A defesa da linguagem e da necessidade de democratização da informação, contrária à criação da "elite dos entendidos" é colocada tanto em sua fala como no texto. O autor enfatiza também que
A missão do educador popular é descobrir, na cultura do povo, os símbolos e comparações que ajudam a entender e analisar a realidade. Desta maneira, aos poucos, as pessoas vão se sentido à vontade para participar. Vão se envolvendo, questionando e questionando-se. Vão se libertando dos chavões e ideias pré-fabricadas, deixando de ser passivas, fatalistas, individualistas, passando a fazer a sua história, abrindo-se aos valores solidários. Aí vai acontecendo a formação popular (Resende 1997:35).
O missionário enfatiza, assim, a necessidade do conhecimento da cultura popular e faz uma associação interessante entre cultura e comunicação. A ciência do espaço cultural em que se está circulando (diferente do espaço de origem, e com novas possibilidades) é fundamental para o estabelecimento de um processo bem sucedido de comunicação. Há, então, uma relação entre grupos com práticas cotidianas e experiências de vida diferenciadas.
Para Resende (1997), "O segredo do sucesso dos movimentos populares está em saber usar uma linguagem popular proveniente do universo cultural simbólico das pessoas. Esta linguagem é que atinge o coração" (:36). Ou seja, o autor acredita que a cultura e os seus símbolos precisam ser levados em consideração no universo da prática comunicativa e expõe, ainda, sua ligação com o universo religioso, ao enfatizar a necessidade de se "atingir o coração". Mas pretende também defender uma determinada postura frente aos críticos, ao afirmar que "A linguagem de uma formação popular não é vulgarização das ideias. É fazê-las entendidas no universo cultural popular" (Resende 1997:36).
Essa problemática nos leva ao relato de Raul Messias, que foi deputado estadual pelo PT em Minas Gerais entre 1987 e 1994. Raul acredita que "O principal do Mobon é que... eu acho que ele falava a linguagem do povo, então o povo entendia. Ao passo que os marxistas leninistas não falam a linguagem do povo, então o povo não entende, então fica um diálogo meio de surdos"23 23 Entrevista concedida por Raul Messias, em janeiro de 2010. . O testemunho de Gramsci, transcrito por Bourdieu (2003), é também bastante elucidativo: "Nós outros, afastamo-nos da massa: entre nós e a massa forma-se uma barreira de quiproquós, de mal-entendidos, de jogo verbal complicado. Acabaremos por aparecer como pessoas que querem, a todo o custo, conservar o seu lugar" (:178). Não obstante, Ricci (2002) tece crítica à comunicação utilizada nas comunidades rurais da Zona da Mata Mineira, afirmando que aquela forma de comunicação tem "[...] baixa profundidade teórica e analítica, constituindo-se no maior deficit formativo das jovens lideranças que se lançarão à construção de alternativas organizativas de produção e gestão pública da região" (:123). O lugar de que fala Ricci (2002) não é o de alguém que objetiva promover a educação popular, mas sim o daquele que investe numa avaliação acadêmica, o que se reflete na sua concepção de que as metáforas se apresentam como sendo de "baixa profundidade teórica e analítica". Sua visão aponta para o método de formação político-religiosa com o "[...] uso e abuso de metáforas e parábolas, apropriado para a construção de imagens míticas e carregadas emocionalmente. A partir desse discurso, selava-se um profundo compromisso com causas sociais, mesmo que construídas sem grande rigor teórico" (Ricci 2002:123). Para o autor, "[...] um discurso imagético sensibiliza, constrói uma percepção do conteúdo da mensagem, mas não possibilita ao receptor a identificação dos elementos constitutivos que fundamentam tal discurso, diminuindo a capacidade crítica na assimilação da mensagem" (:123).
Aqui se colocam em debate formas diferentes de se pensar o processo de comunicação no seu âmbito mais popular. O missionário religioso acredita que a mensagem metafórica é a mais adequada, porque "atinge o coração", leva as pessoas a um entendimento do conteúdo e as faz refletir e se mobilizar. Por outro lado, há aqueles que consideram esse tipo de mensagem superficial, incapaz de contribuir de forma efetiva para a maturidade político-social dos atores. Nesse sentido, quando os membros das comunidades encontraram dificuldades no mundo sindical, Ricci (2002:125) apresentou uma crítica contundente, ao colocar que "[...] seria realmente difícil compreender as práticas políticas da FETAEMG a partir da metáfora de patos e galinhas".
Considerações finais
Este texto procurou trazer reflexões a respeito das influências do Concílio Vaticano II na gênese do Movimento da Boa Nova, na formação dos missionários e no ganho de legitimidade geral experimentado pelos movimentos de evangelização popular e organização comunitária. Foi nesse contexto que o combate aos protestantes, promovido pelo Mape, perdeu legitimidade e construiu-se a concepção de que as comunidades eram de extrema importância. A formação de comunidades rurais cristãs, na perspectiva de se criar a vivência de um catolicismo mais autêntico, foi assumida pelo Mobon como um objetivo primordial. Assim, o movimento também investiu no preparo das lideranças religiosas, para que elas pudessem ajudar nos trabalhos de evangelização e representassem os grupos comunitários em reuniões e cursos religiosos.
Os cursos do Mobon e a relação de proximidade com as lideranças e os grupos comunitários da Zona da Mata Mineira se tornaram possíveis através da aproximação dos missionários religiosos do Padre Gwenael. Para a relação dos missionários junto aos grupos leigos, era imprescindível obter a confiança do padre no trabalho que estava se desenvolvendo.
Na relação entre missionários e leigos, um fator de grande relevância é a utilização da linguagem e a forma como eram realizados os cursos de evangelização. Diversas lideranças afirmam ter aprendido a dialogar com mais fluência e fazer discursos através dos cursos; muitos realizaram trabalhos religiosos e comunitários e outros ampliaram as possibilidades partindo para um maior engajamento político, em sindicatos, associações e na política partidária. Nesse sentido, não há como negar que a perspectiva metafórica e simbólica foi capaz de levar os sujeitos à mobilização.
Para João Resende, o respeito ao conhecimento das práticas culturais dos atores constitui-se como um dos grandes segredos do sucesso de um "movimento popular". Esse respeito remete à utilização de uma linguagem que torna os processos sociais mais inteligíveis. Para Ricci (2002), essa forma de comunicação não permite reflexões arrojadas teórica e analiticamente. Essa afirmação pode ser pertinente, mas, ainda assim, é possível perceber que tais reflexões se mostram capazes de trazer à tona elementos fundamentais para a construção de argumentos que abordem o funcionamento da sociedade e que ultrapassem os limites comunitários. Ou seja, essa prática comunicativa pode ser um elemento fundamental para que certas pessoas de comunidades rurais comecem a se expressar e empreender análises de acontecimentos da vida social de forma consistente. Diferentemente, formas mais acadêmicas e pouco interessadas na adaptação ao universo comunitário rural dificilmente conseguiriam tal intento. Ademais, não são raras as ocasiões em que discursos rebuscados e complexos são levados adiante com o objetivo de que as pessoas não logrem decodificá-los, contrariamente, a utilização de elementos da cultura rural facilita a interação dos missionários com os atores locais. Além disso, a mística religiosa, as parábolas e os símbolos rurais podem se revelar fundamentais para a mobilização. Por último, vale ressaltar que nenhuma espécie de trabalho (missionário ou não) impediria os atores sociais de encontrarem dificuldades práticas em sua atuação em um sindicado ou em qualquer outra forma de organização política. Há muitos elementos que dependem da prática para serem dominados e, nesse sentido, pode-se afirmar que a linguagem adotada pelos missionários e o exercício de formação popular foram fundamentais para as primeiras iniciativas.
Notas
Recebido em abril de 2010
Aprovado em outubro de 2010
Fabrício Roberto Costa Oliveira frcoliveira@yahoo.com.br
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Jan 2011 -
Data do Fascículo
2010
Histórico
-
Aceito
Out 2010 -
Recebido
Abr 2010