Resumos
Este artigo se propõe a problematizar as conexões entre espiritualidade e ecologia, entendidas como determinantes de uma nova concepção de bem-estar físico e espiritual que passa a configurar o horizonte de um universo de formas de religiosidades. Neste contexto situa-se o movimento espiritual Mística Andina, que visa resgatar a comunhão com a natureza e o distanciamento da sociedade de consumo. O praticante espera atingir um conhecimento cada vez mais íntimo de si, conectando-se com a Mãe Terra (Pachamama). Como parte do movimento Nova Era, a Mística Andina articula uma diversidade de crenças, práticas e ensinamentos que formam um mosaico espiritual de tradições pré-colombianas, cristãs e orientais que se alinham com os valores ambientais e místicos das religiões do self.
Mística Andina; Nova Era; Espiritualidade; Meio Ambiente; Xamanismo
This article aims to explore and discuss the connections between spirituality and ecology, which are determinants of a new conception of physical and spiritual wellness that sets up a common horizon of religious ways. Within this universe it is situated the Mística Andina spiritual movement, which is characterized by the incorporation of an Andean way of life. By opting for an alternative life, devoted to Mother Earth, the practitioner of Mística Andina expects to achieve an intimate knowledge, connected with Mother Earth - Pachamama, according to the Andean mythology. The experience of insertion in the Mística Andina aims to assist individuals to rescue the communion with nature and distance them of the consumer society. As part of the New Age movement, the Mística Andina articulates a diverse set of beliefs, practices and teachings that form a spiritual mosaic of Christian, Oriental, and pre-Columbian traditions, that align with the environmental and mystical values of self-religions.
Mística Andina; New Age; Spirituality; Environment; shamanism
Carlos Alberto SteilI; Raquel SonemannII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil. Professor do Departamento de Antropologia da UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul - Brasil. steil.carlosalberto@gmail.com
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil. Bacharel em Ciências Sociais pela UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul - Brasil. raquel.sonemann@gmail.com
RESUMO
Este artigo se propõe a problematizar as conexões entre espiritualidade e ecologia, entendidas como determinantes de uma nova concepção de bem-estar físico e espiritual que passa a configurar o horizonte de um universo de formas de religiosidades. Neste contexto situa-se o movimento espiritual Mística Andina, que visa resgatar a comunhão com a natureza e o distanciamento da sociedade de consumo. O praticante espera atingir um conhecimento cada vez mais íntimo de si, conectando-se com a Mãe Terra (Pachamama). Como parte do movimento Nova Era, a Mística Andina articula uma diversidade de crenças, práticas e ensinamentos que formam um mosaico espiritual de tradições pré-colombianas, cristãs e orientais que se alinham com os valores ambientais e místicos das religiões do self.
Palavras-chave: Mística Andina, Nova Era, Espiritualidade, Meio Ambiente, Xamanismo.
ABSTRACT
This article aims to explore and discuss the connections between spirituality and ecology, which are determinants of a new conception of physical and spiritual wellness that sets up a common horizon of religious ways. Within this universe it is situated the Mística Andina spiritual movement, which is characterized by the incorporation of an Andean way of life. By opting for an alternative life, devoted to Mother Earth, the practitioner of Mística Andina expects to achieve an intimate knowledge, connected with Mother Earth - Pachamama, according to the Andean mythology. The experience of insertion in the Mística Andina aims to assist individuals to rescue the communion with nature and distance them of the consumer society. As part of the New Age movement, the Mística Andina articulates a diverse set of beliefs, practices and teachings that form a spiritual mosaic of Christian, Oriental, and pre-Columbian traditions, that align with the environmental and mystical values of self-religions.
Keywords: Mística Andina, New Age, Spirituality, Environment, shamanism.
O movimento Nova Era na América Latina tem incorporado tradições e conhecimentos indígenas em seu sistema ritual e de crenças, ampliando significativamente os sentidos e as possibilidades inscritas na sua origem, que se deu na Califórnia, Estados Unidos, na segunda metade da década de 1960. A etnografia que apresentamos neste artigo aponta para um contexto de discursos e práticas bastante diversificado, no qual se intercruzam objetos e símbolos indígenas, especialmente de referência andina, com valores ecológicos de preservação ambiental e com a espiritualidade do movimento Nova Era, centrada no aperfeiçoamento do self. Trata-se de um encontro que não se restringe ao nível discursivo em que categorias e rituais indígenas são transpostos para o contexto religioso moderno, mas remete a um processo de indigeneização às avessas, no qual conceitos simbólicos e rituais que possuem significados multivocais com grande carga histórica e emocional em tradições indígenas são apropriados de forma criativa por pessoas das classes médias urbanas1 1 O conceito de indigeneização que usamos aqui foi formulado por Marshall Sahlins (1999) para expressar os processos de apropriação criativa de elementos da cultura moderna globalizada pelas culturas locais, numa crítica à visão de que a cultura estaria se homogeneizando. .
A Mística Andina, objeto deste artigo, é formada por grupos urbanos, constituídos por profissionais oriundos das classes médias escolarizadas do Sul do Brasil, engajados em vivências que os remetem ao mundo imaginado de culturas pré-colombianas, o qual se apresenta como fonte de inspiração para suas vidas presentes2 2 Este artigo se soma ao trabalho de outros autores que vêm chamando a atenção para os processos dinâmicos de transnacionalização das religiões tradicionais, especialmente as religiões indígenas na América Latina, em contextos de fluxos globais e interação intercultural (Argyriadis, De La torre et all 2008; Galinier 2008; Sarrazin 2008). . Essas pessoas buscam neste tipo de espiritualidade a resposta para um certo mal-estar civilizacional associado ao estilo de vida contemporâneo, marcado pela competitividade nas relações sociais e de trabalho. Na contramão deste estilo de vida, os participantes da Mística Andina propõem-se a assumir um modo de viver que se expressa por meio da simplicidade, da devoção à Mãe Terra - Pachamama - e de uma conexão com os ancestrais andinos. Este modo de vida torna-se condição para eles atingirem um conhecimento cada vez mais íntimo de si e o bem-estar individual e coletivo.
Ainda que faça parte de um movimento de caráter global, a Mística Andina será analisada aqui a partir das experiências pessoais de seus participantes e da observação dos seus rituais e das suas práticas cotidianas. Nossa hipótese de trabalho é que a Mística Andina se soma a um número expressivo de outras experiências religiosas contemporâneas que estão produzindo narrativas dissonantes no campo religioso, marcado pela hegemonia das religiões da transcendência. A legitimação social deste movimento procura respaldar-se tanto na origem e sabedoria dos indígenas latino-americanos, os quais se apresentam como herdeiros, quanto nos valores recentes de uma ética ecológica de preservação da natureza e do planeta, que adotam como ascese pessoal e grupal. Assim, é produzido um cruzamento sui generis entre religião e ecologia que levanta questionamentos não apenas para o campo religioso, mas também para a ecologia política, dominada muitas vezes por uma visão secular (Carvalho 2002). Nosso objetivo, portanto, será o de apontar para os fluxos contínuos do religioso que atravessam o campo ecológico e os atravessamentos do ecológico no campo religioso.
O contexto de produção deste artigo foi o projeto de pesquisa interdisciplinar O cultivo de si nas paisagens da ecologia e do sagrado, coordenado por Carlos Alberto Steil, um dos autores deste texto e por Isabel Carvalho, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Raquel Sonemann, auxiliar da pesquisa e coautora do texto, fez o trabalho de observação de campo, as entrevistas com os participantes, assim como uma primeira redação desta etnografia3 3 Uma versão bem mais extensa deste artigo foi apresentada e defendida por Raquel Sonemann como trabalho de conclusão do curso de bacharelado em Ciências Sociais, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. . A contribuição de Steil se refere, sobretudo, à orientação metodológica, à reflexão teórica, em diálogo com Raquel e com os demais membros do grupo de pesquisa, assim como à redação final deste texto. Outros contextos etnográficos foram observados por diferentes pesquisadores, no decorrer do desenvolvimento do projeto, produzindo um corpo mais amplo de textos que abordam a questão da busca contemporânea por um estilo de vida relacionado a formas de espiritualidade que associam valores religiosos de tradições ancestrais com uma ética ambiental, por meio de uma ascese pessoal de cultivo de si (Carvalho e Steil 2008, 2009; Carvalho, Steil e Pastori 2010).
Aproximando-nos da Mística Andina
A Mística Andina está presente no Brasil desde 2001, com a chegada do Maestro Lucidor Flores4 4 O Jornal O Peregrino, editado por voluntários da Mística Andina, traz uma série de relatos sobre a origem do movimento e a trajetória mística-espiritual de seu fundador Lucidor Fores. Apresentamos aqui alguns desses relatos, compondo uma trajetória heróica que apresenta uma estrutura comum às narrativas de origem dos movimentos religiosos. . Os relatos documentais da Mística Andina narram que ele nasceu em Sarmiento, na Patagônia, Argentina, tendo sido iniciado no caminho de guerreiro e curandeiro por seu avô, Don Froilan (Juan de La Verdad), na idade de oito anos. Aos doze anos, foi enviado para a cidade de Córdoba para dar prosseguimento à iniciação no esoterismo. Aos 17 anos, encontrou-se com seu Mestre andino, quem conhecia, em sonhos, desde pequeno, e o guiou pelos caminhos de aproximação e fusão com Pachamama, o que seria e é, até hoje, a forma divina que a sua alma elegeu como ideal de vida. Desde então, o Maestro trabalha com seus discípulos na disseminação dos ensinamentos recebidos do seu e de outros mestres da tradição andina. Atualmente, o grupo conta com cerca de seiscentos integrantes espalhados em várias cidades do Rio Grande do Sul, assim como em Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Brasília e Fortaleza. Os trabalhos de campo relatados aqui foram todos realizados com o grupo de Porto Alegre5 5 Esse grupo é composto majoritariamente por mulheres. Durante conversas informais no campo, percebemos que todos os homens eram trazidos por alguma mulher, seja esposa, namorada ou mãe. Sobre a idade dos participantes, a partir de 2008, jovens com menos de vinte anos começaram a ingressar em números mais expressivos na Mística Andina e atualmente também compõem uma parcela significativa do grupo. Dentre os integrantes com quem tivemos contato mais próximo, todos possuem ensino superior completo ou em andamento e pertencem à classe média. Também percebemos que todos vêm de uma longa trajetória religiosa antes de conhecer a Mística Andina. . Destaca-se neste universo de praticantes algo semelhante ao que Amaral (2000) constatou em relação aos contextos etnográficos que estudou na pesquisa publicada no livro Carnaval da Alma. Assim, ainda que os participantes tenham a comunidade como sua referência e idealização, a forma organizacional característica é a de uma rede de pessoas que se conecta por laços espirituais fluidos (Amaral 2000).
As referências ao período pré-colombiano na trajetória do Maestro Lucidor Flores também evocam uma perspectiva política e anticolonialista, que está inscrita na narrativa biográfica do próprio fundador da Mística Andina. Ele teria vivido a experiência do exílio político do seu país sob o regime militar, sendo obrigado a deixar a Argentina para experimentar uma vida autêntica nos Andes, onde completou sua iniciação na tradição das religiões indígenas locais. Esta narrativa biográfica, portanto, faz a junção entre uma ideologia latino-americanista que mobilizou mentes e corações entre os anos 1960 e 1980 no continente e uma espiritualidade Nova Era, com raízes indígenas, que se articula de uma forma harmoniosa com os valores relacionados a uma vida saudável e natural com uma ascese ambiental.
O primeiro contato que Raquel teve com a Mística Andina foi durante uma atividade realizada por seus participantes no Parque Farroupilha, em Porto Alegre, por ocasião do dia da Mãe Terra.6 6 Da mesma forma que Magnani (2012) observou no circuito de práticas neoesotéricas uma nova visão de tempo livre desvinculado do universo do trabalho, pudemos identificar em nossa pesquisa sobre a Nova Era uma associação bastante estreita entre lazer e práticas espirituais nos parques urbanos de Porto Alegre. O objetivo desta atividade era distribuir mudas de árvores e realizar uma caminhada de conscientização sobre os cuidados que os humanos devem ter com o planeta. Era um dia chuvoso e frio. A maioria dos participantes vestia ponchos andinos e tocas coloridas. Ao aproximar-se do grupo, Raquel foi recebida por uma das integrantes com um largo sorriso, beijo e abraço. Após explicar que não estava ali pelas mudas, ela localizou Sarita, com quem havia conversado previamente pelo telefone. Sarita foi igualmente carinhosa e disse que estava muito feliz em recebê-la. Embora o número de pessoas que se aproximava da tenda para apanhar uma muda de planta fosse pequeno, a avaliação dos participantes da Mística Andina sobre a atividade era positiva, uma vez que estas pessoas estavam sendo sensibilizadas a respeito da necessidade de ajudar a Mãe Terra.
Sarita havia se disposto a sentar e conversar com Raquel sobre a Mística, mas antes pediu licença para que o grupo fizesse uma conexão com Pachamama. Então, todos, de olhos fechados e mãos dadas, repetiram A Grande Invocação7 7 A Grande Invocação é uma oração utilizada pelos participantes da Mística Andina, proferida em ocasiões especiais. :
Do ponto de Luz na Mente de Deus,
Flua Luz às mentes dos homens;
Que a Luz desça à Terra.
Do ponto de amor no coração de Deus,
Flua amor aos corações dos homens;
Que o Cristo volte à Terra.
Do Centro onde a vontade Deus é conhecida,
Guie o propósito às pequenas vontades dos homens,
O propósito que os Mestres conhecem e a que servem.
Do centro que chamamos raça dos homens,
Cumpra-se o plano de amor e luz
E que ele cerre a porta onde mora o mal.
Que a luz, o amor e o poder restabeleçam o Plano na Terra.
Há, nesta prece, diversos elementos que compõem o credo Nova Era da Mística Andina, e se repetem noutros relatos e rituais realizados pelo grupo. A ideia da luz que emana de uma divindade e que invade o interior das pessoas aparece aqui como um elemento central da experiência espiritual. Ainda que possa remeter a uma concepção imanentista ou gnóstica da divindade, a referência a Cristo e ao seu retorno ao mundo remete à tradição cristã milenarista que se conecta com a era de aquários, dogma central do movimento Nova Era8 8 Embora fosse oportuno fazer aqui uma reflexão mais extensa sobre as estreitas e indissociáveis relações das religiões indígenas latino-americanas que são evocadas pela Mística Andina com o catolicismo popular, não vamos por este caminho, por entendermos que este empreendimento exigiria um espaço que não dispomos neste artigo. Além disto, poderia aparecer para o leitor como uma digressão que nos desviaria do foco central do nosso argumento. Como indicação de um trabalho que explora esta relação, ainda que num contexto diverso do que vimos trabalhando, citamos a pesquisa de De La Torrre (2008) sobre a dança Conchera-Asteca, na qual a associação entre catolicismo, religiões indígenas e Nova Era é amplamente historicizada no contexto do México. . O horizonte, no entanto, parece ser o do xamanismo indígena, no qual prevalece a autoridade dos guias e mestres, capazes de estabelecer a ponte entre o mundo visível e material com o mundo espiritual e sobrenatural. Este xamanismo que emerge no contexto urbano da religiosidade contemporânea, como definiu José Guilherme Magnani, não se apresenta simplesmente como uma versão empobrecida do xamanismo indígena tradicional, mas antes como um novo arranjo que assume características modernas e eruditas numa perspectiva universal em que todos podem ser xamãs (Magnani 1999).
Uma organização totêmica
Após a prece, Sarita estava pronta para retomar a conversa com Raquel. Ali mesmo, no parque, ficaram sentadas, tomando chimarrão e falando do movimento, embaladas por uma música de fundo, que Surya tocava ao violão, enquanto os demais participantes da Mística Andina cantavam e dançavam9 9 No repertório estavam canções conhecidas, como: "Epitáfio" dos Titãs, "Sociedade Alternativa" do Raul Seixas, "Exagerado" do Cazuza, e outras. . Sarita, que ocupa uma das posições hierárquicas de maior prestígio no movimento, contou que começou a trilhar o caminho da Mística Andina em meados de 2003. Ela é solteira, sem filhos. Tem formação em Contabilidade e trabalha como auditora no Tribunal de Contas do Estado. No trabalho, Sarita conheceu a Arádia Iriarte e, por meio dela, a Mística Andina. As duas foram as articuladoras do início do movimento em Porto Alegre.
Enquanto conversava com Sarita, Raquel percebeu que os participantes da Mística Andina usavam um pingente que chamava a atenção e perguntou para Sarita o que significava. Então, ela explicou se tratar de um símbolo andino chamado chacana, que foi adotado como um distintivo da Mística. Segundo ela, estes pingentes são talhados em uma pedra típica da região de Macchu Picchu. O Maestro Lucidor Flores os traz do Peru, porque prefere os pingentes talhados por um senhor que se chama Mestre Francisco, que obedece todo o ritual de produção da chacana previsto na tradição andina. A chacana simboliza as famílias do ayllu andino: "um dos chefes Incas resolveu formar grupos dentro da sociedade conforme suas habilidades para enfrentar melhor as adversidades do ambiente e nomeou cada um destes grupos com nomes de diferentes famílias", explica Sarita. Assim, todos aqueles que são iniciados na Mística recebem um nome espiritual conforme a família a que pertencem no ayllu. Quem batiza os iniciados é o Maestro Lucidor Flores.
Convém observar aqui o papel dos objetos na constituição das crenças e rituais da Mística Andina. Eles não se apresentam apenas como ícones ou distintivos identitários, mas conectam aqueles que os portam com uma tradição ancestral. A força intrínseca desses objetos emana não apenas do lugar ou dos materiais de onde eles são extraídos, mas também da correta performance dos rituais que os consagram e da autoridade de seus sacerdotes. Ao mesmo tempo, conforme a explicação de Sarita, eles atuam como totens, produzindo a divisão social e organizando a sociedade sobre bases diversas daquelas que configuram a sociedade capitalista urbana10 10 O termo "sociedade capitalista urbana" é usado com frequência entre os participantes da Mística Andina como uma forma de diferenciar suas práticas e seu estilo de vida atuais dos anteriores, os quais ainda podem ser observados como dominantes na sociedade em geral. . Neste sentido, a Mística Andina, como outros movimentos de corte Nova Era, expressa, no retorno imaginado a uma tradição indígena milenar, sua crítica às formas pelas quais se produziram as hierarquias e divisões sociais na atualidade. Esta perspectiva vai possibilitar que alguns participantes da Mística Andina abandonem seus postos de trabalho e/ou suas posições sociais para viver numa comunidade alternativa.
Como totens modernos, na chacana estão representados quatro clãs: norte, sul, leste e oeste. O clã do leste tem como elemento o ar. Uma das famílias deste clã é a Iriarte, conhecida por suas "idéias mirabolantes" e por ser mais "mental" e criativa. Já as famílias Obelar e Molina, estão ligadas ao clã do sul, cujo elemento é o fogo, sendo caracterizadas pelo entusiasmo e espontaneidade. Lembrando de amigas da Mística com esses sobrenomes, Sarita conta que os Obelares são um fogo mais brando, já os Molinas são verdadeiras fogueiras. O clã do oeste é representado pelas famílias Cruz, Aguilar, Dédalos e Flores, e seu elemento é a água, que está ligada à emoção e à fluidez. Ela explica que os Cruzes são mais recatados e sofisticados, enquanto os Aguilares são mais expansivos e também mais próximos da evolução. Os Dédalos são conhecidos como bonitos e chiques, e já foram Flores em outras vidas. Os Flores, na Mística, representados pelo Maestro espiritual Lucidor Flores, são os que têm a mente vazia e o poder de intuir.
Sobre o clã do norte, Sarita fala com propriedade, pois é o clã de sua família, os Mendizabal. O elemento é a terra e a este clã também pertence a família Sandoval, que é mais ligada à luxúria. Ambas as famílias têm a característica de plasmar, que é a habilidade de colocar as ideias no mundo real, em prática. Assim, estão ligadas ao trabalho braçal, e também são generosas e prestativas. Ela ainda revela que nem sempre a pessoa tem uma identificação imediata com o nome da família que recebe, mas que, com o tempo, todos reconhecem que o Maestro tinha razão. As brincadeiras sobre os nomes são recorrentes, sendo sempre positivas. Parece que cada integrante carrega com orgulho o seu nome espiritual. Uma das discípulas, de uma família de elemento fogo, brinca dizendo que ela incendeia tudo por onde passa, enquanto outra confirma, sorrindo, mas que quem acaba botando a mão na massa é a família dela, responsável pelos trabalhos mais braçais.
O uso das divisões e classificações dos participantes da Mística Andina em famílias não tem um sentido substantivo, enquanto unidades que se opõem, formando um sistema de parentesco como base de uma organização social, conforme descrito em etnologias indígenas clássicas ou nos estudos das sociedades tradicionais. O uso do termo famílias aqui tem um sentido fundamentalmente metafórico, que permite distinguir a vida no movimento do estilo e comportamento das pessoas que não aderiram a este ideal. Assim, ao usarmos este vocábulo, não estamos falando de um conceito analítico, mas antes da apropriação metafórica, pela Mística Andina, de uma noção êmica de organização social que percebe os indígenas andinos de forma idealizada, sem referência às diferenças internas às várias sociedades que compõem o universo indígena atual e suas histórias de apropriação e reinterpretação de culturas advenientes, com as quais eles vêm convivendo há mais de quinhentos anos no continente americano. Aqui, como vem sendo mostrado noutros estudos sobre as aproximações entre tradição indígena e Nova Era, há uma generalização do indígena (Sarrazin 2008; Galinier 2008).
A hierarquia na Mística Andina
Sarita é uma amauta11 11 Na definição nativa do movimento, "os amautas são os discípulos da senda que consagraram suas vidas ao serviço e assumem como Hermanos Maiores a missão junto com outros discípulos na disseminação dos ensinamentos, por meio do esquecimento de si mesmo e da doação do seu tempo e energia a levar as sementes de inspiração recebidas, por meio de ações criativas, cursos, palestras, projetos da ONG PACHAMAMA". Disponível em: < http://www.misticaandina.com.br>. Acesso em 7 de outubro de 2013. na hierarquia da Mística Andina. Esta hierarquia, segundo os seus participantes, no entanto, não é vertical, mas sim horizontal. O ponto de referência não se encontra no alto, mas no centro. Assim, o objetivo do participante da Mística Andina não é ascender a um posto mais alto, mas aproximar-se cada vez mais do centro. Aquele que manifesta interesse em conhecer o grupo é denominado de simpatizante. Depois de acompanhar o grupo algum tempo, que não é pré-estabelecido, o simpatizante pode tornar-se aspirante. As lideranças da Mística Andina costumam dizer que neste período a pessoa está namorando a Mística. E, após o namoro, o indivíduo pode tornar-se discípulo, que é quem decidiu casar com a Mística.
Além do discipulado, existem outros níveis de pertencimentos, como o de amautas e guias. Estes dois níveis são conferidos por Lucidor Flores a pessoas que se destacam pelo seu compromisso com a Mística Andina, o que também as distingue como seres mais evoluídos espiritualmente. A investidura nestes níveis estabelece uma associação direta entre o empenho e a dedicação do participante na organização, a responsabilidade que assume em relação à condução prática e burocrática do movimento e o processo pessoal de evolução. Assim, embora a evolução e o aperfeiçoamento do eu seja visto pela Nova Era como um processo interior e pessoal, a observação das formas pelas quais a Mística Andina investe os seus participantes de cargos e níveis de distinção deixa transparecer uma relação bastante estreita entre a evolução pessoal dos sujeitos e a sua atuação prática no cotidiano da instituição. Observa-se aqui o que Carozzi destaca como uma característica geral do movimento Nova Era em relação à hierarquia. O discurso da supressão de poder, ou sua inversão, articula-se com os discursos sobre a transformação individual, que está sempre associada à transformação do planeta (Carozzi 2000).
Neste sentido, convém chamar a atenção para o caráter idealizado dos modelos religiosos opostos entre "igreja, seita e mística", assinalados por Troeltsch (1987) e reiterado por Collin Campbell (1997). Em seu artigo sobre a "orientalização" do ocidente, Campbell situa a Nova Era no campo da mística, afirmando que
A mística se refere a um grupo de seguidores ligados a um líder espiritual ou guru; finalmente, a distinção entre crente e descrente é substituída pela ideia de que todos os seres existem em uma escala de espiritualidade, uma escala que pode ser estender além desta vida (1997:8).
Ainda que seja possível perceber a referência a uma escala evolutiva na Mística Andina que ordenaria todos os seres segundo o grau de aperfeiçoamento espiritual, é preciso ter presente que este ideal místico opera mais como uma ideologia do que uma realidade empírica. Como em outras instituições e configurações sociais, aqui também se estabelecem status e diferenças que decorrem dos jogos internos de poder e de prestígio. As distinções internas se expressam nas posições hierárquicas que cada um dos participantes ocupa no movimento, nas vestes e adereços que eles portam, legitimados pela sua comunidade de referência, ou pela delegação e investidura atribuídas a alguns por Lucidor Flores. Assim, aos poucos, Sarita foi indicando quais eram os discípulos mais distinguidos, estabelecendo uma relação direta entre o compromisso que eles mantinham com o movimento e o estilo de roupas e adornos que usavam.
Rituais de iniciação e mudança de vida
A entrada na Mística Andina passa por alguns rituais e processos espirituais que permitem os seus participantes se identificarem e serem reconhecidos como membros do grupo. Entre estes rituais, a Prática dos 21 dias ocupa um lugar fundamental e imprescindível para a constituição da pertença ao movimento12 12 Transcrevemos em seguida o depoimento de Raquel sobre sua experiência ao fazer a Prática dos 21 dias: "tive a oportunidade de vivenciar esta prática duas vezes. Fui alertada pelo grupo que poderia sentir algumas reações físicas pela privação de alimentos como açúcar, por exemplo. Mas também me disseram que eu poderia ser flexível em relação à dieta, caso sentisse muita necessidade. De fato senti muito pela privação da minha dieta habitual, incluindo dor de cabeça a partir do segundo dia que durou quase uma semana e, ainda, alteração no meu humor. Em algumas refeições não pude cumprir todas as prescrições da dieta de desintoxicação por ser incompatível com a minha rotina. No entanto, em diversos momentos cozinhei e convidei outras pessoas para compartilharem a refeição e essa foi uma experiência gratificante. Além disso, senti um bem estar físico maior por estar ingerindo mais alimentos saudáveis, sobretudo os integrais" (Sonemann 2011:22). . Trata-se de um ritual de iniciação para os que se aproximam da Mística Andina e de confirmação para os que já se encontram nela. Este ritual acontece duas vezes ao ano, em março e setembro, e consiste numa ascese de purificação física e espiritual, acompanhada de uma dieta específica que inclui um jejum e uma série tabus alimentares, assim como o compromisso diário da meditação pessoal. Estas prescrições são realizadas de acordo com o manual de regras, elaborado pelo Maestro. A prática é realizada em casa, com alguns encontros em grupo, em geral uma vez por semana, para meditação. Apresentamos abaixo um trecho do manual das regras que devem seguir os iniciados e simpatizantes da Mística Andina no período dos 21 dias.
Come lentamente, degusta, mastiga devagar, e somente consome alimentos de primeiro nível, sem nenhum aditivo químico. Não comas nenhum tipo de carne nem derivados do leite, exceto iogurte ou kefir. Não tomes excitante algum como café, erva-mate, etc. Mantém-te dentro de uma dieta muito equilibrada e pura. Antes de ingerir algo, reflete e sente o fluxo amoroso que Pachamama produziu para que esse alimento esteja na tua mão. Sê grato, agradece com "OM GURU DEVA PACHAMAMA OM", e ingere o alimento, sentindo com profunda atenção o que estás comendo. Bebe diariamente muita água pura. Busca atentamente a melhor água e a que não provenha de multinacionais que somente ajudam a guerra. Escolhe teus alimentos entre os produtos nacionais. Bebe água lentamente, degustando-a, demorando com ela na boca. Não tomes nunca água gelada, nem nada gelado em tuas refeições, e toma água somente meia hora depois de comer. Fica longe de chocolates, doces, açúcar e alimentos desse tipo. Sugiro que comas de forma saudável e de preferência que prepares tuas próprias comidas. (...) Quando estiveres cozinhando, põe música devocional e canta. Oferece essa comida à Vida com gratidão e amor! Em tua cozinha, sobre o fogão, põe uma imagem bonita de Pachamama ou da Deusa que representa a Mãe Divina na tua vida. (...). E neste período é recomendável fazer um dia de jejum a cada 7 dias, para eliminar toxinas do organismo e fazer com o que sistema digestivo descanse e se recupere. Lembra que estamos em um processo de desintoxicação, e o jejum ajuda muito nessa limpeza física e energética13 13 Trecho retirado do Manual da Prática dos 21 dias intitulado Um Grande Amor, escrito por Lucidor Flores. .
Como se pode ver pelo texto acima, as orientações de Lucidor Flores revestem de um sentido religioso práticas e valores relacionados com a saúde pensada desde uma determinada visão do que seja saudável e natural. As dietas restritivas ao consumo de carne e de produtos que contenham conteúdos químicos e artificiais é parte de um etos alternativo e ambientalista que valoriza um modo de vida natural, associado com a alimentação de produtos orgânicos. A referência ao passado indígena fundamenta, portanto, uma prática de cultivo de si que se expressa, sobretudo, no ideal de vida saudável.
A Prática dos 21 dias também tem consequências sobre os relacionamentos familiares e comunitários dos participantes. Recorrentemente, aqueles que a vivenciaram relatam fatos que remetem a uma mudança profunda que teria ocorrido em suas vidas após a Prática dos 21 dias. Assim, o tema como a Mística mudou a minha vida aparece com frequência em muitas rodas de conversa e entrevistas com os participantes da Mística Andina. No contexto de um retiro espiritual de final de semana que encerra a Prática dos 21 dias, realizado em 2008, na cidade de Tapes, Rio Grande do Sul, Irineu Mendizabal conta como ter participado da Prática dos 21 dias mudou o relacionamento com seu pai. Os ensinamentos adquiridos na Mística Andina, segundo ele, proporcionaram os meios para ele se aproximar do pai. Este depoimento foi confirmado pelas pessoas que estavam no grupo, participando desta conversa, que disseram que elas mesmas percebem as mudanças nele e que sua energia está mais clara. Neste mesmo sentido, Aaron Molina falou do seu esforço em relacionar-se com seus filhos e do suporte que a Mística Andina proporciona para vencer esta dificuldade.
Na relação com meus filhos hoje, tenho bastante dificuldade, mas estou criando uma nova relação com a base de amor. Não mais sobre a base de prêmio e castigo. (...) Então, a Mística ajudou-me a desfazer tudo que estava mal construído e reconstruir de outra forma14 14 Depoimento concedido por Aaron Molina em trabalho de campo (Diário de campo de Raquel Sonemann julho/2008). .
Ainda que a conversão seja um conceito pouco apropriado para se caracterizar o processo de transformação vivido e narrado pelos participantes da Mística Andina, são frequentes os testemunhos que enfatizam um antes e um depois à adesão ao grupo. Como relata Aletheia Iriarte,
Eu sou uma antes, e uma outra depois. Principalmente nessa área emocional, de padrões mentais, de trabalhos de egos, de me tornar mais pertinho do que realmente eu ainda acredite que eu sou, perto da minha essência. E servir, aprender a servir. Aprender a deixar de pensar em mim mesma. Aceitar as pessoas como elas são, com aquilo que elas podem dar. Então eu sou uma antes, e uma depois. Eu fiquei mais tranquila. Eu era "agitadérrima". Eu ainda sou ligeirinha, hoje, mas sou tranquila. E, o meu objetivo é me tornar mais lenta15 15 Depoimento concedido por Aletheia Iriarte em trabalho de campo, assim como os próximos depoimentos deste interlocutor citados neste artigo(Diário de campo de Raquel Sonemann abril/2008). .
Este trecho da entrevista com Aletheia aponta, portanto, para alguns aspectos que diferenciam o processo de conversão religiosa, vivido no âmbito das religiões bíblicas, daqueles que são enfatizados aqui como sinais da mudança. Primeiramente, o que ocorre na Mística Andina é um processo contínuo, de descoberta e aprofundamento que se estende por toda a vida, ao passo que para as religiões bíblicas a ênfase está colocada na ruptura e na passagem do pecado à santidade. Desta perspectiva, se o agente principal da conversão nas religiões bíblicas é o Espírito Santo, que arrebata o sujeito e o resgata das teias do mal, na Mística Andina a agência está, sobretudo, no sujeito que precisa aprender a controlar suas emoções e instintos. Em segundo lugar, o processo de conversão das religiões bíblicas se apresenta como moral, no sentido de uma readequação do sujeito aos valores e princípios da sociedade inclusiva, atingindo, sobretudo, o campo da sexualidade, da família e do trabalho. A mudança na Mística Andina, por sua vez, aponta para o afastamento e a crítica aos valores da sociedade inclusiva e a valorização de um estilo de vida que imprime outro ritmo ao viver. Por fim, a mudança na Mística Andina induz o participante a uma comunhão com o mundo e a uma integração com Pachamama, o que geralmente está ausente nas conversões clássicas das religiões bíblicas.
A meditação como prática ritual
A Mística Andina proporciona os recursos simbólicos e rituais para se vivenciar a imersão neste mundo fundado sobre o sagrado, o qual conecta suas partes numa totalidade que se apresenta como Pachamama para seus participantes. Estar conectado nesta totalidade, ainda que seja uma experiência pessoal e íntima, corresponde à expressão de um estilo de vida e de um conjunto de práticas e rituais externos e sociais que imprimem uma identidade aos seus participantes. Esta externalidade da vivência interior do movimento aparece nas falas dos iniciados como o modo de vida andino, que se concretiza por meio de duas vias: as práticas grupais e individuais promovidas pelo movimento, e a incorporação de formas diferenciadas de estar no mundo e de se estabelecer relações com os demais seres que o habitam. Como diz Munay Flores:
O propósito não é só viver grupalmente. É se alimentar do grupo para levar o que ali se vivencia para o cotidiano, o dia-a-dia, a família, o trabalho. Se manter ali, centrado. Esse é o propósito maior. Absorver os ensinamentos que são bem práticos para levar pra nossa vida, tentar ser um ser humano melhor16 16 Depoimento concedido por Munay Flores em trabalho de campo, assim como os próximos depoimentos deste interlocutor citados neste artigo (Diário de campo de Raquel Sonemann janeiro/2010). .
Dentre as práticas e rituais grupais que se apresentam como fonte de vivência e incorporação do modo de vida andino, a meditação ocupa o principal lugar. Para que o leitor possa perceber esta importância atribuída a esta prática como um ritual coletivo, apresentamos em seguida alguns relatos etnográficos de campo. O primeiro refere-se a uma tarde fria do mês de julho, quando Raquel esteve meditando com o grupo sob uma árvore no Parque da Redenção. Neste dia, quem conduziu a meditação foi Aaron Molina, que os convidou a sentir o vento fresco que passava, o barulho suave das árvores e a apreciar o movimento das pessoas passando e conversando. Depois deste exercício, Aaron perguntou a todos o que significa meditar. Ele foi o primeiro a responder: meditar é o nada, é poder chegar ao nada, ao vazio e ter, assim, um espaço para se encher. Uma reflexão que nos remete à yoga e ao budismo, uma das matrizes que conformam a Mística Andina, como vimos noutras falas e apresentações sobre como os participantes definem o movimento.
As falas dos participantes da meditação foram destacando outros elementos que, como vimos analisando, compõem o credo da Mística Andina. Assim, Govinda diz que para ela meditar é o encontro com Pachamama, com os animais, as árvores, com o todo. Uma referência direta ao ideal de imersão na totalidade e comunhão com o universo17 17 Observamos aqui uma extensão do sentido de communitas proposto por Victor Turner (1974, 1978) para pensar a experiência da peregrinação para o mundo. Ou seja, não se trata apenas de uma imersão numa multidão de pessoas com as quais os peregrinos estabelecem uma comunhão profunda, mas de uma imersão no cosmos ou no universo, numa comunhão que ultrapassa os limites do humano ou mesmo do sobrenatural. . Aletheia Iriarte relaciona a meditação à entrega amorosa e à ascese cotidiana que decorre deste ato fundamental. Como ela mesma expressa:
Hoje eu sinto que meditar é um ato de amor, um ato de entrega, de procurar sentir a Mãe Divina. Que ela realmente me visite, e eu entre em samádhi. Mas é por um ato de amor, de entrega, de persistência, e amorosidade, disciplina. (...) A meditação é como escovar os dentes, assim... É o encontro comigo mesma: eu sou o sagrado. E, quanto mais eu me acesso, mais eu chego perto do sagrado, em níveis maiores. Mas, o sagrado está em mim, eu não vou buscar fora. É nesse silêncio que encontro com Deus, na natureza. Quando estou fora do centro, por alguma razão emocional, eu sento para meditar. Se a minha mente está cheia, eu canto, nem que seja mental. Por que eu sei que ali eu encontro alinhamento.
Os discípulos da Mística Andina incorporam, portanto, no seu dia a dia não só as práticas, mas também ensinamentos que falam de simplicidade, carinho e amorosidade. Ao praticarem esta ascese, acreditam estar vivendo em mais sintonia com os ancestrais andinos. As referências ao modo de vida dos indígenas aparecem nas falas dos participantes, e, sobretudo, nos ensinamentos de Lucidor Flores. A noção de busca de um caminho, de uma transformação interior para alcançar o bem estar espiritual, mental e físico, é central para os participantes da Mística Andina. Trata-se, como vimos na citação acima, de perceber a vida diária sob outra ótica, a qual pode ser encontrada numa espiritualidade de referência indígena, que surge como uma imagem especular invertida de sociedade atual. Este indígena idealizado torna-se, assim, sinônimo de autenticidade, a qual, por sua vez, corresponde à garantia de que a espiritualidade e as práticas da Mística Andina são verdadeiras, num universo de múltiplas ofertas similares que concorrem entre si por seguidores.
A Mística e o turismo religioso
As viagens turístico-espirituais organizadas pela Mística Andina para os Andes peruanos são uma forma de colocar os seus participantes em contato direto com a cultura e as práticas religiosas dos indígenas locais, assim como atualizar uma tradição milenar da qual eles também querem se sentir herdeiros. Estas viagens, algumas delas relatadas no website do movimento, são dirigidas por Lucidor Flores, que atua não apenas como um guia turístico, mas, sobretudo, como mestre e mediador entre duas culturas: a camponesa indígena e a urbana moderna. Empreender estas viagens, portanto, tem um sentido eminentemente religioso, como um ritual de iniciação para os participantes da Mística Andina. O desejo de fazer a viagem é despertado e nutrido pelas referências a este mundo indígena idealizado nos ensinamentos de Lucidor Flores e pelos relatos daqueles que já passaram por este ritual de iniciação turístico-espiritual. Assim, durante um sat sang, Lucidor Flores relata uma conversa que teve com um camponês durante uma dessas viagens ao Peru.
Um dos camponeses que conheci me contou que cada pessoa tem um número limitado de respirações até a morte. Então, quando realizamos algo de forma rápida, quando nos deixamos levar pela correria do dia-a-dia, gastamos mais rápido nossas respirações. Por isso, o melhor é respirar pausadamente e de forma tranquila. Estamos divorciados da natureza e é necessário reverter essa situação e viver no ritmo de Pachamama. No ritmo em que nosso cocô é produzido, que nossos rins trabalham18 18 Depoimento concedido por Lucidor Flores em trabalho de campo, assim como os próximos depoimentos deste interlocutor citados neste artigo (Diário de campo de Raquel Sonemann outubro/2009). .
A meditação como caminho de integração com Pachamama não está dissociada de práticas educação ou de defesa dos animais. A Mística Andina organiza-se, em termos jurídicos, como uma Organização Não Governamental (ONG) que assume um conjunto de ações sociais e filantrópicas como uma forma de legitimar-se e posicionar-se na sociedade. O relato que apresentamos em seguida tem como objetivo chamar a atenção do leitor para a indissociabilidade que existe entre a espiritualidade vivida no grupo e a ação que alguns dos seus membros desenvolvem no campo da educação e da defesa dos animais.
Como observa Sarrazin (2008), para o setor turístico torna-se cada vez mais atraente conhecer a cultura e a espiritualidade indígena. No caso da Mística Andina, o turismo é internalizado como ritual e prática de espiritualidade do movimento. Esta atividade deixa, assim, de se apresentar como um elemento externo à vida cotidiana dos viajantes e torna-se a oportunidade de mergulhar em profundidade numa experiência ou cultura que são vividas no dia a dia de forma incompleta e parcial. Assim, a espiritualidade autêntica, associada ao indígena, soma-se a outros fatores na promoção do turismo para lugares étnicos, habitados por comunidades, a maioria de vida camponesa, as quais passam a ser integradas num circuito de interações que ultrapassa o universo dos encontros culturais com os quais elas estavam acostumadas a interagir. Por outro lado, a imagem generalizada de um indígena andino, destituído de sua cultura tradicional pode transformá-lo num espécime de museu aberto. Estabelece-se, assim, um conflito entre o modelo cultural local do indígena vivo e o modelo virtual que surge da imaginação de movimentos externos globalizados.
A Mística Andina e seu compromisso com Pachamama
Noutra tarde de sábado ensolarada, como de costume, o pessoal da Mística Andina reuniu-se no parque da Redenção para a prática de meditação. Na ocasião, Rada Dédalos iniciou a meditação nos convidando a fechar os olhos para sentirmos o manto verde da grama que nos cercava, a leve brisa que soprava sobre nossos corpos e os raios de sol que atravessavam nossas peles. Depois, solicitou que imaginássemos a chacana sobre um fundo roxo e os fios dourados, saindo de cada um dos participantes e ligando a ela. Deveríamos, então, sentir a profunda conexão com Pachamama e experimentar como é estar no colo da Mãe. Em seguida, deveríamos irradiar esta energia para o Rio Guaíba e todos os seres que ali habitam. Assim, ficamos num silêncio profundo durante cerca de 40 minutos, até que voltamos lentamente e abrimos os olhos.
Após a meditação, Rada e Irineu Iriarte contaram que naquela semana o grupo da ONG Pachamama esteve com 21 crianças de uma escola pública visitando o aterro municipal em Pelotas. O objetivo era ver o que acontecia com o lixo recolhido nas residências e explicar este processo às crianças. No aterro, eles também tiveram a oportunidade de conhecer e conversar com catadores de uma cooperativa que trabalha em parceria com a prefeitura para dar um destino mais adequado ao lixo seco. Segundo Rada, esse foi um momento muito bonito e especial. Alethéia aproveitou o ensejo para colocar a importância de separarmos o lixo em nossas casas. Enquanto Alethéia falava, Rada distribuiu um material com orientações para a separação do lixo. Em seguida, Verinha contou sobre a sua iniciativa de resgatar, cuidar e incentivar a adoção dos cachorros abandonados. Afinal, como ela lembrava, enquanto uma manifestação do divino, somos todos irmãos dos bichos. Por isso, não deveríamos estabelecer uma hierarquia em relação a eles, posicionando-nos num grau superior aos demais animais.
Viver em comunhão com Pachamama, sentindo-se uma totalidade com ela, não é algo que acontece espontaneamente, ao contrário, resulta de uma ascese e de um aprendizado que é incorporado pelos participantes da Mística Andina no percurso de suas vidas. Este ideal apresenta-se como a razão de ser do movimento e o seu principal desafio. Mudar a concepção de corpo, predominante na cultura ocidental moderna, que o percebe como uma mônada fechada ao mundo que habitamos, apresenta-se como a condição por excelência para se alcançar um grau de espiritualidade compatível com o que se espera de um iniciado na Mística Andina. A caracterização desta espiritualidade, intimamente associada a uma concepção aberta de corpo - visto como um lugar que nos conecta com o mundo - aparece em muitas das falas que foram recolhidas em campo, como a de Melusina Iriarte, que transcrevemos em seguida.
Essa espiritualidade tem a ver com o que nos une no grupo, que é esse sentimento de reconexão com Pachamama. Pachamama para nós é a existência, também Gaia e Planeta. É um ser ciente, autoconsciente, existência e que nos abriga. Então, essa espiritualidade é esta ligação profunda com Pachamama, diferente de ser ecólogo, ou ser biólogo, não tem essa vertente conceitual, de estudo, de aprofundar. Também não são só técnicas, não é um conhecimento técnico. É essa reconexão profunda que passa por se sentir parte e isso é de corpo inteiro19 19 Depoimento concedido por Melusina Iriarte em trabalho de campo, assim como os próximos depoimentos deste interlocutor citados neste artigo (Diário de campo de Raquel Sonemann maio/2008). .
Percebe-se, na fala acima, a explicitação de um movimento que observamos noutros contextos etnográficos da pesquisa O cultivo de si nas paisagens do sagrado e da ecologia, que é a busca da extensão da noção de corpo individual para o mundo. Na etnografia sobre o Rincão Gaia20 20 Rincão Gaia é a sede rural da Fundação Gaia, fundada pelo ambientalista José Lutzenberger. Situado sobre uma antiga jazida de basalto, o Rincão é um exemplo de recuperação de áreas degradadas. No lugar dos antigos buracos das pedreiras, existem hoje lagos e, no seu entorno, uma grande variedade de plantas típicas de ambientes áridos, que junto às rochas, formam jardins de rara beleza. O local é um centro de Educação Ambiental e de divulgação de Agricultura Regenerativa. , por exemplo, destacamos os discursos que ressaltavam a experiência de comunhão entre o corpo humano e o corpo do mundo, expressa pelo conceito de paisagem (Steil, Carvalho e Pastori 2010). Esta comunhão, no entanto, não está determinada por um contato real e direto com uma paisagem associada à natureza, mas pode ser experimentada, de forma imaginativa, em qualquer ambiente em que o sujeito se encontre. Nesse sentido, para explicar a sua sensação de inteireza com Pachamama, Arádia relata que, mesmo quando esteve internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital, ela recorria aos mergulhos diários da meditação para se conectar e se sentir em comunhão com Pachamama e, assim, alcançar a cura. Segundo o relato de Arádia, portanto, inclusive nos momentos ruins da vida, ela se sentia integrada a um todo - algo que, nas palavras dela, era maior do que sua existência - , em cuja unidade encontrava o equilíbrio perdido. No entanto, conforme explicita no trecho da entrevista que transcrevemos abaixo, a relação com Pachamama não é uma via de mão única. Ou seja, o sujeito que busca conforto e aconchego no colo da mamita Pachamama, também contrai a responsabilidade de cuidar dela, como seu jardineiro.
O que está dentro está fora. Se Pachamama adoece, é porque eu estou doente. Porque nós somos quem cuida. Nós somos os seus jardineiros. (...) Ela é um ser vivo. Somos nós que estamos abrigados nela. (...). Então, não adianta a gente ficar pensando "mas eu reciclo o lixo, e fulano não recicla". Não interessa. Eu estou fazendo a minha parte. É por isso que a gente faz os Skandalóns,21 21 São chamados de Skandalóns as diferentes iniciativas da ONG. O nome surgiu para incentivar que os participantes façam um escândalo, muito barulho, chamem a atenção e alertem o restante da sociedade sobre a urgência com os cuidados com a Mãe Terra. que é para as pessoas perceberem que elas são responsáveis por todas as transformações que andam acontecendo no planeta. (...) Então para mim o que é feito no micro, tem que ser feito no macro. E eu não sou diferente Dela [Pachamama].
A associação entre o mal-estar do planeta e a enfermidade individual é recorrente nas falas dos participantes da Mística Andina e nos ensinamentos dos seus dirigentes. Entendemos que a perspectiva fenomenológica que expande a noção de corpo para o meio ambiente também vincula a noção de bem-estar físico e social do planeta à de saúde e cura individuais. Há, portanto, uma associação inventiva entre os sofrimentos e os destinos do planeta e de cada ser individual, humano ou não-humano, que o habita. Nessa perspectiva, Fátima Tavares (2012) destaca em sua etnografia sobre circuitos terapêuticos alternativos que a eficácia da cura depende não apenas do seguimento da prescrição do terapeuta, mas, sobretudo, da relação que o paciente estabelece consigo mesmo e com o mundo. Neste sentido, com o objetivo de afirmar a centralidade que este imbricamento possui para a Mística Andina, permitimo-nos uma certa repetição do tema na citação de mais um fragmento de entrevista com outro interlocutor, Munay Flores.
Quando chega no físico é porque a gente esteve desatento por muito tempo. Se chegamos aos desastres e às catástrofes e às mudanças climáticas em Pachamama é porque por muito tempo fomos muito desrespeitosos em um princípio básico que, na cosmovisão da Mística, se chama ayni, reciprocidade. Esta reciprocidade refere-se tanto à relação com nosso ser, que inclui o corpo físico, quanto com os outros seres que são Pachamama. Se não temos a consciência desse principio, todas as desarmonias que podem chegar ao extremo. Às vezes percebemos a falta de água em muitos lugares, mas não percebemos a ausência de saúde dentro do nosso corpo.
O anseio por uma integração profunda do sujeito com Pachamama corre pari passu com sua busca de equilíbrio e bem-estar psíquico e espiritual. Nas falas e práticas dos participantes da Mística Andina reitera-se o ideal de continuidade entre os ritmos naturais do planeta e dos corpos e mentes individuais dos sujeitos. Se existe um mal a reparar, este não se inscreve numa ordem moral dos sujeitos dotados de livre arbítrio, mas numa ordem natural que foi produzida pela ruptura gerada pela cultura e civilização humanas. Assim, tanto o sofrimento que aflige o planeta numa dimensão global quanto aquele que acomete o sujeito no seu corpo individual são de mesma natureza. Portanto, o cultivo de Pachamama coincide com o cultivo de si e a cura da ferida ambiental depende da cura do indivíduo e vice-versa. Esta concepção unitária entre natureza e cultura é acalentada pelos ares do tempo em que vivemos, no qual a lei moral revelada das religiões da transcendência compete com a lei natural cósmica das religiões da imanência. Vemos, então, ganhar plausibilidade uma ascese ecológica que induz os sujeitos a se engajarem ativamente no ambiente na busca de uma inserção que supere as fronteiras da pele dos corpos individuais e as expanda em direção à integração plena com Pachamama. Assim, os limites do próprio corpo humano são ultrapassados e estendidos para corpo do mundo.
Um olhar analítico sobre a Mística Andina
Os relatos sobre a Mística Andina estão relacionados à emergência e consolidação de um estilo de vida que já não pode ser atribuído a escolhas meramente individuais nem reduzido a comportamentos tidos como exóticos ou desviantes (Magnani 1999). Ao contrário, parecem fazer parte de uma gramática religiosa globalizada que se capilariza no seio da sociedade moderna e atravessa as instituições religiosas tradicionais, estabelecendo um outro regime de crença que parece substituir a transcendência de um deus fora do mundo pela imanência de energias vitais e fluxos da natureza. Esta nova gramática religiosa está produzindo, como vemos em relação à Mística Andina, novas formas de comunidades e de socialidades que estão reinventando a religião, a moral e a espiritualidade. Como afirma Colin Campbell, "ocorre atualmente no Ocidente um processo de 'orientalização', caracterizado pelo deslocamento da teodiceia ocidental para uma teodiceia oriental" (Campbell 1997:5). Este processo, contudo, não diz respeito somente à introdução de elementos de um Oriente distante, que se agregam ao sistema sociocultural das religiões da transcendência, mas aponta para uma mudança na base de sustentação do pensamento ocidental.
Um certo paradigma da consistência doutrinária e identitária, que configurou os modelos religiosos na modernidade, parece dar lugar a um paradigma da dissonância, que conjuga num mesmo universo de crenças e práticas tradições e rituais religiosos e não-religiosos de diversas procedências e origens. Quanto à sua base de sustentação, este segundo paradigma tem como ponto de ancoragem a unicidade do mundo e a continuidade entre os processos corporais, mentais e espirituais. E, como prática essencial, a meditação como caminho para a aquisição da iluminação e o aperfeiçoamento de si, na busca do verdadeiro eu. Neste sentido, a Mística Andina se soma a muitos outros grupos que buscam superar, em termos práticos e simbólicos, os dualismos que marcaram as religiões da transcendência.
A Mística Andina nos remete, portanto, à concepção de um deus que reside na intimidade do self de cada ser no mundo, tornando "a experiência vivida pelo indivíduo como a instância última capaz de atestar a autenticidade do sagrado" (Carvalho e Steil 2008:290). É deste deus que Lucidor Flores fala quando ensina aos seus seguidores que
o discípulo da Mística deveria sentir Deus em seu coração, e que deveria sentir-se pertencente à totalidade do sagrado. Segundo ele "é preciso humanizar Deus", pois Deus está no mundo, e não fora dele.
Esta imanência de um deus que se revela no íntimo da pessoa é o que nos permite situar a Mística Andina no universo das religiões do self. Aos seus participantes, por sua vez, não é proposto um corpus doutrinário de dogmas em referência a uma divindade que se revela como uma entidade externa à experiência íntima do sujeito ou como o absolutamente outro da teologia cristã protestante moderna. Assim, a compreensão nativa de si se dá menos em função de uma religião que se institucionaliza na forma de uma igreja ou de uma congregação de fiéis, e mais de uma espiritualidade acessível a todos aqueles que se abrem à experiência íntima de descoberta de si e passam a trilhar o caminho de aperfeiçoamento do seu eu interior em direção a uma vida em harmonia com a natureza. Trata-se, portanto, de uma gnose, na medida em que a iluminação não é algo que vem de fora, como uma revelação externa, mas resulta de uma ascese interior do sujeito que o ilumina desde dentro, tornando-o apto a fazer as escolhas éticas corretas em relação ao planeta, expresso pelo conceito indígena de Pachamama.
Esta condição institucionalmente fluida e flexível de que se reveste a Mística Andina é expressa nas palavras de Lucidor Flores que transcrevemos abaixo:
A Mística Andina é invertebrada e, ao ser invertebrada, pode se transformar em muitas coisas. Na verdade a cada seis meses se transforma em algo diferente e novo. E, é muito bom isso, porque nos acostuma que a vida que é sempre nova. (...) Então, para os que estão chegando, eu pediria um pouco de paciência, porque a mística andina é um jeito, um gesto e não uma estrutura edificada de pensamento. Descobrimos, com os amautas andinos, que as estruturas de pensamento estão destinadas a serem convertidas em areia, como as grandes rochas. (...). Então, para os que estão chegando, confiem nesta senda que irá lhes dar o que outras sendas não lhe deram, que é experiência. Aqui há pouca ideia, pouca estrutura, mas muita possibilidade de experimentar. Há, mas muita possibilidade de experimentar.
Podemos perceber que a Mística Andina, em sua definição, aposta na inexorabilidade da experiência, dirigindo-se a sujeitos que buscam articular de forma inovadora a preocupação com o planeta, corporificado em Pachamama, com a descoberta cada vez mais íntima de si. Ao mesmo tempo, como refletimos acima, os participantes expressam em suas falas a consciência de que a Mística Andina não cabe nos limites estreitos de uma definição sociológica da religião, conforme se configurou na literatura e tratados das ciências sociais. Estas duas dimensões da compreensão da experiência vivida pelos participantes da Mística Andina podem ser observadas no trecho que transcrevemos abaixo da entrevista com Mesulina Iriarte.
Pachamama é a consciência dessa unidade com o todo. Quando a gente está em unidade com esse todo, que é Pachamama, a gente consegue sentir o sagrado que somos. A gente não vê a Mística como uma seita, nem uma religião. Um conceito que estaria próximo do que entendemos ser a Mística é do religare, que é o saber cuidar. É como a Yoga também trabalha: a união, a reunião, o religare, que não passa pela doutrina, por um estudo teológico, ou lógico, apenas. Mas, trabalha esse voltar para dentro de si para poder perceber que não somos uma parte, mas o todo; o todo está em nós.
Podemos observar na Mística Andina um movimento que busca redefinir o sentido que o termo religare possui na concepção das religiões da transcendência. Ou seja, já não se trata de uma mediação entre dois mundos que se opõem como duas ordens autônomas e independentes - o mundo natural e o sobrenatural - , que seria exercida pelas instituições religiosas e seus sacerdotes, mas da percepção da ligação que existe entre os seres que habitam o planeta e o próprio planeta. Assim, a experiência religiosa, na perspectiva da Mística Andina, não nos remete à relação entre seres de naturezas distintas - homens e deuses - que habitam mundos opostos, mas a uma busca constante de comunhão com a natureza, sem mediações que se interponham entre o humano e o divino. Este deslocamento da mediação feito pela Mística Andina repõe no horizonte compreensivo do conceito de religião a oposição entre profano e sagrado, definidos por Durkheim (1996) como elementos constitutivos e fundantes da ordem social. No entanto, a alquimia epistemológica que se produz no âmbito da Mística Andina é inversa a que a teoria durkheimiana pretende instaurar para as ciências sociais. Ou seja, não se trata de mostrar que tudo se processa na ordem do social, mas, ao contrário, que tudo é sagrado.
Conclusão
Esse artigo buscou contribuir para alargar a compreensão das formas pelas quais as religiões do self têm se apropriado de elementos das tradições indígenas pré-colombianas na atualidade, a partir da experiência vivida por pessoas de classe média urbana no âmbito da Mística Andina. Um primeiro destaque a se fazer nesta experiência é a intersecção entre a religião e a ecologia, especialmente por meio de uma releitura do conceito de Pachamama, que foi incorporado no sistema de crenças e práticas da Mística Andina com um forte sentido ambiental. Outro destaque diz respeito às transformações que estão ocorrendo no conceito de religião no contexto do movimento Nova Era, em cujo horizonte se inscreve a Mística Andina, no sentido de uma conexão cada vez mais intensa entre os sujeitos humanos e a natureza como o lugar de acesso ao sagrado. Transformações estas que, seguindo a sugestão de Collin Campbell (1997), identificamos como um processo de orientalização do universo religioso ocidental. E, no caso da Mística Andina, observamos, sobretudo, um retorno das tradições indígenas, que são lidas na chave das religiões da imanência, associadas ao Oriente. Neste sentido, os dados etnográficos que reunimos mostram que a Mística Andina é filha do seu tempo, somando-se a inúmeras outras experiências latino-americanas que conformam um movimento bem mais abrangente de releitura das tradições indígenas pela Nova Era.
Outro aspecto a ressaltar no horizonte de nossa reflexão é o afastamento da Mística Andina dos modelos institucionais com os quais as religiões se conformaram na modernidade ocidental. A forma institucional deste movimento não cabe nem no modelo igreja nem no modelo seita, apenas para ficarmos nos tipos ideias identificados por Max Weber em sua sociologia do cristianismo. Por isso mesmo, observamos uma recusa reiterada por parte dos participantes da Mística Andina em usar a categoria religião para designar a sua experiência. Uma recusa que vai pari passu com a preferência pela categoria espiritualidade e pela adoção do formato de ONG como identidade jurídica e social. Assim, os sujeitos que acompanhamos na Mística Andina atribuem um papel secundário à mediação institucional, uma vez que é a experiência que efetivamente conta na produção da autenticidade do sagrado.
Um último aspecto está associado à busca do bem-estar individual, da harmonia com os demais seres que habitam o mundo e da reconexão com o planeta como um mesmo movimento. A incorporação de hábitos ecológicos passa a fazer parte da espiritualidade e da ascese individual de cada um dos participantes, assim como o cuidado de si é incorporado ao ideário ecológico. Neste sentido, o cultivo de si e o cuidado do planeta se imbricam como constitutivos de uma única teia de ações, construída no âmago dos sujeitos, nas relações com os demais seres humanos e não-humanos e com o planeta, que se apresenta ao indivíduo como um outro, representado na figura de Pachamama. O processo de aperfeiçoamento dos sujeitos no mundo compreende, portanto, o cuidado do corpo, do espírito e do planeta como dimensões de uma única ascese (Carvalho e Steil 2008). Este é o caminho a ser trilhado pelos discípulos da Mística Andina, o qual deverá conduzi-los a um estado de bem-estar físico, espiritual e planetário. Em contrapartida, o ritmo acelerado e estressante da vida urbana, fragmentada pelos múltiplos papéis e identidades que os sujeitos precisam assumir no seu cotidiano, é vivido e narrado como um fardo a ser superado no caminho de volta à comunhão com Pachamama, onde o tempo pulsa noutra velocidade.
A Mística Andina, ao mesmo tempo em que propõe a restauração da fratura produzida pela civilização no seio de Pachamama, afirma a externalidade e alteridade humana em relação à natureza. Esta oposição reiterada pela associação da natureza com Pachamama acaba sacralizando a primeira, que é refletida no espelho da civilização como sua imagem invertida. Por outro lado, os atributos e as virtudes de Pachamama, incorporados na natureza, a tornam uma fonte inexorável de energias e a força restauradora, por excelência, da vida humana e do planeta. Assim, ainda que o dualismo seja apresentado como o grande desafio a ser enfrentado na trajetória espiritual dos participantes da Mística Andina, a sua superação se torna impossível uma vez que o culto a Pachamama acaba reiterando a sacralização da natureza e a estigmatização da civilização ocidental moderna.
Enfim, como vimos em muitos relatos dos nossos interlocutores, a Mística Andina induz os seus participantes ao engajamento no mundo, como testemunhas da unidade num contexto de fratura. Os corpos tornam-se o lugar por excelência da realização da utopia retrospectiva de um tempo quase mítico em que o ritmo da vida humana e da natureza coincidiam. Deste modo, a idealização de uma vida natural, recorrente no movimento ecológico, ganha, na Mística Andina, um sentido e uma expressão espiritual e religiosa. O compromisso com a vida saudável e com o bem-estar pessoal e do planeta, assim como as ações para promovê-los, tornam-se rituais e ascese espiritual quando realizados no horizonte dos ensinamentos e da idealização das tradições indígenas reinterpretadas no contexto da Mística Andina. Trata-se de um compromisso que, como vimos, pode expressar-se tanto na forma de uma dieta alimentar, assumida pelos seus participantes como um rito religioso, quanto no engajamento em projetos de educação ambiental com crianças ou de defesa dos animais, em consonância com uma nova sensibilidade que parece por em xeque o antropocentrismo que dominou a visão social moderna até os nossos dias.
A observação e a convivência de Raquel com o grupo por mais de dois anos permitiu acompanhar as mudanças que foram sendo operadas nos corpos dos seus praticantes, na medida em que eles estreitavam seu compromisso com o movimento. O vestuário se modifica, o afeto se aprofunda, a dieta é incorporada como hábito alimentar, o movimento dos corpos ganha mais leveza, a alegria se expressa em sorrisos largos e a acolhida, em abraços longos e aconchegantes. A mudança observada no grupo também atingiu a pesquisadora que incorporou algumas das práticas, dos ensinamentos e das experiências da Mística Andina em sua vida pessoal, mantendo, contudo, o seu lugar diferenciado na relação, sem ultrapassar a tênue linha que separa o observador dos seus nativos. Nesta aproximação, Raquel se tornou um pouco mais jardineira de Pachamama, experimentou sensações inusitadas na prática da meditação, aprendeu a desfrutar mais da vida e a retribuir o carinho que recebeu deste grupo.
Notas
Recebido em fevereiro de 2013
Aprovado em agosto de 2013
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Apropriações indígenas pela Nova Era: a Mística Andina no Brasil
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Jan 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2013
Histórico
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Recebido
Fev 2013 -
Aceito
Ago 2013