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Editorial

Este número de Religião & Sociedade apresenta algumas peculiaridades: primeiro, ele inaugura uma nova periodicidade para a revista, que a partir de 2016 se torna quadrimestral. A decisão de lançar três números por ano vai tanto ao encontro do perfil assumido pelas revistas de Ciências Humanas do sistema Scielo, como visa abrir espaço para o volume de artigos que temos recebido nos últimos anos.

Justamente para contemplar o fluxo de colaborações, a segunda característica do número é sua abrangência. Mantendo o foco aberto, conseguimos compor um fascículo que contempla distintos temas, tradições disciplinares e estilos de análise, em sintonia com a missão transdisciplinar da revista, que busca a ampla cobertura das relações entre sociedade e religião, a partir da perspectiva das humanidades. Mas, mesmo diante da diversidade alcançada, é possível perceber algumas recorrências, as quais evidenciam tendências atuais do estudo da religião, que gostaríamos de destacar.

Os artigos aqui reunidos podem ser agrupados em três eixos. No primeiro deles, estariam os trabalhos de Clara Flaskman, Diogo Goltara e Gabriel Castanho: embora os dois primeiros possuam caráter etnográfico e o terceiro trate de história medieval, todos têm em comum a preocupação de identificar e analisar as categorias significativas aos universos pesquisados, procurando recompor seu peso relativo em léxicos e contextos precisos. Nesse movimento, há categorias que se revelam densas, porque são capazes de articular ou explicitar um conjunto de relações e concepções (sociais e espirituais) mais amplas, e estar atento a elas significa dispor-se a compreender as diversas lógicas passíveis de operar na construção de mundos sociais.

Em “Relações e narrativas (...)”, Clara Flaskman problematiza o conceito de enredo em religiões de matriz africana, a partir de uma pesquisa de campo realizada no terreiro de candomblé Ilê Iyá Omi Axë Iyamasé, o Gantois, em Salvador, Bahia. Atenta às situações em que a expressão aparece nos discursos e recorrendo à comparação com trabalhos de outros pesquisadores, em casas e regiões próximas, que também problematizaram o conceito, a autora demonstra como enredo é um termo polissêmico, que se relaciona a concepções de acaso, vontade, autonomia, destino, servindo como chave de interpretação dos acontecimentos da própria vida. Enredo revela-se uma via de acesso privilegiada ao que poderia ser considerado o sistema de pensamento do candomblé, cuja análise contribui para os debates sobre a ontologia da multiplicidade e a noção de pessoa.

Já Diogo Bonadiman Goltara, em “Ligando a corrente (...)”, fruto de uma pesquisa junto a comunidades remanescentes de quilombos do sul do Espírito Santo, apresenta-nos a “uma força conjuntiva que atua entre pessoas e entidades”, a corrente espiritual, cuja compreensão permite o entendimento do modo de desenvolvimento da rede esotérico-umbandista na região, a conectividade, em suas imbricações macro e micro, molar e molecular. A cooperação de centros, médiuns e espíritos vai costurando a corrente entre as comunidades, mantendo um fluxo de obrigações e de poderes que ancoram a transversalidade das relações sociais e espirituais tramadas na região por coletivos de filhas e filhos de santo, através de visitas rituais realizadas ao longo do ano.

Gabriel Castanho, em seu artigo sobre “Regimes de discurso e laços sociais (...)”, aborda a importância do silêncio e da escrita monástica dos cartuxos na tessitura das relações sociais da Europa medieval, em uma região que corresponderia, atualmente, à França. Ao tratar do século XII, um contexto marcado pela efervescência da vida urbana, mas, simultaneamente, pela valorização ambígua do comunitarismo e do eremitismo como modalidades da vida religiosa, o autor pretende demonstrar como escrita e silêncio, ligados às noções da época de studium e de comunicação per litteras, operaram como bases da “pregação calada” e constituíram um verdadeiro regime de discurso, no sentido foucaultiano do termo, capaz de solucionar dialeticamente a tensão entre os modelos de abandono do mundo e de inserção nas relações humanas. Ou seja, um trabalho historiográfico de busca de compreensão da visão de mundo dos agentes em seus próprios termos.

Os dois textos seguintes podem ser aproximados do ponto de vista metodológico, apesar de sua diversidade temática, por explorarem analiticamente o rendimento de determinados instrumentos de pesquisa na visibilização e demonstração das questões que pretendem tratar. “Identidade social, mídia televisiva e construção histórico-cultural da memória coletiva”, de Alexandre Castro, Sérgio Gonçalves e Clemir Silva versa sobre o “esquecimento organizado” de um episódio na história que os batistas brasileiros contam sobre si mesmos, o “apagamento” da obtenção de um canal de televisão nos anos 1980, a partir de relações políticas estabelecidas por suas lideranças. Se o artigo relaciona-se a uma temática recorrente, a de religião e mídia evangélica, o foco nos jogos de memória, esquecimento e silêncio, como diria Pollak, que operam no processo de construção de identidades – ainda mais de uma identidade como a batista, altamente refratária à ideia de pactuar com o clientelismo político – traz outros elementos à discussão, complexificando-a. E para “ouvir o silêncio”, é preciso recorrer a entrevistas, e principalmente a arquivos, explorados metodologicamente na tentativa não apenas de preencher lacunas, mas de evidenciar as sutilezas dos processos de construção da memória social.

É no sentido da visibilização da diversidade e riqueza cultural de moradores de bairros periféricos de Buenos Aires, expressas através da religião, que o artigo de Juan Martín López Fidanza e Ana Lourdes Suárez, “Diversidad de creencias, devociones y prácticas religiosas (...)”, se constrói. Trata-se de uma análise de “religiosidade popular”, entendida como um espaço privilegiado para captar formas criativas de vínculo com o sagrado, espiritualidade para além da religião e agência de setores marcados pela vulnerabilidade social. Os autores constroem seus argumentos a partir de uma metodologia quantitativa, com dados provenientes de um questionário, cujos resultados, articulados a trabalhos qualitativos de outros pesquisadores, permitem identificar pertencimentos religiosos diversos; crenças variadas, a vitalidade de práticas e devoções; a frequência de mudanças religiosas; noções de doença e cura nas quais físico, moral e espiritual se conectam; relações entre instrução, gênero e mobilidade religiosa, dentre outras. Concluem o artigo traçando o perfil de católicos e evangélicos dos assentamentos, o que resulta num quadro significativo e com potencial comparativo para outros contextos latino-americanos.

Os artigos que completam o número intersectam-se ao tratar do conceito de secularização, embora de forma mais ou menos direta. Se todos concordam que a “secularização”, quando interpretada como sinônimo de “fim da religião” não faz mais sentido diante das dinâmicas contemporâneas, cada um deles assume uma posição distinta para considerar as possibilidades de reapropriação e redefinição desse conceito em novas análises.

Paula Montero, em “Religiões Públicas” ou religiões na Esfera Pública? (...)”, traz uma rica discussão sobre o conceito de campo de Pierre Bourdieu, perpassando ainda seu conceito de espaço social e suas obras sobre religião, Estado e opinião pública. Levando em conta os avanços analíticos trazidos pelo conceito de campo no passado, Montero questiona se a dimensão estrutural nele presente consegue dar conta das muitas facetas do secularismo contemporâneo, em que as religiões não apenas estão presentes na vida pública, mas a constituem. A autora produz uma torção interessante: a questão se torna menos o que as religiões estão fazendo no espaço público, e mais o que se está fazendo em público em nome da religião, considerando as dinâmicas atuais de produção da publicidade. A ideia de religiões públicas surge assim como um caminho a ser explorado na compreensão dessa dinâmicas.

O título do artigo de Roberto Dutra, “A universalidade da condição secular”, evidencia sua posição quanto à utilidade do conceito de secularização. Partindo da ideia de que a secularização é uma condição universal, pois nenhuma sociedade se orienta exclusivamente por princípios religiosos, e nenhuma religião é capaz de forjar para si um entorno societal regido exclusivamente por sua lógica, Dutra procurará refinar esse conceito a partir da teoria de diferenciação funcional de Niklas Luhmann, utilizando ainda formulações provenientes de autores como Charles Taylor e Jose Casanova, acionando para isso a ideia de “secularidades múltiplas”.

O terceiro texto nessa interseção é o de Steve Bruce, “Secularization and the Impotence of Individualized Religion”, que foi lançado originalmente em 2006, em The Hedgehog Review, e aqui foi republicado em português por acreditarmos que, dada a importância de Bruce nos estudos da religião, e notadamente, da secularização, sua divulgação possa oferecer um importante subsídio aos estudantes e pesquisadores brasileiros interessados no assunto. O texto é precedido por uma cuidadosa apresentação feita por Renan William dos Santos, também o responsável pela tradução.

Uma nota final: com enorme pesar, esta edição de Religião & Sociedade se soma ao conjunto de homenagens ao colega Cléber Pacheco, funcionário do Iser, cuja morte prematura e absurda ocorreu em maio passado. Sua constante disposição em colaborar, acompanhada pela combinação singular de integridade, bom humor e afeto, são parte das lembranças queridas que iremos guardar para sempre.

Renata Menezes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2016
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