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Almoço do Círio: um banquete sacrificial em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré

“Almoço do Círio”: a sacrificial banquet in honor to Our Lady of Nazareth

Resumo

A relação estabelecida numa das mais importantes festividades religiosas brasileiras – o Círio de Nazaré, em Belém do Pará – entre religião, festa e comida permite refletir sobre esse banquete sacrificial, tomando como mote o “paticídio”, que nos leva a pensar em sacrifício nas práticas religiosas contemporâneas. Trata-se de ritual dentro do ritual, representando momento de confraternização entre famílias. O artigo reflete sobre esse ritual à luz da teoria antropológica, analisando-o como sacrifício, cujas celebrantes são as donas de casa. Assim, esse ritual doméstico se torna quase obrigatório, ocasião de marcar a identidade paraense, invocando a “fábula das três raças”, representadas na origem dos alimentos rituais tradicionais que são o pato no tucupi (indígena), a maniçoba (africana) e o bacalhau (portuguesa).

Palavras-chave
Catolicismo; Círio de Nazaré; Almoço do Círio; Banquete Sacrificial; “Paticídio”

Abstract

The relationship established in one of the most important Brazilian religious festivities – the Círio de Nazaré, in Belém do Pará – between religion, party and food allows to reflect on this sacrificial feast, taking as motto the word “paticídio”, that leads us to think of sacrifice in contemporary religious practices. It is ritual within the ritual, representing moment of fraternization between families. The article reflects on this ritual in the light of anthropological theory, analyzing it as a sacrifice, whose celebrants are housewives. So, this domestic ritual becomes almost mandatory, the occasion of marking the identity of Pará, invoking the “Fable of the three races”, representing the traditional ritual food as the “pato no tucupi” (Indian), “maniçoba” (African) and codfish (Portuguese).

Keywords
Catholicism; Círio de Nazaré; Almoço do Círio; Sacrificial Feast; “Paticídio”

Quem vai a Belém do Pará,

desde a hora em que sai

não se esquece de lá,

quer voltar.

Lembrar o açaí, o tacacá,

que saudade que dá

de Belém do Pará!

Orar na Matriz de Belém,

conversar com alguém,

como é bom recordar!

Jesus em Belém foi nascer,

eu quisera morrer

em Belém do Pará.

Tá aqui tucupi,

tem mais o jambu,

também camarão.

Quem quer tacacá?

(Chiquinha Gonzaga, “Tacacá”)

O Círio de Nazaré como festa religiosa

Este é um artigo escrito por antropólogo que mora na cidade de Belém do Pará – há muitos anos –, onde anualmente acontece o mais importante Círio de Nazaré do Brasil, entre os que ocorrem na Amazônia e em várias outras cidades brasileiras. Por isso, tenho estado envolvido nesse ritual e na festa da mesma santa há muito tempo. Mas também, como antropólogo, tenho por vários anos pesquisado através de trabalho de campo esse mesmo evento religioso, tanto em Belém como na cidade de Vigia (nordeste paraense, onde se originou essa devoção na Amazônia) e em outras cidades brasileiras (especialmente na cidade do Rio de Janeiro, onde ocorrem dois Círios: o da Tijuca, mais tradicional, e o de Copacabana, mais recente), possuindo assim um acervo relativamente grande de pesquisa, por meio de observação direta e/ou participante, do que têm resultado vários estudos etnográficos na área da antropologia da religião. A ideia de escrever sobre o chamado “Almoço do Círio” surgiu há algum tempo. Isto se deu ao participar de evento científico em que foram relatados e discutidos rituais de sacrifício em religiões de matriz africana, num dos seminários temáticos da ANPOCS2 2 Nesse Seminário, chamou-me atenção uma das intervenções, feita por Roberto Motta, debatedor da segunda sessão, ao referir-se aos sacrifícios de animais que ocorrem nas religiões brasileiras de matriz africana. Seu comentário me fez lembrar o Almoço do Círio, do qual já havia participado tantas vezes, mas que até então não tinha ainda pensado em relacionar com a temática do sacrifício. . A ideia foi amadurecendo, através de observação direta e de entrevistas informais com pessoas de diferentes famílias, dando preferência às chamadas “donas de casa” católicas de diferentes condições sociais.

Este artigo se propõe a descrever e analisar um aspecto particular da maior festa religiosa da Amazônia, uma das mais importantes do Brasil e do mundo católico3 3 Pelos cálculos divulgados todos os anos na imprensa local sobre o número de participantes numa única manhã (no segundo domingo de outubro, quando acontece o imenso cortejo), ocorre a presença de mais de dois milhões de “romeiros”. Isso faz dessa procissão religiosa a maior do catolicismo brasileiro e, mesmo incluindo outros eventos religiosos – não somente católicos – em outras partes do mundo, uma das maiores. Segundo comunicação pessoal da jornalista americana Alexandra C. Ellerbeck (que esteve em Belém em outubro de 2014, obtendo dados para artigo sobre o Círio, publicado no Religion News Service, visto por ela como “o maior serviço de notícia religiosa nos Estados Unidos”), nas Filipinas existe uma procissão católica ainda maior do que o Círio de Nazaré em Belém. Consultando na internet o site http://tvuol.uol.com.br/video/catolicos-vao-a-rua-em-maior-evento-religioso-das-filipinas-04024E983770D0914326/ (acesso em: 16/11/2016), encontro a notícia de que “Milhões de católicos tomaram as ruas de Manila, nas Filipinas, em uma gigantesca manifestação de fé. No maior evento religioso do país, homens e mulheres se reúnem para rezar e tentar chegar perto de uma imagem de Jesus Cristo que acreditam ser milagrosa”. Trata-se do culto ao “Nazareno Negro”, como aparece no áudio da notícia, que anuncia a presença de “cerca de nove milhões de católicos”. Confirmada a notícia desse site, onde pode existir exagero, esta seria talvez a maior procissão religiosa católica do mundo. Não pude, porém, certificar por outra fonte a correção dessa informação. O artigo da jornalista americana Alexandra C. Ellerbeck sobre o Círio de Nazaré pode ser obtido através do seguinte link da internet: http://www.religionnews.com/2014/10/17/brazilians-drift-away-catholicism-virgin-mary-procession-popular-ever/. Acesso em: 16/11/2016. . Trata-se de festa de origem eminentemente popular, mas organizada sob os auspícios da Igreja Católica (e, inicialmente, também do governo português), desde o final do século XVIII (1793), na cidade de Belém, então capital de uma das duas colônias portuguesas na América do Sul: o Estado do Grão-Pará e Rio Negro, que abrangia toda a atual Amazônia brasileira. A outra colônia era o Estado do Brasil, inicialmente com capital em Salvador e, mais tarde, no Rio de Janeiro. A unificação das duas colônias ou Estados deu-se apenas com a vinda do rei D. João VI ao Brasil que, ainda como Príncipe Regente, tendo-se estabelecido no Rio de Janeiro (1808), criou o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1816). Iniciava-se assim o processo de unificação brasileira, que só se completou e se consolidou alguns anos depois, com a Independência proclamada por seu filho D. Pedro I (1822), mesmo que a adesão do Pará à Independência tenha ocorrido pouco depois (1823) e a consolidação do atual território brasileiro só tenha se efetivado de forma mais completa após o término da Cabanagem (1835-1840), quando a Amazônia se incorporou completamente ao Brasil4 4 Vale lembrar que os manuais de ensino sobre a história brasileira, na maior parte produzidos no Sudeste, silenciam sobre esses fatos da história colonial e da integração da Amazônia ao território nacional. Há, porém, uma extensa bibliografia clássica que trata dessas questões. Cf., entre outros, Azevedo (1901); Baena (1839, 1969 [1838]); Braga (1915); Cruz (1973); Dias (1970); Mendonça (1963); e Raiol (1970 [1865/1890]). .

Ao longo de sua história, o Círio de Nazaré sofreu somente uma interrupção, no ano de 1835, ocasionada pela invasão de Belém pelos insurretos cabanos que, dando início à sua revolta, dominaram a então capital da Província do Pará (que compreendia todo o atual território amazônico brasileiro). O Círio não foi interrompido nem pela proibição a ele imposta pelo bispo do Pará, D. Antônio de Macedo Costa, por dois anos (1878 e 1879), durante a chamada Questão Nazarena. A proibição do bispo não teve efeito mais grave, pois os devotos de Nossa Senhora de Nazaré, insuflados principalmente pelos maçons, nesses dois anos de proibição retiraram à força a imagem da Santa de sua igreja, realizando os assim chamados “Círios Civis” que caracterizaram o que se denominou de “Questão Nazarena” em Belém, prefigurando em parte a mais importante “Questão Religiosa”, de âmbito nacional, quando os bispos de Olinda e Recife e do Pará (D. Vital Maria de Oliveira e o mesmo D. Antônio de Macedo Costa) foram processados e presos pelas autoridades do Império5 5 O primeiro autor a referir o Círio de Nazaré nas suas origens, sem deixar de lado seus aspectos míticos, foi um seminarista que teve a possibilidade de consultar antigos documentos, escrevendo um livro que constitui fonte preciosa sobre a sua realização desde o primeiro Círio no ano de 1793 – cf. Almeida Pinto (1906). Há também vários estudos sobre a devoção a Nossa Senhora de Nazaré em Belém e também sobre o Círio, muitos dos quais o descrevem e analisam ao longo de sua história – cf., entre outros, Alves (1980); Coelho (1998); Dubois (1953); Mombelli (1976); Pantoja (2006); Rocque (1981); e Saré (2005). Em periódicos já foram publicados muitos artigos sobre a temática do Círio e da Festa de Nazaré – cf., entre outros, nos últimos anos: Alves 2005); Lopes (2011); Maués (2013); Santos e Coelho-Ferreira (2011). Parte das descrições, relatos e considerações feitas a seguir acompanham também discussões já publicadas nessas referências. .

Menciono esses fatos históricos, não só para mostrar a importância do Círio e da Festa de Nazaré para a sociedade paraense, mas também para situá-lo no contexto mais vasto das devoções populares brasileiras. Devo dizer, ademais, que a devoção a N. S. de Nazaré, em Belém, não é a primeira a surgir no Brasil. Desde a primeira metade do século XVII (1630) ela já existe em Saquarema, no Rio de Janeiro, cuja população se orgulha de possuir a mais antiga devoção a essa santa em nosso país6 6 Fiz trabalho de campo por um breve período em Saquarema, em julho de 2013, onde conheci a igreja destinada ao culto de Nossa Senhora de Nazaré e tive conversas informais com moradores da cidade e com o responsável leigo pela guarda do templo. A memória popular fixa a primeira metade do século XVII como o início da devoção, considerada a mais antiga do Brasil. Em Vigia, Pará, onde anteriormente desenvolvi trabalho de campo por mais de um ano, com intervalos, a memória guarda o final da segunda metade do mesmo século como origem da devoção. Mas ela se baseia também numa rápida referência à existência desse culto pelo cronista jesuíta João Felipe Betendorf, que foi mais tarde amplamente divulgada por intelectuais devotos a fim de comprovar que tal devoção em Vigia precedeu a de Belém. Ele diz em sua crônica que, em 1697, quatro anos depois da elevação de Vigia à condição de vila, o jesuíta José Ferreira relata que lá encontrou estabelecida a devoção à “milagrosa imagem da Virgem Nossa Senhora de Nazaré” (Betendorf 1910:630). .

Para dar uma ideia bem sumária do Círio e da Festa de Nazaré, torna-se necessário falar inicialmente sobre o Círio, procissão cujo nome se inspira nos chamados Círios da mesma devoção em Portugal. O primeiro Círio de Belém, ocorrido em 1793, revive o mito de origem da devoção nessa cidade, fato que se mantém até os dias de hoje. Segundo o mito, a imagem encontrada por Plácido José de Souza, morador das cercanias da cidade, insistia sempre em retornar ao local do achado7 7 Vale lembrar que o devoto responsável pelo início da devoção a Nossa Senhora de Nazaré, Plácido José de Souza, não é uma lenda ou mito. Ele efetivamente existiu e devia ser um dos muitos “donos de santo” no Brasil dessa época. São poucos os registros históricos existentes a respeito desse personagem. Para uma notícia mais completa sobre Plácido, o homem que encontrou a Santa, ver Maués (2009). . O governador do Estado do Grão-Pará (seu nome não é mencionado no relato), não acreditando no que se dizia, mandou recolher a imagem à capela do palácio do governo, construção do século XVIII, que até hoje permanece (como Museu do Estado do Pará), deixando soldados a vigiando. A despeito disso, à noite, a Santa escapou da vigilância e, por seus próprios meios, retornou “caminhando” por vários quilômetros, até voltar ao local do achado. Com esse “fato”, todos se convenceram de que ela “não queria” sair de lá e, por isso, à margem do igarapé Murutucu, Plácido construiu uma ermida, onde a imagem passou a ser cultuada. Francisco de Souza Coutinho, governador do Estado do Grão-Pará, que organizou o primeiro Círio, de comum acordo com as autoridades eclesiásticas, ordenou que, na véspera, a imagem fosse conduzida de volta à capela do palácio. No dia seguinte, formou-se a grande procissão, em que Nossa Senhora foi conduzida, triunfalmente, à sua ermida, transportada ao colo do arcipreste José Monteiro de Noronha que, na época, governava o bispado, devido à ausência temporária do bispo do Grão-Pará, que havia sido chamado a Portugal para ser substituído8 8 Sobre esses acontecimentos históricos, ver especialmente os estudos acima citados: Coelho (1998); Dubois (1953); Mombelli (1976); Maués (2009); e Rocque (1981). .

Esse modelo do ritual – que revive o mito do achado – mantém-se até hoje: uma procissão noturna, na véspera, chamada de Trasladação, leva a imagem até a Catedral, que fica nas imediações do antigo Palácio. Ali ela permanece até a manhã seguinte, quando é transportada triunfalmente em sua Berlinda para a imponente Basílica-Santuário de Nazaré, que hoje se ergue no local do achado. Assim, com pequenas alterações, o ritual do Círio revive o mito do achado e das “fugas” da santa. Após esse belo ritual ocorre o Almoço do Círio. É esse Almoço, elemento essencial do conjunto de rituais da devoção, que pretendo a seguir descrever e interpretar.

Religião, festa e comida

O Círio, em Belém, que atualmente ocorre sempre na manhã do segundo domingo de outubro, faz parte de um conjunto de rituais em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré, que se realizam desde muito antes e se prolongam ainda por vários dias após essa imponente procissão. O Almoço do Círio, realizado logo após a procissão, é parte integrante do Círio e do conjunto da própria Festa. Esta – a Festa de Nazaré – se prolonga após o Círio por duas semanas como Festa de Arraial (hoje relativamente bem reduzida, em relação a anos anteriores) e através de celebrações litúrgicas e outras atividades rituais promovidas pela Diretoria da Festa e pela Paróquia de Nazaré. Ela se encerra com o “Recírio”, pequena procissão de curto trajeto que ocorre na manhã da quarta segunda-feira de outubro.

Realizei trabalho de campo durante vários anos, começando em 1975, na cidade de Vigia, onde se originou a devoção no Pará, e minhas observações diretas (às vezes também participantes) têm ocorrido mais em Belém. Nos últimos anos, minhas pesquisas estiveram voltadas em parte para o Almoço do Círio. Quanto a este, além de participar em minha própria residência (desde a sua preparação, de que compartilho também há muitos anos), entrevistei pessoas que não participam de meu próprio círculo familiar, especialmente sobre o abate dos animais ou sua compra nos supermercados e nas feiras. Tudo o que vai dito neste artigo, que constitui breve etnografia voltada especialmente para o Almoço do Círio em Belém, resulta em grande parte dessa observação direta e/ou participante e das entrevistas realizadas. Tive também há alguns anos a experiência de atuar na pesquisa sobre o Círio, assessorando a equipe de pesquisadores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em Belém, participando inclusive da redação do relatório final que resultou no reconhecimento do Círio de Nazaré como patrimônio nacional imaterial na categoria das celebrações religiosas.

Não há religião sem festa, nem festa sem comida de festa. A comida da festa, por sua vez, implica em sacrifício, de várias formas. Desde o famoso potlatch dos índios da Colúmbia Britânica, passando pelos rituais de iniciação das diferentes culturas, entre eles as festividades na infância e na adolescência, para mencionar só estas, os diversos tipos de matrimônio – na infância, na adolescência, na maturidade –, as trocas rituais (que também envolvem trocas econômicas e de comunicação) implicam ainda algumas formas de atos sacrificiais. Tomemos aqui duas espécies de atos rituais tão comuns no Brasil e em outras sociedades ocidentais como as que ocorrem em diferentes nações latino-americanas, onde estão presentes o catolicismo e as religiões de matriz africana, na maioria das situações envolvendo diversas formas de sincretismo. As oferendas aos deuses e às entidades sobrenaturais (semidivinas, ou mediadoras entre deuses e seres humanos) se fazem em rituais festivos como cultos, cerimônias, festas de arraial, festas de terreiro, missas, novenas, procissões, incluindo todas elas algum tipo de refeição, onde se partilha e se troca várias espécies de comidas e bebidas (algumas que podem ser pensadas como enteógenos – por exemplo, o pão e o vinho, ou similares, em rituais cristãos de diferentes igrejas e seitas – capazes de criar relação mística altamente significativa de poderosa aproximação estabelecida entre humanos e divindades).

A comensalidade

Entramos aqui no campo da comensalidade, fenômeno muito importante não só para a antropologia, como para várias outras áreas de conhecimento. Não podendo me alongar nessa temática, escolho uma formulação apenas em área distinta das ciências sociais: o turismo. Trata-se de pesquisa recente publicada em 2015 sobre a temática da comensalidade no Brasil, a partir do estudo de 32 teses de doutorado e dissertações de mestrado com base em registros existentes no Banco de Teses e Dissertações da CAPES. Essa visão um tanto panorâmica mostra “que a comensalidade pode ser vista em diversas formas, abordando situações específicas, em diferentes grupos étnicos, em várias situações religiosas, e abordando também o tema da nutrição e em outras situações de encontros de familiares, amigos ou mesmo desconhecidos” (Soares e Camargo 2015SOARES, Frederico Cid e CAMARGO, Luiz Octávio de Lima. (2015), "Produção Científica sobre Comensalidade no Brasil: Estudo Documental de Teses e Disertações (1997-2011)". Rosa dos Ventos - Turismo e Hospitalidade, vol. 7, n° 2: 191-204.:191). Uma das constatações desse artigo foi que as áreas da “Antropologia, Nutrição, Turismo e Teologia são as principais áreas do conhecimento mobilizadas para esses estudos” (Soares e Camargo 2015:194). Além disso, “o ritual da comensalidade em diferentes etnias foi objeto de quatro dissertações. O referencial teórico dos trabalhos é predominantemente de natureza socioantropológica, tendo base em autores que estudam sociabilidade e alimentação” (Soares e Camargo 2015:194).

Entre os trabalhos mais importantes nos quais se fundamentam esses estudos estão os clássicos: Lévi-Strauss (2004LÉVI-STRAUSS, Claude. (2004), O cru e o cozido. Mitológicas 1. São Paulo: Cosac Naify.), Mauss (2003MAUSS, Marcel. (2003), "Ensaio sobre a dádiva". In: ______MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac e Naify.), Cascudo (2011CASCUDO, Luís da Câmara. (2011), História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global. [1967/1968]) e Flandrin e Montanari (1998FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. (1998), História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade. [1996]). Cito um pequeno trecho desse artigo que destaca parte importante das suas constatações, formulado a partir “da análise dos resumos e da leitura integral de vinte e oito desses estudos”:

Quanto às temáticas abordadas dentro dessa categoria, verifica-se que as pesquisas estão centradas na questão da identidade e dos rituais que cada etnia utiliza. A partilha do alimento com os membros das comunidades ficou evidenciada através dos estudos realizados. Apesar de os estudos abordarem comunidades completamente diferentes, como índios, descendentes de japoneses e nativos do litoral, fica evidente que a comensalidade está presente nos grupos estudados, não sendo absurdo falar-se da mesma como um ritual humano universal. Os momentos mais marcantes de comensalidade verificados acontecem tanto no cotidiano como em festas e celebrações religiosas dos grupos (Soares e Camargo 2015:195).

Um dos exemplos mais importantes da aproximação entre religião, festa e comida surge de forma muito conspícua no Círio de Nazaré em Belém (e em outras cidades brasileiras), onde o Almoço/banquete do Círio pode ser também pensado, como aqui proponho, na condição de banquete sacrificial. É, evidentemente, um ritual dentro do ritual, mas também extremamente significativo, cuja análise em termos de sacrifício não tem sido feita na literatura antropológica brasileira, na qual predomina, a partir do livro clássico de Isidoro Alves, O Carnaval Devoto (1980), a mescla entre festa profana e religiosa, nos termos de Bakhtin (2010), atualizada na tradição brasileira pelo relevante e não menos brilhante esquema teórico proposto por Roberto DaMatta (em quem parcialmente se inspira Isidoro Alves) no livro Carnavais, Malandros e Heróis, ao tipificar os grandes rituais brasileiros, tomando como paradigmas o Carnaval, o Sete de Setembro e a Festa de Santo. Esta última inclui os aspectos da inversão – típicos do primeiro – e da formalidade, característicos do civismo e da exacerbação mais formal do sagrado, próprios do Dia da Pátria e das liturgias oficiais do catolicismo (a respeito, ver Alves 1980, 2005; DaMatta 1979; e Bakhtin 2010BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. (2010), Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec.).

Aqui, neste artigo – sem desconhecer também as diferenças fundamentais de crenças e práticas –, a preocupação é analisar o Almoço do Círio como rito sacrificial, que ocorre não só no catolicismo, mas também em outras formas de religião, como as acima mencionadas, as religiões de matriz africana no Brasil e em outras partes do continente americano, ou os cultos sincréticos cristão-africanos, como acontecem em vários países da África sul-saariana. Adoto como principal referência teórica os clássicos de Mauss e Hubert (2005 [1899]), de Van Gennep (2011VAN GENNEP, Arnold. (2011), Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes. [1909]) e de Turner (1974 [1969], 2008 [1974]), que tratam sobre a dádiva, o sacrifício entre os antigos hindus e judeus e, também, sobre o ritual e a ação simbólica nas sociedades humanas.

O ritual do sacrifício na religião

Vale ressaltar a importância do ritual do sacrifício, em muitas formas de religião, incluindo o cristianismo e, no Brasil e na África, tanto o que se realiza em rituais mais sublimados como aqueles que ocorrem explicitamente, com a morte pelo sangramento de animais não humanos (as vítimas), os quais serão em seguida preparados de acordo com preceitos especiais e consumidos ritualmente pelos deuses e pelos participantes do evento (fiéis, sacrificantes e sacrificadores). Há também sacrifícios incruentos, como a oferta de frutos e outros alimentos, assim como a queima de objetos como o tabaco e o incenso e muitas outras formas. Num exemplo específico, da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), no Brasil, é muito claro o sacrifício do dinheiro que, na lógica da teologia da prosperidade, pode ser doado em quantidades significativas, transformando o Deus cristão em credor, do qual se espera a retribuição ou pagamento adequado da dívida9 9 Temos aqui o exemplo de outra ética, que não é mais aquela tornada célebre por Max Weber, a ética calvinista, mas sim a ética arminiana. Sobre isso cito um dos mais importantes antropólogos do cristianismo (Coleman 2004). Quanto à interpretação do sacrifício do dinheiro (dentro dessa ética), ver a dissertação de mestrado de Campos (2014). .

No catolicismo, o tema central dessa forma de ritual tem a ver com a renovação do sacrifício de Cristo na cruz, através da transubstanciação, na missa presidida pelo sacerdote (que revive de forma ritual a Santa Ceia e o próprio sacrifício). O sacerdote católico, ao pronunciar as palavras rituais eficazes e adequadas – acompanhadas por gestos ad hoc –, transforma o pão e o vinho no corpo e no sangue do mesmo Cristo, revivendo seu sacrifício na cruz e ao mesmo tempo permitindo que os devotos (e ele próprio, sacerdote) possam também ingerir literalmente essa comida ritual num sacrifício privilegiado. Um sacrifício em que os participantes incorporam esses dois enteógenos (o pão e o vinho consagrados através de sua transubstanciação), estabelecendo assim uma união mística real com o próprio Deus. Nas igrejas protestantes o mesmo ritual pode ocorrer, como no caso, por exemplo, da Assembleia de Deus, em que os fiéis também ingerem o pão e o suco de uva (representando o vinho), mas não se renova o sacrifício de Cristo como uma realidade, somente como forma de simbolismo.

Uma das descrições mais enfáticas sobre o ritual do sacrifício na África, realizado na igreja sionista Bethlehem de Moçambique – liderada pelo bispo John –, nos é apresentada pelo importante antropólogo brasileiro de origem britânica Peter Fry. O sacrificador é o bispo dirigente da igreja. Transcrevo a seguir uma pequena parte do artigo desse antropólogo:

Lá pelas 4 horas [da madrugada], um tanto de areia é trazido e colocado no centro do espaço em frente ao bispo que, com seu bastão, forma sete compartimentos, cada um com uma cavidade. Ato contínuo, um enorme e fedorento bode é arrastado, contra a sua vontade, para o espaço entre o bispo e o altar de areia. O bispo convoca Manuel [o paciente que está ali para ser curado de sua infertilidade] e pergunta a razão da cerimônia. Manuel aparenta certa perplexidade e permanece sem palavras. Finalmente, balbucia apenas que está com “problemas” [...]. Nesse momento, os donos da casa são chamados para o centro, entre o altar e a mesa do bispo, onde seguram o bode pelos chifres. O bispo corta o pescoço do animal [...] (Fry 2000:68).

Peter Fry sente-se “transportado para dentro do Antigo Testamento que parece uma etnografia da situação” por ele observada:

O bicho é suspenso sobre o altar de areia e o sangue respinga nos sete buracos previamente preparados. O restante do sangue é despejado em uma bacia de plástico verde e misturado com água e sal. A dança continua, e o canto também, tudo muito bem-humorado. Depois, o superintendente da igreja, auxiliar imediato do bispo, leva uma outra bacia com água, sal, cinzas e sangue. Passa de casa em casa em volta da área, lançando o líquido com a corda que tira da sua cintura. Enquanto isso, o bispo me explica que a corda na cintura espanta os maus espíritos, e é por isso que os padres a usam também. Quando chegamos à casa principal, uma senhora da igreja é dramaticamente possuída por um espírito, que, fico sabendo depois, é do bisavô de Manuel [...]. O bispo acalma o espírito e avisa que estão sendo tomadas as medidas necessárias para o seu apaziguamento. Em seguida, um fogo é preparado em cima do altar de areia e o leitor retoma o Levítico [...] O bispo segue os passos da receita bíblica e a fumaça sobe até o céu estrelado. Quando não há mais fumaça, o bispo cobre o restante do fogo com uma lata. O que sobra do bicho vai para as panelas, onde será cozido pelas mulheres e oferecido aos fiéis para compensar essa noite de tanto “trabalho” (Fry 2000:69).

O Almoço do Círio como ritual de sacrifício

No caso do Almoço do Círio, embora nesse banquete se consuma mais de um animal, não existe evidentemente semelhança completa com o que é acima descrito por Peter Fry. O Almoço é ao mesmo tempo o banquete de confraternização e uma espécie de comunhão entre familiares, amigos e convidados com o sagrado, representado pela figura de Maria de Nazaré, a santa cuja imagem terminou naquela manhã a sua peregrinação ritual pelas ruas da cidade. Nesse Almoço ocorre uma espécie de comunhão simbólica do cristianismo católico com o consumo conspícuo de várias iguarias da culinária paraense, cuja descrição será feita mais adiante. É, no entanto, a consumação do sacrifício a que estou me referindo, sem que todos ou até nenhum dos participantes tenha tido a vivência mais estrita do abate dos animais que estão sendo consumidos, além dos alimentos de origem vegetal.

Antes de prosseguir nesta breve descrição do banquete sacrificial do Almoço do Círio, creio ser necessário citar as palavras de Marcel Mauss e Henry Hubert sobre o “esquema do sacrifício”:

Evidentemente, não podemos pensar em traçar aqui um esquema abstrato do sacrifício que seja completo o bastante para convir a todos os casos conhecidos, pois a variedade dos fatos é demasiado grande. Tudo o que é possível fazer é estudar determinadas formas de sacrifício, suficientemente complexas para que todos os momentos importantes do drama estejam nelas reunidos e suficientemente conhecidas, a fim de que uma análise precisa possa ser feita. O sacrifício que nos parece melhor responder a essa condição é o sacrifício animal védico [...]. Sendo portanto o sacrifício que melhor se presta à pesquisa que queremos empreender, dele faremos a sua base, agrupando em torno dessa análise outros fatos tomados seja da própria Índia, seja de outras religiões (Mauss e Hubert 2005:25-26, grifo nosso).

E aqui uma observação muito importante dos dois autores:

O sacrifício é um ato religioso que só pode se efetuar num meio religioso e por intermédio de agentes essencialmente religiosos. Ora, antes da cerimônia em geral, nem o sacrificante, nem o sacrificador, nem o lugar, nem os instrumentos, nem a vítima têm esse caráter no grau que convém. Assim, a primeira fase do sacrifício tem por objeto conferir-lhes esse caráter. Eles são profanos, e é preciso que mudem de estado. Para tanto, são necessários ritos que os introduzam no mundo sagrado e ali os comprometam mais ou menos profundamente, conforme a importância do papel que desempenharão a seguir. É isso que constitui, segundo a expressão mesma dos textos sânscritos, a entrada no sacrifício (Mauss e Hubert 2005:25-26).

Essa atenção para a variedade das formas de sacrifício é muito bem-vinda a meus propósitos analíticos. O sacrifício ritual do Almoço do Círio é muito especial, principalmente pelo fato de que seus participantes e celebrantes, mesmo se considerando obrigados (até certo ponto) a dele participar, não têm consciência explícita de que estão praticando uma forma de ritual do sacrifício, embora prazeroso. Eles são profanos, e é preciso que mudem de estado. Para tanto, são necessários ritos que os introduzam no mundo sagrado e ali os comprometam mais ou menos profundamente, conforme a importância do papel que desempenharão a seguir. É isso que constitui, segundo a expressão mesma dos textos sânscritos, a entrada no sacrifício.

Um rito de passagem, que prepara o sacrifício

Passam, no entanto, sobretudo as donas de casa que presidem mais tarde esse rito sacrificial por um ritual anterior de mudança de status – ou rito de passagem, nos termos de Van Gennep (2011) e de Turner (1974, 2008) –, incluindo aqui a communitas, que é a visita anterior ao domingo do Círio de Nazaré da imagem peregrina de Nossa Senhora, que percorre todas as casas de famílias católicas, na preparação do ritual mais importante do Círio. Essa visita é feita por grupos de devotos e devotas que praticam a oração do terço (comparável a um possível mantra indiano) diante da imagem “peregrina” da santa. Em seguida, as donas de casa oferecem aos participantes um pequeno lanche (frequentemente com doces, salgados e refrigerantes), durante o qual se procede a confraternização entre vizinhos, amigos e parentes. E quando todos se retiram da casa onde se fez a oração, a imagem peregrina permanece ali a fim de “dormir” naquela residência (abençoando-a) para, no dia seguinte, ser levada de novo em pequena procissão para outra casa, onde se repete o ritual.

É assim que em todas as paróquias de Belém e de municípios vizinhos se prepara o ritual religioso mais completo do Círio e do Almoço do Círio, que atinge seu auge no segundo domingo de outubro. E é também dessa forma, nos dizeres de Mauss e Hubert (2005:26), que ocorre a mudança de status que permite às donas de casa e aos demais participantes sua introdução e purificação no mundo sagrado para poderem, assim, desempenhar seu importante papel no rito sacrificial do Almoço do Círio. Trata-se, também, de um rito de passagem, nos termos de Van Gennep (2011) e de Turner (1974, 2008), que faz com que seus participantes adquiram novo status, preparando-se para o ritual mais relevante do Almoço do Círio, no segundo domingo de outubro.

Esse ritual da visita da imagem da santa às casas das devotas representa uma forma de “purificação”, que atinge todas as donas de casa e as prepara no sentido de realizar a mudança necessária de status. Não só as donas de casa, mas também seus familiares, inclusive maridos e filhos (em alguns casos, eventuais sacrificadores), passam por esse ritual da visita e da permanência da imagem em suas casas por toda uma noite, o que a todos purifica, depois das orações do terço e da leitura da palavra (um ou mais trechos significativos da Bíblia): sendo todos “profanos”, eles mudam de estado, tornando-se de alguma forma “sagrados”, o que lhes propicia a “entrada no sacrifício”. A partir desse momento, as donas de casa, já purificadas para sua tarefa, preparam-se para organizar todo o conjunto do ritual. Caso ainda não tenham feito, muitas delas vão pessoalmente – ou acompanhadas pelos maridos, em certos casos – aos supermercados, às feiras ou às mercearias, para comprar as bebidas e todos os demais ingredientes (animais e vegetais) necessários ao banquete ritual. E, se for preciso, os animais criados ad hoc para esse banquete serão também sacrificados, de preferência pelos maridos e filhos (que também já foram purificados pela visita da santa para poderem assumir o papel de sacrificadores).

Na maioria dos casos as donas de casa sacrificantes não participam da procissão do Círio, embora assistam pela televisão o imenso desfile ritual – naquilo que podem, pois estão excessivamente ocupadas com a preparação do almoço. A casa vai se enchendo de convidados, à medida que o Círio avança e, principalmente, quando este se encerra. E então começa o almoço em cada uma das milhares de casas que, com isso, completam o evento do Círio, com um forte diálogo sobre ele, alimentado principalmente por aqueles que estiveram há poucas horas na imensa procissão. Mas não se fica só nisso, porque o diálogo é muito mais prolixo e variado, entrando pela tarde e, algumas vezes, chegando até à noite (quando se come as sobras e se bebe ainda as bebidas que restaram). O ritual encerra-se de fato somente à noite, quando todos os convidados retornam às suas casas. Em algumas situações, sobretudo nas casas de pessoas com maiores recursos financeiros, sobram partes das comidas servidas no Almoço do Círio, que são consumidas nos dias subsequentes, de acordo com sua quantidade, não mais havendo os aspectos rituais do sacrifício ocorrido nos dias anteriores.

Entre os animais abatidos estão principalmente o pato, que pode ser substituído por outros, como o peru ou o frango; mas também o bacalhau, peixe importado da Europa, através de Portugal e já salgado; e o porco, que pode ser consumido assado, mas que fornece ingredientes fundamentais de um dos pratos essenciais do Almoço, que é a maniçoba. Embora de forma não necessariamente consciente, todos esses animais são oferecidos em sacrifício no Almoço do Círio, mas alguns elementos vegetais são incorporados, como a maniva (a folha da mandioca “braba”), o tucupi (suco extraído da mesma mandioca antes da preparação da farinha seca10 10 No estado do Pará consome-se dois tipos de farinha: a farinha d’água, que é fabricada da raiz da mandioca fermentada em água, e a farinha seca, quando ela é torrada no forno depois da extração do tucupi, através de um instrumento de palha chamado “tipiti”. Esse mesmo tucupi é utilizado na preparação do pato (frango ou peru) no tucupi, indispensável no Almoço do Círio. , que é também consumida no Almoço), o jambu e a pimenta (de preferência a malagueta, a mais “queimosa” de todas).

Hoje a maioria desses componentes animais e vegetais são comprados em feiras e supermercados. Num passado não tão distante, quando não havia as facilidades de compra desses animais já abatidos, eles eram sacrificados na própria casa onde se concretizava o sacrifício ritual. Ainda hoje é possível ocorrer esse abate dos animais e mesmo o cultivo doméstico de alguns ingredientes vegetais como o jambu e a pimenta malagueta, quando o Almoço ocorre em casas de moradia que possuem jardins e quintais, que até então não deram lugar a edifícios de apartamentos. Os animais são comprados com antecedência suficiente para se poder “criá-los” por algum tempo nos quintais das residências em certas situações, ou são criados desde pequenos sobretudo em casas da periferia das cidades (incluindo Belém e municípios próximos) a fim de serem abatidos nas vésperas do Círio para poderem participar do rito sacrificial do Almoço.

Vivenciei pessoalmente esse sacrifício há vários anos, em minha própria família, e observei mais recentemente tal ritual em algumas casas de devotos. Depois de mortos a golpes de facas, eles passam a ser preparados pelas mulheres (especialmente as “donas de casa”) que, além de poderem ter sido autoras do sacrifício (“sacrificadoras”), são também as que dirigem todo o processo culinário (às vezes com apoio de trabalhadoras domésticas e/ou de familiares, em geral igualmente mulheres). Não há, porém, qualquer manifestação explícita e/ou consciente do papel ritual que podem representar, ao mesmo tempo como sacrificadoras e/ou sacrificantes nesse ritual tão conspícuo. O que, a meu ver, não anula a existência concreta do rito sacrificial que é, também, como foi dito, um importante rito de passagem, nos termos de Van Gennep (2011), Mauss e Hubert (2005) e Turner (1974, 2008).

Um ritual dentro do ritual

Transcrevo agora parte do Dossiê do IPHAN – de cuja redação participei – publicado em livro sobre o inventário do Círio de Nazaré visando o reconhecimento dessa celebração religiosa como patrimônio cultural brasileiro, quando trata a respeito do Almoço do Círio11 11 Os outros autores foram Márcio Couto Henrique (historiador e antropólogo, membro da equipe de pesquisa) e Maria Dorotéa de Lima (coordenadora do IPHAN no estado do Pará, arquiteta e antropóloga). :

Tão logo acaba a procissão, com a chegada da imagem da santa na praça Santuário, em frente à Basílica de Nazaré, as famílias dos devotos se reúnem nos lares para uma grande confraternização e também para saborear os deliciosos pratos típicos da cozinha regional paraense, principalmente o pato-no-tucupi e a maniçoba. Essas comidas expressam uma identidade cultural que o paraense faz questão de exibir, especialmente ao visitante que vem de outros lugares, que poderá ser convidado, por alguma família, para participar do Almoço.

No Almoço do Círio percebe-se certa continuidade de algumas relações encontradas na procissão principal, como formalidade e informalidade, sagrado e profano, público e privado. Os conflitos familiares também se fazem presentes no Almoço, apesar do clima de confraternização.

[...]

Em função do elevado preço do pato, muitas famílias trocaram-no por frango, porco ou mesmo pelo peru-no-tucupi, o “pato-no-tucupi genérico”, como dizem. Mas, para os devotos, a substituição gera conflitos com a tradição como nos comentários do tipo “Olha, na casa do fulano era pato mesmo! Era verdadeiro o pato-no-tucupi”. Criar o pato tornou-se uma atividade arriscada, pois é grande a possibilidade da ave ser roubada na época do Círio. Uma mulher já chegou a guardar um pato no banheiro, com medo de que fosse roubado. A sina dos patos no Círio já foi motivo até de charges publicadas em jornais, com o título de “paticídio” (IPHAN 2006IPHAN. (2006), Círio de Nazaré (Dossiê IPHAN). Rio de Janeiro: IPHAN.:53).

O texto em questão sugere uma análise que me conduz à interpretação do Almoço do Círio também como um “paticídio”, antiga expressão bem significativa que foi forjada no século XIX e retomada no Dossiê do IPHAN, que hoje faz ligação intencional com o conhecido artigo de Robert Darnton, “O grande massacre de gatos” (Darnton 1986DARNTON, Robert. (1986), O grande massacre de gatos e outros episódios da história francesa. Rio de Janeiro: Graal. ). Em comunicação pessoal do historiador Aldrin de Moura Figueiredo (em 20/07/2015) – que aqui reproduzo parcialmente –, a expressão paticídio foi usada naquele século de forma mais ampla, referindo-se ao consumo dessa ave na ocasião do Círio e em outros momentos festivos, o qual era realizado dentro de ritual que remonta a mais de um século e como um dos mais importantes pratos da culinária regional. Esse historiador, em conferência a respeito do tema, foi quem estabeleceu a relação do “paticídio” da época com o artigo de Darnton. Mais tarde, presumíveis excessos ocorridos nesses rituais passaram a ser proibidos pelas autoridades civis e eclesiásticas, mas a iguaria, como mostra o Dossiê do IPHAN, não deixou de ser consumida, mesmo que de forma modificada, substituindo-se o pato pelo frango, pelo porco ou pelo peru (embora se mantendo o pato como uma espécie de ideal ou “sonho de consumo”). Esses animais são, portanto, sacrificados simbolicamente, mesmo que não tenham sido imolados pessoalmente pelos sacrificantes (com ênfase especial às donas de casa devotas de N. S. de Nazaré, ou até mesmo não devotas, mas seguidoras da tradição).

O abate dos animais e a preparação do alimento

Como também podemos ler no dossiê do IPHAN, na maioria dos casos esses animais são abatidos em série, por empresas especializadas, industrializados e comprados nos supermercados, mas alguns deles são ainda criados in natura e, por isso, às vezes batizados como “caipiras” (isto é, criados de maneira tradicional sem a utilização de alimentos industrializados). Todos podem ser pensados como animais sacrificados – embora nem sempre de forma consciente e intencional – para serem oferecidos como dádiva à mãe de Deus, homenageada no seu dia principal pelos participantes do Círio. Além disso, há também o sacrifício “monetário”, pois tal banquete é dispendioso e se torna muito pesado entre devotos mais pobres, naquilo que ainda se poderia chamar pela expressão tão antiga de “paticídio”, e mais ainda, já que no Almoço do Círio podem estar presentes outras iguarias, tais como peixes – entre eles o bacalhau, um dos preferidos para essa cerimônia tão importante. Igualmente presente, outro prato típico do Pará e de outras partes da Amazônia, que se encontra inclusive em alguns lugares da Bahia, na periferia de Salvador, em Santo Amaro da Purificação e em outros lugares do interior desse estado, sendo uma comida que também existe na África (em vários países e com outros nomes), mas que, no Brasil, se chama maniçoba12 12 Comunicação pessoal feita pelo antropólogo Kabengelê Munanga, que é um grande apreciador dessa iguaria, em uma de suas várias visitas a Belém (onde sempre consome a maniçoba em casas de amigos e/ou em restaurantes), em 15/04/2015. .

Tanto a maniçoba como o pato-no-tucupi (e suas variantes) podem ser pensados como manjares sofisticados pelos seus ingredientes e formas de preparo, combinando alimentos de origem animal e vegetal, a que se juntam processos culinários cuja realização envolve muito esforço e perícia, para que seja possível obter iguarias cujo sabor é capaz de encantar o paladar de todos os participantes do ritual. Não é o caso aqui de oferecer receitas, mas destacar alguns aspectos essenciais desse processo culinário – que conheço há muitos anos – e me foi relatado por vários interlocutores (de ambos os sexos) durante minha pesquisa de campo. O pato (ou a ave substituta, seja o frango, seja o peru) deve ser inicialmente “aferventado” (primeiro processo de transformação do cru ao cozido) e, depois, assado (segundo processo, também essencial), para em seguida ser cortado em pedaços que serão então cozidos de novo mergulhados no tucupi (sumo da mandioca, de cor amarela, cujo veneno desaparece com a fervura), com o que o processo quase se completa, mas não deixando de ter, entre os temperos devidos, um que é essencial: o jambu (folha cujo gosto esquisito provoca sensação diferente, mas muito apreciada, que é um misto de algo semelhante a leve analgésico e também que provoca pequeno tremor nos lábios de quem o prova).

Quanto à maniçoba, uma simplificação permite que seja comparada – embora de modo muito impróprio – ao soul food dos negros americanos, ou, mais comumente, à feijoada carioca. Na verdade não é isso, embora nela possam estar presentes ingredientes dessas duas formas de preparo do feijão. O principal ingrediente da maniçoba é a maniva, isto é, a folha da mandioca brava (o que a aproxima, de alguma forma, do pato-no-tucupi). Diz-se às vezes, também erroneamente, que a maniva deve ser fervida por dias seguidos para dela retirar o veneno (que está igualmente presente no tucupi). Mas esse veneno – o ácido cianídrico, só existente em quantidade significativa na chamada “mandioca brava” – é volátil e facilmente com pequena fervura pode ser retirado. A maniva é fervida durante dias seguidos como parte indispensável do ritual de preparo, também porque a folha deve ser bem cozida para servir ao consumo alimentar. E a ela se vai acrescentando, a cada dia, enquanto ferve, os demais ingredientes da iguaria: toucinho, pé de porco, paio, bucho (dobradinha), charque e outros, que lhe dão um sabor tão esquisito quanto diferente da feijoada e de qualquer outro prato.

Esses dois pratos são certamente “bons para comer”, mas principalmente – para meus propósitos neste artigo – “bons para pensar”, como diria Lévi-Strauss. Nesse Almoço, como aparece no Dossiê do IPHAN, podem ocorrer fenômenos aparentemente contraditórios, isto é, a communitas presente nos rituais (Turner 1974) inclui um misto de formalidade e informalidade, a relação entre o sagrado e o profano, como também a relação entre o público e o privado. Uma forma de potlatch? Como entre os habitantes pré-colombianos da Colúmbia Britânica (Tlingit, Haida, Tsimshian, Kwakiutl), temos aqui o ritual em que os donos da casa oferecem uma festa especial e sagrada doando presentes, sob a forma de comida e bebida, mas não recebem presentes em troca, no mesmo momento. Claro que a família que oferece o Almoço do Círio não se desfaz de todos os seus bens, mas a generosidade com que recebem seus familiares e convidados, inclusive aqueles que vêm de outras cidades, estados e países, é a mais conspícua possível. As dádivas são as mais abundantes, evidentemente dependendo não de uma generosidade exacerbada, que está sempre presente, mas que encontra seus limites na condição econômica da família que oferece a festa, para si, para os parentes e amigos e para os estranhos, que podem ser convidados – por diferentes razões – a participar da festa13 13 No ano de 2010 tivemos em casa um convidado especial para o Almoço do Círio, o antropólogo José Rogério Lopes, que mais tarde publicou artigo em Religião & Sociedade sobre o Círio de Nazaré (Lopes 2011). Como o convite foi feito inicialmente por mim e como Rogério Lopes me entrevistou na ocasião, a recompensa maior que tive foi o fato de ele me homenagear, dedicando-me o artigo que foi publicado. .

Mas essa forma que se assemelha ao potlatch tem seus desdobramentos, pois muitos dos participantes que pertencem ao grupo dos convidados têm suas pretensões ou sonhos de “independência”, podendo, mais tarde – de acordo com suas próprias condições sociais, políticas e financeiras –, tornar-se, em algumas situações, organizadores de outros eventos, em anos subsequentes, multiplicando assim essa mesma forma de ritual. Isso pode relacionar-se a aspectos ligados ao dispêndio financeiro a ser praticado, pois nem sempre a obrigação ritual relacionada à generosidade pode ser cumprida por todos os bolsos, como exige o mesmo ritual. E, da mesma forma que em outros tipos de ritual, inclusive aquele da chamada Santa Ceia, em algumas denominações cristãs, inclusive do próprio catolicismo, por razões diversas – entre elas a possibilidade de levar o celebrante a tornar-se vítima do alcoolismo – uma parte do enteógeno (o vinho) a ser usado pode ser trocado, por exemplo, pelo suco de uva. Como no caso do Almoço do Círio, por outras razões, o pato pode ser trocado pelo peru ou mesmo pelo frango, por justificativa de natureza econômica ou de qualquer outra. Mas sempre a meta do banquete sacrificial tem como ideal o próprio pato, como na expressão transcrita no Dossiê do IPHAN: “Olha, na casa do fulano era pato mesmo!”.

O “paticídio” e o Almoço do Círio: um sacrifício ritual?

Trata-se de ritual da maior importância. Embora a expressão “paticídio” não possua hoje utilização popular, estando reservada somente a pequeno círculo intelectual de “devotos”, esse ritual tem uma força que se impõe e que está expressa também no dossiê do IPHAN na citação que aqui complemento: “É comum os devotos se referirem ao Almoço do Círio como o ‘Natal dos paraenses’. Alguns dizem que podem até deixar de fazer a ceia do Natal e a da Páscoa, mas nunca deixariam de fazer o Almoço do Círio” (IPHAN 2006:53). Essa expressão, como não poderia deixar de ser, não é vista com bons olhos pelas autoridades eclesiásticas católicas, pois, evidentemente, pela sua doutrina, o Círio não pode substituir o Natal (e muito menos a festividade pascal), mesmo que hoje – a partir do documento de Aparecida, aprovado na última reunião do Conselho Episcopal Latino-Americano e do Caribe (CELAM) –, a missão evangelizadora deva apoiar-se também nas devoções populares (Documento de Aparecida 2008DOCUMENTO DE APARECIDA. (2008), Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Brasília e São Paulo: Edições CNBB/Paulus/Paulinas, 6ª ed.).

Mas, como é bem sabido – e muitas vezes na sua formulação original durkheimiana –, a distinção entre sagrado e profano não tem significação tão precisa, mesmo que seja elemento essencial para essa tradição sociológica muito respeitável na formulação do conceito de religião (e também de magia). Muitas vezes o que é sagrado ou mais sagrado para o leigo católico não corresponde ao conceito teológico oficial. O mesmo se pode dizer do profano (Parker 1995PARKER, Cristian. (1995), "La Sociología de la Religión y la Modernidad: Por una revisión crítica de las categorías durkheimianas desde América Latina". Sociedad y Religión, vol. 13: 1-30.). Assim, o paticídio (em suas diversas formas), embora tendo sido rejeitado no passado pelas autoridades católicas, continua existindo, sublimado e ampliado, constituindo-se numa ceia ou sacrifício que pode representar, de certo ponto de vista – somado ao conjunto das celebrações nazarenas em Belém e em outras cidades –, um dos mais importantes rituais sacros do catolicismo popular amazônico e paraense, na condição, como propomos aqui, de um rito sacrificial.

Quem são os personagens fundamentais do “esquema do sacrifício”, nesse tão importante ritual doméstico que se segue, na maioria das casas dos devotos, assim que se encerra o grande ritual público do Círio de Nazaré, que acabou de percorrer – na manhã do segundo domingo de outubro, com sua multidão de devotos – as ruas da cidade de Belém? O “sacrificante”, aquele que “recolhe os benefícios do sacrifício ou se submete a seus efeitos” (Mauss e Hubert 2005MAUSS, Marcel & HUBERT, Henry. (2005), Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac e Naify.:25), pode ser pensado um tanto livremente também como a “coletividade”, no sentido de uma “família” (que se amplia mais ainda, pela participação de inúmeras famílias), e que se reúne com amigos e convidados para participar do banquete ritual. Diferentemente, porém, do esquema tradicional mais comum, em que a família “é representada por seu chefe”, há neste caso uma inversão de papéis, pois seu representante aqui é a mulher, a dona de casa, que preparou durante semanas o ritual e – muitas vezes, pelos seus encargos domésticos – nem sequer chegou a participar diretamente do ritual público do Círio, nas ruas de Belém. Isso porque ficou em casa organizando o Almoço, para poder de alguma forma participar do ritual maior da cidade, sem no entanto se afastar de sua função sagrada de sacrificante, que preside o rito familiar, em sintonia com todos os outros milhares de ritos familiares sacrificiais que simultaneamente ocorrem na maioria dos lares da cidade.

Claro que não podemos ter aqui uma forma de sacrifício tal como nos é descrita por Mauss e Hubert – uma forma modelo –, inteiramente de acordo com o que aparece nos antigos textos sânscritos e judaicos aos quais fazem referência. No entanto, os próprios autores nos alertam que “deve-se chamar ‘sacrifício’ toda oblação, mesmo vegetal, em que a oferenda, ou uma parte dela, é destruída, embora o costume pareça reservar o termo apenas à designação dos sacrifícios sangrentos. É arbitrário restringir desse modo o sentido da palavra” (Mauss e Hubert 2005:18, grifo nosso). E, assim como aparece claramente no quarto capítulo da obra desses autores, o esquema do sacrifício pode variar de acordo com suas funções características.

A fórmula apresentada pelos dois sociólogos franceses é a seguinte: “o sacrifício é um ato religioso que mediante a consagração de uma vítima modifica o estado da pessoa moral que o efetua ou de certos objetos pelos quais ela se interessa” (Mauss e Hubert 2005:19). A vítima principal (como reconheciam os praticantes desse ritual no século XIX) é o pato, mas de fato ele não está sozinho, pois, além do pato-no-tucupi (ou seus similares), ali podem também estar a carne bovina ou suína e o peixe – especialmente o bacalhau –, já que este é comida típica paraense (e também carioca), herdada – insisto – da forte influência da culinária portuguesa, desde o período colonial (quando se originou a devoção e o Círio de Nazaré em Belém). Mas, antes de prosseguir, vale lembrar ainda o que dizem Mauss e Hubert a respeito do sacrifício cristão:

[É] um dos mais instrutivos que se pode encontrar na história. Nossos sacerdotes buscam, pelos mesmos procedimentos rituais, quase que os mesmos efeitos buscados pelos nossos mais remotos antepassados. O mecanismo da consagração da missa católica é, em linhas gerais, o mesmo que o dos sacrifícios hindus. Ele nos apresenta, com uma clareza que nada deixa a desejar, o ritmo alternado da expiação e da comunhão. A imaginação cristã se erigiu sobre planos antigos (2005:99-100)14 14 Remeto o leitor ao texto de Vergolino e Silva (1973). .

Tudo isso se refere, é claro, ao sacrifício presidido pelo sacerdote, que é o único autorizado a realizá-lo, especialmente no catolicismo. A mulher só pode ser sacerdotisa em algumas denominações evangélicas (cristãs não católicas), ainda assim enfrentando restrições, até mesmo naquela, a Igreja do Evangelho Quadrangular, que foi fundada por uma mulher. Entretanto, na Igreja Católica, que concede papel altamente relevante a Maria como medianeira entre os seres humanos e a divindade, a mulher pode ter um papel muito significativo em determinadas situações, como aparece claramente no Almoço do Círio que, se pensado como sacrifício ritual, tem como sacrificante a dona de casa que preside aquele sacrifício especial (no sentido de amor, caridade e de refeição ritual). Em tempos mais antigos, até o século passado e séculos anteriores, quando ainda não havia supermercados, podia ser a mesma mulher que abatia os animais a serem consumidos durante o Almoço, embora essa tarefa – como foi dito – também pudesse ser exercida pelo marido ou por um dos filhos do sexo masculino.

Considerações finais: o sacrifício nas práticas religiosas contemporâneas

Neste ponto, creio poder dizer que o Almoço do Círio, além de se enquadrar entre as práticas rituais contemporâneas, pode assemelhar-se a ritos sacrificiais no candomblé e na umbanda, embora nestes o sacrifício mantenha a consciência de sua função para os praticantes, envolvendo vários ritos, inclusive os de passagem, na iniciação de seus adeptos. Com algum exagero, posso ainda tentar compará-lo ao ritual descrito por Peter Fry em seu artigo acima citado, tratando a respeito do sacrifício de um bode em Moçambique – em performance que é acompanhada pela leitura de textos bíblicos do Primeiro Testamento –, cujo objetivo, como foi dito, é o de proporcionar a cura a um paciente que não consegue gerar filhos com sua esposa (Fry 2000FRY, Peter. (2000), "O Espírito Santo Contra o Feitiço e os Espíritos Revoltados: 'Civilização' e 'Tradição' em Moçambique". Mana, vol. 6, n° 2: 65-95.). Por outro lado, é possível ainda – de maneira mais discreta – comparar esses rituais com formas de sociação contemporâneas nos termos de Georg Simmel, estabelecendo relação entre alguns aspectos de sua obra que tratam de gratidão e reciprocidade, que o aproximam de Marcel Mauss, com sua teoria bem conhecida das “prestações totais” (Mauss 2003MAUSS, Marcel. (2003), "Ensaio sobre a dádiva". In: ______MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac e Naify.). Alguns desses aspectos estão presentes em artigo de Gabriel Cohn, quando trata de “diferenças finas”, numa comparação entre Simmel e Luhmann, onde enfatiza entre outros o tema da gratidão (dankbarkeit), trabalhado pelo mesmo Simmel num de seus artigos, que surge como essencial nas relações sociais (Cohn 1998COHN, Gabriel. (1998), "As Diferenças Finas: De Simmel a Luhmann". Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, n° 38: 53-62.; Simmel 1983SIMMEL, Georg. (1983), "Dankbarkeit: Ein soziologischer Versuch". In: ______SIMMEL, Georg. Schriften zur Soziologie. Frankfurt am Main: Suhrkamp. Wolff 1950WOLFF, Kurt H.. (1950), The Sociology of Georg Simmel. New York/London: Free Press.).

De outro modo, não lidando apenas com a noção de sacrifício, penso que vale relacionar tal ritual com as conhecidas análises empreendidas por Victor Turner em que se enfatiza o aspecto da communitas, que também está presente em todo o ritual do próprio Círio, como já foi assinalado em seu estudo clássico pelo antropólogo Isidoro Alves (Alves 1980ALVES, Isidoro. (1980), O carnaval devoto: um estudo sobre a Festa de Nazaré, em Belém. Petrópolis: Vozes.). Hoje, esse aspecto aparece desde pelo menos as primeiras romarias que o antecedem, como nas “peregrinações” da imagem da santa pelas casas dos devotos, na romaria fluvial, nas demais romarias pelos caminhos terrestres, na Trasladação que precede, na noite da véspera, o imponente cortejo do próprio Círio pelas ruas de Belém, ao qual se sucede este ritual aqui descrito e analisado do Almoço em família. Neste Almoço, posso dizer que a communitas, já presente em todos os momentos anteriores, agora na verdade se exacerba (Turner 1974TURNER, Victor. (1974), O Processo Ritual: Estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes., 2008______. (2008), Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana. Niterói: Eduff.).

Mas podemos ver também no Almoço do Círio elementos que expressam o simbolismo da comida nas sociedades contemporâneas, tal como nos coloca Marshall Sahlins em um dos capítulos de seu livro sobre a “razão cultural”, em oposição à chamada “razão prática” de uma certa interpretação inadequada do marxismo e também do capitalismo, ao tratar da cozinha (e da moda) na sociedade americana contemporânea (Sahlins 1979SAHLINS, Marshall. (1979), Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro: Zahar. [1976]). Temos aqui – em nosso país – uma forma de sofisticação culinária que expressa a visão de mundo e o ethos da sociedade paraense/amazônica e brasileira. Não me limitando apenas a essas questões, chamo atenção para os importantes estudos desenvolvidos no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, alguns deles publicados no periódico Horizontes Antropológicos (ver, por exemplo, Maciel 1996MACIEL, Maria Eunice. (1996), "Churrasco à gaúcha". Horizontes Antropológicos, vol. 1, n° 4: 34-48., 2001______. (2001), "Cultura e alimentação ou o que têm a ver os macaquinhos de koshima com brillat-savarin?". Horizontes Antropológicos, vol. 7, n° 16: 145-156.; Víctora & Maciel 2012VÍCTORA, Ceres Gomes &.MACIEL, Maria Eunice (2012), "'Como é possível que você tenha um PH.D e ainda não saiba cortar uma costela em pé?' Sidney Mintz e a Antropologia da Alimentação". Horizontes Antropológicos, vol. 18, n° 38: 373-379.).

Chegamos, finalmente, entre outros, ao bacalhau. Este não pode estar ausente daqueles Almoços do Círio que primam por ser completos e não sem razão, pois esse peixe é a marca europeia inconfundível: capturado no Mar do Norte, salgado em Portugal, vem nos referir à origem portuguesa e europeia da devoção e à nossa identidade rebuscada, que se funda, também, no Velho Mundo. O Almoço do Círio é um marcador de identidades, além de um rito de passagem e, ainda – na interpretação que aqui proponho –, um rito sacrificial. A identificação com Maria identifica-nos também como território e nos integra não só ao catolicismo tradicional: ele nos remete a uma espécie de fundação, a um alicerce. Tudo isso se encontra expresso nessa refeição-evento sacrificial, que não identifica só católicos, mas paraenses ou moradores do Pará que muitas vezes se dizem simbolicamente também filhos da Virgem de Nazaré.

Por outro lado, ao referir sem disfarces a “fábula das três raças” (DaMatta 1979DAMATTA, Roberto. (1979), Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar.), ele completa o circuito de uma identidade paraense e amazônica que a todos nos une – e também ao restante do Brasil –, mesmo que não sejamos de fato católicos, ou que somente desejemos “provocar” os católicos, como na frase às vezes escrita em faixas nas ruas de Belém por evangélicos radicais: “Eu vou na corda de Jesus”. Não obstante, embora não se possa declarar a existência bem delineada e definida de uma só identidade amazônica – como, por exemplo, a identidade gaúcha para o Rio Grande do Sul (Oliven 2006OLIVEN, Ruben George. (2006), A parte e o todo: A diversidade cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes, 2ª ed.) –, a festa de santo, própria de um catolicismo dominante na região, e, mais particularmente, o Círio e a Festa de Nazaré são marcadores importantes de uma identidade regional, que se unem a mais dois elementos, alternativamente presentes nas várias Amazônias brasileiras: a Cabanagem e o Encantado. A Cabanagem, que para o historiador Caio Prado Jr. foi a única insurreição brasileira do período regencial que chegou a dominar a capital de uma província brasileira (Belém), instaurando nela a sede do governo rebelde por vários meses (Prado Jr. 1988PRADO JR., Caio. (1988), Evolução Política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Brasiliense, 12ª ed.), deixou importante memória coletiva em várias áreas do interior paraense, que ainda hoje se mantém (Pantoja 2014PANTOJA, Ana Renata R. Lima. (2014), Terra de Revolta. Belém: Imprensa Oficial do Estado.). O Encantado, personagem mítico que não existe somente na Amazônia, mas também em outras partes do Brasil (como o rei Sebastião), tendo sua origem parcialmente em mitos europeus, que se fundiram às concepções indígenas encontradas pelos colonizadores portugueses, aparece sobretudo em áreas do interior sob forma de diferentes animais – principalmente aquáticos –, como a serpente (notabilizada nacionalmente pelo famoso poema do poeta gaúcho Raul Bopp, “Cobra Norato”) e o boto (a respeito do qual existem tantos relatos de mulheres por ele seduzidas) (Bopp 1994BOPP, Raul. (1994), Cobra Norato. Rio de Janeiro: José Olympio, 17ª ed.).

A festa de santo, especialmente o Círio, na qual não pode faltar a culinária mais característica, é também marcador importante dessa mesma identidade, mas que – além disso – nos une a todos os católicos do Brasil, mesmo que a padroeira oficial do país seja Nossa Senhora (da Conceição) Aparecida, cuja festa anual sempre coincide com o período do Círio e da Festa de Nazaré em Belém. Toda essa questão da identidade que aparece no Almoço do Círio pode ser fundamentada nos clássicos que tratam dessa importante temática, como também de autores mais modernos, retomando a mesma questão. Alguns aspectos dessa identidade podem ser caracterizados por aquilo que se convencionou chamar de identidade contrastiva, pois esta se constrói através do contraste com outras formas identitárias (ver, entre outros: Barth 1969BARTH, Fredrik (ed.). (1969), Ethnic Groups and Boundaries. Oslo: Universitetsforlaget.; Cardoso de Oliveira 1976CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. (1976), Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo: Livraria Pioneira Editora.; Carneiro da Cunha 2012CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (2012), Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª ed.; Fernandes 1988FERNANDES, Rubem César. (1988), "Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá!" In: R. C. Fernandes; R. DaMatta et al. (eds.). Brasil & EUA: Religião e Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Graal.; Hall 2004HALL, Stuart. (2004), A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP & A Editora.; Hall & Gay 1996HALL, Stuart & GAY, Paul du. (1996), Questions of Cultural Identity. Los Angeles/London/New Delhi/Singapore/Washington DC: SAGE Publications.). Tal identidade, construída através dos séculos, desde o ano de 1700, quando se deu, segundo a tradição, o “achado” ou a “aparição” da imagem de Nossa Senhora de Nazaré ao caboclo Plácido, se fortaleceu cada vez mais sobretudo – mas não só – entre os católicos paraenses. Até que, neste início do terceiro milênio, permanece cada vez mais forte, mobilizando não só os paraenses ou moradores do Pará, mas também atraindo romeiros de todas as partes do Brasil e do exterior. Não se trata apenas de uma devoção religiosa, mas igualmente de importante motivo para a prática do turismo religioso. Essa seria também outra forma de analisar o Círio de Nazaré que, a cada ano, cresce em número de participantes.

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Comunicação pessoal

Comunicação pessoal de Aldrin de Moura Figueiredo, 20 de julho de 2015.

Comunicação pessoal de Kabengelê Munanga, 15 de abril de 2015.

Notas

  • 1
    Comunicação apresentada originalmente durante as XVII Jornadas sobre Alternativas Religiosas da América Latina, no período de 11 a 14 de novembro de 2013, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil, no GT 7: “Religião, festa e comida”, coordenado pelas professoras Fátima Regina Gomes Tavares (UFBA), Léa Freitas Perez (UFMG) e Maria Eunice Maciel (UFRGS). Agradeço às coordenadoras do GT pela aceitação do trabalho e aos participantes do evento pelas críticas e observações feitas durante o debate, que me ajudaram a reformular o texto para publicação. Agradeço ainda a minha mulher, Maria Angelica Motta-Maués, também colega antropóloga, que leu este texto antes de ser enviado para publicação, oferecendo várias sugestões, ela que todos os anos prepara o Almoço do Círio em nossa casa, sendo portanto protagonista deste sacrifício ritual que relato, descrevo e analiso a seguir. Outro agradecimento deve ser feito aos pareceristas anônimos de Religião & Sociedade, que me permitiram a reformulação – a meu ver para melhor – da primeira versão apresentada a este periódico.
  • 2
    Nesse Seminário, chamou-me atenção uma das intervenções, feita por Roberto Motta, debatedor da segunda sessão, ao referir-se aos sacrifícios de animais que ocorrem nas religiões brasileiras de matriz africana. Seu comentário me fez lembrar o Almoço do Círio, do qual já havia participado tantas vezes, mas que até então não tinha ainda pensado em relacionar com a temática do sacrifício.
  • 3
    Pelos cálculos divulgados todos os anos na imprensa local sobre o número de participantes numa única manhã (no segundo domingo de outubro, quando acontece o imenso cortejo), ocorre a presença de mais de dois milhões de “romeiros”. Isso faz dessa procissão religiosa a maior do catolicismo brasileiro e, mesmo incluindo outros eventos religiosos – não somente católicos – em outras partes do mundo, uma das maiores. Segundo comunicação pessoal da jornalista americana Alexandra C. Ellerbeck (que esteve em Belém em outubro de 2014, obtendo dados para artigo sobre o Círio, publicado no Religion News Service, visto por ela como “o maior serviço de notícia religiosa nos Estados Unidos”), nas Filipinas existe uma procissão católica ainda maior do que o Círio de Nazaré em Belém. Consultando na internet o siteUOL. "Católicos vão à rua em maior evento religioso das Filipinas". TV UOL, 10 jan. 2013. Disponível em: http://tvuol.uol.com.br/video/catolicos-vao-a-rua-em-maior-evento-religioso-das-filipinas-04024E983770D0914326/. Acesso em: 16/11/2016.
    http://tvuol.uol.com.br/video/catolicos-...
    http://tvuol.uol.com.br/video/catolicos-vao-a-rua-em-maior-evento-religioso-das-filipinas-04024E983770D0914326/ (acesso em: 16/11/2016), encontro a notícia de que “Milhões de católicos tomaram as ruas de Manila, nas Filipinas, em uma gigantesca manifestação de fé. No maior evento religioso do país, homens e mulheres se reúnem para rezar e tentar chegar perto de uma imagem de Jesus Cristo que acreditam ser milagrosa”. Trata-se do culto ao “Nazareno Negro”, como aparece no áudio da notícia, que anuncia a presença de “cerca de nove milhões de católicos”. Confirmada a notícia desse site, onde pode existir exagero, esta seria talvez a maior procissão religiosa católica do mundo. Não pude, porém, certificar por outra fonte a correção dessa informação. O artigo da jornalista americana Alexandra C. EllerbeckSOLOWAY, Benjamin; ELLERBECK, Alexandra. "As Brazilians drift away from Catholicism, Virgin Mary procession as popular as ever". Religion News Service, 17 Oct. 2014. Disponível em: http://religionnews.com/2014/10/17/brazilians-drift-away-catholicism-virgin-mary-procession-popular-ever/. Acesso em: 16/11/2016.
    http://religionnews.com/2014/10/17/brazi...
    sobre o Círio de Nazaré pode ser obtido através do seguinte link da internet: http://www.religionnews.com/2014/10/17/brazilians-drift-away-catholicism-virgin-mary-procession-popular-ever/. Acesso em: 16/11/2016.
  • 4
    Vale lembrar que os manuais de ensino sobre a história brasileira, na maior parte produzidos no Sudeste, silenciam sobre esses fatos da história colonial e da integração da Amazônia ao território nacional. Há, porém, uma extensa bibliografia clássica que trata dessas questões. Cf., entre outros, Azevedo (1901AZEVEDO, João Lúcio de. (1901), Os Jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Lisboa: Livraria e Editora Tavares Cardoso & Irmão.); Baena (1839BAENA, Antônio L. M. (1839), Ensaio Corographico sobre a Província do Pará. Belém: Typ. de Santos e Santos Menor. , 1969______. (1969), Compêndio das Eras da Província do Pará. Belém: Universidade Federal do Pará. [1838]); Braga (1915BRAGA, Teodoro. (1915), Apostillas de História do Pará. Belém: Imprensa Oficial.); Cruz (1973CRUZ, Ernesto. (1973), História do Pará. Belém: Governo do Estado do Pará.); Dias (1970DIAS, Manoel Nunes. (1970), Fomento e Mercantilismo: A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778). Belém: Universidade Federal do Pará.); Mendonça (1963MENDONÇA, Marcos Carneiro de. (1963), A Amazônia na Era Pombalina. Rio de Janeiro: IHGB.); e Raiol (1970RAIOL, Domingos Antônio (Barão do Guajará). (1970), Motins Políticos ou, História dos principais acontecimentos políticos da Província do Pará desde o ano de 1821 até 1835. Belém: Universidade Federal do Pará. 3 Vol. [1865/1890]).
  • 5
    O primeiro autor a referir o Círio de Nazaré nas suas origens, sem deixar de lado seus aspectos míticos, foi um seminarista que teve a possibilidade de consultar antigos documentos, escrevendo um livro que constitui fonte preciosa sobre a sua realização desde o primeiro Círio no ano de 1793 – cf. Almeida Pinto (1906ALMEIDA PINTO, Antônio Rodrigues de. (1906), O Bispado do Pará. Annaes da Bibliotheca e Archivo Público do Pará. Belém: Typ. E Encadernação do Instituto Lauro Sodré. Tomo V.). Há também vários estudos sobre a devoção a Nossa Senhora de Nazaré em Belém e também sobre o Círio, muitos dos quais o descrevem e analisam ao longo de sua história – cf., entre outros, Alves (1980ALVES, Isidoro. (1980), O carnaval devoto: um estudo sobre a Festa de Nazaré, em Belém. Petrópolis: Vozes.); Coelho (1998COELHO, Geraldo Mártires. (1998), Uma Crônica do Maravilhoso: Legenda, Tempo e Memória no Culto à Virgem de Nazaré. Belém: Imprensa Oficial do Estado.); Dubois (1953DUBOIS, Padre Florêncio. (1953), A devoção à Virgem de Nazaré, em Belém do Pará. Belém: [s.n.] .); Mombelli (1976MOMBELLI, Savino. (1976), Valores Religiosos do Círio de Nazaré. Belém: Universidade Federal do Pará.); Pantoja (2006PANTOJA, Vanda Maria Leite. (2006), Negócios Sagrados: reciprocidade e mercado no Círio de Nazaré. Belém: Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, PPGCS/Universidade Federal do Pará.); Rocque (1981ROCQUE, Carlos. (1981), História do Círio e da Festa de Nazaré. Belém: Mitograph Editora Ltda.); e Saré (2005SARÉ, Larissa L. P. (2005), A serpente no asfalto. Estudo compreensivo do espetáculo da corda dos promesseiros no Círio de Nazaré em Belém do Pará. Salvador: Tese de Doutorado em Artes Cênicas, UFBA.). Em periódicos já foram publicados muitos artigos sobre a temática do Círio e da Festa de Nazaré – cf., entre outros, nos últimos anos: Alves 2005______. (2005), "A festiva devoção no Círio de Nossa Senhora de Nazaré". Estudos Avançados, vol. 19, n° 54: 315-332.); Lopes (2011LOPES, José Rogério. (2011), "Círio de Nazaré: Agenciamentos, Conflitos e Negociação da Identidade Amazônica". Religião & Sociedade, vol. 31, n° 1: 155-181.); Maués (2013______. (2013), "A Mãe e o Filho como peregrinos: dois modelos de peregrinação católica no Brasil". Religião & Sociedade, vol. 33, n° 2: 121-140.); Santos e Coelho-Ferreira (2011SANTOS, Ronize da Silva e COELHO-FERREIRA, Márlia. (2011), "Artefatos de miriti (Mauritia flexuosa L. f.) em Abaetetuba, Pará: da produção à comercialização". Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, vol. 6, n° 3: 559-571.). Parte das descrições, relatos e considerações feitas a seguir acompanham também discussões já publicadas nessas referências.
  • 6
    Fiz trabalho de campo por um breve período em Saquarema, em julho de 2013, onde conheci a igreja destinada ao culto de Nossa Senhora de Nazaré e tive conversas informais com moradores da cidade e com o responsável leigo pela guarda do templo. A memória popular fixa a primeira metade do século XVII como o início da devoção, considerada a mais antiga do Brasil. Em Vigia, Pará, onde anteriormente desenvolvi trabalho de campo por mais de um ano, com intervalos, a memória guarda o final da segunda metade do mesmo século como origem da devoção. Mas ela se baseia também numa rápida referência à existência desse culto pelo cronista jesuíta João Felipe Betendorf, que foi mais tarde amplamente divulgada por intelectuais devotos a fim de comprovar que tal devoção em Vigia precedeu a de Belém. Ele diz em sua crônica que, em 1697, quatro anos depois da elevação de Vigia à condição de vila, o jesuíta José Ferreira relata que lá encontrou estabelecida a devoção à “milagrosa imagem da Virgem Nossa Senhora de Nazaré” (Betendorf 1910BETENDORF, João Felipe (1910), "Chronica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão". Revista do IHGB, Tomo LXXII, Parte I (1909). Rio de Janeiro: Imprensa Oficial.:630).
  • 7
    Vale lembrar que o devoto responsável pelo início da devoção a Nossa Senhora de Nazaré, Plácido José de Souza, não é uma lenda ou mito. Ele efetivamente existiu e devia ser um dos muitos “donos de santo” no Brasil dessa época. São poucos os registros históricos existentes a respeito desse personagem. Para uma notícia mais completa sobre Plácido, o homem que encontrou a Santa, ver Maués (2009MAUÉS, Raymundo Heraldo. (2009), O homem que achou a Santa: Plácido José de Souza e a devoção à Virgem de Nazaré. Belém: Alves Gráfica e Editora.).
  • 8
    Sobre esses acontecimentos históricos, ver especialmente os estudos acima citados: Coelho (1998COELHO, Geraldo Mártires. (1998), Uma Crônica do Maravilhoso: Legenda, Tempo e Memória no Culto à Virgem de Nazaré. Belém: Imprensa Oficial do Estado.); Dubois (1953DUBOIS, Padre Florêncio. (1953), A devoção à Virgem de Nazaré, em Belém do Pará. Belém: [s.n.] .); Mombelli (1976MOMBELLI, Savino. (1976), Valores Religiosos do Círio de Nazaré. Belém: Universidade Federal do Pará.); Maués (2009MAUÉS, Raymundo Heraldo. (2009), O homem que achou a Santa: Plácido José de Souza e a devoção à Virgem de Nazaré. Belém: Alves Gráfica e Editora.); e Rocque (1981ROCQUE, Carlos. (1981), História do Círio e da Festa de Nazaré. Belém: Mitograph Editora Ltda.).
  • 9
    Temos aqui o exemplo de outra ética, que não é mais aquela tornada célebre por Max Weber, a ética calvinista, mas sim a ética arminiana. Sobre isso cito um dos mais importantes antropólogos do cristianismo (Coleman 2004COLEMAN, Simon. (2004), "The Charismatic Gift". Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 10, n° 2, June: 421-442.). Quanto à interpretação do sacrifício do dinheiro (dentro dessa ética), ver a dissertação de mestrado de Campos (2014CAMPOS, Samuel. (2014), A Igreja Universal do Reino de Deus na "Modernidade Líquida": Marcas identitárias da IURD na (pós-)modernidade. Belém: Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, UEPA.).
  • 10
    No estado do Pará consome-se dois tipos de farinha: a farinha d’água, que é fabricada da raiz da mandioca fermentada em água, e a farinha seca, quando ela é torrada no forno depois da extração do tucupi, através de um instrumento de palha chamado “tipiti”. Esse mesmo tucupi é utilizado na preparação do pato (frango ou peru) no tucupi, indispensável no Almoço do Círio.
  • 11
    Os outros autores foram Márcio Couto Henrique (historiador e antropólogo, membro da equipe de pesquisa) e Maria Dorotéa de Lima (coordenadora do IPHAN no estado do Pará, arquiteta e antropóloga).
  • 12
    Comunicação pessoal feita pelo antropólogo Kabengelê Munanga, que é um grande apreciador dessa iguaria, em uma de suas várias visitas a Belém (onde sempre consome a maniçoba em casas de amigos e/ou em restaurantes), em 15/04/2015.
  • 13
    No ano de 2010 tivemos em casa um convidado especial para o Almoço do Círio, o antropólogo José Rogério Lopes, que mais tarde publicou artigo em Religião & Sociedade sobre o Círio de Nazaré (Lopes 2011LOPES, José Rogério. (2011), "Círio de Nazaré: Agenciamentos, Conflitos e Negociação da Identidade Amazônica". Religião & Sociedade, vol. 31, n° 1: 155-181.). Como o convite foi feito inicialmente por mim e como Rogério Lopes me entrevistou na ocasião, a recompensa maior que tive foi o fato de ele me homenagear, dedicando-me o artigo que foi publicado.
  • 14
    Remeto o leitor ao texto de Vergolino e Silva (1973VERGOLINO E SILVA, Anaíza. (1973), "A missa católica: Análise antropológica do ritual em uma igreja de Belém". Separata de "O Museu Goeldi no Ano do Sesquicentenário", Publicações Avulsas, n° 20. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2016

Histórico

  • Recebido
    Fev 2016
  • Aceito
    Ago 2016
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