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Religion and Public Policies in Brazil and Latin America

O crescimento global de grupos conservadores, extremistas e à direita em interface com linguagens e atores religiosos coloca novas questões para os cientistas sociais da religião. Embora de formas e em intensidades diferentes, essa mobilização da religião (linguagens, estéticas, instituições, sujeitos, comunidades etc.) como parte de projetos conservadores é observada em vários países e continentes. Novas configurações políticas se combinam à emergência de expressivos discursos de hostilidades às diversidades étnico-raciais, sexuais e de gênero, mediante, em muitos casos, à ocupação da gestão governamental desafiando democracias em países no norte e sul globais (Biroli; Machado; Vaggione 2020BIROLI, Flávia. VAGGIONE, Juan Marco. MACHADO, Maria das Dores Campos. (2020), Gênero, neoconservadorismo e democracia, disputas e retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo. ; Brown 2019BROWN, Wendy. (2019), Nas ruinas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosofia Politeia.).

Somado a isso, a Pandemia da Covid-19 revelou a fragilidade e a importância de políticas públicas de saúde, as desigualdades estruturantes em sociedades de economia neoliberal, a acentuação do vilipêndio de minorias sociais e a atuação destacada de religiosos em controvérsias públicas em várias dessas agendas e situações. Em paralelo, observou-se uma organização política de forças reconhecidas como populares, progressistas e/ou à esquerda em diferentes tradições religiosas com vistas a transformar suas próprias comunidades de fé e a sociedade, norteadas por valores democráticos, humanistas e também religiosos.

A influência de setores e cosmovisões religiosas, tanto no desenho como na implementação dessas políticas, não é uma novidade. Devemos lembrar, por exemplo, que a Igreja Católica teve e tem um papel determinante em políticas sobre educação ao longo da história na região. Neste dossiê, portanto, o objetivo geral é incluir leituras renovadas sobre o papel das instituições e valores religiosos no desenho e na implementação de políticas públicas na região.

O dossiê se insere nesse contexto regional e global apresentando artigos que exploram aspectos etnográficos dessa relação, mas também abre a possibilidade de discussões teóricas sobre a complexidade das fronteiras entre laico e religioso, entre lutas por reconhecimento e projetos de sociedade mais pluralistas ante os projetos de poder conservadores e sua ligação às moralidades religiosas e até mesmo posturas mais hostis frente às minorias e suas agendas.

O presente número vai além da abordagem usual da atuação conservadora no campo do Legislativo que analisa posturas favoráveis ou contrárias a batalhas dos movimentos sociais e avanços no ordenamento jurídico. Nos dispomos a deslocar o foco do “sim” ou “não” para elucidar os meandros de práticas sociais que colocam no centro do problema a própria definição de política pública e seus nexos com as instituições religiosas, com a participação da sociedade civil, com partidos políticos e suas lideranças e com as próprias ideais de democracia e suas antíteses, nos modelos autoritários ou autocráticos. Esse pano de fundo serve de solo para a reunião de artigos que se endereçam a esses dilemas contemporâneos por caminhos variados.

A proposta do dossiê resultou de reuniões entre pesquisadores de distintos contextos institucionais e nacionais acerca da temática religião e política, no âmbito do Instituto de Estudos da Religião (ISER). Isso aconteceu em um momento muito desafiador para a sociedade brasileira, quando discutir política pública era urgente diante da participação crescente e sem precedentes de autodeclarados cristãos ou evangélicos na Governança Pública durante os anos 2019 e 2022. Existe um problema em si quanto à participação das religiões na vida social e cultural de qualquer país? Não. Contudo, no caso brasileiro, durante o período destacado, a ocupação de cargos e postos de poder em diferentes ministérios, pastas, secretarias e entidades públicas emergia como parte de uma estratégia orquestrada já há alguns anos por frentes e atores religiosos (Vital da Cunha, Lopes 2012VITAL DA CUNHA, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite. (2012), Religião e Política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Heinrich Böll: Instituto de Estudos da Religião (ISER) , vol.1: 232.; Vital da Cunha, Lopes, Lui 2017VITAL DA CUNHA, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite; LUI, Janayna. (2017), Religião e política: medos sociais, extremismo religioso e eleições 2014. Rio de Janeiro: Heinrich Böll: Instituto de Estudos da Religião (ISER), vol.1: 196., Vital da Cunha, Evangelista 2019VITAL DA CUNHA, Christina; EVANGELISTA, Ana Carolina. (2019), “Estratégias eleitorais em 2018: o caso das candidaturas evangélicas ao legislativo”. Sur - Revista internacional de direitos humanos, vol. 29: 87-100.; Vital da Cunha 2020VITAL DA CUNHA, Christina. (2020), “Retórica da Perda nas eleições presidenciais brasileiras em 2018: religião, medos sociais e tradição em foco”. Revista Plural, ano 3: 123-149.; Natividade, Alves, Rocha; 2021NATIVIDADE, Marcelo; ALVES, Bruno; ROCHA, Rômulo. (2021), “Politicas sexuais, saúde e violência em tempos de pandemia de Covid-19”. Revista Tomo - Dossiê Ciências Sociais e Saúde, nº 39: 45-84. ) com vistas a frear o avanço de direitos ou retroceder em conquistas legais de minorias. O drama social imposto ao conjunto da sociedade diante do interesse de alguns atores e instituições sociais e os impactos que esse cenário causou em programas governamentais ainda estão sendo investigados em âmbito acadêmico e político/administrativo.

Há pouco mais de uma década, Marcelo Natividade se dedicou a uma abordagem pioneira sobre a incidência de atores religiosos em políticas públicas, com a etnografia das margens da política. Em pós-doutoramento pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional, ele avaliou em perspectiva comparativa os impactos locais do Programa Nacional Brasil Sem Homofobia, com campo no nordeste e sudeste brasileiros, sob orientação do Professor Luiz Fernando Dias Duarte (2009-2011).

Por essa ocasião, apontou especificidades das conexões entre movimentos sociais, partidos de esquerda e máquina pública, com compromissos éticos e políticos para planejamento, execução e avaliação de certas políticas de reparação e atuação para a erradicação da violência e vulnerabilidades que afetam as sexualidades e os gêneros dissidentes. Os êxitos, entraves e dificuldades para a execução e a efetividade desses projetos foram examinadas em contextos específicos. A descrição densa dos programas locais contra a homofobia na Baixada Fluminense e em cenários do interior cearense revelou a interferência de gestores religiosos na implementação de certos serviços sociais. Mesmo sem a apresentação de argumentos religiosos, a pertença evangélica, no caso de gestores públicos desses equipamentos, era um marcador da rejeição e obstrução de projetos, assinalando de modo enfático as zonas de influência dessas moralidades e a construção de centros e margens da política pública (Natividade 2016NATIVIDADE, Marcelo. (2016), Margens da política: Estado, religiões e direitos sexuais no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond. ).

Em 2018, o convite da Deputada Federal Luizianne Lins, do Partido dos Trabalhadores (PT), para a continuidade dessa perspectiva avaliativa da política pública e da produção de um diagnóstico de avanços e retrocessos na política sexual brasileira levou à criação do Observatório Nacional da Política LGBT na Universidade Federal do Ceará (UFC), ocasião da instalação de uma equipe local que levantou volumoso material documental e etnográfico sobre o assunto em tempos de bolsonarismo e pandemia de Covid-19. Parte desse trabalho acadêmico se voltou para o fomento da relação entre centros de pesquisa no nordeste e sudeste brasileiros, incluindo pesquisas conjuntas, publicação de artigos e proposição de dossiês em periódicos de referência do campo.

Em meio a essa movimentação, como pesquisadores com longa trajetória de estudos em política e religião, nos reunimos em torno da proposição de um dossiê para discutir especificamente as interfaces entre religiões e políticas públicas no Brasil e América Latina - iniciativa gestada desde um evento promovido pelo ISER. Tratava-se de lives em comemoração aos 50 anos da instituição, momento no qual se reuniram para debater o tema Religiões e Sexualidades as pesquisadoras Patrícia Birman e Christina Vital e os pesquisadores Paulo Victor Leite Lopes e Marcelo Natividade.1 1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dZPYf1J-LIw. Acesso em: 02/05/2023. Esse programa deu ensejo a todas as conversas que se seguiram entre Christina Vital, Marcelo Natividade e Juan Marco Vaggione para a proposição final deste dossiê.

Nesta edição original, celebramos o trabalho contínuo de pesquisadores e pesquisadoras da temática proposta posteriormente a um período que foi particularmente desafiador para diferentes minorias que viram suas qualidades de vida ruírem diante da precarização de políticas públicas fundamentais.

Considerando as inúmeras abordagens possíveis sobre o tema Religiões e Políticas Públicas, recebemos o maior número de envios de propostas de artigos para um dossiê em toda a história da revista Religião & Sociedade. Nossa primeira avaliação leva em conta a grande visibilidade que a religião vem assumindo no Brasil e em outros países como “problema público”, nos termos da sociologia pragmática francesa. Nesse sentido, sua percepção social se renova e complexifica sendo pesquisada na interface com diversos outros temas e abordagens clássicas das Ciências Sociais, assim como passou a suscitar vigorosos antagonismos e defesas apaixonadas na medida em que se transformou em narrativa preferencial de alguns grupos políticos à direita nos últimos anos no Brasil e em outros países. Paralelamente, consideramos que as perdas relativas de direitos e a drástica diminuição ou corte de políticas públicas no Brasil destinadas a populações LGBTQIA+, a Mulheres, à população residente nas ruas, à juventude, às pessoas em situação de drogadição etc. desde 2017 em diante, acentuadamente desde 2019, contribuiu para a atração de pesquisadores engajados em agendas relacionadas a essas temáticas de interesse coletivo. Sendo assim, embora criativas e importantes, muitas foram as submissões que fugiam ao escopo da revista na medida em que a reflexão principal escapava ao âmbito das Ciências Sociais da Religião, sobretudo à Sociologia e Antropologia. Um rigoroso trabalho de edição foi realizado para chegarmos à composição final deste dossiê que conta com a participação de dez autores e autoras responsáveis pela elaboração de sete artigos discutindo as diferentes relações do Estado, na forma de políticas públicas, de regulações e propostas de leis com religiões cristãs, majoritariamente, mas também afro.

Os dois artigos que abrem este número tematizam as comunidades terapêuticas em abordagens distintas. Em “Políticas de segurança pública e seus excessos: a questão das Comunidades Terapêuticas e sua relação com o dispositivo da justiça nas periferias urbanas”, Carly Machado analisa a questão das Comunidades Terapêuticas (CTs) como parte de um processo de criminalização de populações das periferias urbanas a partir do “problema das drogas”. Também conhecidos como centros de “reabilitação” ou “centros de recuperação”, compõem o cenário de periferias no Rio de Janeiro há décadas sendo vistos socialmente com curiosidade e/ou desconfiança. Nesse artigo, Machado apresenta com clareza a origem de terminologias, seus sentidos contemporâneos e contextualmente dados, a relação específica das religiões como instituições na relação com o Estado por meio de processos continuados de adaptação às suas demandas como forma de integrar a política pública destinada à população alvo destas CTs, assim como as tentativas de interferir em normativas com vistas à integração legal e acesso aos recursos. Por meio de sua experiência de campo e da mobilização de uma rica bibliografia, propõe um olhar sobre as Comunidades Terapêuticas no Rio de Janeiro não sob o ponto de vista de uma “falta”, mas como integrante de um complexo circuito urbano e institucional mobilizado pelos atores à margem como parte de suas estratégias de evitação do cárcere e da morte, como produtoras de vida.

Noutra abordagem, Ana Claudia Salgado Cortez e Priscila Farfan Barroso, em seu artigo “Espiritualidade como categoria resultante de interações e conflitos entre comunidades terapêuticas e Estado”, o foco recai sobre os processos de regulamentação das Comunidades Terapêuticas em curso desde 2001 em âmbito Federal. Mais especificamente, as autoras tiveram como objetivo discutir como o Estado brasileiro buscou regulamentar o uso de atividades de espiritualidade como parte do método de tratamento a usuários de drogas por CTs e como essas organizações reagiram. Tendo como base empírica os dados produzidos no âmbito de uma pesquisa sobre o financiamento público de Comunidades Terapêuticas, uma parceria entre a Conectas e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e no acompanhamento do Programa Recomeço: uma vida sem drogas, no estado de São Paulo, as autoras consideraram os debates em torno da garantia ou ameaça à laicidade do Estado surgidas nesses processos de regulamentação, assim como a adoção da categoria espiritualidade como mediadora de conflitos na fase de formulação da política pública em nível nacional e em sua implementação em nível estadual, como no caso por elas acompanhado, o Programa Recomeço (SP). As autoras argumentam que a categoria espiritualidade foi acionada pelas CTs, por meio de suas federações, como forma de acomodar diferentes interesses por parte do Estado, das CTs e outros atores da sociedade civil. O interesse das autoras não era a definição de espiritualidade, mas a política da espiritualidade (Veer 2013), isto é, os usos que a terminologia comporta/comportou nesses processos específicos.

Nesses dois artigos sobre a presença do religioso em políticas públicas sobre o consumo problemático de drogas, podemos observar o desmantelamento dos estados e as crises econômicas que intensificaram a privatização ou terceirização dessas políticas a favor, em geral, de setores e grupos diretamente vinculados a igrejas evangélicas e católicas. Em particular, as comunidades terapêuticas adquiririam centralidade em diferentes países da religião como estratégias dos estados para enfrentar a problemática das drogas e das populações pobres urbanas.

As políticas públicas são também uma temática relevante para compreender os processos de construção do religioso. Embora a maioria dos artigos deste dossiê analisem a forma que o religioso influi nessas políticas, existe outra direção para as análises: como o religioso se constrói, delimita e hierarquiza a liberdade religiosa, a existência de símbolos religiosos nos espaços públicos ou o pagamento de salário a sacerdotes entre outros exemplos por meio da implementação de certas políticas. Um ponto central nesse sentido são as políticas públicas destinadas a regular a diversidade religiosa.

Seguindo essa discussão sobre regulamentação estatal de atividades e institucionalidades religiosas e/ou espirituais, Nahuel Nicolas Carrone nos apresenta uma rica reflexão sobre o reconhecimento legal e social da diversidade religiosa na Argentina. Mais precisamente, o autor busca analisar as políticas de gestão da diversidade religiosa no país considerando as mudanças no modelo nacional centralizado para uma forma de gestão na qual a municipalidade ganha protagonismo. Nesse sentido, as administrações municipais, em sua relação de proximidade com as demandas da população local em seus anseios e necessidades, têm se tornado instâncias importantes de debate político na Argentina. O ativismo afro-religioso tem se pronunciado nesse contexto como forma de alcançar e garantir a legitimidade de suas atividades no território, a despeito da hegemonia católica nacional e do crescimento no número de evangélicos e o incremento de sua participação na estrutura estatal. A base empírica que sustenta as análises de Carrone estão no acompanhamento das ações de grupos afro-religiosos em torno de marcos normativos em duas municipalidades: La Matanza e Lomas de Zamora. Ao longo do artigo, importantes discussões sobre marcos legais, descentralização administrativa, processos de retração e avanço da diversidade religiosa, ativismo político-religioso, hegemonia e contra-hegemonia, a territorialidade e as formas de fazer religião entre afro-religiosos e a igreja católica oferecendo ao leitor um bom quadro das questões concernentes à Argentina, possibilidade olhares comparativos com outros contextos Latino-Americanos.

Ao tratarmos das mudanças na correlação de forças políticas, religiosas e sociais na América Latina, as análises sobre a perda da (ou as ameaças à) hegemonia católica e o correlato crescimento de evangélicos ganham destaque. Nesse sentido, os artigos que seguem exploram a presença evangélica no Brasil e no Chile refletindo sobre a relação entre a crescente participação social e política desses religiosos e as temáticas de direitos, gênero, sexualidade e democracia. No caso mais recente das eleições presidenciais de 2022, cristãos evangélicos e também católicos tiveram grande participação pública na defesa de uma ou outra candidatura, com predomínio de evangélicos em relação ao candidato identificado como à direita. Muitos líderes de denominações pentecostais e neopentecostais fizeram lives, cultos, programas em canais digitais e abertos, anunciaram seu volto. No artigo “A máquina universal: uma análise da mobilização do discurso moral na Folha Universal nas eleições de 2022”, Paulo Gracino Junior e Fabrício Roberto Costa Oliveira fizeram uma pesquisa minuciosa em um dos principais veículos de comunicação da IURD com o público interno e externo à igreja com vistas a analisar os argumentos e estratégias mobilizados em prol da candidatura à reeleição do então presidente Jair Messias Bolsonaro. A defesa da “família tradicional” e o medo da vitória de um governo de esquerda foram as duas abordagens mais recorrentes na Folha Universal na totalidade dos números coletados no ano de 2022. Por meio de uma análise que privilegiou a discussão sobre processos de hegemonia e minoritização, sobre estratégias narrativas como a defesa da tradição sob a égide de uma “retórica da perda”, populismos e da produção de “pânicos morais” foram discutidos o posicionamento desse ator político religioso importante no contexto nacional e para além das fronteiras brasileiras. Concluem que as estratégias da IURD, por meio da Folha Universal, se valiam do fortalecimento de uma oposição radical entre bem e mal no qual o conservadorismo estava ligado aos diferentes aspectos de respeito à moral e aos valores cristãos, enquanto a esquerda e a candidatura que representava esse segmento foram identificados com toda forma de mal expressos na (suposta) defesa do comunismo, na violação à moral e aos interesses cristãos.

No caso do Chile, Nicolás Panotto, no artigo intitulado “Nuevas cartografías de la incidencia regional evangélica: política local-multilateral desde y dentro del Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Ejemplos del caso chileno”, analisa a participação de organizações evangélicas em redes da sociedade civil com vistas a um ativismo conservador em organismos locais e multilaterias. Assim, pela via de Redes Políticas Evangélicas (RPE), compostas, segundo Panotto, por organizações sociais, aquelas baseadas na fé (OBF), think tanks e igrejas, objetivavam incidência pública em nível nacional e internacional com a integração à Organização das Nações Unidas e à Organização dos Estados Americanos. Por meio do emprego de uma narrativa identificada como político-moral, essas redes teriam como objetivo um alcance regional em torno de agendas como a (anti) gênero. Tendo como base empírica casos acompanhados no Chile, Panotto atribui essa forma de operação política de evangélicos como efeito de quatro fenômenos: as mudanças relativas ao posicionamento do religioso no espaço público cujas discussões sobre secularização e pós-secularização se referem; a uma renovada capacidade de mobilização social com base no acionamento do capital religioso de algumas instituições evangélicas em particular; as transformações no campo religioso em geral e no evangélico, em particular; a mobilização de uma retórica religiosa que se vale de uma agenda positiva na defesa de direitos tais como liberdade religiosa. O artigo, embora com base empírica local, pretende oferecer ferramentas de análise para casos recorrentes em outros países latino-americanos na medida em que os conflitos morais e religiosos atravessam os desenhos e implementações de políticas públicas no continente. Em particular nas políticas de saúde como reconhecem alguns artigos revelando as distintas cosmovisões sobre corpo. Um exemplo é a implementação de políticas públicas vinculadas à saúde sexual e reprodutiva que causaram intensas reações morais. Desse modo, a instrumentalização de políticas sobre o aborto, a educação sexual e o HIV são motivos de fortes debates nos quais observa-se atores e construções religiosas que mobilizam marcos simbólicos e materiais diferenciados.

Assim, os textos que seguem abordam questões relativas a gênero e sexualidade apresentando ações e reações ao conservadorismo cristão dominante em instâncias políticas, jurídicas, sociais e religiosas em consonância com as abordagens trazidas por Nicolás Panotto. Em “Aborto, valores religiosos e políticas públicas: a controvérsia sobre a interrupção voluntária da gravidez na audiência pública da ADPF 442 no Supremo Tribunal Federal”, Naara Luna e Rozeli Maria Porto analisam agendas relativas à reprodução e aos direitos das mulheres através do posicionamento de religiosos frente à questão do aborto no STF. A controvérsia pública é a referência teórico-metodológica que enquadra o tipo de análise feita com base na audiência pública sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, ocorrida em agosto de 2018, que propunha à descriminalização da interrupção voluntária da gestação até a 12ª semana da gravidez. Essa audiência foi examinada quanto às entidades e aos sujeitos participantes como amici curiae (amigos da corte) considerando os principais argumentos mobilizados. Ao longo do artigo, Luna e Porto apresentam a mobilização de valores religiosos, argumentos filosóficos em torno da noção da vida, da esfera jurídica e científicos pela manutenção da lei, em detrimento da proposta feita pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Concluem que o ativismo conservador religioso antiaborto se pronunciava em redes que se apresentavam muitas vezes como para eclesiásticas, na forma, muitas vezes, de organizações da sociedade civil, mas cuja vinculação à institucionalidade evangélica ou católica ficava evidente nos posicionamentos de seus atores. Ressaltam, ainda, que um ativismo religioso progressista esteve presente na figura de alguns sujeitos convidados a participar da audiência pública. Embora inúmeras evidências apresentadas por funcionários públicos de carreira na área de saúde e pesquisadores apontassem para o enorme risco à saúde da mulher jogada à clandestinidade para a interrupção da gravidez, a manutenção da legislação foi vitoriosa quanto à decisão do STF.

Fechando o dossiê, temos o artigo “Engajar para constituir alianças: visibilidade e políticas sexuais e de saúde na Igreja da Comunidade Metropolitana do Rio de Janeiro”, de Pedro Costa Azevedo. Nele, Azevedo explora um caso diferente dos demais artigos do dossiê na medida em que a participação cristã vai em direção à sustentação das políticas governamentais já existentes e de sua ampliação. Suas análises se baseiam em uma etnografia realizada entre os anos 2018 e 2019 na Igreja Comunidade Metropolitana do Rio de Janeiro. O interesse inicial do autor recaiu sobre as ações dessa denominação evangélica em prol de políticas públicas ligadas a questão de gênero e sexualidade, com destaque para as de prevenção do HIV/AIDS. Entre as chamadas igrejas inclusivas, a ICM é uma das mais conhecidas e já foi alvo de uma gama de artigos publicados em Religião & Sociedade em outras edições. No curso do trabalho, Azevedo avalia que a defesa da população LGBTQIA+ é feita pelas lideranças da igreja prioritariamente com base em valores laicos e de respeito aos direitos humanos em parte como meio de valorizá-los, em parte como estratégia de ampliação de sua voz e visibilidade sociais.

Como vimos, um dos eixos que perpassa várias das contribuições é a relevância que o subnacional adquire já que as províncias ou municípios são os territórios onde as políticas públicas adquirem forma. Sem ignorar a importância da política nacional para entender a interação entre religião e políticas públicas, o subnacional é a arena privilegiada de análise. O nacional esfacela-se na coexistência de diferentes jurisdições locais que tornam necessário situar, territorializar reflexões e investigações. Desfocar o olhar das políticas nacionais para o local permite aos autores, em vários casos, identificar arestas e dinâmicas que ampliam a compreensão do impacto da religião nas democracias.

No entanto os espaços transnacionais também adquirem presença relevante como dimensão menos contemplada nas políticas públicas de diferentes países. Os marcos constitucionais existentes nos países da região respaldaram as principais legislações internacionais e, portanto, lugares como a ONU ou a OEA tornaram-se relevantes para as análises da temática. Em particular, o paradigma das políticas públicas baseadas nos Direitos Humanos recolhe esses processos transnacionais para torná-los, assim, base para o desenho de intervenções estatais. Desse modo, gênero, diversidade e abordagem intercultural se consolidam como requisitos e guias abrindo novos conteúdos em políticas públicas que se articulam com religião de diversas formas.

Como evidenciam os artigos incluídos neste dossiê, a compreensão da religião e suas fronteiras por meio do enfoque do estudo nas políticas públicas amplia a questão sobre os vínculos entre religião e política para novos territórios, temas e níveis de análise. Considerar o religioso nos/dos interstícios das políticas públicas oferece quadros normativos e analíticos que enriquecem os debates tradicionais sobre igreja e estado, sobre a laicidade e sobre as articulações entre o religioso e o espaço público. Ao longo do dossiê, novas ênfases foram propostas e iluminadas dinâmicas que complementam e complica os estudos sobre secularismo, conservadorismo moral ou diversidade religiosa.

Além dos artigos que compõem o dossiê, temos dois artigos de fluxo e uma resenha cuja atualidade salta aos olhos ao versarem sobre a influência de atores religiosos no judiciário brasileiro, sobre juventude na relação com as religiões institucionalizadas e as suas escolhas profissionais e sobre as relações entre fascismo, antissemitismo e contexto político no ocidente contemporâneo. Em “Católicos e evangélicos na suprema corte brasileira”, Vinícius Parolin Wohnrath tem como objetivo refletir sobre a participação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) no Supremo Tribunal Federal por meio da análise de seus posicionamentos em 29 processos. Neles, o engajamento judicial dessas organizações religiosos como amici curiae é observada como uma estratégia para interferir sobre a legislação nacional em questões como a dos indígenas e quilombolas, sobre as questões de gênero e sexualidade. No instigante artigo “Religião, vida universitária e juventude”, Ana Maria Freitas Teixeira levanta questões quanto à relação entre carreira e religião. Com base no acompanhamento de jovens egressos do ensino médio público inscritos em diferentes cursos de graduação, buscou compreender a tensão e a relação positiva entre engajamento religioso e as escolhas profissionais que realizaram. Uma das considerações finais da autora é que não há uma necessária relação entre a religião familiar e as escolhas dos jovens acompanhados, em consonância com a bibliografia especializada sobre o assunto. Segundo Teixeira, à medida em que o processo de socialização se amplia e se diversifica os jovens buscam maior coerência entre princípios, discursos, regras religiosas e suas próprias convicções negando, muitas vezes, a “herança religiosa familiar”.

Fechando este número de Religião & Sociedade, temos a resenha do livro Como funciona o Fascismo: a política do nós e eles”, de Jason Stanley, lançado no Brasil em 2018 pela editora L&PM (Porto Alegre). Nele, segundo Sergio Schargel, autor da resenha, a apresentação detalhada dos elementos básicos que constituem o fascismo é um ponto alto da obra. Sendo assim, destaca a centralidade do recurso à necessidade de recuperação de um passado mítico, a produção de um inimigo desumanizado, degenerado e a valorização da hierarquia em regimes fascistas. Schargel revela como novas formas de antissemitismo de pronunciam nas ações da extrema direita em nível global na atualidade sendo o livro importante para esta reflexão. Finalizando, contrapondo às teses de outros autores como Ernesto Laclau, Schargel chama atenção para a abordagem de Stanley que compreende o fascismo não como uma ideologia, mas como um mecanismo de poder.

Esperamos que o número ajude a elucidar um pouco mais sobre essas lutas e formas de atuar, assim como mostre caminhos para superar os ataques às democracias, os desmontes de programas sociais e da proteção social, a imposição de visões de mundo homogeneizantes e totalitárias pelo Estado.

Os desafios colocados para as novas pesquisas envolverão certamente a recuperação da memória de parte do que aqui se coloca em debate e o acompanhamento das novas articulações, composições e atos do Estado assim como as dinâmicas envolvendo proteção social, cidadania, Direitos Humanos, pactuações internacionais, economia e as muitas outras dimensões da política pública. O dossiê se coloca aqui em um lugar de abertura de debate e profunda reflexão sobre a sociedade brasileira e outras latino-americanas contemporâneas e seus problemas, relações e potenciais transformadores.

Referências

  • BIROLI, Flávia. VAGGIONE, Juan Marco. MACHADO, Maria das Dores Campos. (2020), Gênero, neoconservadorismo e democracia, disputas e retrocessos na América Latina São Paulo: Boitempo.
  • BROWN, Wendy. (2019), Nas ruinas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente São Paulo: Editora Filosofia Politeia.
  • NATIVIDADE, Marcelo. (2016), Margens da política: Estado, religiões e direitos sexuais no Brasil Rio de Janeiro: Garamond.
  • NATIVIDADE, Marcelo; ALVES, Bruno; ROCHA, Rômulo. (2021), “Politicas sexuais, saúde e violência em tempos de pandemia de Covid-19”. Revista Tomo - Dossiê Ciências Sociais e Saúde, nº 39: 45-84.
  • VITAL DA CUNHA, Christina. (2020), “Retórica da Perda nas eleições presidenciais brasileiras em 2018: religião, medos sociais e tradição em foco”. Revista Plural, ano 3: 123-149.
  • VITAL DA CUNHA, Christina; EVANGELISTA, Ana Carolina. (2019), “Estratégias eleitorais em 2018: o caso das candidaturas evangélicas ao legislativo”. Sur - Revista internacional de direitos humanos, vol. 29: 87-100.
  • VITAL DA CUNHA, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite; LUI, Janayna. (2017), Religião e política: medos sociais, extremismo religioso e eleições 2014 Rio de Janeiro: Heinrich Böll: Instituto de Estudos da Religião (ISER), vol.1: 196.
  • VITAL DA CUNHA, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite. (2012), Religião e Política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil Rio de Janeiro: Heinrich Böll: Instituto de Estudos da Religião (ISER) , vol.1: 232.
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    Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dZPYf1J-LIw. Acesso em: 02/05/2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023
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