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Políticas de segurança pública e seus excessos: a questão das Comunidades Terapêuticas e sua relação com o dispositivo da justiça nas periferias urbanas

Excessive public security policies: the issue of Therapeutic Communities and their relationship with the system of justice in urban peripheries

Resumos

Resumo: A realidade das Comunidades Terapêuticas é usualmente discutida pela perspectiva da falta de ações estatais no campo da saúde mental para o enfrentamento do chamado “problema das drogas”. O objetivo deste artigo, no entanto, é analisar a existência desses projetos, em sua maioria religiosos, não como equipamentos que cobrem a ausência do estado, mas como espaços acessados por sujeitos cujas vidas são atravessadas pelo excesso de intervenções estatais no campo da justiça e da segurança pública. O presente trabalho procura assim refletir sobre o tema das Comunidades Terapêuticas a partir da perspectiva do tratamento estatal ao “problema da violência”, e como nesse contexto articulam-se projetos religiosos e seculares dedicados ao controle e ao cuidado das populações das periferias urbanas.

Palavras-chave:
comunidade terapêutica; pentecostalismo; drogas; encarceramento; violência.


Abstract: The reality of Therapeutic Communities is usually discussed from the perspective of the lack of state actions in the field of mental health to face the so-called “drug problem”. The objective of this article, however, is to analyze the existence of these projects, mostly religious, not as equipment that cover the absence of the state, but as spaces accessed by subjects whose lives are crossed by the excess of state interventions in the field of justice and of public security. The present work thus seeks to reflect on the theme of Therapeutic Communities from the perspective of the state treatment of the “problem of violence”, and how in this context the articulation between religious and secular projects dedicated to the control and care of populations in urban peripheries takes place.

Keywords:
Therapeutic Community; Pentecostalism; drugs; incarceration; violence.


As chamadas “casas” ou “centros” de recuperação” para “dependentes de drogas” são equipamentos urbanos bastante familiares às populações das periferias do Rio de Janeiro há muitas décadas. Homens vestidos com ternos ou roupas sociais, um tanto desconformes com seus corpos, solicitando apoio financeiro para esses espaços, fazem parte do cenário urbano da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Nas ruas, nos trens e nos ônibus, junto com esses homens, circula também há décadas no espaço público fluminense uma imagem dos pentecostais, dos evangélicos, representados por suas práticas urbanas por meio desses “centros de recuperação” ou “reabilitação”.

Cooperando ou não com a solicitação desses homens vestidos como crentes, cujos corpos representam a missão da casa que representam, a população do Rio de Janeiro se relaciona com essa inscrição de serviço urbano há muito tempo. E por muito tempo esta não lhe foi exatamente incômoda. Para alguns, essas casas eram algo um tanto “exótico”, desconhecido. Despertavam por vezes desconfiança, mas também curiosidade. Para outros, eram destinos usuais de amigos e parentes acometidos por algum tipo de “problema”, que poderia ali ser acolhido.

A primeira vez que fui a um desses espaços foi ainda em minha época de estudante de psicologia, há aproximadamente 25 anos. Curiosamente, o que me levou a uma dessas “clínicas” não foi minha família evangélica nem meu pertencimento à Igreja Batista, da qual fiz parte até o início da minha juventude. Foi por meio de um estágio em psicologia que cheguei a um desses serviços, situado à época no bairro de Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro. Fui até lá acompanhando a equipe que levava um usuário do serviço de saúde mental de um equipamento público onde eu estagiava para um período de tratamento, com foco específico em seu uso abusivo de álcool. Esse usuário, particularmente, fazia parte de uma residência terapêutica de um Centro Psiquiátrico, mas dada a dificuldade de lidar com seu comportamento no cotidiano da residência, bem como o risco de vida a que ele se expunha com frequência, a equipe optou - com seu consentimento - por levá-lo a uma casa de recuperação na qual ele já havia se tratado. Nesse dia específico, o deixamos em Campo Grande, na tal clínica. Semanas depois, ele retornou à residência terapêutica, e assim continuou seu ciclo por diferentes instituições e espaços - que também incluía a vida na rua - até eu me desligar desse estágio.

Essas “casas”, “clínicas” ou “centros” de recuperação são, em grande proporção, anteriores à Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, instituída em 2003. De acordo com Loeck (2018LOECK, Jardel. (2018), “Comunidades Terapêuticas e a transformação moral dos indivíduos: entre o religioso-espiritual e o técnico-científico”. In: M. P. Santos; Maria Paula (org.). Comunidades Terapêuticas: temas para reflexão . Rio de Janeiro: IPEA .), apoiado em dados do IPEA (2017IPEA. (2017), “Nota técnica”. Perfil das comunidades terapêuticas brasileiras, nº 21. Diest. Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia.), 21% desses serviços foram fundados até o ano de 1995, e mais de 40% entre os anos de 1996 e 2005. Os anos 1990 marcam um período de expansão desses projetos. Doudement e Conceição (2018DOUDEMENT, Marcello; CONCEIÇÃO, Vinnie. (2018), “Frente Parlamentar em defesa das Comunidades Terapêuticas”. In: M. P. Santos (org.). Comunidades Terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA. ) indicam, no entanto, que esse tipo de instituição começou a surgir no Brasil na década de 1970, e a Nota Técnica do IPEA (2017) identificou unidades com data de fundação da década de 1960.

O termo Comunidades Terapêuticas (CTs), no entanto, foi mais recentemente mobilizado pelas políticas públicas voltadas à incorporação desses centros de recuperação nas práticas estatais brasileiras, e deriva de um modelo originalmente do campo da saúde mental. O conceito de Comunidade Terapêutica surgiu na década de 1950 na Inglaterra com o propósito de tratamento da então nomeada “neurose de guerra” em soldados ingleses, a partir das observações clínicas do psiquiatra do exército inglês Maxwell Jones (Damas 2013DAMAS, Fernando. (2013), “Comunidades Terapêuticas no Brasil: expansão, institucionalização e relevância social”. Rev. Saúde Públ. Santa Cat., vol. 6, nº 1: 50-65, jan./mar. ). Assumiu-se naquele momento o pressuposto de que quem melhor entendia e era capaz de abordar o sofrimento de um veterano de guerra era um outro veterano de guerra: só os pares seriam capazes de entender o sofrimento compartilhado. Vem daí a ideia de uma “comunidade” de pares com potencial terapêutico.

O modelo das Comunidades Terapêuticas surgiu, portanto, historicamente, como uma alternativa democrática contrária ao projeto manicomial, reduzindo o protagonismo médico e enfatizando a centralidade das relações “horizontalizadas” e a troca entre pacientes e familiares em um ambiente comunitário como proposta terapêutica para o sofrimento psíquico.

De acordo com Damas (2013DAMAS, Fernando. (2013), “Comunidades Terapêuticas no Brasil: expansão, institucionalização e relevância social”. Rev. Saúde Públ. Santa Cat., vol. 6, nº 1: 50-65, jan./mar. ), as CTs voltadas exclusivamente para o tratamento das chamadas “toxicomanias” surgiram nos anos 1960, em duas versões: uma versão mais institucional baseada na ajuda mútua e nos doze passos - Alcóolicos Anônimos (AA) - (Modelo Minnesota); e uma outra versão mais comunitária que propunha “um novo lar”, uma nova comunidade para dependentes químicos e seus familiares (Modelo Synanon). Esse segundo modelo prescrevia, ainda segundo Damas, que o “comportamento desviado” do dependente químico só poderia ser corrigido por novas formas de convívio e métodos terapêuticos.

Boa parte do debate público sobre Comunidades Terapêuticas no Brasil se faz assim em dois campos: a) um mobilizado principalmente pelos profissionais de saúde mental, que se centra em uma discussão sobre o modelo de funcionamento das “comunidades terapêuticas”, onde se discute se esse termo cabe ou não aos centros de recuperação religiosos, e no qual se acumula uma forte crítica a esses espaços e suas práticas; b) no outro campo, dos operadores dessas instituições, vemos atores preocupados em responder aos critérios públicos (marcos regulatórios; perfis de cadastros e editais) que tentam definir qual o perfil adequado a uma “comunidades terapêutica”, já que essas instituições só se definem como tal na interface com essas políticas públicas. Ainda nesse segundo campo, encontram-se também projetos preocupados com os limites que a adesão ao modelo formal da CT pode trazer para seus espaços. Brandão e Teixeira (2021BRANDÃO, Beatriz; TEIXEIRA, César. (2021), “Crime e Pentecostalismo no Rio de Janeiro: algumas considerações sobre a experiência da conversão em centros de recuperação pentecostais”. Lusotopie, XX (1-2). ) apontam em seu trabalho que muitos projetos que atuam nesse campo fazem uso intencional e propositivo em suas nomenclaturas do termo “centro de recuperação”, e não CTs.

Apesar de saberem que na linguagem jurídica assim são denominados, reivindicam uma identidade própria, diferenciada da representação mais ampla das CTs. Com base em traços importantes do universo pentecostal, eles avaliam que suas iniciativas vão além das CTs (por eles rotuladas como “tradicionais”), uma vez que apostam não somente na abstinência do uso de drogas como método de tratamento, mas também na “construção de um novo homem” (:2-3).

Podemos assim dizer que o uso do temo “comunidade terapêutica” como modo de nomear os centros de recuperação que existem há décadas no Brasil foi consequência da intensificação da relação dessas instituições com o Estado brasileiro por meio de sua inclusão em políticas públicas governamentais. E essa categoria só faz sentido nessa relação. Sendo assim, uma parte considerável dos “centros de recuperação” e seus voluntários funcionam até hoje sem se identificarem com a categoria “comunidade terapêutica”.

A relação dos centros de recuperação com o poder público foi por muitos anos bastante incipiente e mesmo nula no Brasil, tanto no que diz respeito aos recursos a ela aportados, quanto à sua fiscalização. No ano de 2011, primeiro ano do governo Dilma Rousseff, com o lançamento do programa Crack: é possível vencer, o governo federal passou a contratar vagas em Comunidades Terapêuticas, por meio da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas - SENAD, com recursos oriundos do Fundo Nacional Antidrogas (FUNAD). A categoria Comunidade Terapêutica foi então formalmente adotada no âmbito da política pública implementada nesse período como forma de caracterizar os centros de recuperação já em atividade no país e, de alguma forma, definir seu perfil. Estima-se que existam hoje aproximadamente 2 mil instituições com esse perfil em atividade em todo território nacional (Fiore; Rui 2021FIORE, Mauricio; RUI, Taniele. (2021), “O fenômeno das Comunidades Terapêuticas no Brasil: experiências em zonas de indeterminação”. In: M. Fiore; T. Rui (ed.). Working Paper Series: Comunidades Terapêuticas no Brasil . Social Science Research Council - Drugs, Security and Democracy Program.).

A formalização gradativa das relações do Estado brasileiro com essas entidades conformou um coletivo antes disforme sob o guarda-chuva da categoria “comunidades terapêuticas”. Sua integração ao serviço de atendimento aos “dependentes químicos”, como uma das organizações formalmente incorporada ao programa público de enfrentamento às drogas, foi o principal desencadeador da formulação de sua existência como um problema público. As agora chamadas “comunidades terapêuticas” tornaram-se, portanto, formalmente prescritas pelo estado brasileiro como parte integrante e indispensável na Política Nacional de Drogas, na fronteira entre saúde, justiça e assistência social. Desde então, um amplo debate nacional se constituiu em torno desse tema, e a demanda por “regulação” e “fiscalização” sobre as práticas dessas Comunidades Terapêuticas ganhou um importante espaço no debate. Como pano de fundo, questionava-se o tipo de tratamento realizado nessas instituições.

A meticulosa análise de Brandão e Teixeira (2021BRANDÃO, Beatriz; TEIXEIRA, César. (2021), “Crime e Pentecostalismo no Rio de Janeiro: algumas considerações sobre a experiência da conversão em centros de recuperação pentecostais”. Lusotopie, XX (1-2). ) dessa questão, e sua escolha pelo uso do termo “centro de recuperação”, coaduna-se diretamente com a abordagem de seus trabalhos que se desenvolvem com base em pesquisas nesses espaços, e com o recorte analítico sobre o tema da mudança individual, do testemunho, da conversão e da recuperação (Teixeira, Brandão 2019TEIXEIRA, César; BRANDÃO, Beatriz. (2019), “Sobre as formas sociais da mudança individual: o testemunho em centros de recuperação pentecostais”. Revista Anthropológicas , ano 23, 30(1): 136-157. ; Brandão, Carvalho 2016BRANDÃO, Beatriz; CARVALHO, Jonatas. (2016), “‘Aqui não é uma comunidade terapêutica’: entre a diversidade e normatividade em tratamentos com usuários abusivos de drogas”. Revista Teias, vol. 17, nº 45, abr./jun.; Teixeira 2016). Ao longo deste artigo, opto por usar as duas nomenclaturas de forma alternada, apesar do risco dessa escolha difusa. No campo mais geral de questões sobre este tema, essa fronteira não é definida de forma precisa, e essa indefinição marca o debate público sobre as CTs, e o campo dos problemas sociais no qual estas se inserem. Esses projetos ora agem e são tratados como um conjunto mais coeso - contexto em que geralmente usa-se o termo Comunidade Terapêutica -, e ora são pensados a partir de suas particularidades, situacionalidades e em seu contidiano de práticas - âmbito no qual predomina a nomenclatura Centro de Recuperação. Essa tensão e imprecisão interessam como cenário do debate que acompanha este trabalho e por isso preservo o uso dos dois termos.

Há mais de uma década as políticas relacionadas às CTs mudaram muito, atravessando os governos Dilma, Temer e Bolsonaro. Descrever toda a instutionalidade desse processo (muito rico e revelador) seria um outro trabalho, e esse não é o objetivo específico deste texto. Mas vale dizer que o presente artigo está sendo elaborado no momento das controvérsias1 1 Um governo manicomial? Pela revogação do decreto 11.392/2023! Pelo fim dacomunidades terapêuticas! Por Pedro Henrique Antunes da Costa, de Juiz de Fora (MG). Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2023/02/01/um-governo-manicomial-pela-revogacao-do-decreto-11-392-2023-pelo-fim-das-comunidades-terapeuticas/. Acesso em: 01/02/2023. que envolvem a criação do Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas (Decreto nº 11.392/2023) dentro da Secretaria Executiva do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, no primeiro mês do governo Lula (2023-2026).

O objetivo desta reflexão, no entanto, não é discutir o processo de formalização das comunidades terapêuticas enquanto parte de políticias públicas específicas, mas analisar as fronteiras de vulnerabilidade social que fazem com que pessoas muito diferentes procurem esses equipamentos para o cuidado de si ou de seus familiars. Neste artigo pretende-se analisar com atenção não o que as práticas estatais fazem faltar no cotidiano dessas pessoas, mas sobre o que fazem exceder em suas vidas, fazendo-as chegar até uma CT.

O debate sobre as Comunidades Terapêuticas é em geral articulado ao tema das políticas de saúde mental, seus desafios, recursos e equipamentos disponíveis. Sobre esse tema, mais do que relevante, há trabalhos tais como os de Pitta (2011PITTA, Ana Maria Fernandes. (2011), “Um balanço da reforma psiquiátrica brasileira: instituições, atores e políticas”. Ciência e Saúde Coletiva, vol.16, nº12: 4579-4589. ), Bolonheis-Ramos e Boarini (2015BOLONHEIS-RAMOS, Renata C. M.; BOARINI, Maria Lucia. (2015), “Comunidades terapêuticas: ‘novas’ perspectivas e propostas higienistas”. História, Ciências, Saúde-manguinhos, 22(4). ), e Barretto e Merhy (2021BARRETO, Leandro; MERHY, Emerson. (2021), “Comunidades Terapêuticas: um estudo sobre acesso e barreira a cuidados em saúde”. In: M. Fiore; T. Rui. (ed.). Working Paper Series: Comunidades Terapêuticas no Brasil. [S. l.]: Social Science Research Council - Drugs, Security and Democracy Program.). No entanto, para enfrentar os desafios colocados por uma antropologia das margens, tal como sugerida por Das e Poole (2004DAS, Veena; POOLE, Deborah. (2004), Anthropology in the margins of the state: comparative etnhographies. Santa Fe: School of American Research Press. ), faz-se relevante um deslocamento da perspectiva da ausência, e o desenvolvimento de análises sobre o modo como, na gestão das margens, o estado se faz presente em formas de governo, operando inclusive por meio do excesso de políticas públicas violentas e asfixiantes voltadas às populações marginalizadas. Sob essa perspectiva, é possível perceber que, para as pessoas que chegam às CTs, algumas políticas públicas são fartas e engrossam a frente violenta do Estado que os reprime e oprime: esse é o caso da segurança pública e da justiça; da polícia e do encarceramento. Estas são “acessíveis”, na verdade, excessivas, e estão sempre por perto, rondando, prontas a dar-lhes um lugar nas delegacias e nas prisões.

A proposta deste artigo é ainda informada pelas discussões sobre uma antropologia das políticas públicas, tal como formulada por Souza Lima e Castro (2015SOUZA LIMA, Antonio; CASTRO, João. (2015), “Notas para uma Abordagem Antropológica da(s) Política(s) Pública(s)”. Revista Anthropológicas, ano 19, 26(2): 17-54. ), em particular no que diz respeito a uma reflexão sobre políticas governamentais. De acordo com estes autores (:35):

As políticas governamentais devem ser entendidas como planos, ações e tecnologias de governo formuladas não só desde organizações administrativas de Estados nacionais, mas também a partir de diferentes modalidades de organizações que estão fora desse âmbito, mas que exercem funções de governo.

No plano macro, os autores apontam, dentre as organizações que exercem funções de governo, organismos multilaterais de fomento e cooperação técnica internacional. Em um plano mais nacional ou local, indicam ONGs e movimentos sociais. E sintetizam:

Redes sociais muito abrangentes, conteúdos simbólicos e formas sociais variadas, e muitas vezes em confronto entre si, participam dos jogos de poder que se estabelecem em torno do reconhecimento de um conjunto de relações sociais como matéria para intervenção governamental, nomeando-as e gerando programas de ações sobre as mesmas, dotados de amplo reconhecimento social, com fundos estáveis que os suportem, com estratégias e táticas de ação a eles acopladas (Souza Lima; Castro 2015:36).

Este artigo pretende argumentar que o que sustenta a existência de tantas Comunidades Terapêuticas hoje no Brasil não é apenas a ausência de equipamentos de saúde mental para tratamento da adicção, mas a presença ativa do estado na criminalização de territórios e pessoas por meio de sua abordagem política da questão das drogas, e os efeitos asfixiantes dessa política, dentre eles o encarceramento em massa. Essa perspectiva não se ocupa de uma defesa ou crítica desses centros de recuperação, mas do enfrentamento desse debate a partir do ponto de vista da relação entre religião e violência nas periferias urbanas, contexto no qual essas problemáticas se inserem.

Comunidades Terapêuticas e o dispositivo da justiça no Brasil

Há uma evidente tensão no que se refere à temática da política nacional de drogas entre os campos médico e jurídico. O livro Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça: proximidades e opiniões, organizado por Vilma Bokany (2015BOKANY, Vilma (org.). (2015), Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça: proximidades e opiniões. São Paulo: Editora Perseu Abramo.), apresenta uma síntese desse debate, evocando uma importante crítica às políticas proibicionistas e à criminalização das drogas e seus usuários. As práticas do campo da justiça no Brasil operam por uma perspectiva repressiva que vê a “droga” como questão de polícia. O argumento a partir do campo da saúde, por outro lado, tende a recusar o modelo da criminalização, apresentando a droga como “problema de saúde”, ou seja, pela sua patologização. Apesar de a maior parte os debates públicos sobre as CTs (e seus problemas) se dar a partir da temática do “tratamento”, pensado a partir da saúde mental, as articulações densas entre as CTs e as políticas de segurança pública - que tomam as “drogas” como problema de polícia - são menos analisadas. Essas questões da convergência de agendas entre as CTs e o campo da justiça podem ser acompanhadas tanto no poder executivo como mais recentemente no legislativo.

Sobre o poder executivo, em seu artigo denominado “Marco normativo das comunidades terapêuticas no Brasil: disputas de sentido e nós jurídicos”, Resende (2021RESENDE, Noelle. (2021), “Marco regulatório das Comunidades Terapêuticas no Brasil: disputas de sentido e nós jurídicos” In: M. Fiore; T. Rui (ed.). Working Paper Series: Comunidades Terapêuticas no Brasil . Social Science Research Council - Drugs, Security and Democracy Program. :08) afirma que as normas aplicáveis às CTs dividem-se entre normas publicadas pelo Ministério da Saúde (MS), concernentes à saúde mental e à vigilância sanitária; pelo Ministério da Justiça (MJ - posteriormente Ministério da Justiça e Segurança Pública), especificamente editadas pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD); pelo Ministério da Cidadania, por meio da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (SENAPRED); da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); e leis em sentido estrito, de competência do Congresso Nacional.

Uma das conclusões de Resende (2021RESENDE, Noelle. (2021), “Marco regulatório das Comunidades Terapêuticas no Brasil: disputas de sentido e nós jurídicos” In: M. Fiore; T. Rui (ed.). Working Paper Series: Comunidades Terapêuticas no Brasil . Social Science Research Council - Drugs, Security and Democracy Program. ) reforça a perspectiva analítica deste artigo sobre a complexidade da questão das CTs, e o rendimento de tratá-las sobre a pespectiva de uma antropologia do campo das políticas públicas, como proposto por Souza Lima e Castro (2015). Afirma Resende (:9):

A partir dos estudos realizados, tornou-se nítido que as CTs não se constituem especificamente como um instituto com tratamento jurídico próprio. Arrisca-se afirmar que a permanência de ambivalências legais, paradoxalmente, permite seu fortalecimento institucional, em um jogo de forças que contempla os campos político, jurídico e social.

Retomando o recorte deste artigo na relação entre o campo das CTs e as políticas de justiça e segurança pública, proponho uma breve análise do processo de formulação do Marco Regulatório das Comunidades Terapêuticas (de 2015), gestado não no Ministério da Saúde, mas no Ministério da Justiça, junto com a Política Nacional sobre Drogas no Brasil.2 2 Sobre os marcos regulatórios para Comunidades Terapêuticas - (Fiore; Rui 2021:09): “Um olhar panorâmico salienta algumas das normativas que compõem tal marco regulatório: a LRP, que redireciona a atenção em saúde mental com o fim do modelo asilar; a Portaria nº 3.088/2011 do MS, que estabelece a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), na qual se incluem as CTs; a Portaria nº 131/2012 do MS, que institui os critérios para o financiamento público para a saúde; a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 29/2011 da ANVISA, que determina critérios para o licenciamento sanitário das instituições de atenção; a Resolução nº 1/2015 do CONAD, considerada o marco regulatório específico das CTs; e a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), cuja alteração, em 2019, incluiu uma seção sobre as CTs”. Em 2015, o CONAD (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) trabalhou por mais de um ano na elaboração de um conjunto de normas disciplinadoras voltada para as Comunidades Terapêuticas. Essas diversas regras foram consolidadas no Marco Regulatório das CTs (Resolução nº 1 do CONAD), publicado em agosto de 2015. De acordo com Santos (2018SANTOS, Maria Paula. (org.). (2018), Comunidades Terapêuticas: temas para reflexão . Rio de Janeiro: IPEA . ), a resolução do CONAD de 2015 teve seus efeitos suspensos por medida liminar, em agosto de 2015, a pedido do Ministério Público Federal. O autor da liminar considerou que as CTs não poderiam ser regulamentadas pelo CONAD, que é um órgão do Ministério da Justiça, já que elas seriam equipamentos de saúde, devendo, portanto, ser disciplinadas somente pelo Ministério da Saúde.

Ainda segundo Santos (2018SANTOS, Maria Paula. (org.). (2018), Comunidades Terapêuticas: temas para reflexão . Rio de Janeiro: IPEA . ), o questionamento do Marco Regulatório foi apoiado por diversas organizações da sociedade civil e pelos conselhos profissionais de psicologia e serviço social, que questionavam o fato de a regulação não exigir a presença de profissionais de saúde capacitados e credenciados na gestão das CTs; não definir o órgão responsável pela fiscalização das exigências da própria resolução; e não especificar as formas de articulação das CTs com o sistema de saúde. A base desses questionamentos era o relatório das inspeções realizadas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP 2011), e as denúncias sobre violações de direitos nessas instituições. A liminar de 2016 foi derrubada, e em junho de 2018 restituiu-se a validade da Resolução CONAD nº 1 de 2015 como Marco Regulatório das Comunidades Terapêuticas.

Acompanhando o movimento político das CTs, Doudement e Conçeição (2018DOUDEMENT, Marcello; CONCEIÇÃO, Vinnie. (2018), “Frente Parlamentar em defesa das Comunidades Terapêuticas”. In: M. P. Santos (org.). Comunidades Terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA. ) destacam que, nos últimos anos, o caminho prioritário desenvolvido por esse campo foi aquele da relação entre as Federações das CTs e o Poder Executivo nacional, via conselhos, como o então COFEN (Conselho Nacional de Entorpecentes) e o CONAD (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas).

Pensando outras particularidades das ações políticas em torno das CTs, Doudement e Conçeição (2018DOUDEMENT, Marcello; CONCEIÇÃO, Vinnie. (2018), “Frente Parlamentar em defesa das Comunidades Terapêuticas”. In: M. P. Santos (org.). Comunidades Terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA. ) apontaram que as articulações via Poder Legislativo ganharam força nas duas últimas legislaturas (54a e 55a) por meio do fortalecimento de Frentes Parlamentares em defesa das Comunidades Terapêuticas (FPCTs). O trabalho de Barroso (2020BARROSO, Priscila Fanfan. (2020), Comunidades Terapêuticas como política de Estado: uma análise sobre a inclusão deste modelo de cuidado nas políticas sobre drogas no Rio Grande do Sul. Rio Grande do Sul: Tese de Doutorado em Antropologia Social, UFRGS. ) nos apresenta a diversidade e complexidade do processo de formação desse campo político, e dos atores políticos que se articulam em torno da questão das CTs. Em sua tese de doutorado, Barroso analisa a atuação de seus representantes em Conselhos, as estratégias de mobilização política das Federações, e as articulações com atores do executivo, não apenas no nível federal.

Para os fins dessa discussão, destaca-se na análise de Doudement e Conçeição (2018DOUDEMENT, Marcello; CONCEIÇÃO, Vinnie. (2018), “Frente Parlamentar em defesa das Comunidades Terapêuticas”. In: M. P. Santos (org.). Comunidades Terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA. ) dentre as características e objetivos das Frentes Parlamentares em defesa das CTs, sua articulação com a agenda política das APACs - Associações de Proteção e Assistência aos Condenados - formando a FPCT-APAC. As APACs são um modelo alternativo de execução penal que está sendo adotado em diferentes estados da federação brasileira. Nas APACs os próprios recuperandos são corresponsáveis pela sua recuperação e têm assistência espiritual, médica, psicológica e jurídica prestada pela comunidade, por meio do voluntariado.3 3 “Essa revolução começou com um grupo de voluntários cristãos que tentava, nos anos 1970, acompanhar os detentos em seu tempo livre. Sua capacidade de relacionar-se com eles levou, poucos anos depois, ao pedido para administrar um pavilhão penitenciário. Hoje existem 50 centros APAC no Brasil que integram o sistema prisional público através de um convênio administrativo que custa um terço do que o Estado paga por um detento comum: 3 mil reais frente a 950 reais. Uma vez fora, a taxa de reincidência dos presos que passam pelo sistema comum é de 85%, contra 15% no caso da APAC. O método já inspira iniciativas similares em outros países da América Latina. Na Colômbia, está em estudo sua aplicação aos detentos da FARC.” (El País, 25 de agosto de 2017) Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/24/politica/1503582779_209546.html Acesso em: 15/07/2019.

As APACs são hoje abordadas por muitos interlocutores do campo jurídico como um projeto modelo no campo da justiça brasileira. O elemento religioso aparece tratado em sua positividade, tanto no que diz respeito à moralização dos sujeitos quanto à sua competência cuidadora não violenta dos “condenados”. As APACs propõem-se a “proteger” e “assistir” aos condenados, e a assistência espiritual é elemento fundamental desse projeto.

Segundo Doudement e Conçeição (2018DOUDEMENT, Marcello; CONCEIÇÃO, Vinnie. (2018), “Frente Parlamentar em defesa das Comunidades Terapêuticas”. In: M. P. Santos (org.). Comunidades Terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA. ), um dos principais argumentos da Frente Parlamentar a favor da ampliação de verbas para as CTs é a justificativa de que “é muito mais barato para o Estado investir em CTs do que no sistema prisional comum” (Biondini, criador da FPCT-APAC, março de 2017 - em entrevista aos autores).

Observando a frente formada pela articulação FPCT-APAC, e por meio de todo o histórico da questão das CTs e sua relação com o poder executivo, em particular com o Ministério da Justiça, pode-se identificar uma relação explícita das CTs com o dispositivo da violência no Brasil. No campo da saúde, as CTs situam-se (de forma tensa) na rede que articula hospitais e CAPS: locais de tratamento da “droga” como doença. No campo da justiça, as CTs compõem (de forma quase invisível) o quadro formado pelas prisões e pelas APACs: espaços de ressocialização, da droga como elemento central dispositivo da criminalização das populações pobres brasileiras. Enquanto boa parte dos “problemas” das CTs são discutidos no campo da saúde, se analisados os termos do debate com base no campo da justiça, as CTs inscrevem-se como solução para o estado. A religião que se formula como “perigo” no âmbito da saúde é “solução” disciplinar e de controle para o campo da justiça.

Pentecostalismo e segurança pública

Há quase duas décadas muitos pastores que atuam em contextos violentos nas periferias urbanas do Rio de Janeiro exercem uma missão jurídico-espiritual, diretamente articulada a equipamentos de justiça e segurança pública no estado do Rio de Janeiro. Retomo aqui, como exercício reflexivo, algumas das pesquisas que desenvolvi nos últimos anos sobre esse campo, de forma a qualificar com mais especificidade as questões sobre as quais penso o tema das Comunidades Terapêuticas hoje. Adianto, no entanto, desde já, que o objetivo desta revisão é não apenas retomar um aspecto processual desta pesquisa e do campo, mas identificar elementos que foram abandonados e que já apontavam para a centralidade dos Centros de Recuperação como o campo de mediação mais qualificado a partir do qual deveria-se pensar a relação entre pentecostalismo e o dispositivo da violência.

A hipótese que pretendo seguir desenvolvendo aqui de forma mais qualificada (Machado 2021MACHADO, Carly. (2021), “Presos do lado de fora: comunidades terapêuticas como zonas de exílio urbano”. In: M. Fiore; T. Rui. (ed.). (2021), Working Paper Series: Comunidades Terapêuticas no Brasil . Social Science Research Council - Drugs, Security and Democracy Program. :148-149) é a de que os centros de recuperação pentecostais, existentes há pelo menos cinco décadas no Brasil, são centrais e, sugere-se, inaugurais desse esforço de mediação política, religiosa e territorial, realizada nas periferias urbanas e pesquisadas com mais fôlego nos anos 2000. A condição difusa e imprecisa desses centros de recuperação, a explosão de práticas experimentadas nesses espaços diante do enfrentamento da radicalidade das situações vividas nesses contextos, e sua quase invisivilidade até poucos anos atrás, configuraram a base de muitos fenômenos que foram descritos posteriormente acerca da relação entre pentecostalismo e violência, seja na perspectiva da mediação pentecostal junto ao mundo do crime, ou da participação pentecostal na gestão de populações como parte de uma governança estatal.

Cabe reforçar que nesse contexto marcado por regimes de governo estatal e criminal, o pentecostalismo se apresenta encharcado de ambivalências das fronteiras e passagens entre o controle e o cuidado; o acolhimento e a imposição da disciplina; a escuta aberta e o proselitismo. Isso se dá porque, muitas vezes no jogo de forças que se impõe, há poucas rotas efetivamente possíveis de fuga. E, até onde essa pesquisa alcança, o pentecostalismo é também uma delas. Se muito se sabe sobre a produção e a reprodução da violência, ainda se tem muito a aprender sobre as rotas de fuga dessas dinâmicas violentas. Como analisado por Brandão e Teixeira (2021BRANDÃO, Beatriz; TEIXEIRA, César. (2021), “Crime e Pentecostalismo no Rio de Janeiro: algumas considerações sobre a experiência da conversão em centros de recuperação pentecostais”. Lusotopie, XX (1-2). ), centros de recuperação dedicam-se não ao tratamento da adicção, mas à “reconstrução da vida”, dentro de suas possibilidades e seus limites. Em condições brutais de existência, o cálculo do “melhor para a vida” ou da “vida possível” esgarça os limites do aceitável e do suportável (Machado 2021MACHADO, Carly. (2021), “Presos do lado de fora: comunidades terapêuticas como zonas de exílio urbano”. In: M. Fiore; T. Rui. (ed.). (2021), Working Paper Series: Comunidades Terapêuticas no Brasil . Social Science Research Council - Drugs, Security and Democracy Program. :158-159).

Analisar as CTs por esse ponto de vista significa experimentar pensá-las como um grande laboratório de práticas, discursos, símbolos, políticas e rituais que se espalharam nas últimas décadas através de diferentes atores sociais, ocupando territórios periféricos e projetos de governo de populações urbanas, sempre na tênue fronteira entre cuidado e controle. Para pensar esse processo, volto, então, finalmente, a algumas pesquisas realizadas anteriormente.

De 2010 a 2015 desenvolvi pesquisa de campo na Assembléia de Deus dos Últimos Dias - ADUD.4 4 Projeto de pesquisa “Crime e religião: mediadores sociais do processo de pacificação na região metropolitana do Rio de Janeiro” (2011-2015). Financiamento FAPERJ - APQ1 - Edital de apoio à pesquisa, 2012. Em artigo de 2012 (Birman; Machado 2012BIRMAN, Patricia; MACHADO, Carly (2012), “A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 27: 55-69.), analisamos a trajetória de seu líder, Pastor Marcos Pereira, conhecido no estado do Rio de Janeiro à época como um pastor que fazia pregações em delegacias, mediava rebeliões em prisões, e ajudava a afastar pessoas envolvidas com o tráfico. Suas ações no presídio da Ilha Grande, na década de 1990, constituíam uma referência central das motivações que teriam dado origem ao seu Ministério e à Igreja (ADUD). No período da pesquisa, o Pastor conduzia uma igreja na Baixada Fluminense/RJ formada majoritariamente por “ex-bandidos”, e era conhecido por fazer incursões em favelas para resgatar da morte (termo nativo) pessoas condenadas pelo chamado tribunal do tráfico. Identificamos, naquele momento, que a referência à origem de seu ministério em suas práticas missionárias no presídio da Ilha Grande era reveladora da maneira pela qual ele se concebia como alguém cujo mandato divino não só ajudaria o Estado a lidar com as populações marginais, mas também a corrigir suas falhas: o Pastor buscava agir onde o Estado se mostraria incapaz de impor sua ordem (Birman; Machado 2012:58).

Em outro artigo, este de 2017 (Machado 2017MACHADO, Carly. (2017), “The church helps the UPP, the UPP helps the church: pacification apparatus, religion and boundary formation in Rio de Janeiro’s urban peripheries”. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, 14(3), e143075.), analisei outra faceta da relação dessa igreja com projetos de governança no Rio de Janeiro, ao tratar do fluxo institucional e de pessoas entre a Assembleia de Deus dos Últimos Dias (ADUD) e uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro. O objetivo desse artigo foi analisar o dispositivo de pacificação como um conjunto de discursos, práticas e imaginários ligados à política de pacificação enquanto projeto de segurança pública do RJ, capaz de articular atores estatais, religiosos, culturais e midiáticos. O trânsito de sujeitos entre igreja e UPP era marcado por casos que na triagem informal dos policiais não seriam casos de justiça, ao menos não ainda, e eram conduzidos à igreja para que ali ficassem até estarem em condições de retornarem aos seus locais de moradia.

A justificativa para o aparentemente inusitado deslocamento temporário de uma pessoa para viver dentro de uma igreja, e para sua tutela, era seu envolvimento com as drogas e/ou com o crime. Na prática e nos detalhes, os casos eram muito variados, mas a articulação UPP-igreja era bastante sólida e institucionalizada. Uma das cerimônias analisadas nesse texto foi um culto realizado na própria unidade de polícia pacificadora como parte de ato oficial de celebração do primeiro ano da referida UPP. Um dos líderes e pregadores da ADUD fez seu agradecimento à UPP referindo-se à Política de Pacificação como algo que veio fortalecer o trabalho das igrejas nas favelas, este, sim, já presente nas comunidades cariocas antes das UPPs, segundo o evangelista. Como testemunho vivo da parceria da ADUD com a UPP, uma jovem foi apresentada no evento devidamente recuperada pela ADUD para a sociedade, vestida no roupão típico utilizado pelas mulheres da igreja. A jovem foi convidada para partir o primeiro pedaço do bolo que comemorava o aniversário da UPP.

Em sua análise sobre as articulações entre o religioso e o secular no âmbito da política de pacificação no Rio de Janeiro, Birman (2012BIRMAN, Patricia. (2012), “Cruzadas pela paz: práticas religiosas e projetos seculares relacionados à questão da violência no Rio de Janeiro”. Religião & Sociedade, 32(1): 209-226.) afirma que, no contexto das políticas públicas desenvolvidas, cresceram, de um lado, o ataque armado a essas populações e, de outro, as formas de gestão direcionadas para fins sociais e pedagógicos. Nesse dispositivo caberia então a algumas instituições o trabalho de civilizar/educar/redimir/moralizar: responsabilidade essencialmente das agências nacionais e internacionais, das ONGs e também das igrejas e grupos religiosos.

O projeto redentor da Assembleia de Deus dos Últimos Dias (ADUD) sempre foi explicitamente associado ao centro de recuperação gerido pela igreja, o Instituto Vida Renovada (IVR). Localizado em um sítio na cidade de Nova Iguaçu no início dos anos 2010, o IVR foi analisado no trabalho de referência desenvolvido por Janine Targino (2017TARGINO, Janine. (2017), “Comunidades terapêuticas religiosas: estudo de caso sobre uma comunidade pentecostal e uma comunidade católica carismática”. Revista Café com Sociologia, vol. 6, nº 2, maio-jul.). Meu campo de pesquisa, na época, restringiu-se ao espaço da igreja em São João de Meriti, e concentrei-me assim a pensar as ações do Ministério a partir da igreja. Hoje, revendo todo esse processo sob a perspectiva das questões em torno das Comunidades Terapêuticas, identifico a centralidade política do IVR no Ministério da ADUD e do Pastor Marcos Pereira - fato que não abordei à época.

O coletivo dos ex-bandidos da ADUD só se fazia viável enquanto missão urbana político-religiosa por ter como instituição de referência o Instituto Vida Renovada (IVR): uma comunidade terapêutica formalmente definida como entidade de Utilidade Pública Estadual pela lei nº 5.712/2010 no estado do Rio de Janeiro. Se a presença simbólica daqueles homens na cena pública fluminense se fazia a partir de sua imagem pouco definida de “ex-bandidos”, sua condição política, diante do estado, era legitimada por um deslizamento que os inscrevia nessa relação não pela égide do crime, mas como pessoas em tratamento pelo uso problemático de drogas. A “ADUD” não era apenas uma igreja, mas um projeto político-religioso composto por igreja e centro de recuperação.

A experiência da ADUD é uma resultante do complexo laboratório de práticas urbanas que relaciona pentecostalismo e violência nas periferias do Rio de Janeiro (Leite 2013LEITE, Marcia. (2013), “Dor, sofrimento e luta: fazendo religião e política em contexto de violência”. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, año 15, nº 19: 31-47, jul./dic. ). E além de um Ministério composto por CT e igreja, a ADUD modulava uma relação que foi capaz de forjar, do outro lado, a figura de um sujeito composto que condensava em camadas mais ou menos aderidas as ideias de bandido, preso e drogado, em um complexo jogo de tempo e espaço.

O presente na igreja/CT era oferecido como uma forma de livrar-se do passado formado por um emaranhado indistinto e impreciso de experiências extremas derivadas de relações com as drogas, o crime e o cárcere. No futuro, impunha-se um horizonte envenenado 5 5 Tomo aqui como referência a ideia de “conhecimento envenenado” de Das: “se a maneira de estar com os outros foi brutalmente ferida, então o passado entra no presente não necessariamente como uma recordação traumática, mas como conhecimento envenenado” (Das 2008:244). (Das 2008DAS, Veena. (2008), “El acto de presenciar: violencia, conocimiento envenenado y subjetividade”. In: F. A. Ortega (ed.). Veena Das: sujetos del dolor, agentes de dignidad. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia: Instituto Pensar. : 217-250.) que apontava uma vida definhando na prisão e a morte. Os testemunhos dos ex-bandidos combinavam narrativas sobre violências e torturas vividas no cotidiano criminal, mas também no dia a dia prisional. O tráfico não era o único agente de suas dores e sofrimentos, mas também o estado - por meio do encarceramento e da temporalidade perversa do sistema de justiça. O pastor orava pelos “alvarás” jurídicos e espirituais que concederiam liberdade àqueles que viviam sob a opressão violenta de atores diversos, e que buscavam o apoio da igreja.

Sendo assim, não só “ex-bandidos” ou “ex-drogados”, esses sujeitos eram abordados pelos projetos pentecostais enquanto “ex-detentos” ou “quase-detentos”. E sob essa perpectiva, a força geradora de seus trânsitos que merece nossa atenção não é o crime, mas a prisão.

O cárcere como horizonte inescapável: criminalização, circulação e controle

A relação mais geral entre o pentecostalismo e encarceramento vem sendo abordada por diferentes perspectivas, contando com análises que tratam do tema da conversão e do cotidiano prisional (Scheliga 2005SCHELIGA, Eva. (2005), “Sob a proteção da Bíblia: a conversão ao pentecostalismo em unidades penais paranaenses”. Debates do NER, ano 6, nº 8: 57-71, jul./dez.), abordagens sobre a problemática da ressocialização e sua articulação com projetos seculares e religiosos (Teixeira 2015TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. (2015), “‘Saindo do crime’: igrejas pentecostais, ONGs e os significados da ‘ressocialização’”. In: P. Birman; M. Leite; C. Machado; S. Carneiro (org.). Dispositivos urbanos e a trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro: FGV. ), dentre outras contribuições fundamentais a esse debate. A perspectiva que pretendo aqui enfatizar é a da relação entre pentecostalismo e encarceramento a partir das CTs, somando-se a um debate que pensa os modos como a prisão opera como um dispositivo de governo, uma tecnologia de gestão de populações, e de agenciamento e regulação de fluxos.6 6 Ver Godoi (2015), Mallart e Rui (2017), e Barbosa (2005). Assim, tal como postulado por Mallart e Rui (2017MALLART, Fabio; RUI, Taniele. (2017), Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas. Ponto Urbe, 21. :04), a prisão não deve ser lida apenas do ângulo do confinamento, mas também como um dispositivo que “faz circular”.

Assumindo como foco de discussão a prisão provisória, o debate conduzido por esses autores indica que muitas pessoas que entram e saem das prisões nunca deveriam ter entrado. Estas, segundo suas pesquisas, são em sua maioria consumidores de drogas apreendidos em operações policiais espetaculares; pessoas levadas presas para averiguação de antecedentes criminais; encarceradas por carregarem quantidades ínfimas de drogas para consumo próprio. “Criminalizadas por serem pobres, por estarem nas ruas, por serem sujas, por ofender a ‘ordem pública’, essas centenas de homens e mulheres têm o cárcere operando como horizonte inescapável, fazendo parte da caminhada, constituindo-se como uma etapa da vida que sempre retorna” (Mallart; Rui 2017MALLART, Fabio; RUI, Taniele. (2017), Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas. Ponto Urbe, 21. :8).

Essas pessoas que têm o “cárcere como horizonte inescapável”, mesmo que lá não cheguem, experimentam cotidianamente uma existência em risco, sofrimento, tensão, alerta. A questão que então se coloca para esses sujeitos é como viver nessa zona de fronteira. Diante da impossibilidade de sair dessa trama violenta, ela própria um modo de manter os sujeitos presos mesmo do lado de fora do cárcere, a indagação é como habitar esses territórios, existir no tempo presente, e tentar projetar uma vida futura.

O elemento analítico diferencial da análise de Mallart e Rui (2017MALLART, Fabio; RUI, Taniele. (2017), Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas. Ponto Urbe, 21. ) sobre a prisão provisória é a constatação de que esse período de parade, mesmo sob condições extremamente desfavoráveis, torna-se um momento de “reorganização” da vida e do corpo. Essa pausa forçada ativa o circuito da movimentação desses excedentes urbanos não tem um local para ficar, mas encontram lugares para parar circunstancialmente, e viver uma “rotina”:

Grande parte desses homens e mulheres que vão e voltam são apenas absorvidos pela rotina prisional. Nesse processo, não raro, engordam ou diminuem o uso da droga. Tantas vezes tendo circulado entre a prisão e a rua na última década, um dos nossos interlocutores que conhecemos na cracolândia nos provocou: “vou ser sincero com vocês, para mim hoje eu penso que estar na cadeia é tipo tirar um lazer, tá ligado? Eu tomava banho todo dia, me alimentava, dormia, da última vez engordei quatro quilos”. (Mallart; Rui 2017MALLART, Fabio; RUI, Taniele. (2017), Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas. Ponto Urbe, 21. :8)

A análise da vivência da rotina prisional no contexto da detenção provisória como reorganização básica da vida está longe de ser um elogio à estrutura carcerária. Os Centros de Detenção Provisória, discutidos por Mallart e Rui (2017MALLART, Fabio; RUI, Taniele. (2017), Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas. Ponto Urbe, 21. ), são aqui analisados contrastivamente com a radicalidade da vida na rua, marcada pelo consumo de drogas “num ritmo frenético, sem dormir e sem uma rotina de alimentação” (:8) e pela vida no cárcere que, “por suas próprias dinâmicas de funcionamento - racionamento de água, torturas, ausência de atividades de estudo e trabalho, etc. - é uma máquina de morte” (:8).

O que está em operação no aprisionamento não é, portanto, apenas uma engrenagem que retira homens e mulheres de circulação, ao confinar essas pessoas, mas uma “máquina que coloca para circular na qual o entra e sai, em si mesmo, figura como uma modalidade de controle” (Mallart; Rui 2017MALLART, Fabio; RUI, Taniele. (2017), Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas. Ponto Urbe, 21. :9).

Essa ideia de que colocar em circulação é uma forma de mecanismo de controle que impõe o movimento a certas pessoas tem sido corroborada por pesquisas sobre os circuitos institucionais, as transversalidades, e os arquipélagos que se formam pela combinação de diferentes equimentos pelos quais essas pessoas circulam, e de onde entram e saem.7 7 Mallart e Rui (2017), Mallart e Rui (2015), Mallart (2018) e Fernandes (2018). Sintetiza, assim, Mallart (2018MALLART, Fabio. (2019), “O arquipélago”. Tempo Social, 31(3): 59-79.:59), o mapa desse arquipélago:

Prisões, mas também unidades de internação para adolescentes, hospitais de custódia, comunidades terapêuticas, albergues, zonas urbanas como a chamada Cracolândia paulistana, serviços de acolhida para crianças e adolescentes em situação de risco, Centros de Referência de Assistência Social, voltados à prevenção de situações de vulnerabilidade (Cras) ou aos desdobramentos dessas situações (Creas), Centros de Atenção Psicossocial (Caps), entre uma diversidade de outros aparatos governamentais - o mapa transborda, ganha novas dimensões, está sempre em mutação (Mallart 2018:59).

No tratamento dado por Fernandes (2018FERNANDES, Adriana. (2018), “Quando os vulneráveis entram em cena: estado, vínculos e precariedade em abrigos”. In: J. Barros; A. Dal’bó da Costa; C. Rizek (org.). Os limites da acumulação, movimentos e resistência nos territórios. São Carlos: IAU/USP.) ao tema dos abrigos públicos para tratar a questão dessas transversalidades, a autora usa a imagem de “checkpoint disciplinar normativo” como um modo de pensar esses espaços onde as pessoas “dão um tempo” dos perigos da rua ou de outros perigos da cidade. Como forma de pensar esses dispositivos, Fernandes (2018:87) nos sugere uma perspectiva de pesquisa:

Farejar vínculos menos celebrados ou mesmo menosprezados institucionalmente, seja para pensarmos as políticas sociais não como blocos unívocos, fechados, nem como ponto de partida ou de chegada de direitos, mas como checkpoints em que sentidos, tensões e apropriações concernentes ao fazer Estado e ao fazer subjetividade despontam e se confundem.

Em trabalhos recentes (Machado 2021MACHADO, Carly. (2021), “Presos do lado de fora: comunidades terapêuticas como zonas de exílio urbano”. In: M. Fiore; T. Rui. (ed.). (2021), Working Paper Series: Comunidades Terapêuticas no Brasil . Social Science Research Council - Drugs, Security and Democracy Program. ), iniciei uma tentativa de buscar qualificar a presença das Comunidades Terapêuticas como parte desse arquipélago, ou seja, como parte das transversalidades desse aparatado governamental voltado à gestão das populações periféricas. Assim como os abrigos, mas com suas características específicas, as CTs fazem parte desse mecanismo de “fazer circular” sendo um dos espaços - que não a prisão - onde se “deixa ficar”, onde se pode parar ou morar por um tempo. Uma dessas encruzilhadas das políticas públicas que não são “nem ponto de partida ou de chegada de direitos”, nos termos de Fernandes (2018FERNANDES, Adriana. (2018), “Quando os vulneráveis entram em cena: estado, vínculos e precariedade em abrigos”. In: J. Barros; A. Dal’bó da Costa; C. Rizek (org.). Os limites da acumulação, movimentos e resistência nos territórios. São Carlos: IAU/USP.).

Destaca-se particularmente na presença específica das CTs nesse contexto um debate sobre os modos de articulação do religioso do secular neste aparato de controle e elaboração da violência na cidade. Retomo aqui, para uma formulação dessa questão, as análises desenvolvidas por Patricia Birman nos últimos anos.

Em sua discussão sobre o processo de construção da violência como problema nas últimas décadas, Birman (2012BIRMAN, Patricia; MACHADO, Carly (2012), “A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 27: 55-69.) tem discutido como as formas de governo, justificadas por modelos de controle de populações, vêm se constituindo nas relações entre o religioso e o secular no Brasil. Com o “problema da violência”, afirma a autora, foram se alterando as formas de habitar e circular na cidade, assim como as disposições subjetivas marcadas por novas modalidades de intervenção. Afirma Birman:

A categoria “violência” aumentou a sua abrangência e seus sentidos e se impôs como uma das justificativas centrais para reordenações necessárias dos espaços da cidade, desdobrando-se em políticas de repressão, de controle, de vigilância e também de medidas sócio-morais dos sujeitos que seriam seus alvos preferenciais. As mediações promovidas pelos atores religiosos no tratamento do “problema da violência” se desenvolveram ao longo desse processo e integraram os debates e também alguns dos dispositivos engendrados para governar a cidade, seus conflitos e suas populações. (:211)

Enquanto as análises advindas do campo de estudos da violência buscam ampliar a percepção dos múltiplos efeitos do encarceramento na vida nas cidades, o trabalho de Birman coloca uma lente na presença do religioso nesse conjunto expansivo e difuso de ações de governança marcadas por controle e cuidado:

O par religioso/secular em ações conjugadas veio a ser um poderoso instrumento no interior dos dispositivos de governo dos pobres. Com o objetivo de conter a criminalidade, de eliminá-la e de dominar os territórios em que supostamente ela se origina, forjaram-se modos de governar nos quais os usos correntes e cada vez mais expandidos da noção de crime tornaram mais complexa as relações entre esses domínios efetivamente entrelaçados. Surgiram novos atores, novas temáticas e novos modos de agir de religiosos e leigos nas igrejas, nas ruas e praças, na mídia, ocupando espaços públicos, impensáveis até pouco tempo atrás (Birman 2019BIRMAN, Patrícia. (2019), “Narrativas seculares e religiosas sobre a violência: as fronteiras do humano no governo dos pobres”. Sociologia & Antropologia, 9(1): 111-134.:117).

Nos últimos anos, as Comunidades Terapêuticas consolidaram-se como um importante campo de novos atores que operam mais intensivamente nessas fronteiras do religioso e do secular, como parte do dispositivo do governo das populações pobres e criminalizadas. Dialogando com estes trabalhos que qualificam a dimensão fronteiriça de equipamentos como os centros de detenção e os abrigos, sugeri um caminho de análise das CTs tendo como referência e ideia de “exílio” (Machado 2021MACHADO, Carly. (2021), “Presos do lado de fora: comunidades terapêuticas como zonas de exílio urbano”. In: M. Fiore; T. Rui. (ed.). (2021), Working Paper Series: Comunidades Terapêuticas no Brasil . Social Science Research Council - Drugs, Security and Democracy Program. ).8 8 Esta publicação, composta por 8 diferentes artigos, faz parte do Programa Working Paper Series do Social Science Research Council, que, em 2020/2021, foi dedicado à temática Comunidades Terapêuticas do Brasil. Essa atividade foi coordenada por Mauricio Fiore e Taniele Rio, editores da publicação final do Programa, e autores da Introdução ao Dossiê. Mais informações: https://www.ssrc.org/publications/working-paper-series-comunidades-terapeuticas-no-brasil/. Acesso em: 10/04/2023. Pensar as Comunidades Terapêuticas como “zonas de exílio urbano” permite uma ênfase na dimensão territorial desse circuito violento mobilizado pelo problema das drogas, sob o ponto de vista da expulsão.

Contextos periféricos urbanos são constituídos por formas de governo estatais, criminais e religiosas, com suas instituições, práticas, símbolos e discursos, cuja compreensão é indispensável para entender as dinâmicas do exílio urbano. Os conflitos urbanos se dão, portanto, na fronteira entre esses governos, que ora constituem o aspecto expulsivo da condição do exílio, ora seu caráter receptivo, ora o de trânsito. Como destaca Jensen, aqui nota-se um importante alerta para a pesquisa empírica: o fenômeno mutante do exílio pode assumir aforma de exclusões institucionalizadas (isto é, atos sancionados judicialmente) ou de situações factuais: escapes, fugas por medo de ser vítima de uma prisão ou de um homicídio (Machado 2021MACHADO, Carly. (2021), “Presos do lado de fora: comunidades terapêuticas como zonas de exílio urbano”. In: M. Fiore; T. Rui. (ed.). (2021), Working Paper Series: Comunidades Terapêuticas no Brasil . Social Science Research Council - Drugs, Security and Democracy Program. :150).

Na análise de Gabriel Feltran (2020FELTRAN, Gabriel. (2020), “Das Prisões às Periferias: coexistência de regimes normativos na ‘Era PCC’”. Revista Brasileira de Execução Penal. vol. 1, nº 2: 45-71, jul./dez. ), para compreender-se a dinâmica da busca por direitos e justiça nas periferias urbanas, é fundamental entender-se a coexistência de “regimes normativos” de referência para os moradores daqueles territórios. Segundo esse autor, essa trama de gestão da ordem articula a justiça estatal; a justiça dos tribunais do “crime”; a justiça seletiva da polícia e a justiça divina. Esses regimes, argumenta Feltran, não operam apenas na formulação do “dever ser”, na definição “regras ou leis”, mas constituem instâncias de reivindicação, atuam como operadores práticos do debate, da deliberação e execução de medidas de punição, regulação e controle (Feltran 2020:47). No centro dessa gestão, o autor aponta para o fato de que a violência, “compreendida como o uso da força ou a ameaça de faze-lo” (:48), e sobretudo a violência letal, tem sido gerida por esses regimes nas periferias urbanas. E essa gestão da ordem, elabora Feltran, qualifica os sujeitos que mobilizam esses diferentes regimes normativos, a partir de sua disposição para produzir “acordos” (:65).

Um dos efeitos dessa gestão da ordem é a o deslocamento forçado de sujeitos de seus territórios, marcada sobretudo por ameaças de aprisionamento ou morte dos próprios, e/ou de seus familiares. Essas ameaças, tanto da prisão quanto da morte, são mediadas e negociadas, tal como sugerido por Feltran, por agentes estatais, criminais e religiosos. Mas, para além dos atores envolvidos, destaca-se o fato de que o processo de criminalização e a “solução” carcerária absolutamente inflada no Brasil nas últimas décadas é o contexto mais amplo que constitui o chão movediço que serve de base para esse processo sufocante.

Ao lado das ameaças explícitas, que geram os deslocamentos forçados, existem ainda os avisos, os conselhos dados por mediadores da díade controle/cuidado, que sugerem deslocamentos “preventivos”, para locais distantes e por isso mais seguros. Em alguns desses casos, as CTs são destinos recomendados ou selecionados dentre os possíveis, por combinarem elementos que atendem a diferentes requisitos: localização, condições básicas de existência, regime de controle estabelecido, uma temporalidade mais alargada para a estadia, confiabilidade, e gestão moral da vida cotidiana. As CTs situam-se assim como um espaço possível de recepção no percurso de sujeitos que vivenciam as circunstâncias expulsivas do exílio urbano. E o aspecto religioso dessas CTs, para além de ser o que as define, é também o que indetermina o perfil de tais iniciativas, e as capacita a seguir acolhendo muitos tipos de gente (Machado 2021MACHADO, Carly. (2021), “Presos do lado de fora: comunidades terapêuticas como zonas de exílio urbano”. In: M. Fiore; T. Rui. (ed.). (2021), Working Paper Series: Comunidades Terapêuticas no Brasil . Social Science Research Council - Drugs, Security and Democracy Program. :150).

A dimensão religiosa, nesse contexto, pode ser pensada como o elemento não expulsivo que caracteriza a Comunidade Terapêutica, e isso é o que a situa na condição de exílio, refúgio. Se há algo do que se “acusa” religioso é de sua dimensão imersiva, proselitista, de querer ser o que captura, o que faz ficar. Mas pouco se pensa do que na religião, e particularmente no pentecostalismo, há por isso de receptive, de não expulsivo, mesmo do que a sociedade toma por repulsivo.

Há ainda um aspecto moral particular no exílio religioso das CTs. O amplo espectro de possibilidades expulsivas que levam as pessoas a uma CT muitas vezes não passa por uma triagem, uma checagem. O exílio, muitas vezes, é uma situação de acolhida, sem verificação moral nem criminal do passado daquele que o busca, mesmo porque a própria fronteira do exílio é uma fronteira na qual o que é “crime” se redefine, como no caso dos exílios políticos. O controle moral e disciplinar se impõe dentro da CT, mas não necessariamente no julgamento do que cada um fez chegar até ali.

O pentecostalismo das periferias urbanas e sua batalha espiritual entende toda situação como oportunidade de redenção, de operação divina sobre corpos e almas em sofrimento. Então acolhe, não força a saída, não expulsa, e enquanto cada um e qualquer um estiver em seu raio de ação, tenta mediar a restauração espiritual e social. E isso tem sido levado até às últimas consequências pelo pentecostalismo que “invade” prisões, delegacias, cracolândias. A batalha espiritual do pentecostalismo urbano não opera apenas como representação de conflitos, mas intervindo na cena urbana destes conflitos.

“Eu vi Deus curar traficantes e assassinos, eu vi que Deus tinha esse poder”

Nos últimos anos venho acompanhando diferentes pessoas que passaram por centros de recuperação, tendo como foco sua trajetória de vida e seus percursos na cidade.9 9 Projeto de pesquisa: “Danos, sofrimentos, acolhimento e recuperação: Comunidades Terapêuticas e as tramas do religioso e do secular no fazer da política e dos cuidados nas periferias urbanas do Rio de Janeiro”. Coordenação Carly Machado. Bolsa Produtividade CNPQ - Nível 2 (2021-2023). Nossas conversas não tratam exclusivamente do tempo que passaram na CT, mas dos diferentes momentos de suas vidas nos quais sentiram-se forçardos ou foram obrigados a se deslocarem pela cidade, e viverem fora de suas casas: na rua, em abrigos, CTs, na prisão, entre outros espaços de parada. Em comum entre esses homens (até aqui, com esse perfil, foram todos homens), sua relação com o pentecostalismo e o “problema das drogas”. Vou tratar aqui de minhas conversas com um desses homens, o Dino.

Dino era um homem perto dos 50 anos, com uma trajetória de consumo de drogas iniciada em sua adolescência e que perdurou até o meado dos seus 30 anos. Passou por experiências com álcool, maconha, “drogas de festa” (“metanfetamina, e ácidos, e LSD”), cocaína e crack. “Tudo que as outras drogas não fizeram comigo em dezenove anos, o crack fez em seis meses”, disse ele. O crack “tirou” dele 20 quilos, desestruturou sua vida, e foi então que Dino decidiu procurar ajuda. De 2005 (quando sua filha nasceu) a 2011, foi a psicólogos, psiquiatras, mas nada resolvia seu problema. Em 2011 ele conta ter tido uma “crise forte, uma espécie de overdose”. E nesse momento, um tio seu indicou um pastor com quem ele devia conversar.

O que inicialmente me parecia um típico testemunho de conversão, tomou um caminho bem diferente do que eu esperava. Dino me contou que foi então conversar com o tal pastor, e destaca que o que realmente conferiu “poder” à palavra desse pregador foi o fato de ele ser “conhecedor tanto da Bíblia, quanto do Código Penal Brasileiro”. O argumento decisivo para que Dino aceitasse a internação não foi um argumento bíblico, mas jurídico. O pastor explicou a Dino que “transportar” ou “simplesmente facilitar” o acesso à droga podia levá-lo à prisão. Então, disse Dino:

Eu falei, caramba, a ficha caiu! E de fato, eu num traficava, mas eu emprestava minha moto, eu emprestava dinheiro, e a gente tinha uma patota muito grande! [...] A gente ia em festa com uma quantidade muito grande, a gente não ia com a intenção de vender, mas as pessoas sabiam que a gente tinha bastante, vinham pedir. Então a gente vendia e... e ia dar, iria dar zebra... e ia dar ruim, como dizem. Então eu resolvi aceitar a ajuda dele.

O espaço no qual Dino internou-se voluntariamente também era, na cidade em que se situava, parte do equipamento de justiça para dar efetividade às decisões judiciais que envolviam internação compulsória, desintoxicação ou tratamento a dependentes químicos.

Eu fiquei em (nome da cidade). Esse centro, ele é particular, aceita alunos que paguem a mensalidade. Mas eles também têm um convênio com o Poder Judiciário da cidade, e o juizado, quando o réu era primário, e pegavam ele com uma pequena quantidade de droga, eles mandavam pra lá em vez de mandar pra cadeia. Mandavam pra lá, pro centro de reabilitação, e determinavam um tempo que o infrator tivesse que ficar lá. Então assim, foi uma experiência bem completa, né? Porque não tinha só pessoas que a família levava, tinha também, bem dizer, criminosos mesmo, né, que na verdade não queriam estar lá. Então, assim, eu tive que me esforçar ainda mais pra poder achar o meu caminho, pra poder não me envolver ainda mais com essas pessoas e acabar tendo um final pior.

A experiência de Dino nessa CT é narrada sempre combinando relatos de acolhimento e medo. A CT o ensinou sobre o perigo do envolvimento com as drogas - principalmente sobre os riscos da passagem para o mundo do crime. Dino não me relatou sua história inicialmente a partir do crime. Seu testemunho não era o de um “ex-bandido”. Sua vivência no “mundo das drogas” era narrada pela via da sociabilidade, do lazer e das festas. Ele dizia circular com as drogas nesses ambientes, vender pequenas quantidades para algumas pessoas, mas sem identificar sua prática com uma prática criminal, e sem viver essa experiência sentindo que corria o risco de ser preso em algum momento. Mas foi exatamente aí que a fala do pastor fez sentido para ele, esclarecendo os pontos do Código Penal Brasileiro. O principal perigo do consumo que levou Dino a se internar foi quando o horizonte inescapável do cárcere se configurou para ele.

O cotidiano nas CTs é muitas vezes descrito como tenso, agressivo e até violento por ex-internos. E essa tensão, advinda da própria relação entre eles, é ela mesma uma das razões para se “sair da droga”. Esse clima marcado por um risco cotidiano é narrado por muitas pessoas que passam pelas CTs como um alerta. E esse alerta constitui parte do dispositivo disciplinar desse equipamento que serve como uma indicação do que pode ser pior, na vida no crime e na prisão. Como diz Dino, esse dia a dia lembra que se pode “acabar tendo um final pior”.

Esse tempo que eu fiquei lá na clínica serviu pra eu realmente ver que Deus existe. Vi possessões demoníacas. Vi pessoas chegarem lá com o coração duro igual uma pedra, sabe? Vi pessoas rudes baterem em animais. Vi as pessoas batendo num porco, como se bate com um pedaço de pau, sei lá, em um frango, né? Saí de lá com o coração quebrado, com a alma amolecida. Eu vi homens duros saírem de lá transformados pelo poder de Deus.

Em contextos que já partem de um gradiente alto de violência, o medo e o risco inerente às CTs muitas vezes são elementos cruciais que configuram espaços autorregulados pela radicalidade da violência extrema que se dá fora deles. Presenciar uma pessoa batendo em um porco com um pedaço de pau é um alerta do que pode acontecer em outros contextos menos regulados, como nas prisões. Ou mesmo do que pode acontecer alí dentro, se a violência que ronda, prevalecer.

Há no dia a dia das CTs também uma pedagogia cruel que aponta para os riscos de uma vida pior, que tenta antecipar de modo mais ou menos explícito ou intencional o risco da morte. Em sua análise das relações entre o religioso e o secular na gestão de populações, Birman (2019BIRMAN, Patrícia. (2019), “Narrativas seculares e religiosas sobre a violência: as fronteiras do humano no governo dos pobres”. Sociologia & Antropologia, 9(1): 111-134.) discute como as ideias religiosas de dor e sofrimento são mobilizadas em contextos violentos como modalidades da “fabricação do humano”, possibilitando inclusive uma legitimação de práticas de tortura como caminho para a redenção. As denúncias de violação de direitos humanos em comunidades terapêuticas,10 10 Ver Duarte e Glens (2021). assim como em prisões, abrigos e outras instituições de controle, confirmam os desdobramentos cruéis dessas práticas e dessas passagens.

Dino explica o efeito da CT na sua vida contando sobre o que ele viu acontecer por lá, qualificando em seus relatos não apenas momentos suaves e amorosos, mas experiências mobilizadas na passagem entre o sofrimento e a transformação; o risco e o acolhimento. O tempo na CT comprovou para ele a possibilidade da cura de pessoas “com o coração duro igual a uma pedra” porque lá ele conviveu com essas pessoas e suas ações, inclusive violentas.

Por isso, a ideia de a cura relatada por Dino é bastante expansiva: “Eu vi Deus curar traficantes, assassinos, inclusive assassinos. Eu vi que Deus tinha esse poder, entende?”. Mais do que a cura da adicção, há uma concepção geral de que, quem se cura num centro de recuperação dá um jeito na vida como um todo, e pode se curar da violência. Em um horizonte mais amplo, o que está em pauta é se há cura ou salvação para essas pessoas consideradas erradas, violentas, excedentes, incontroláveis.

Os trabalhos de César Teixeira apresentam uma análise minuciosa do processo de “recuperação” operado em Comunidades Terapêuticas. Em seu artigo de 2016, que tem por foco o tema do testemunho, Teixeira discute o ato de testemunhar nos contextos de centros de recuperação como algo muito além da construção de uma narrativa, mas uma “capacidade do ator e da instituição em que se encontra de transformar a sua história de pecados em uma evidência de “transformação de si” e da possibilidade dessa transformação” (Teixeira 2016TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. (2016), “O testemunho e a produção de valor moral: observações etnográficas sobre um centro de recuperação evangélico”. Religião & Sociedade , 36(2): 107-134. :108).

Dino formula de diferentes formas sua dúvida sobre os tratamentos médicos e psicológicos na promoção dessa transformação de si, dessa cura. Disse que ficou seis anos tentando diferentes profissionais, e que quando foi para o centro de recuperação ele realmente não acreditava que ia dar certo. Mas, segundo Dino, o que ele aprendeu na internação foi a acreditar que os homens podiam ser transformados.

A medicina diz que a dependência química é incurável, mas lá eu vi que através da religiosidade, através do poder de Deus, as pessoas eram curadas. Eu vi várias pessoas serem curadas lá. A internação serviu muito para isso. Para eu ver que tem cura, para eu ver que tem chance de eu me curar.

Abordar o debate sobre a ideia de cura nesse contexto exclusivamente sob o ponto de vista da adicção e das práticas de saúde, na díade tratamento/cura, pode invisibilizar uma grande parte do que está sendo desejado e buscado pelas pessoas que vão para as CTs. Quando Dino fala em cura, a sua e a das pessoas que ele conheceu - assassinos e traficantes -, ele fala sobre uma mudança integral, e uma transformação de si, da mente, que trata de uma relação com muitas dimensões da vida, para além do consumo de drogas. “Hoje eu entendo que foi Deus quem mudou a minha mente”. A cura, nesse contexto, aponta para uma transformação da vida.

E e passei a enxergar que a droga é a corrupção pro mundo, né? Ela financia o uso de armas, o tráfico de armas, o tráfico de pessoas. A droga tá envolvida em tudo que é ruim. Eu comecei a entender isso e vi que tinha que me afastar, e me apeguei a Jesus. Hoje a gente desenvolve um trabalho lá na igreja. Eu tô quase toda semana lá dando meu testemunho. Vou em outras igrejas também, né? Levando o testemunho, levando uma palavra, e isso vai me fortalecendo. Hoje eu vou várias casas de recuperação. Isso vai enraizando a gente, né?

Na história de vida de Dino, a entrada na CT desenhou um novo mapa existencial para sua vivência. O momento que ele cisrcunscreve como o pior de sua vida poderia tê-lo levado à prisão ou à morte. No caso dele, o desvio para uma CT, com toda sua radicalidade e complexidade, formulou um outro roteiro de lugares e relações que, até o momento, permitem uma vida situada, “enraizada”.

Uma análise mais precisa, na verdade, exige um ajuste temporal. Dino diz: “a gente vai se enraizando.” O gerúndio dessa afirmação indica a dimensão processual desse modo de existência. Em todas as minhas conversas com Dino chamava minha atenção como seu jeito de falar trazia uma certa suspensão, uma contínua indicação da provisoriedade. Nunca ouvi Dino contando seu testemunho em uma igreja. Talvez sua construção narrativa nesse contexto fosse mais assertiva. Nas trocas que tive com ele, fui percebendo que ele refletia sobre sua trajetória sem “assentar” sua vida em um novo momento definitivo e estável.

Tal como analisado por Souza, enquanto o uso da droga implica um registro marcado por uma temporalidade imediata, o tempo da recuperação demanda a “reconstrução paciente de um novo horizonte temporal que permita sair do ciclo vicioso do aqui e do agora”, uma “perspectiva de futuro”, “um planejamento mínimo da vida”. Ainda segundo Souza “O que importa é que exista um começo, e que os ganhos em organização da identidade individual que a perspectiva de futuro enseja seja efetivamente ‘vivida’ pelo usuário, possibilitando seu aprofundamento futuro” (Souza 2016:27).

Retomando aqui a imagem do “horizonte inescapável do cárcere”, discutida anteriormente, é pertinente expandir essa reflexão sobre perspectivas de futuro para além do tempo do “uso da droga”, e da dimensão “individual” da organização da identidade, como analisado por Souza (2016SOUZA, JESSÉ. (2016), Crack e exclusão social. Brasília: Ministério da Justiça e da Cidadania, Secretaria Nacional de Política sobre Drogas.). Faz-se importante inserir nessa difícil construção de um horizonte de futuro, os desafios impostos pelas contínuas ameaças de desterritorialização, prisão e morte que rondam a existência desses sujeitos, e turvam qualquer convocação à visualização de uma vida melhor num tempo adiante. Além disso, reconhecida a radicalidade infringida pelo problema da violência, o processo de “enraizar” para tentar construir uma nova vida, demanda ainda uma dimensão comunitária, coletiva, que alimente o cotidiano envenenado com microdoses de esperança e ofereça alguns espaços de refúgio.

Formas de evitar um final pior

O objetivo deste artigo foi analisar a questão das Comunidades Terapêuticas não pela perspectiva da “falta” de ações estatais e governamentais, particularmente no campo da saúde mental, mas pelo excesso das políticas de justiça, segurança pública e encarceramento que atinge as populações pobres das periferias urbanas brasileiras.

Uma conclusão central deste trabalho é a relação das Comunidades Terapêuticas com o processo de criminalização de populações específicas a partir do “problema das drogas”. Nesse processo, institui-se um complexo circuito urbano e institucional que mobiliza a produção de atores que vivem essas vidas “sob cerco” (nos termos de Machado da Silva, 2008MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. (org.). (2008), Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Faperj: Nova Fronteira.), entrando e saindo de diferentes espaços, manejando a produção da vida, e o evitamento do cárcere e da morte. O “fazer circular” (Mallart; Rui 2017MALLART, Fabio; RUI, Taniele. (2017), Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas. Ponto Urbe, 21. ) e as transversalidades produzidas nesse contexto (Mallart; Rui 2015MALLART, Fabio; RUI, Taniele. (2015), “Por uma etnografia das transversalidades urbanas: entre o mundão e os dispositivos de controle”. GT34 - Sobre periferias: novos conflitos no espaço público. Trabalho apresentado na 39a. Encontro Anual da ANPOCS. ) são aspectos cruciais desse circuito que dá sentido às práticas das CTs nas periferias urbanas, e para os sujeitos e famílias que enfrentam essa realidade.

Se no campo normativo, do “dever ser” das políticas públicas, o tema da regulação das CTs é uma urgência, e a discussão sobre o desenvolvimento de estratégias de fiscalização desses espaços é fundamental, por outro lado, na perspectiva da vida ordinária banhada pela violência, do cotidiano como ele é, pelo conhecimento envenenado, onde aprende-se a habitar a devastação nas margens do estado (Das & Poole 2004DAS, Veena; POOLE, Deborah. (2004), Anthropology in the margins of the state: comparative etnhographies. Santa Fe: School of American Research Press. ), as CTs são equipamentos que fazem parte dos mecanismos de regulação e evitação da violência extrema da prisão e da morte. Do ponto de vista da prisão como “máquina de morte”, e do cotidiano no tráfico enquanto risco extremo, a radicalidade da vida em algumas CTs tem um efeito minimamente protetivo e opera produzindo um horizonte de esperança de vida que possa evitar um mal pior.

Como espaços de recepção, as Comunidades Terapêuticas foram discutidas sob duas perspectivas que têm o pentecostalismo como eixo analítico. No primeiro, esses espaços combinam hospedagem e controle. Apresentam-se como lugares possíveis para os sujeitos, dentre escolhas extremas, perigosas e violentas. Nesse sentido, apesar de receptivos, não são espaços que promovem um completo conforto físico e subjetivo. São ambientes tensos, permeados por negociações limítrofes entre aqueles que ali precisam ficar, e os modelos morais restritivos que se oferecem a recebê-los.

O segundo e último aspecto analisado, como efeito da prática receptiva das Comunidades Terapêuticas, é a produção pentecostal de um horizonte de cura e de transformação de si e da vida. Recuperar a vida, nesses contextos extremos, começa por manter-se vivo, fora da prisão, longe de cricuitos criminais e, cotidianamente, buscar formas de evitar um mal pior e tentar viver uma vida enraizada.

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  • 1
    Um governo manicomial? Pela revogação do decreto 11.392/2023! Pelo fim dacomunidades terapêuticas! Por Pedro Henrique Antunes da Costa, de Juiz de Fora (MG). Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2023/02/01/um-governo-manicomial-pela-revogacao-do-decreto-11-392-2023-pelo-fim-das-comunidades-terapeuticas/. Acesso em: 01/02/2023.
  • 2
    Sobre os marcos regulatórios para Comunidades Terapêuticas - (Fiore; Rui 2021:09): “Um olhar panorâmico salienta algumas das normativas que compõem tal marco regulatório: a LRP, que redireciona a atenção em saúde mental com o fim do modelo asilar; a Portaria nº 3.088/2011 do MS, que estabelece a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), na qual se incluem as CTs; a Portaria nº 131/2012 do MS, que institui os critérios para o financiamento público para a saúde; a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 29/2011 da ANVISA, que determina critérios para o licenciamento sanitário das instituições de atenção; a Resolução nº 1/2015 do CONAD, considerada o marco regulatório específico das CTs; e a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), cuja alteração, em 2019, incluiu uma seção sobre as CTs”.
  • 3
    “Essa revolução começou com um grupo de voluntários cristãos que tentava, nos anos 1970, acompanhar os detentos em seu tempo livre. Sua capacidade de relacionar-se com eles levou, poucos anos depois, ao pedido para administrar um pavilhão penitenciário. Hoje existem 50 centros APAC no Brasil que integram o sistema prisional público através de um convênio administrativo que custa um terço do que o Estado paga por um detento comum: 3 mil reais frente a 950 reais. Uma vez fora, a taxa de reincidência dos presos que passam pelo sistema comum é de 85%, contra 15% no caso da APAC. O método já inspira iniciativas similares em outros países da América Latina. Na Colômbia, está em estudo sua aplicação aos detentos da FARC.” (El País, 25 de agosto de 2017) Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/24/politica/1503582779_209546.html Acesso em: 15/07/2019.
  • 4
    Projeto de pesquisa “Crime e religião: mediadores sociais do processo de pacificação na região metropolitana do Rio de Janeiro” (2011-2015). Financiamento FAPERJ - APQ1 - Edital de apoio à pesquisa, 2012.
  • 5
    Tomo aqui como referência a ideia de “conhecimento envenenado” de Das: “se a maneira de estar com os outros foi brutalmente ferida, então o passado entra no presente não necessariamente como uma recordação traumática, mas como conhecimento envenenado” (Das 2008:244).
  • 6
    Ver Godoi (2015GODOI, Rafael. (2015), Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Tese de Doutorado em Sociologia, FFLCH-USP.), Mallart e Rui (2017), e Barbosa (2005BARBOSA, Antônio Rafael. (2005), Prender e dar fuga: biopolítica, tráfico de drogas e sistema penitenciário no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro.).
  • 7
    Mallart e Rui (2017), Mallart e Rui (2015), Mallart (2018) e Fernandes (2018).
  • 8
    Esta publicação, composta por 8 diferentes artigos, faz parte do Programa Working Paper Series do Social Science Research Council, que, em 2020/2021, foi dedicado à temática Comunidades Terapêuticas do Brasil. Essa atividade foi coordenada por Mauricio Fiore e Taniele Rio, editores da publicação final do Programa, e autores da Introdução ao Dossiê. Mais informações: https://www.ssrc.org/publications/working-paper-series-comunidades-terapeuticas-no-brasil/. Acesso em: 10/04/2023.
  • 9
    Projeto de pesquisa: “Danos, sofrimentos, acolhimento e recuperação: Comunidades Terapêuticas e as tramas do religioso e do secular no fazer da política e dos cuidados nas periferias urbanas do Rio de Janeiro”. Coordenação Carly Machado. Bolsa Produtividade CNPQ - Nível 2 (2021-2023).
  • 10
    Ver Duarte e Glens (2021DUARTE, Carolina; GLENS, Mathias. (2021), “Fiscalização em Comunidades Terapêuticas: uma experiência da defensoria pública do estado de São Paulo”. In: M. Fiore; T. Rui (ed.). Working Paper Series: Comunidades Terapêuticas no Brasil . Social Science Research Council - Drugs, Security and Democracy Program.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2023
  • Aceito
    12 Abr 2023
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